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DIARIO DAS CORTES GERAES E EXTRAORDINARIAS DA NAÇÃO PORTUGUEZA.

NUM. 16.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 1821.

SESSÃO DO DIA 15 DE FEVEREIRO.

Leo-se e approvou-se a Acta da Sessão antecedente.

O SENHOR Borges Carneiro, relativamente ás Bases da Constituição, artigo 4.º, apresentou, e leo a seguinte

PROTESTAÇÃO.

Que na Constituição fique estabelecida huma regra pela qual se conheça quaes sejão os delictos porque o Cidadão não poderá ser pronunciado a prisão, mas se haja de livrar solto: sem bastar que aquella regra se estabeleça no Codigo ou Leys criminaes, porque caias podem durar hum só anno.

Por esta occasião se decidio, que cada hum dos senhores Deputados tem direito de fazer declarar na Acta a sua opinião em qualquer materia sobre que hajão de ter lugar outros protestos.

Proseguio-se em discutir os artigos 8.°, 9.°, e 10.° das Bases da Constituição relativos, á Liberdade da Imprensa, e disse:

O senhor Antonio Pereira - Se me he licito, Senhores, soltar a voz, e chamar a attenção de Congresso tão respeitavel, eu proporia huma idéa, que me foi excitada pelas sabias, e profundas discussões a que tenho tido a honra de assistir. Confesso primeiramente, que a materia se acha completamente exhaurida, e que me he impossivel dizer cousa alguma de novo relativamente ao objecto de que actualmente se trata. Por tanto resta-me sómente lembrar a esta Augusta Assembléa hum meio de conciliação entre as differentes opiniões tão sabiamente analysadas, e energicamente defendidas. Os senhores que tem apoyado a Liberdade da Imprensa tomárão por fundamento principal, que islã era a unica medida para conservar a Liberdade Nacional, para promover a circulação das luzes, para formar, e manter a opinião publica; que os abusos desta Liberdade assaz se podem obviar pela censura posterior, e pelas penas combinadas contra os transgressores; pertendendo aliás mostrai, que a ignorancia, a escravidão, o fanatismo, a superstição erão os resultados necessarios, e irremediaveis da Censura prévia.

Os senhores que sustentarão a necessidade da Censura prévia apoyárão a sua opinião no principio, que este era o unico meio de vigiar sobre a segurança publica, sobre a honra das familias, e sobre o credito dos individuos, e principalmente de conservar, e promover a pureza dos sentimentos religiosos nos animos Portuguezes; que os abusos de que esta instituição era arguida podião muito bem ser remediados pela responsabilidade dos Censores, pelos Regimentos que lhe forem dados, e por outra ordem de cousas, que a este respeito se julgar conveniente estabelecer; e mostrárão que a sedição, a infamia, a corrupção dos costumes, e a impiedade erão os resultados certos, e necessarios da Liberdade de Imprensa, males que a Censura posterior jamais poderia exilar. Taes são, Senhores, em substancia as razões, que motivárão sentimentos tão oppostos. Se apparecesse pois hum meio de conciliação, que, reunindo as vantagens que as duas opiniões promettem, removesse igualmente os males do que ellas reciprocamente se accusão, seria este sem duvida o ponto de reunião em que todos se deverião concentrar. Este ponto central he o que me proponho descobrir. Se não for feliz na minha tentativa, serei ao monos breve.

Este meio de conciliação parece offerecer-se em hum systema, em que a Censura prévia fosse de tal sorte modificada, que ella se tornasse quasi equivalente a huma Imprensa livre. A proposição tem ar de paradoxo, eu o confesso. Censura prévia com attributos de imprensa livre parece contradicção. Porém eu me explico, e para o fazer com a precisão, e clareza possivel, lancemos os olhos ao artigo 9 das bases da Constituição, que serve de texto á presente contesta-

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ção. Elle comprehende tres partes, as quaes, sendo convenientemente alterados, concorrem ao meu intento. Supponhamos pois decretar-se neste artigo 1.° que todos os Escriptos, que houverem de publicar-se, serão previamente subjeitos á competente Censura: 2.° que os Centros serão responsaveis no exercicio da sua commissão, e punidos pelo abuso que della fizerem; que o Escriptor será ouvido na qualificação dos seus escriptos, que lhe competirá accão de injuria contra os Censores todas as vezes que a Censura for iniqua, ou mal fundamentada; 3.º que, para se realizarem todas estas condicções, as Cortes nomearião hum Tribunal de inspecção, portanto quem os Censores possão ser accusados, e por quem possão ser processados, e punidos do abuso, huma vez que este seja sufficientemente provado. A primeira vantagem deste plano he que o Escriptor vê nelle sufficientemente assegurada a sua tão proclamada Liberdade na publicação de seus pensamentos, sem que jámais possa ter receio de ser injustamente tolhido no exercicio deste tão precioso direito, cessando já por este lado as rasões que da offensa deste direito se deduzírão contra a Censura prévia.

Porém este não he ainda o principal resultado deste systema. Reparando-se bem na ligarão, e dependencia dos poucos Membros que o compõe, vê-se huma Censura prévia dirigida por Censores responsaveis, e puniveis pelos seus abusos, e inspeccionados por hum, Tribunal nomeado pelas Cortes. Sente-se muito bem, que em hum tal sistema a Censura previa seria animada por huma influencia Nacional; ou para melhor dizer, seria hum instrumento depositado nas mãos da Nação. Ora nunca póde suppôr-se, que a Nação ignora os seus interesses. Ella gravita sempre, por huma tendencia natural, para a sua felicidade; he por tanto de esperar, que manejando este instrumento o empregará constantemente em sua vantagem. Se hum instrumento pôde, em virtude de huma viciosa direcção, produzir hum mal, he hempre a hum terceiro; mas quando os bens, e males, que podem resultar do uso, ou abuso de hum instrumento qualquer, são relativos ao mesmo agora que o põe em acção, nunca póde presumir-se, que este jámais usará delle senão em sua propria utilidade. Neste systema os livros, que se publicarem, serão como conduzidos á presença da Nação antes na sua publicação; a felicidade publica dirigirá á sua escolha, e ver-se-hão sómente publicados aquelles que assegurarem a sua liberdade, que promoverem a sua illustração, que concorrem a fomentar a sua piedade, e a conservar sempre pura, e injusta a pureza da sua Religião; e serão logo suffocados antes de nascerem todos aquelles que tenderem a roubar-lhe tão precio os bens, ou se dirigirem a perturbar a sua tranquillidade, a macular as familias, ou a denigrir o credito dos Cidadãos.

