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CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

36.ª SESSÃO

EM 6 DE JULHO DE 1908

SUMMARIO. - Verifica-se, a pedido do Sr. Queiroz Ribeiro, que ha numero para abertura da sessão. - Lê-se a acta. - O Sr. Oliveira Mattos reitera a sua grande consideração e estima pelo Sr. Presidente, e o Sr. Araujo Lima faz uma declaração de voto. - E, em seguida, approvada a acta; dá-se conta do expediente e teem segunda leitura um projecto de lei e proposta da iniciativa do Sr. Bombarda, que foram admittidos. - São aggregados á commissão de fazenda dois Srs. Deputados. - O Sr. Affonso Costa allude aos acontecimentos do Porto. Responde o Sr. Presidente do Conselho (Ferreira do Amaral). - Não são considerados urgentes os assuntos de que desejam tratar os Srs. Brito Camacho e João de Menezes. - O Sr. Brito Camacho realiza o seu aviso previo ao Sr. Presidente do Conselho (Ferreira do Amaral), que lhe responde. - O Sr. Presidente dá conhecimento de uma communicação enviada pelo Sr. Eduardo Burnay. - Requerem varios esclarecimentos os Srs. Feio Terenas, Egas Moniz, Visconde de Coruche, Brito Camacho, Antonio Centeno e João Pinto dos Santos. - O Sr. Mello Barreto communica a constituição da commissão de negocios externos e propõe que sejam aggregados dois Srs. Deputados. - O Sr. Presidente apresenta duas representações. - Pede melhoria de vencimento um alferes da guarnição de Moçambique.

Na ordem do dia prosegue a discussão do projecto de lei n.° 14 (fixação da lista civil), usando da palavra os Srs. Adriano Anthero e Moreira da Almeida, cuja moção foi admittida. - Não foi permittido aos Srs. Pinto dos Santos e Affonso Costa usarem da palavra para explicações antes de se encerrar a sessão.

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2 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Presidencia do Exmo. Sr. Libanio Antonio Fialho Gomes

Secretarios - os Exmos. Srs.

Amandio Eduardo da Motta Veiga
João Pereira de Magalhães

Primeira chamada - Ás 2 horas da tarde.

Presentes - 11 Srs. Deputados.

Segunda chamada - Ás 2 horas e 30 minutos da tarde.

Presentes - 56 Srs. Deputados.

São os seguintes: Abel de Mattos Abreu, Abilio Augusto de Madureira Beça, Adriano Anthero de Sousa Pinto, Alberto Pinheiro Torres, Alfredo Pereira, Amadeu de Magalhães Infante de La Cerda, Amandio Eduardo da Motta Veiga, Anselmo Augusto Vieira, Antonio Alberto Charulla Pessanha, Antonio Augusto Pereira Cardoso, Antonio Ferreira Cabral Paes do Amaral, Antonio Hintze Ribeiro, Antonio Macedo Ramalho Ortigão, Antonio Rodrigues Ribeiro, Antonio Sergio da Silva e Castro, Augusto Cesar Claro da Ricca, Carlos Augusto Ferreira, Eduardo Valerio Augusto Villaça, Emygdio Lino da Silva Junior, Ernesto Jardim de Vilhena, Ernesto Julio de Carvalho e Vasconcellos, Fernando de Sousa Botelho e Mello (D.), Francisco Limpo de Lacerda Ravasco, Gaspar de Queiroz Ribeiro de Almeida e Vasconcellos, Henrique de Mello Archer da Silva, João Carlos de Mello Barreto, João Ignacia de Araujo Lima, João José da Silva Ferreira Netto, João Pereira de Magalhães, João Soares Branco, Joaquim José Pimenta Tello, Joaquim Mattoso da Camara, Joaquim Pedro Martins, José Antonio da Rocha Lousa, José de Ascensão Guimarães, José Bento da Rocha e Mello, José Caeiro da Matta, José Caetano Rebello, José Estevão de Vasconcellos, José Gonçalves Pereira dos Santos, José Jeronimo Rodrigues Monteiro, José Julio Vieira Ramos, José Maria de Oliveira Mattos, José Ribeiro da Cunha, José Victorino de Sousa e Albuquerque, Libanio Antonio Fialho Gomes, Lourenço Caldeira da Gama Lobo Cayolla, Manuel Affonso da Silva Espregueira, Manuel Antonio Moreira Junior, Manuel de Brito Camacho, Manuel Joaquim Fratel, Mariano José da Silva Prezado, Sabino Maria Teixeira Coelho, Thomaz de Almeida Manuel de Vilhena (D.), Vicente de Moura Coutinho de Almeida d'Eça e Visconde de Oliva.