Dir-me-hão talvez, tudo isso seria bom, se a Nação mesma fosse o Censor; mas neste systema nunca deixão os Censores de serem cinco, ou seis homens: concordo; mas que homens? Homens honrados á mais estricta responsabilidade, puniveis pelos abusos da sua Commissão, inspeccionados por hum Tribunal nomeado, e escolhido pelas Cortes Nacionaes; e por conserquencia animados do hum espirito Nacional, obrando debaixo de huma influencia Nacional, marchando sempre na direcção de hum impulso Nacional. Sente-se pois muito bem a exactidão do meu enunciado; que neste paterna a Censura prévia seria hum instrumento depositado nas mãos da Nação; que lhe servirem sempre de proveito, e vantagem, e nunca de prejuiso ou ruina. Parece-me pois, Senhores, que vos tenho mostrado o ponto central onde se reunem todas as vantagens, e donde exorbitão todos os incommodos; isto he, a Censura prévia regulada pelo que tive a honra de vos propôr.

O senhor Serpa Machado. - Não approvo o moio de conciliação que acaba de propor hum digno Membro deite Congresso; similhante conciliação he apparente, e não real. Em todo o caso ficavão os escriptos subjeitos a huma censura prévia, o que teria os inconvenientes que hontem ponderei. Demais quem serião os senhores que se quererião subjeitar a tão grande responsabilidade como se exige para evitar o abuso da censura, ou os não haveria, ou equivaleria a censura á liberdade da Imprensa, sem se remediarem posteriormente os seus males.

Outro porem vai a ser o meu objecto. Na Sessão de hontem se disse que era inconsequente a opinião daquelles que admittião liberdade de Imprensa em materias politicas, e não religiosas, e a negavão nestas; por que as mesmas rasões que havia em hum caso, existem no outro. Similhante assersão não he verdadeira, porque a favor da Liberdade da imprensa em materias politicas e scientificas ha grandes motivos de utilidade, tanto aos que governão como aos governados; estes tem facilidade do expor as suas queixas, e de patentear os abusos da publica administração, contendo assim os encarregados della; e os que governão tem hum meio prompto de justificarem o seu procedimento, e de contradizerem as calumnias com que os atacarem.

Nenhuma destas vantagens se verifica na Liberdade da imprensa em materias religiosas; della podem resultar males, e poucos ou nenhuns bens; e em taes circunstancias pede a prudencia humana, que senão adopte huma medida de que póde resultar mal, sem se obter nenhum tem para a sociedade.

Tambem houve quem dissesse que se não podia verificar esta censura em materias do Dogma e Moral Evangelica, sem se subjeitarem á cenoura, todos os livros; porque em todos poderião entrar incidentemente estas materias, de que se produzírão muitos exemplos.

Repondo que quando eu digo se devem subjeitar a Censura previa os livros de Dogma e Moral Evangelica, entrudo só aquelles que tem por objecto principal estas materias, e não aquelles em que ellas se tratassem incidentemente; o que posteriormente poderião determinar sabias e providentes leys; e tanto se tem de determinar elles objectos, que no artigo 10.º se falla dos escriptos sobre Dogma e Moral, cuja censura posterior fica reservada aos Bispos. Logo não he incompativel distinguir os escriptos politicos e scientificos daquelles que versão sobre Moral e Dogma.

O senhor Borges Carneiro. - Debalde o despotismo, e a supersuação, estes dous monstros que tanto tem espenhado a especie humana, e acarretado-

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lhe elles só mais males que todos os outros a que ella está infelizmente subjeita; debalde estes monstros, digo, pertendem ainda obrigar a generosa Nação Portugueza a que continue a soffrer os ferros da censura previa, e impedir o estabelecimento da Liberdade da Imprensa, unico e firmissimo rochedo em que aquelles monstros se despedação; unico e inexpugnavel antemural da Liberdade dos Povos. Debalde o intentão; nós temos jurado manter a augusta Religião de nossos Pays, porem não as superstições, e embustes que lhe addicionárão os Jesuitas, e outros Ecclesiasticos preoccupados ou interesseiros: temos jurado manter o Throno de Bragança, porém não as prepotencias dos Cortezãos, dessa alcatea de lobos carniceiros que o rodeão." Da Liberdade da Imprensa, nos dizem, e da falta de censura previa póde seguir-se a irreligião, a anarchia, a offensa da reputação individual: he melhor prevenir delictos do que ter de os castigar." Assim seria se ao passo que se abuse a censura previa, não se estabelecesse huma Ley e hum Tribunal Supremo que, protegendo a Liberdade de escrever, reprima ao mesmo tempo o seu abuso; mas esta Ley, e este Tribunal estão consignados no mesmo artigo 9.° que se está discutindo. Nesta Ley se prescreverá, que nenhum auctor ou edictor publique o seu livro sem manifestar seu nome, e se lhe irrogarão graves penas para o caso de elle offender a Religião, o socego publico, ou a honra individual. Se elle pois quebrar os limites marcados, o seu nome, e o seu delicto estão já provados, e será infallivel a applicação da pena, sob o Juiso de hum Tribunal composto de varões rectos e illustrados. Como pois se suppõe que se commetão taes delictos. Haverá quem roube ou mate ao meio dia na praça publica entre a multidão? Não temos visto nem esperamos ver taes casos. Mas que será se pelo contrario fizermos depender de censura previa a publicação das obras? Os males serão muito maiores. O pensar de alguns Censores (verdadeiramente de hum só, pois entre elles ha sempre distribuição dos papeis, ao menos amigavel e convencional) será a bitola do pensar de toda a Nação. Estes homens pelo andar do tempo se hirão conformando ás vontades do Governo que os nomeou, ou que pelo menos póde conferir-lhe mercês ou castigos, e em poucos annos só se escreverá o que possa agradar ao mesmo Governo. A Opinião Publica, este Tribunal Supremo a quem são subjeitas todas as Auctoridades, não poderá rectificar-se: perder-se-ha o inestimavel bem de se poderem reclamar os erros e prevaricações dos Empregados Publicos, e as infracções da Constituição e das Leys: e dentro de pouco tempo o despotismo, que sempre se dá as mãos com o fanatismo e superstição, tornará a collocar o seu throno sob vê a oppressão dos Povos. Hum livro será condemnado só porque não sé ajusta ao pensar do Censor, antes de poder ser julgado pelo Publico. Reputa-se-ha como irreligioso tudo o que não for superstição; e como sedicioso e revolucionario, tudo o que só he direito do Cidadão. As Sciencias e Artes se entorpecerão, visto que só poderão publicar-se escriptos de ingenhos mediocres, pois as producções do genio espantão sempre aos espiritos fracos, como a luz aos passaros, noctívagos. Eu poderia referir aqui mil exemplos destas tristes verdades. Sabemos que as Obras Juridicas de Mello Freire, forão reprovadas pelo Censor Pereira, e não chegarião a ver o dia, se a Academia Real das Sciencias as não tivesse censurado em conformidade do seu Privilegio. Correm hoje neste Reyno com boa acceitação dous Folhetos, que já sob a presente Commissão de Censura (que certamente não será tachada de illiberal) forão primeiro reprovados, por haverem sido distribuidos a hum dos seus Membros, com cujo pensar se não conformarão aquellas idéas; e que depois o forão a outro, com cuja cabeça ellas não pugnavão.

Vejo que muitos dos Illustres Deputados exigem a censura previa sómente no que toca ao dogma e moral: mas não vêem elles que na practica não póde fazer-se esta distincção? e que depende ella das diversas idéas e interesses dos Censores, e dos tempos e lugares em que se escreve? Nenhum livro haverá, por mais longe que esteja de tratar de materias religiosas, que possa imprimir-se sem censura previa, visto que nelle podem ao menos incidentemente conter-se algumas proposições tocantes á Religião. O Edictor que pertender publicar num livro alheio, qualquer titulo que este tenha, estará sempre incerto a esse respeito. Os Bispos e mais Ecclesiasticos quererão censurar todos os Livros que se houverem de publicar, e segundo suas idéas ou interesses presumirão achar sempre nelles proposições offensivas ao dogma e moral, ou ao menos temerarias, escandalosas, mal soantes, offensivas de orelhas piedosas. Se Galileo, por exemplo, escrever que a terra se; move noe espaço; não só prohibirão a publicação da sua obra, mas o farão conduzir algemado do centro de Italia para as prisões de Roma, como contradictor do sagrado texto, que fallou sobre a permanencia da terra, terra autem in acternum stat. Se Haller attribuir as chuvas aos vapores terrestres, fermentados em as nuvens, será reprovado o seu livro, por ter dicto o Auctor do Pentateuco, que as aguas que estão sobre o firmamento cahem dellas por cataractas sobre a terra. Se Newton ensinar que a luz procede do sol, prohibir-se-ha a sua doutrina como ímpia, porque tambem alli está escripto haver existido a luz quatro dias antes deste astro. Se Maffei combater os sonhos e as feiticeiras, reprovarão seus escriptos aquelles que sabem estar consignada no Velho Testamento a veracidade dos sonhos, e que huma Pythonissa invocava os manes do defunto Samuel. Se Buffon affirmar, que leys da natureza são eternas, necessarias, e immudaveis, não o soffrerão os que sabem que a Biblia em cada pagina no-las mostra revogadas, em cada pagina a sol parado, os mares divididos, os brutos fallando, hum homem quebrando cadêas de ferro, conduzindo aos hombros duplicadas portas de huma cidade. Se os Philosophos em fim exaltarem as excellencias do matrimonio, serão julgados ímpios, pelos leitores do Concilio Tridentino, que fulmina com anathema a quem disser que o estado de solteiro não he mais perfeito que o de casado.

Mas venho já a exemplos que não se aproximão tanto ao dogma, e a moral. O Padre Pereira em

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sua Tentativa Theologica revocará para os Bispos o poder de dispensar nos Concilios Geraes, e nas Constituições Apostolicas; porem a Corte de Roma o tratará como Schismatico, destruidor da unidade do Primado, e mandará queimar o livro, e effigie de seu Illustre Auctor. Pedro de Marca assignará os transtornados limites do Sacerdocio e Imperio, demonstrando haverem os Papas e Bispos invadido o territorio da jurisdicção temporal; porém a chusma dos Escriptores Ultra-Montanos apregoarão seu livro como ímpio, e dirão ser contra a honra e interesse de Deos o que só he contra a honra e interesse dos Ecclesiasticos. Quem será pois o Juiz destas interminaveis controversias, huma vez que os livros não chegarem a ver a luz publica? Deverão as Nações servilmente subjeitar-se ás idéas, ou aos interesses de hum Censor? Não serão os Portuguezes, hoje forros da vil escravidão, os que continuem a submetter a preciosa propriedade de seus pensamentos a hum punhado de homens mercenarios, interesseiros} ou preoccupados. Aquelles que tanto temem pela feliz subsistencia da Religião, e do Throno, lembrem-se que estes não tem até agora perigado na Inglaterra, onde a Imprensa he livre; e que pelo contrario o falso Manometismo se dilatou pela Turquia, onde só se escreve o que quer o despotismo. A Augusta Religião de Jesu Christo não carece de violencias: está bem segura de que as portas do inferno nunca prevalecerão contra ella. Muito poderia dizer era tão vasta materia; porem receio abusar da paciencia deste Soberano Congresso.

O senhor Ribeiro Saraiva. - A Censura previa parece-me em tudo preferivel á Censura posterior á imprensão de qualquer obra, especialmente tendo esta por assumpto o Dogma, e a Moral Religiosa. O homem honrado, que em seus escriptos, como em suas acções, deseja conformar-se á rasão, e ás leys, bem longe de recear, estima a Censura previa de suas produções, em cuja approvação começa logo a sentir o prazer que traz comsigo o acerto: e se, contra as suas intenções, se lhe aponta algum descuido, ou desvio, que não tenha resposta, elle aproveita gostoso a occasião de se corrigir, antes de comprometter sua reputação com o publico, depois que nescit vox missa reverti.

E com quanta maior rasão deve hum escriptor serio estimar, e mesmo agradecer huma providencia que obriga a não commetter hum erro, ou delicto, pelo qual infallivelmente o havia de punir a Cenoura posterior?

Sendo pois tão manifestas as rasões de preferencia da Censura prévia á Censura posterior para com o escriptor de boa fé, não o são menos relativamente á ordem publica moral e religiosa, a despeite das leys e providencias as mais exactas, que se prescrevão para a Censura posterior. Por quanto não se verificando esta antes da distracção dos exemplos impressos (o que equivaleria á Censura previa) quando se chegarem a denunciar os escriptos perniciosos, já os seus erros tem grassado, sem que o superveniente castigo do Auctor possa remediar os seus estragos nos leitores incautos. e pouco instruidos; sem metter em conta o escandalo dos prudentes.

O principio geral da Nomothetica adoptado em todas as legislações, que antepõe a prevenção dos delictos á sua punição, he mui decisivo a favor da Censura previa na hypothese que tenho proposto. Sem que passem de imaginarios os receios que se formão sobre a boa fé e imparcialidade dos Censores prévios, que se não possão achar nos Juizes da Censura posterior com maior prejuiso dos Escriptores, e do Publico, como fica mostrado. Mas alem de que os homens sempre se devem reputar bons em quanto se não mostra o contrario, em ambas as Censuras tem o Escriptor igual direito pelas leys a ser ouvido em defeca da sua opinião contra o Censor, com recurso a toda a Junta, ou ao Juiso superior, que houver de constituir-se para este fim.

Por estes principios, que reputo evidentes, julgo util, e mesmo necessaria a Censura previa nos livros tocantes ao Dogma e Moral Christan, que debaixo de igual restricção tão dignamente tratou Bossuet, Fenelon, Nicole, e muitos outros Sabios de primeira ordem em França, Italia, Allemanha, etc. Ficando por tanto livre a Imprensa de Censuro, prévia nos escriptos politicos, scientificos, historicos, e outros, em que os offendidos pelos superiores possão denunciar ao publico as suas queixas; e quaesquer pessoas as malversações dos que governão subjeitos á pena de calumniadores sómente quando as não provem; e ás acções competentes a respeito das injurias feitas aos particulares, segundo os principios legaes.