Entraram durante a sessão os Srs.: Affonso Augusto da Costa, Alberto de Castro Pereira de Almeida Navarro, Alexandre Braga, Alexandre Correia Telles de Araujo e Albuquerque, Alfredo Mendes de Magalhães Ramalho, Alvaro Augusto Froes Possollo de Sousa, Antonio de Almeida Pinto da Motta, Antonio Alves Oliveira Guimarães, Antonio Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, Antonio Centeno, Antonio José de Almeida, Antonio Osorio Sarmento de Figueiredo, Antonio Rodrigues Nogueira, Antonio Tavares Festas, Antonio Zeferino Candido da Piedade, Arthur Pinto de Miranda Montenegro, Augusto de Castro Sampaio Côrte Real, Augusto Pereira do Valle, Augusto Vidal de Castilho Barreto e Noronha, Aurélio Pinto Tavares Osorio Castello Branco, Conde de Castro e Solla, Conde de Penha Garcia, Eduardo Burnay, Eduardo Frederico Schwalbach Lucci, Fernando Augusto Miranda Martins de Carvalho, Francisco Xavier Correia Mendes, Henrique de Carvalho Nunes da Silva Anachoreta, João Correia Botelho Castello Branco, João Duarte de Menezes, João Henrique Ulrich, João José SineUde Cordes, João Pinto Rodrigues dos Santos, João de Sousa Calvet de Magalhães, Joaquim Anselmo da Matta Oliveira, José Augusto Moreira de Almeida, José Cabral Correia do Amaral, José Coelho da Motta Prego, José Joaquim Mendes Leal, José Joaquim da Silva Amado, José Joaquim de Sousa Cavalheiro, José Malheiro Reymão, José Maria de Moura Barata Feio Terenas, José taria de Oliveira Simões, José Maria Pereira de Lima, José Maria de Queiroz Velloso, José Mathias Nunes, José dos Santos Pereira Jardim, Luis Filippe de Castro (D.), Manuel Nunes da Silva, Manuel Telles de Vasconcellos, Matheus Augusto Ribeiro de Sampaio, Miguel Augusto Bombarda, Paulo de Barros Pinto Osorio, Roberto da Cunha Baptista, Rodrigo Affonso Pequito e Visconde de Coruche.

Não compareceram a sessão os Srs.: Abel Pereira de Andrade, Alfredo Candido Garcia de Moraes, Alfredo Carlos Le Cocq, Alvaro Rodrigues Valdez Penarva, Antonio Augusto de Mendonça David, Antonio Bellard da Fonseca, Antonio José Garcia Guerreiro, Antonio Maria Dias Pereira Chaves Mazziotti, Antonio Rodrigues Costa da Silveira, Arthur da Costa Sousa Pinto Basto, Conde da Arrochella, Conde de Azevedo, Conde de Mangualde, Conde de Paçô-Vieira, Diogo Domingues Peres, Duarte Gustavo de Roboredo Sampaio e Mello, Fernando de Almeida Loureiro e Vasconcellos, Francisco Cabral Metello, Francisco Joaquim Fernandes, Francisco Miranda da Costa Lobo, Frederico Alexandrino Garcia Ramirez, João do Canto e Castro Silva Antunes, João Joaquim Isidro dos Reis, João de Sousa Tavares, Joaquim Heliodoro da Veiga, Jorge Vieira, José Antonio Alves Ferreira de Lemos Junior, José Francisco Teixeira de Azevedo, José Maria Joaquim Tavares, José Osorio da Gama e Castro, José Paulo Monteiro Cancella, Luis da Gama, Luis Vaz de Carvalho Crespo, Manuel Francisco de Vargas, Manuel de Sousa Avides, Mario Augusto de Miranda Monteiro, Thomaz de Aquino de Almeida Garrett, Visconde de Reguengo (Jorge), Visconde da Torre e Visconde de Villa Moura.

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SESSÃO N.° 36 DE 6 DE JULHO DE 1908 3

ABERTURA DA SESSÃO - Ás 3 horas da tarde

O Sr. Queiroz Ribeiro: - Sr. Presidente: peço que se repita a contagem, porque que parece que não ha numero sufficiente na sala para a Camara funccionar.

O Sr. Presidente: - A chamada responderam 56 Srs. Deputados, mas, como é possivel que alguns tenham, saido da sala, vou mandar proceder novamente á contagem.

Faz-se a contagem.

O Sr. Presidente: - Estão na sala 52 Srs. Deputados. Ha, portanto, numero.

Lê-se a acta.