O senhor Pereira do Carmo. - Bem conheço que a materia está exhaurida pelos Illustres Deputados, que me precederão; todavia, na qualidade de Membro da Commissão, tinha particular desejo de conciliar as opiniões desta Augusta Assemblea, o que talvez consiga por via de huma simples definição. O que he censura previa? He huma bitola moral, por onde os Governos mandão que os governados moção suas opiniões, e escriptos. Desta definição segue-se, que admittida a censura previa, não podem os governados escrever, e publicar, senão o que os Governos querem que se escreva, e publique. Pergunto agora, he proveitosa aos governados a censura previa? Não: porque por meio della se deirão algemas ao pensamento; e de todas as escravidões, esta he a peior. Alem de que, a censura previa encontra directamente o Artigo 1.° já sanccionado por esta Assemblea, que diz assim = A Constituição Politica da Nação Portugueza deve manter a liberdade, segurança, e propriedade de todo o Cidadão. Ora, eu sei mui bem conciliar Constituição com protecção, mas confesso que me he impossivel combinar Constituição com escravidão. Mas será proveitosa aos Governos a censura previa? Não: porque lhes tolhe o conhecimento da opinião publica; e sem esta bussola infallivel, dão comsigo á costa, como temos observado, até em nossa casa. Pois que? devem-se deixar correr livremente os livros envenenados, que prejudicão á sociedade civil, e á Religião? Tambem não: e he por isso que no Projecto se estabelece o Tribunal de Censura, para qualificar o delicio, e applicar-lhe depois a pena correspondente. Mas não seria melhor prevenir os cumes, do que puni-los? Concedo, quando se em-

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preguem meios indirectos; porem não convirei em que, se cortem as mãos a hum homem, só porque se póde servir dellas para assassinar outro. Alguns de meus Illustres Collegas vão buscar o Artigo 15 do Projecto, para argumentarem com elle a favor da censura, previa em materias religiosas: eis-aqui como elles raciocinão: = O Artigo 15 diz que a Religião da Nação Portuguesa he a Catholica Apostolica Romana: logo deve-se admittir censura prévia em maternas religiosas, porque de outra maneira nos poriamos em risco de ver destruir a Religião, que juramos manter, .Respondo: esta conclusão he falsa, e offensiva da nossa santa Religião, unica verdadeira. He falsa, porque se não involve no principio: he offensiva da nossa Religião, porque suppõe, que para sustentar-se esta divina Religião, se carecem as armas odiosas, e sanguinolentas da intolerancia. Não, Senhores, he promessa de Jesus Christo, que a barca de Pedro nunca hirá a pique, por mais levantados e tempestuosos que sejão os mares da tribulação: a mentira nunca triumphará da verdade.

Ouvi tambem dizer, que desde o seculo 16 tem corrido na Europa muitas, e mui diversas heresias; e que para as atalhar, cumpria que houvesse censura prévia: este facto nos fornece a prova mais clara da inutilidade da censura: porque justamente desde essa épocha he que ella se acha estabelecida, e debaixo depenas gravissimas; e com tudo, a despeito da censura, e das suas penas, as heresias correrão, e se engrossárão em todo o mundo christão mais do que nunca. Todos sabem que o façanhoso Borja, que governou a Igreja de Deos com o nome de Alexandre 6.°, e com tanto escandalo que obrigou o catholico Rey o senhor D. Manoel a manda-lo reprehender por seus Embaixadores: todos sabem, digo, que este Pontifice foi o primeiro que estabeleceo em 1501 a censura previa, e com pena de fogo a todos aquelles que imprimissem sem este passaporte.

Concluo pois, que a censura previa não produz hum só bem, e he movedora de infinitos males: voto por tanto contra ella.

O senhor Vaz Velho. - Não se póde estranhar que eu peça licença para fallar, depois de estar apresente questão tão debatida, vista e examinada por todos os lados de tal sorte, que o querer acrescentar alguma cousa seria repetir; por quanto as discussões desta Assemblea tem por fim não só a manifestação das opiniões individuaes, mas tambem o illustrar-se cada hum sobre as duvidas que lhe occorrerem. - Debaixo deste ponto de vista eu passo a designar o que me occorre sobre o que tenho ouvido. Mas antes disso eu não posso dispensar-me de dizer: que muito me escandaliza o que acaba de dizer-se, a saber: que a falta de censura prévia não tinha o perigo da seducção pela introducção do erro; por isso que Jesus Christo tinha promettido á sua Igreja que não havia de acabar. Querer que a promessa de Jesus Christo feita á Igreja universal se applique a individuos em particular, he hum absurdo. A possibilidade de faltar a fé era muitos, e milhares de individuos, Christo a inculcou, os Apostolos o disserão, e a triste experiencia o tem mostrado nas multiplicadas heresias desde os primeiros seculos. He este o perigo que se pertende evitar pela censura prévia, por isso que tambem se evita o mal do Cidadão e do Estado, com que está ligado. - Passo á duvida. Disse hum dos senhores Deputados, que supposto os Membros deste Congresso serem Procuradores da Nação, se devião restringir; aos poderes de sua Procuração; que os poderes erão concebidos nos termos de se fazer huma Constituintes que não seja menos liberal de que a Hespanhola, e por consequencia, que se devia admittir a Liberdade absoluta pela Imprensa como se admittia na Constituição Hespanhola. - Esta sentença applaudio-se, e ninguem directamente a contestou. Entretanto eu posso a mostrar pelos mesmos principios, que se a ao deve admittir a Liberdade absoluta de Imprensa em todas as materias. Vejamos o que diz a Constituição Hespanhola no art. 371 - Todos os tiespanhoes tem liberdade de escrever, imprimir, e publicar as suas idéas politicas sem necessidade de licença, revisão ou approvação alguma anterior á publicação - Eis-aqui a Liberdade absoluta da Imprensa, ou Imprensa sem previa censura. Mas em que materias? Em materias politicas, as suas idéas politicas. Será mesmo, a respeito das materias de Religião, isto he, sobre moral e dogma? Vejamos o que diz o Decreto donde se extrahio este artigo da Constituição. Attendendo as Cortes a que a faculdade individual 3, dos Cidadãos de publicar os seus pensamentos e idéas politicas senão só hum freyo da arbitrariedade dos que governão, mas tambem hum meio de illustrar a Nação em geral, e o unico caminho para as levar ao conhecimento da verdadeira opinião publica. Eis-aqui como a Assemhlea de Hespanha em 1810 achava e descobria na Liberdade de Imprensa unicamente em materias politicas todas as vantagens que nesta Assemblea se negão, não sendo acompanhada da Liberdade dicta em materias de Religião?? Diz o Decreto no §. 6. = Todos os escriptos sobre materia de Religião ficão subjeitos á previa censura dos Ordinarios Ecclesiasticos, segundo o estabelecido no Concilio Tridentino. Eis-aqui a legislação Hespanhola sobre materia de Religião, e não se envegonhárão neste seculo estribarem esta doutrina na disposição do Concilio Tridentino. Segue-se por legitima consequencia, que em cumprimento dos poderes das Procurações se deve admittir censura previa em materia de Religião.