O Sr. Oliveira Mattos: - Na ultima sessão pedi a palavra para explicações antes de se encerrar a sessão; tendo-se, porem, esta encerrado depois da hora regulamentar, o Sr. Presidente não me concedeu a palavra e, portanto, não consegui dar as explicações que desejava, o que vou fazer neste momento, declarando mais uma vez que por minha parte não houve, nem podia haver, a minima intenção de, por qualquer forma, faltar ao respeito e á consideração devida ao Sr. Presidente, meu prezado amigo e antigo companheiro, a quem me unem, ha 22 annos, relações da mais cordial camaradagem.

O sentido das minhas palavras, foi adulterado lá fora, chegando alguns jornaes a dizer que eu tinha desrespeitado o Sr. Presidente, sendo necessario chamar me á ordem, e ameaçar-me com a applicação do regimento, o que não é verdade.

A esse respeito tenho a declarar que taes noticias são absolutamente inexactas, porquanto nenhum desses factos se deu.

O Sr. Presidente explicou como entendeu o seu procedimento, e eu expliquei tambem como havia procedido no uso do meu direito, sem que nisso houvesse nem falta de respeito, nem chamamento á ordem, nem quaesquer ameaças de applicação do regimento.

Dito isto, para que fique restabelecida a verdade dos factos, reitero os protestos da minha estima e consideração pelo Sr. Presidente.

(O orador não reviu).

O Sr. Araujo Lima: - Mando para a mesa a seguinte

Declaração de voto

Declaro que se estivesse presente na sessão passada, quando foi consultada a Camara sobre a continuação do uso da palavra do Sr. Deputado Bombarda, teria votado contra. = O Deputado, Araujo Lima.

Para a acta.

Acta approvada.

EXPEDIENTE

Officios

Do Ministerio da Marinha, participando que a nota da quantidade de armas e munições importadas pelas alfandegas de Benguella e Mossamedes, nos ultimos quatro annos, somente poderá ser fornecida, depois de terminada a conferencia de Bruxellas; que não ha elementos na secretaria para fornecer nota da quantidade de armas e em nações apprehendidas nos mesmos districtos; e no da Huilla, e que as providencias, para prevenir a importação clandestina de armas, são as que resultam da fiscalização estabelecida pelos regulamentos do Acto de Bruxellas, satisfazendo assim ao requerimento do Sr. Deputado Alvaro Rodrigues Valdez Penalva.

Para a secretaria.

Do Ministerio da Marinha, informando que o Acto de Bruxellas, de 2 de julho de 1890, foi approvado por carta de lei de 24 de março de 1892, e regulamentado em harmonia com as suas clausulas, estabelecendo os depositos e regime de licenças; tendo-se feito nos mesmos moldes o regulamento nos territorios da Companhia de Moçambique e nos territorios da Companhia do Niassa, satisfazendo assim em parte ao requerimento do Sr. Deputado José Maria Pereira de Lima.

Para a secretaria.

Do Ministerio da Marinha, remettendo nota do café transportado na linha ferrea de Loanda a Ambaca, desde marco de 1897 até dezembro de 1907; ficando assim satisfeito o requerimento do Sr. Deputado Henrique de Mello Archer.

Para a secretaria.

Do Ministerio das Obras Publicas, remettendo o contrato de arrendamento das officinas, docas e plano inclinado do porto de Lisboa, satisfazendo assim ao requerimento do Sr. Deputado, Affonso Augusto da Costa.

Para a secretaria.

Da secretaria das bibliotecas e archivos nacionaes, participando que no Real Archivo da Torre do Tombo não existe o inventario dos bens da Coroa.

Para a secretaria.

Do juizo de direito da comarca de Nisa, enviando um traslado da culpa, relativa ao Conselheiro José Caetano Rebello, Deputado da nação.

Para a secretaria.

Segundas leituras

Projecto de lei

Senhores. - Não ha razão scientifica nem moral que justifique a disposição do Codigo Penal (artigo 114.°) mandando que aos loucos que commetteram crimes com lucidos intervallos se executarão as penas quando elles estiverem nos mesmos lucidos intervallos, e que sobre esteja na execução da pena nos criminosos que enlouquecerem depois de commettido o crime.

Não ha razão scientifica:

1.° Porque a sciencia não permitte, nos que soffrem de loucura periodica, assegurar que haja intervallos por tal modo lucidos que os actos criminosos então praticados devam ser considerados como se fossem de uma pessoa normal;

2.° Porque a loucura, sendo uma doença do cerebro, deve ter tanta importancia no ponto de vista da execução da pena como a doença de outro qualquer orgão. Se uma pneumonia ou uma febre typhoide não fazem sobreestar na execução da pena, não se comprehende como deva faze-lo uma doença possivelmente tão accidental como qualquer dessas, uma phase de alienação mental sem que a consciencia até se poderá perder menos do que em qualquer das outras molestias.

No ponto de vista moral, porque não ha razão que fundamente as disposições apontadas do artigo 114.° do Codigo Penal. A pena não é castigo nem expiação. A pena

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4 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

não é mais que um meio de intimidação e de prevenção e porque se executa durante uma fase de loucura do condemnado não perde da sua efficacia preventiva, em relação aos outros, nem, na grande generalidade dos factos, da sua efficacia de intimidação em relação ao criminoso. Por isso tenho a honra de propor o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.° O artigo 114.° do Codigo Penal fica assim substituido:

"Art. 114.° Nos criminosos que enlouquecerem depois de commettido o crime, se sobre estará no processo de accusação até que elles recuperem o uso normal das suas funcções mentaes".

Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario. = M. Bombarda.

Foi admittido e enviado á commissão de legislação criminal.

Proposta

Proponho que se nomeie uma commissão de inquérito que estude os effeitos do regime penitenciário tal como é applicado em Portugal e a necessidade de o modificar no sentido do systema de Auburn ou do systema progressivo. = M. Bombarda.

Foi admittida e enviada á commissão de legislação criminal.

O Sr. Presidente: - Communico á Camara que recebi uma representação de diversas associações de classe e de soccorro mutuo, fazendo diversas considerações sobre a proposta de lei relativa a construcções economicas e hygienicas para operarios, e uma outra da Caixa de Soccorros a Estudantes Pobres, pedindo a cedencia de tres salas em qualquer edificio do Estado e isenção do sello de franquia na correspondencia do seu expediente.

Examinando estas representações, vejo que estão redigidas em termos convenientes, e por isso consulto a Camara sobre se consente, que elles sejam publicadas no Diario do Governo.

Foi approvado.

O Sr. Presidente: - Devo tambem communicar que devia realizar-se hoje o aviso prévio do Sr. Brito Camacho ao Sr. Presidente do Conselho sobre os successos de 5 de abril.

O Sr. José Cabral: - Peço a palavra por parte da commissão de fazenda.

O Sr. Presidente: - Tem V. Exa. a palavra.

O Sr. José Cabral: - Mando para a mesa a seguinte

Proposta

Proponho que sejam aggregados á commissão de fazenda os Srs. Deputados Mendes Leal e Soares Branco. = José Cabral.

Foi approvado.

O Sr. Presidente: - Como disse, devia realizar-se o aviso previo do Sr. Brito Camacho ao Sr. Presidente do Conselho, mas o Sr. Deputado Affonso Costa pediu a palavra para um assunto urgente e sendo convidado a vir á mesa, declarou que desejava interrogar o Sr. Ministro do Reino ácerca dos acontecimentos que se deram hontem no Porto, commettidos pelo commissario de policia e commandante da força da guarda municipal, á saida da comicio.

O Srs. Deputados que entenderem que este assunto é urgente teem a bondade de se levantar.

Foi approvado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Affonso Costa.

O Sr. Affonso Costa: - Deseja apenas interrogar o Sr. Presidente do Conselho, pois comprehende que S. Exa. não tenha ainda o relatorio circunstanciado dos acontecimentos para poder dar á Camara as necessarias explicações e, sobretudo, para estabelecer já as necessárias responsabilidades e sancções.

Procurará fazer a narração do acontecido no menor numero de palavras possivel e terminará com interrogações ao Sr. Ministro do Reino, que, se já tiver informações, lhe responderá hoje, e, se não as tiver, lhe responderá quando estiver habilitado.

Hontem realizou-se no Porto um comicio publico devidamente annunciado, tendo-se observado todas as formalidades que a lei exige. No recinto do comicio não se fez representar a policia nem a autoridade administrativa, suppõe que por ordem expressa do Sr. Presidente do Conselho, e, se assim foi, fez S. Exa. muito bem, porque mostrou conhecer o procedimento inalterável do partido republicano no livre exercicio do direito de reunião.

Como a Camara sabe, o partido republicano tem feito muitas dezenas de comicios, mesmo nos periodos de reacção mais viva, em que a agitação mais se tem manifestado, sem que a ordem tenha sido alterada.

Em todos os países bem administrados o dirçito de reunião é o meio de fazer intervir o povo nos negocios publicos, porque sem essa intervenção não pode haver uma boa administração. Sem que o povo, ou pela forma juridica que vae até o referendum e á eleição dos seus representantes, ou pela forma directa das reuniões populares, se interesse pelos negocios publicos, não ha garantia de uma boa administração; e foi em obedienciaa este criterio que o partido republicano tem feito os seus comicios, não só para propaganda dos seus principios, mas para defesa dos interesses nacionaes.

E, realizando esses, comicios, todos teem de o confessar, manteve sempre a maior ordem e serenidade, o maximo respeito pelas leis.