Dir-se-ha que as Procurações dizem: tanto, ou mais liberal. Mas devemos advertir, que quando para resolver huma questão ha dous principios, hum delles claro, e outro duvidoso, pede a rasão e a prudencia que a resolvamos pelo principio claro. Entre os dous principios ou termos tanto, ou mais, dá-se o tanto, que he claro, pois se acha expresso na Constituição Hespanhola. Encontra-se o mais liberal que he duvidoso e escuro, porque os nossas Constituintes não declarárão quantos gráos de liberdade devia ter esse mais liberal; nem em que materias ou artigos da Constituicão, he impracticavel o consultados segunda vez, logo parece de toda a evidencia que a resolução deve ser a que acabei de dizer. - Este he o meu voto sobre que desejo illustração. Calou-se. Outra senhor Deputado pedio, que declarasse o voto, ao que respondeo: que em ma-

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terias politicas não houvesse censura previa, mas sim em materias de Religião, na conformidade da Constituição Hespanhola, e dos poderes de Procuração, tantas, vezes allegados pelos senhores Deputados, e que não devemos exceder era materias de tanta consideração.

O senhor Freire - He impossivel accrescentar cousa alguma aos argumentos que se tem expendido: porém, como todos os que se produzem contra a Liberdade da Imprensa concordão no principio único; de que he melhor prevenir os crimes do que castigallos, devo dizer: que eu convenho nesta opinião todas as vezes que houver algum meio para o conseguir sem atacar a liberdade individual, pois não sendo este crime differente dos outros, convêm applicar-lhe iguaes remedios. Dizer que o escipto depois de publicado produz hum damno irreparavel arrumando o credito, os costumes, ou a religião dos Povos, segundo a sua qualidade, he falso, pois que as armas são iguaes para a defesa; e por ventura ha algum meio de reparar a morte, e o roubo, ainda que se castigue o assassino, e roubador? Desde o principio do Mundo se tem perpetrado taes mortaes, e ninguem se lembrou de ligar, ou cortar por isso as mãos de todos os homens. Existem laboratorios chymicos, e nestes o aço, o ferro, as armas de fogo, e a polvora, e ninguem se lembrou ainda de os prohibir para evitar os crimes, que com elles ás vezes se commeterem; e quel he a razão? he porque a somma dos bens, que resultão á Sociedade do uso destes objectos he incomparavelmente maior do que alguns poucos abusos, que não duvido possão tambem haver na Imprensa, mas estes castigará a Ley. Não he possivel haver Constituição sem Imprensa livre: quem poderá informar o Governo dos perigos, que o ameação, da má administração dos Membros, da prevaricação dos Magistrados, e de todos os seus deveres, se a Imprensa não for livre? as inquisições, inconfidencias, pesquizas, e espionagens devem de huma vez acabar: e quem há de então informar a Nação, a não serem os Escriptores? Todos sabem que a arma da Imprensa he poderosissima, que por ella se fórma a opinião querer subjeita-la ao Executivo por meio da Censura, he dar-lhe toda a influencia, e estabelecer em pouco tempo o despotismo, não he menos illusorio e capcioso o arbitrio já proposto de conservar a Censura prévia feita por pessoas da escolha das Côrtes, pois he preciso observar; que a Constituição há de dividir os poderes politicos de forma tal, que não possa jámais hum supplantar o outro, ficando a balança em perfeito equilibrio; o qual se romperia do mesmo modo a favor do Poder Legislativo, se tivesse a liberdade de dictar as opiniões exclusivamente pela Imprensa; pois se este Augusto Congresso está animado do melhor espirito; póde succeder-lhe outro, que se desvie delle. Emquanto aos receios religiosos não me parecem fundados, pois ninguem ignora que os maiores flagellos, que soffreo o mundo, e a Igreja forão em tempos que não havia Imprensa. Mahomet estendeo a sua religião por quadi ametade do mindo então conhecido, e aos seus crentes; mesmo depois da descoberta da Imprensa, nem he permittido ler hum livro: a seyta de Lumero deveo a sua propagação a cousas mui conhecidas, e que nada tem com a Liberdade da Imprensa. Dizer que as obras do Voltaire tem feito mais mal á Religião, do que bem todas as obras bithodoxas escriptas á 50 annos, não he exacto quando se applica a revolução de França, pois todos sabem as verdadeiras causas della; e quando as cousas tem huma explicação clara, não se deve recorrer a ells duvidosa: suppondo mesmo que se devião censurar os livros, que tratassem de materias dogmaticas, e de moral, qual seria a fórma de os conhecer? ha pouco se disse que essas materias de ordinario erão involvidas em allegorias, contos, e fabricas, em que se occultavão seus sophismas, como será então possivel acha-las sem ter todos os livros, e censurar todos? salvo se forem os livros de religião propriamente tal, pois que estes já se disse que erão escriptos n'hum estylo secco, enfadonho, e facil por isso de conhecer - Disse-se mais, que sendo a faculdade de escrever, e imprimir huma propriedade, e podendo esta ser tirada ao Cidadão em alguns casos, não admirava que lhe fosse restringida neste - este argumento he absurdo, por que só no caso de utilidade publica, e com prensa indemnização, se póde isto fazer, e pelo contrario he essa utilidade que exige a Liberdade de Imprensa, a qual he a indemnização que os Censores dão ao Auctor, que perde o seu trabalho, quando lho rejeitão: ninguem duvidará que serão as opiniões dos Censores, e não as dos Escriptores que apparecêrão no Público, e toda a Nação sem obrigada a pensar como elles - As luzes da Constituição Hepanhola que se allegão, com exemplo, nada mais fazem do que traçar a linha, abaixo da qual não podemos descer, mas sim aproximar-nos quanto seja possivel para nos tornarmos mais liberaes, se nislo consistir a felidade dos Foros, de quem somos Representantes - Suppondo a qual que he possivel admittir a Censura prévia, qual seria o resultado? que os Escriptores, não soffrendo embaraço ao seu genio, como nunca soffrem os grandes talentos, hirião como tem hido para paizes estrangeiros, e dahi nos mandarião os seus escriptos cheios de mordacidade, e fel, e acriminia exaltada pela perseguir que havião experimentado. Concluo logo, que se não deve prohibir a Imprensa por ser contra a liberdade individual, e que sendo isto mesmo possivel, se tornaria inutil: polo que voto contra toda a Censura prévia tanto em materias civis, como religiosas.

O senhor Castello Branco. - Assás se tem dicto em toda a clareza, methodo, e elegancia ácerca da liberdade da Imprensa. A Nação inteira he testimunha da circunspecção e escrupulosidade, com que seus Deputados pesão e tomão em consideração as materias, que mais de perto a interessão. Entre tanto todas as vezes que se trata de sustentar, e pôr em toda a sua evidencia os direitos do homem, penso que nunca póde haver demasia em repetir os mesmos argumentos; muito mais em hum momento em que he preciso concentrar todas as idéas, em hum momento em que esta Augusta Assembléa vai decidir, sobre hum ponto, de que talvez venha a depender para o futuro a conservação, da nossa Constituição Politica, a conservação da nossa Liberdade. He porque me resolvo ao terminar-se esta importante, dis-

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cussão, a ajuntar ao que se tem dicto as breves reflexões, que de presente me possão occorrer.

Se a sabedoria das leys não consisto só em procurar o bem, mas da o fazer durarei; se a prosperidade futura dos povos, não menos que a presente, reclama os cuidados do legislador; se este deve não só destruir os males actuaes, mas anua prevenir os que circunstancias extraordinarias poderião occasionar; se a efficacia das leys suppõe huma boa Administração, e a conserva-lo desta boa, Administração depende de se lhe darem os soccorros convenientes: se finalmente não he licito duvidar destas verdades, não he tambem licito duvidar das vantagens da Liberdade da Imprensa, que tão perfeitamente corresponde a todas estas saudaveis intenções.

Existe em todas as Nações hum Tribunal invisivel, sempre em actividade, mais forte que os magistrados, que as leys, que o Rey, o que ninguem póde dominar. Este Tribunal que pelo effeito nos mostra que a soberania reside constantemente em a Nação, e que em certo modo a exercita, he o da Opinião Publica. Elle he o conservador das boas leys, que por elle adquire a huma nova força; he o censor das más, que por elle perdem sua injusta auctoridade: a elle são os Povos devedores da conservação da sua felicidade, e da diminuição de seus males.

Mas como he que este Tribunal póde ser advertido dos bens que tem a promover, e dos males que tem a evitar? A Liberdade da Imprensa he o unico meio: o legislador não a deve poio despresar; o legislador a deve estabelecer o proteger: o intende e a prosperidade publica o pedem, e o que ainda he mais, a justiça o exige. Eu o provo.

Existe hum direito commum a todos os individuos de qualquer sociedade; hum direito que não se póde perder, nem renunciar, porque deponde de hum dever, que obriga a todos, que existe emquanto a sociedade existe, e de que ninguem póde eximir-se, será ser excluido da sociedade, ou ella acabar. Este dever he o de contribuir, quanto cajá hum póde, para o bem da sociedade a que pertence; e o direito que dahi resulta, he o de manifestar á sociedade as ideas que cada hum julga conducentes a multiplicar os seus bens, ou a diminuir os seus males.

Por tanto a Liberdade da Imprensa he fundada sobre hum direito, que não se póde perder, que a violencia sim póde embaraçar, mas que a rasão, e a justiça defendem, e convem em nos mostrar que a legitima auctoridade das leys não póde ter maior interrese sobre o exercicio delle direito que dos outros, e que por consequencia a sua sancção só póde recahir sobre a pessoa daquelle que tem abusado. Se não ha direito tão sagrado de que o malvado não possa abular, e nem por isso as leys prohibem o exercicio de algum, e só castigão o abuso, porque rasão não ha de a mesma regra ter lugar a respeito do direito de que se trata, e que he muito mais precioso que outros para o homem, e para a sociedade, e de que o abuso he mais difficil, e talvez menus prejudicial?

Mas a posar de rasões tão evidentes, que devem todas as materias, observo que huma fatal divisão se tem apoderado da Assemblea. Portende-se distinguir os escriptos sobre maiorias religiosas, para os subjeitar particularmente, a huma censura prévio? com o pretexto de que o veneno espalhado da má doutrina póde ser transcendente a toda a sociedade, e destruir a crença religiosa. Eu julgo esta distincção, e excepção da regra geral, não só inutil, mas prejudicial á mesma religião. Inutil, porque não preenche os fins que se tem em vista, pois em linguas extrangeiras, mas hoje vulgares, correm pelas mãos de todos os mesmos livros que se pertende prohibir, e que talvez por isso sejão lidos com maior
avidez, e interesse. Prejudicial, primeiramente porque a censura previa embaraçaria que se cortassem as superstições, em que o povo faz consistir a Religião, com desprego do dogma e da moral santa, que practicada em toda a sua pureza tantos bens traria á sociedade, até mesmo politicamente faltando, e de que ella por isso se acha privada. Que proveito não poderia tirar a sociedade da moral de huma Religião, que tem por objecto principal unir os homens entre se pelos vinculos de huma charidade reciproca? Esta união he a maior perfeição a que as leys civís podem aspirar, e ellas a conseguirião muito mais facilmente, quando não fossem ajudadas pela observancia dos leys religiosas. Ainda mais, huma Religião que tem por devem huma vida futura, em que os bens hão de ser eternamente premiados, e os máos eternamente castigados, he a mais propria a augmentar a sancção das leys civis, huma vez porém que o fanatismo, e a superstição não substituão á practica das virtudes, unico meio de conseguir a salvação eterna, expiações irrisorias, e o supplemento de indulgencias comprados por dinheiro.

Em segundo lugar me parece prejudicial a censura prévia em materias religiosas, pois convém mais que o erro appareca em toda a sua luz, para ser competentemente refutado, e dahi resultar a convicção intima, de que a Religião tira toda a sua força. Pelo contrario o erro clandestinamente espalhadado minorá surdamente os alicerces da Religião, e quanto mais comprimido for, mais será para temer a reacção, cuja explosão talvez nada respeite na sua torrente. He cousa sabida que quando se quizer dar corpo a huma Seyta, não ha mais que perseguilla: os homens propendem naturalmente para o maravilhoso e extraordinario, e o amor da sua independencia os leva a abraçar aquillo mesmo que se lhe prohibe. Ora pela mesma razão digo eu, que quem quiser fazer cahir em desprezo huma Religião, não tem mais que cercalla do apparato do poder; doado logo ella se torna intolerante, os homens procurarão resistir-lhe, e acabarão por a desprezar. A practica de vinte annos adquirida no serviço de num Tribunal, destinado a conservar a pureza da Religião, me tem mostrado quanto são fracos para isso os meios de coacção.

Alguns Membros deste Congresso tem havido, que inspirados de hum zelo louvavel, tem insistido em dizer que he melhor prevenir os crimes, que ter depois de castigallos. Eu não sei segundo meus principios juridicos o politicos, que haja outro modo de prevenir, a não ser por meios muito indirectos.

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O legislador que á força de querer prevenir crimes, privasse o Cidadão dos direitos que lhe devem ser legitimamente permittidos, certamente empregaria hum remedio muito peior que o mal; seria o mesmo que fazer hum homem escravo para o tornar virtuoso, como que a liberdade fosse incompativel com a virtude.