As vezes, se o assunto é melindroso, se é d'aquelles que apaixona a opinião publica, o orador pode ir até a vehemencia da frase, mas onde nunca vae é até o enxovalho e o crime, e aos Governos o que unicamente é licito é evitar o crime, e principalmente o crime collectivo.

Que um orador se afaste da serenidade habitual, isso pouco importa ao Estado, mas que a multidão excitada pelos oradores vá até os excessos, que podem degenerar em crimes, isso é que o Estado pode e deve prevenir.

Se nos comicios republicanos a ordem fosse alterada, se nesses comicios os oradores aconselhassem o povo a que os seguissem até a praça publica, para ahi fazer affirmações de applauso a factos anarchicos, ou para se lançar em tumultos e desordens, então o Governo devia intervir na medida do possivel, com a maior prudencia, com o maior cuidado; porem, o partido republicano, que nos ultimos annos tem feito centenas de comicios, pode perguntar qual foi, de entre elles, aquelle em que o partido republicano, pela voz dos seus oradores, incitou o povo a, qualquer crime, ou se lançou no caminho da desordem e da anarchia.

Elle, orador, tem assistido a dezenas de comicios, e pode informar a Camara de que as poucas vezes em que tem visto a ordem começar a ser alterada foi sempre pela intervenção intempestiva e provocadora da autoridade. Louva por isso o Sr. Presidente do Conselho se foi sua a ordem para que no recinto do comicio não estivesse nenhum representante da autoridade, e para que a força publica fosse collocada a uma certa distancia e ahi ficasse á disposição de quem a representava, a fim de só intervir com circunspecção e prudencia, caso a ordem fosse alterada.

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Se o procedimento do Governo foi portanto muito correcto não mandando nenhum representante da autoridade para o recinto do comicio, o que, aliás, ainda não succedera no ultimo que se realizou em Lisboa, no qual a autoridade esteve representada - o que de resto, deve dizer, nada importa ao partido republicano, que sabe sempre manter-se dentro da lei - outro tanto não pode dizer do procedimento da autoridade sua delegada, porque, quando o comicio já tinha acabado, a força publica entendeu dever intervir contra o povo que debandava tranquilla e ordeiramente.

O comicio, a que tinham assistido doze a quinze mil pessoas, pois foi sem duvida o mais concorrido que se tem realizado n'aquella cidade, decorreu na mais perfeita ordem, não tendo havido a mais ligeira agitação. A saida fez-se tambem serenamente, caminhando o publico em diversas direcções para os seus domicilios, e os oradores esperavam que o recinto quasi se evacuasse para rapidamente passarem por entre a multidão, nos seus carros, a fim de evitarem manifestações, mesmo as de saudação, que são sempre legitimas e ordeiras em si mesmas.

Aconteceu, porem, que ao passarem os dois ou tres primeiros carros os oradores foram saudados pela multidão, não havendo vivas ou gritos de nenhuma outra natureza, e por essa declaração responde elle, orador, não só como Deputado, mas como homem.

O inspector de policia, porem, o Sr. Pimentel, que crê ser parente do Sr. governador-civil, metteu-se numa carruagem e foi chamar a cavallaria commandada pelo tenente Rangel.

A força veio, chegou junto do povo e, sem aviso, sem nenhuma necessidade, sem que houvesse razão ou pretexto, desembainhou as espadas e começou a acutilar a multidão a torto e a direito.

O povo retirou-se, e nem ali estava para travar batalhas, e a guarda municipal, vendo que não era possivel continuar ali as suas proesas, voltou para o ponto onde tinha estado aguardando ordens.

No caminho encontrou um magote de garotos e parece que um delles disse qualquer cousa desagradavel ao tenente, embora não tenha informações completas sobre este ponto e apenas possa assegurar que eram garotos, e não a massa popular, que ali se encontravam. Pois esse dito bastou para que o tenente mandasse desembainhar as espadas e acutilar, não já o povo que assistira ao comicio, e que, como republicano, poderia excitar os sentimentos monarchicos, descompassados e pathologicos, do official da guarda municipal, mas mulheres e crianças, que estavam desprevenidamente na embocadura de uma rua.

Felizmente não houve ferimentos de que tenha resultado gravidade ou perigo de vida, mas isso foi obra de um acaso e nada mais.

Elle, orador, é o primeiro a congratular-se porque desses ferimentos não resultasse gravidade, mas nem por isso o caso deixa de revestir grande importancia. O que se demonstrou é que o espirito d'aquella corporação é o mesmo que se revelou em 1 de dezembro, em que foi morto por ella, estando commandada por outro tenente Rangel, o popular Oliveira Barros. Hontem não chegaram aquelles benemeritos até o tiro, talvez por ser de dia, mas foram até o acutilamento fero, estupido e barbaro.