Taes são os motivos que juntos aos mais que se tem tão sabiamente expendido, me decidem a declarar-me contra a censura previa, quaesquer que sejão as materias sobre que ella haja de recahir, persuadido tambem de que huma vez admittida, perigará a nossa Constituição, e com ella a nossa liberdade e a de milhões de homens, de que os destinos nos são confiados etc.

O senhor Soares Franco. - Julgo que a questão não está sufficientemente aclarada. Todos concordamos, em que a liberdade de pensar, de fallar, e de escrever são direitos naturaes de todo o Cidadão; concorda-se igualmente em que se póde abusar deste direito; e que compete á Soberania evitar e suspender este abuso. Mas discorda-se nos meios; huns sustentão que a Censura previa he necessaria, e outros que he sufficiente o castigo, ou censura posterior á publicação e impressão do escripto. Eu restringir-me-hei sómente a examinar as rasões fundamentaes dos primeiros, porque se tem advogado muito em objectos de que ninguem duvida, e que não pertencem á questão. Tem-se por exemplo dicto, que se deve conservar a pureza da nossa Santa Religião, dos bons costumes, e que não se deve expor aos golpes dos calumniadores a reputação e honra dos Cidadãos innocentes. Porem quem duvida disso? Todos desejão o mesmo fim, só discordão nos meios de o alcançar.

Os mais fortes argumentos a favor da Censura previa são os dous seguintes; 1.° he melhor prevenir o mal, do que castiga-lo depois de feito; 2.° o damno que se causa pela publicação de hum Impresso pernicioso, não se repara, inda que se castigue o delinquente. A isto pede accrescentar-se o que se disse, que o Dogma e a Moral não podião mudar, e que em consequencia era inutil escrever sobre taes pontos; mas esta terceira objecção entra facilmente nas duas primeiras.

Eu admitto os mesmos principios, e tiro delles huma consequencia contraria. previne-se o crime muito bem por meio da Censura posterior. O homem he desviado das más acções por meio do castigo, e da certeza de ser conhecido.

Porque não rouba o ladrão no meio d'huma praça publica, e em pleno dia? He porque seria logo descoberto, preso e castigado. Igualmente o assassino busca o segredo da noite, e o descampado das estradas para commetter os seus crimes; ninguem vai ser infeliz de proposito; e se algumas vezes se commettem acções criminosas publicamente, he poreffeilo da exaltação de ideas, e por excesso de rasões que offuscão a rasão, e produzem huma especie de mania momentanea. No Projecto de Ley que propomos sobre a Liberdade de Imprensa o Auctor ou Edictor he obrigado a assignar O seu nome; o Impressor a pôr o lugar da Officina, e tempo da Impressão; a Ley tem já d'antemão marcado a qualificação dos delictos, e as penas correspondentes. O livro em que se abusar da Liberdade do Imprensa tem já o seu corpo de delicto prompto, e seu Auctor he infallivelmente castigado; esta certeza desviará a todos os Escriptores da tentação de abusarem do direito que se lhes concede, e de quererem espalhar doutrinas perniciosas. Pelo contrario se houvesse huma prohibição absoluta pela Censura previa, procurarião imprimir as suas opiniões em algum dos Reynos visinhos, ou em Imprensas particulares, e derramarião com facilidade pelo publico as suas doutrinas subversivas e sediciosas.

As pessoas que admittem a Liberdade de Imprensa nas materias politicas, mas não a querem nas religiosas não contemplão que he muito difficultoso lazer similhante distincção na practica. Com effeito os titulos dos livros não correspondem muitas vezes aos objectos, que nelles se tratão; o Impressor viria a sei de algum modo o Censor da Obra, e nunca haveria Censura previa, ou sempre, conforme parecesse ao Impressor quasi, sempre ignorante. Demais, as Obras que á primeira vista parece nada comprehenderem de objectos Religiosos, facilmente se puxarião para esse artigo, se houvesse Censura previa. Já o senhor Borges Carneiro notou que as Obras de Astronomia podião facilmente ser reputadas heréticas, se passassem pela Censura previa de homens pouco instruidos. Eu estendo ainda mais esta idéa, e he facil provar, que quasi todos os objectos politicos de alguma consideração se ligão constantemente com pontos religiosos, de maneira que ou se ha do admittir a Censura previa para todos, ou para nenhum. Por exemplo quem quizesse tratar do deploravel estado das Fabricas e Manufacturas de Portugal, não poderia deixar de notar, que o seu melhoramento estava ligado com a perfeição das machinas, e abundancia de capitães. A perfeição das maquinas depende da bondade dos Artistas; aqui ligaria facilmente a revocação do Edicto de Nantes feita por hum principio supersticioso de Luiz XIV.; a sabida de Fiança de innumeraveis Fabricantes de primeira ordem, da communhão protestante, que forão levar á Inglaterra, e á Hollanda os seus conhecimentos, e a prosperidade nacional que tanto augmentou nestes dous Paizes por aquella causa. Poderia a Obra da natureza de que fallo, inculcar que se chamassem estes Artistas de diversas partes da Europa, e que se convidassem os Israelitas, que com seus fortes capitães viessem animar a nossa amortecida Industria. O objecto de hum tal tratado era puramente politico, mas tratando accidentalmente da tolerancia religiosa, se houvesse Censura previa para taes materias, seria puxado para lá, e muito provavelmente prohibido, a pesar da sua notoria utilidade publica.

Desenganemo-nos, os Estados Constituicionaes não podem subsistir sem a responsabilidade dos Ministros, e dos Empregados, e esta responsabilidade não se póde fazer effectiva sem a Liberdade de Imprensa; os homens corrompidos e perversos temem ser denunciados perante o Tribunal do Publico, e regulão por vontade, ou por força as suas acções com a Ley. O Governo não póde ser instruido da opinião publica, dos erros commettidos, e dos melhoramentos que se podem fazer sem a Liberdade de Imprensa; deixemos por tanto aberta esta porta para todos os

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bens que dia póde trazer, e por meio da Censura posterior cohibiremos todos os abusos que ella póde causar. Eu tomo a repetir, que ella he muito sufficiente para embaraçar todos estes abusos, e apello para a intima consciencia dos mesmos Senhores da opinião contraria; eu lhes perguntaria se elles se attreverião a imprimir com o seu nome assignado huma Obra em que se professassem doutrinas condemnadas pela Ley, e a que se seguiria o castigo, porque não haveria duvida nem no delicto, nem no delinquente? Pois o mesmo devem confessar que succede a todos os outros homens; de maneira que da Liberdade de Imprensa bem regulada podem proceder grandes bens, e não póde vir mal algum, porque a Censura posterior os remedea, e cohibe.

O senhor Margiochi. - Depois da profunda e larga discussão sustentada por este Congresso, sobre a interessante questão da Liberdade da Imprensa, ainda que fora sabio, pouco teria a accresccntar: comtudo a Patria impelle os seus amadores a descer a esta area Olympica. Farei pois algumas observações.

Primeiramente observo; que assim como a Liberdade de discutir inherente a esta. Assemblea, tem feita nascer hum principio animador de todos os espiritos, huma especie de electricidade nova que se póde chamar intelectual da mesma natureza daquella que evitada em Portugal scintillou nu ilha da Madeira; assim tambem esta liberrima discussão passando para as folhas dos Escriptores da Nação, produzirá o mesmo principio cheio de força, de vida, e de huma luz mais pura que a do Astro do dia.

Qualquer embaraço offerecido á Liberdade da Impressão he huma offensa á nossa Nação, e á rasão universal. Devemos, como pertencendo a huma Nação Europea, com o desenvolvimento de nossos conhecimentos concorrer para a sua superioridade. Somos ainda devedores em luzes, e he preciso retribuir illustração com illustração.

A Liberdade absoluta de Imprensa, he para nós huma necessidade. Não temos hum Livro de Philosophia, nem de Principios sabios de Legislação, nem mesmo huma Historia racional, n'huma palavra não temos nada. Continuando assim, continuariamos a ser o celibrio de toda a Terra. Mas este opprobrio não deve temer-se de hum Congresso composto dos Libertadores da Patria, de hum grande numero de Escriptores, dos Mestres da Nação, e de outros Membros que eu chamaria Mestres do genero humano se não receasse ser lisongeiro, e mostrar o calor demasiado attribuido aos habitadores do Sul da Europa.

Os illustres Deputados que apoyárão a Censura previa para os Escriptos de dogma, opinarão de boa fé, e com a bella intenção de prevenir crimes; comtudo não notárão a difficuldade de similhante Censura: certamente elles não quererião encarregar-se do ministerio odioso, e do orgulho que he preciso ter para ser Juiz das opiniões alheas, e de impedir o progresso dos conhecimentos humanos.

Além de que, esta censura não teria lugar senão em livros mediocres, ou nullos. O Genio não se submetteria a ella. O Genio he altivo porque conhece as suas forças, e porque vê prostrada diante de si a admiração dos seculos futuros; elle não soffre a affronta destas Forcas Caudinas.

A divindade da nossa Religião seria manchada. O Alcorão prohibe toda a leitura; hum dos successores de Mahomet queimou a famosa Bibliotheca de Alexandria. Que he a Censura, antecipada senão hum incendio de todos os Escriptos? Que he a Censura prévia não huma prohibição absoluta de ler, ou a permissão irrisoria de ler livros nullos, que te o mesmo que nada ler.

Os fundamentos da Religião ficarião abalados. Nas Sciencias exactas tambem há crença; ha principios que o entendimento não comprehende; com tudo ha raciocinios tão bem discutidos antes, que nos obrigão a admittir aquelles principios como verdades necessarias. Assim tambem os Dogmas religiosos, ainda que superiores á razão, são fundados em provas inconcussas. Mas se com a Censura se occultassem as objecções, desconfiar-se-hia que aquellas provas não podião resistir a estas, e então desgraçadamente a Religião verdadeira, tomava o caracter de huma pura Fatalidade céga de Epicuro.

Senhores, he preciso semear flores e não abrolhos no caminho ingrime que tem de trilhar os Escriptores benemeritos da Humanidade. São elles os propagadores das luzes, os distribuidores da gloria, os inimigos irreconciliaveis, e eternos da superstição, e despotismo.

He preciso não considerar a Liberdade da Imprensa como a caixa de Pandora de que sahírão todos os males; mas sim como o fogo do Ceo, arrebatado por Prometheo para animar a belleza.

Não mais, não mais essa triplicada Censura, esse Cerbero collocado na entrada do Tartaro para impedir a passagem para os Elysios.

Senhores, a nossa Nação com a sua revolução mostrou não haver outra superior em civilização. O seu Congresso, digno della, devia não ter hum voto pela Censura previa. Então ganharia a mais illimitada confiança. Então os Portuguezes se considerarião perfeitamente livres, e possuidores de huma Fé inalteravel. Então elles dirião: nós não somos Mauritanos, estes são escravos, e nós livres; estes não podem ler, nós temos a Imprensa livre.

Julgou-se a materia bastante discutida, e, por proposta do senhor Freire, se votou nominal e separadamente nas duas seguintes questões: 1.ª se em quaesquer materias, não sendo ]Religiosas, devia ou não estabelecer-se a Censura prévia? e por 70 votos contra 8 se dicidio que não: 2.ª se em materias de Dogma, e de Moral haveria Censura previa 1 e tambem se decidio que não, por 46 contra 32 votos.

O senhor Antonio Maria Osorio Cabral votou a favor da Liberdade da Imprensa em materias Politicas, e Scientificas, e contra a mesma Liberdade em materias de Dogma e de Moral.

O senhor Francisco Manoel Trigoso foi hum dos 32 que votárão a favor da Censura prévia das Obras que tocão á Religião, e iram do: 8 que votárão a favor da Censura previa das outras Obras, com as restricções que declarou no seu voto.

Depois de se fazer annunciar, foi introduzida no

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Sallão das Cortes com o devido cerimoniai o senhor Secretario de Estado dos Negocios da Marinha; e, tomando lugar á esquerda do senhor Presidente, participou ao Soberano Congresso em nome da Regencia do Reyno, que era chegada a Lisboa huma Deputação da Ilha da Madeira, composta dos senhores Brigadeiro Antonio Rebello Falhares, Commendador João José de Bettencourt de Freytas o Menezes, e João Agostinho de Albuquerque Figueirôa, com a fausta noticia de que no dia 28 de Janeiro se havião alli jurado as Cortes de Portugal, e a Constituição que ellas fizerem, e que se ficavão elegendo os respectivos Deputados para virem tomar lugar neste Soberano Congresso.

Resolveo-se fazer disto Participação em Carta a S. M.; e, patenteando o seu Retraio, derão-se repetidos Vivas ás Cortes, á Constituição, a ElRey Constitucional, e aos nossos Concidadãos da Ilha da Madeira.

Levantou o senhor Presidente a Sessão pela huma e hum quarto horas da tarde. - João Baptista Felgueiras, Secretario.

Erratas.

No Diario N.º 10, pag. 63, columna 1.ª linha 43, em lugar de = para o que poderião entrar no Thesouro Publico = lea-se = para que sigão o destino que, formada a causa, e feita legalmente a prova, se lhes der.

Ao Diario N.° 15, pag. 96 linha 12 columna 1.ª, onde se lê = agradecidos = lea-se = aggredidos. Na mesma pag. e col. lin. 58, onde se lê = nutrillas e retirallas deste = lea-se = nutrillas daquelle, e retirallas deste.

LISBOA: NA IMPRESSÃO NACIONAL.

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