Pede ao Sr. Presidente do Conselho que siga o exemplo de Clemenceau - que estabeleça as responsabilidades. Se o commissario de policia chamou a guarda sem necessidade, suspenda-se até se apurar a sua responsabilidade, e se o tenente da guarda municipal exorbitou leve-se aos tribunaes. Assim poderá S. Exa. demonstra? que é liberal de facto.

(O discurso será publicado na integra quando o orador restituir as notas tachygraphicas).

O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Folgo que o illustre Deputado Sr. Affonso Costa tivesse dito que, durante a gerencia do actuai Governo, o direito de reunião tem sido respeitado, e, mais ainda, que nem autoridade tem sido mandada para os comicios.

Entendo - e não entendo só para falar, entendo para mandar - que o direito de reunião deve ser observado. Ora, procedendo assim, creio provar que não sou liberal só em palavras, mas em factos. (Apoiados).

O illustre Deputado confessou que o meeting no Porto correra sem intervenção da autoridade, e que os diversos oradores se mantiveram dentro da ordem.

Bastaria a palavra do illustre Deputado para eu o acreditar, mas o que é innegavel é que sempre nos comicios, por maior que seja a prudencia dos oradores, se gera naturalmente uma excitação propria naquelles que falam; dispondo alem disso, como S. Exa., da autoridade de palavra poderiam - se realmente se não deixassem por vezes levar pela rhetorica, o que é perfeitamente natural, e se não se deixassem arrastar, embora a sua intenção seja perfeitamente justa - evitar as excitações que os compromettem, como as que occorreram, quando acabou o comicio e na occasião da saida dos assistentes.
Creio que hoje todo o bom povo portugues, qualquer que seja o seu ideal, o que deve é procurar manter-se por forma tão ordeira que não seja perturbada a liberdade, e haja motivo para a intervenção do Governo, a fim de que os que trabalham e não vivem da politica não soffram as consequencias dessas excitações. (Muitos apoiados).

S. Exa. disse que o Governo estava no seu direito, para manter a ordem, de conservar a força fora do recinto do comicio, e foi isso o que se fez.

Direi a V. Exa. que o commissario de policia tinha o dever de manter a ordem, e foi exactamente o que elle fez. Mas porque é que a força interveio?

Tenho aqui um telegramma do governador civil que justifica perfeitamente todos os actos praticados e mais alguma cousa.

E isso justifica, mais uma vez, os sentimentos liberaes que tem aquella autoridade tão conciliadora, como sempre tem exuberantemente demonstrado durante os largos annos da sua vida publica. (Apoiados).

O telegramma é o seguinte:

Para Lisboa, do Porto, em 6, 1 hora e 40 minutos da manhã. - Exmo. Presidente do Conselho de Ministros. - Lisboa. - É falso terem-se feito prisões por causa do comicio.

Não houve uma unica prisão. A policia não entrou no recinto destinado ao comicio, que, como V. Exa. vê, correu o mais livremente.

Preveniu-se que não se consentiam manifestações na rua. Quiseram faze-las, levantando vivas subversivos.

Interveio a força para dispersar, não havendo ferimentos, pois ninguém foi curar-se, nem ao hospital, nem ás pharmacias.

Posso asseverar isto sem receio de justificar o desmentido.

Estiveram fora para manter a ordem cento e vinte policias e trinta soldados de cavallaria da municipal. = O Governador Civil, Adolpho Pimentel.

Isto não se consente em parte alguma. (Apoiados). Eu tenho viajado por toda a parte do mundo...

O Sr. Affonso Costa: - Talvez S. Exa. não ^se recorde do cortejo collossal que acompanhou Deroulède no dia da sua chegada até sua casa, no qual se encorporaram mais de cem mil pessoas.

O que não se consente em parte alguma, são gritos sub-

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versivos, mas consente-se em toda a parte manifestações, de sympathia, manifestações ordeiras.

O Orador: - O que eu vejo é que emquanto S. Exa. faz dois discursos, faço eu só um, e mesmo assim fico de mau partido. (Apoiados. - Riso).

A manifestação não consistiu só em andar na rua, porquanto sendo só a passear, a policia não intervém. O caso é outro. E, a proposito, eu vou citar um exemplo.

O Sr. Affonso Costa: - Eu não torno mais a interromper S. Exa. O que vou declarar é uma questão de facto e não voltarei á questão.

Não houve no Porto manifestação alguma, porque não houve organização de manifestação. Somente quando nos passávamos fomos saudados. Quasi não passou de tirar o chapeu.

O Sr. Presidente: - Parece-me que o Sr. Presidente do Conselho não consente interrupções.

O Sr. Affonso Costa: - Então agora já não as faço...

O Orador: - Continue S. Exa. no regime das promessas!... (Riso).

Vou contar p resumo da historia que eu presenciei; talvez V. Exa. não presenciasse quando se gritava nas das de Paris, a proposito do General Botha: Honneur aux vaincus, honneur aux vaincus!

Creio que não ha nada menos subversivo, que não ha nada mais sympathico, que não ha nada que seja absolutamente mais generoso e nobre. (Apoiados).

Quando esses homens iam a passar pelo boulevard do Italianos, com doze ou treze mil pessoas atrás de si, alguém se lembrou de dizer que, depois do comicio que se seguia, se havia de fazer uma quête para animar um pouco aquelles infelizes que estavam numa situação desgraçada depois da atroz guerra do Transvaal.

Mas - e este é que foi o verdadeiro crime - foi lembrarem se de abrir a tal subscrição, que não recebeu a sympathias da guarda republicana, que logo veio com...

(Interrupção do Sr. João de Menezes que se não ouviu)

Veio a guarda republicana, e eu, que não tinha cousa alguma com os vencidos nem com aquellas manifestações se não tivesse entrada com a maior pressa dentro de uma perfumaria, que por acaso estava aberta, e isso consentido pelo dono da loja, por certo que não teria a estas hora a honra de responder a S. Exa. (Riso).

Simplesmente o que eu digo é que o espectáculo era dos mais commoventes, e como a manifestação foi corrigida não sei.

Não se via no ar senão Aspadas da guarda republicana e homens, mulheres e crianças a fugir com a maior pressa, pois que não tinham recebido nem aviso previo, nem toques de corneta, nem cousa alguma. Aquillo foi bordoada de cego!... (Risos).

Ora o illustre Deputado, com o fogo da sua palavra inspirada, pinta-nos os soldados de cavallaria da guarda municipal de espada desembainhada contra as crianças etc., e afinal de contas não ha um só ferido!

Comprehendo que nos possamos elogiar as considera coes de alta fantasia de S. Exa., mas a verdade dos factos, e fica conhecida de todos, é que tanto o Sr. governa dor civil do Porto, como a guarda municipal, cumpriram o seu dever.

Tenho dito. (Muitos e repetidos apoiados). (Vozes: - Muito bem).

(O orador não reviu).

O Sr. Affonso Costa: - O que eu peremptoriamente affirmo é que não houve o minimo grito subversivo, e o Sr. governador civil, se não estava lá, que mande indagar.

Deponho, com o testemunho de Deputado da nação, o meu formal desmentido.

O Sr. Presidente: - S. Exa. não tem a palavra. Chamo a attenção da Camara. O Sr. João de Menezes pediu a palavra para um negocio urgente. Convidado a declarar qual o assunto que desejava versar, disse que era o seguinte:

Desejo interrogar o Sr. Presidente do Conselho sobre a publicação, num jornal de Lisboa, de uma lista de alguns adeantamentos feitos á Casa Real. = J. de Menezes.

Os Srs. Deputados que entendem que este assunto é urgente teem a bondade de se levantar.

Foi rejeitado.

O Sr. João de Menezes: - Peço a contraprova.

O Sr. Presidente: - Peço aos Srs. Deputados que occupem os seus logares.

(Pausa).

Os Srs. Deputados que entendem que este assunto é urgente deixam-se ficar sentados.

Foi rejeitado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Brito Camacho.

O Sr. Brito Camacho: - Sr. Presidente: na sessão de 8 de maio, tive a honra de mandar para a mesa uma proposta para que se fizesse um inquerito parlamentar aos successos de 5 de abril; como a Camara é soberana... para acatar as indicações do Governo, nem a admittiu á discussão.

Logo a seguir formulei o aviso prévio que só agora, passados, dois longos meses, consegui realizar.

A chacina desse lutuoso dia derivara, evidentemente, de um acto politico; natural e logico seria que cada partido procurasse, responsabilizar por ella os outros partidos.

Por isso mesmo, Sr. Presidente, propus que a commissão de inquerito parlamentar fosse composta de elementos de todos os grupos com representação na Camara, porque só assim as suas conclusões deixariam de ser suspeitas.

O Governo, Sr. Presidente, ordenou uma syndicancia; mas antes disso, e quando ainda não podia ter dos factos uma informação cabal e precisa, forneceu á imprensa uma nota em que já se justificava o barbaro proceder da força armada pela necessidade de reprimir os discolos. Essa leviandade, não cobrindo as responsabilidades de ninguem, era como que uma conclusão antecipada do relatorio que devia apresentar muito mais tarde o general syndicante.

Eu, Sr. Presidente, como V. Exa. muito bem sabe e a Camara não ignora, nunca insisti com o Sr. Presidente do Conselho para que me marcasse dia para o meu aviso previo. Deixava que a syndicancia proseguisse, arrastando-se numa lentidão excepcional, não querendo que servissem as minhas impaciencias para tornar precipitado um serviço d'aquella gravidade e importancia. E só quando soube que o relatorio havia sido entregue ao Sr. Ministro do Reino, é que pedi a S. Exa. que o fizesse publicar no Diario do Governo, para que fosse do conhecimento de todos, e eu o, pudesse analysar e discutir quando realizasse o meu aviso previo.

Disse então o Sr. Presidente do Conselho que não podia ordenar essa publicação, porquanto do relatorio derivavam responsabilidades criminaes para civis e militares, e era preciso guardar o segredo da justiça até que não

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houvesse inconveniente em divulgá-lo.. Sabendo já como o Sr. Ministro do Reino entende os segredos da justiça; esperava eu que logo a seguir áquella declaração S. Exa. dissesse o que o relatorio continha de essencial. (Apoiados da esquerda).

Na Camara dos Dignos Pares, tratando-se do regicidio, o Sr. Ferreira do Amaral tambem allegou, para não dizer nada, o segredo da justiça, mas foi dizendo o que mais interesse havia em saber-se.

Não succedeu o mesmo agora. Entrincheirado com o segredo da justiça, o Sr. Presidente do Conselho foi discreto como um tumulo.

Havia que proceder contra alguem?

Eu, Sr. Presidente, confesso não perceber que o facto da publicação do relatorio favorecesse os indiciados criminosos em prejuizo dos interesses sagrados da justiça.

Já é tempo de reformar a nossa organização judiciaria por forma que o accusado possa acompanhar a instrucção do seu processo, desde que elle se inicia até que se julga. Reu confesso de adeantamentos, o Sr. Ministro da Fazenda assiste, em pessoa, á instrucção do processo que lhe movemos, e prepara-se para tomar parte no seu proprio julgamento, como juiz incorruptivel. (Apoiados da esquerda).

Mas, Sr. Presidente, se foi só o respeito pelos segredos da justiça que impediu vir a lume o relatorio, espero que elle seja publicado logo que esses mesmos interesses não possam ser prejudicados com essa publicação.

Sr. Presidente, o facto certo de uma brutalidade inverosimil foi este: no dia 5 de abril, no Largo de S. Domingos, foram mortos a tiro, por soldados da guarda municipal, quatorze individuos e ficaram gravemente feridos cento e tantos, alguns tão gravemente feridos, que ainda estão em tratamento.

Nos tres combates da recente campanha da Guiné foram mortos apenas doze dos nossos homens, e o numero de feridos, se não estou em erro, foi de vinte e tres.

Mas era Bissau havia guerra; em Lisboa, no dia 5 de abril, havia apenas eleições. No Largo de S. Domingos não se feriu um combate, fez-se positivamente la chasse à l'homme, da forma mais estupidamente barbara.

Tres soldados que o commandante da força postou na varanda da igreja, desfechavam sobre quem quer que lhes apparecia, mais perto ou mais longe, dentro ou fora do campo de fogo, não poupando os proprios camaradas.

Dos soldados de infantaria 5, que estavam formados na meia laranja do Quartel General, cinco cairam feridos, e nem pôr isso os restantes, guardando obediencia ao official que os commandava, procuraram vingar-se e defender-se.

Um tal respeito pela disciplina, Sr. Presidente, chega a ser heroismo, como é cobardia atirar sobre quem não pode defender-se, como succedia aos pobres que os municipaes fuzilaram, abrigados na varanda de uma igreja, podendo fazer socegadamente as pontarias, sendo milagre que só quatorze individuos ficassem mortos.

O facto prova apenas que os soldados da. municipal, alem de tudo o mais, são pessimos atiradores, o que ainda é, felizmente, uma garantia para todos nós; (Apoiados da esquerda).

Em nenhum dos quatorze cadaveres, e supponho que todos elles foram autopsiados na Morgue, em nenhum se encontraram balas. Nem admira, porque a distancia a que atiravam os municipaes era muito curta, de modo que as balas, de um grande poder de penetração, atravessavam os desgraçados, por grande que fosse a resistencia que encontravam.

Não obstante, tem-se falado de revolveres e pistolas, pretendendo-se inultimente fazer acreditar que os populares, atirando ás cegas, tinham ferido muita gente, e por ventura tinham morto alguns dos individuos que ficaram juncando o campo da batalha.

Succede porem, Sr. Presidente, que nenhum soldado da municipal recebeu ferimentos por arma de fogo, havendo alguns levemente feridos, com ligeiras ou pequenas contusões, á pedrada.

Mas quereriam então que o povo se não defendesse, deixando-se espingardear sem a minima resistencia, numa passividade que seria degradante, porque seria cobarde?

Como não conheço o relatorio official, abstenho-me de fazer affirmações peremptorias, que possam importar acusações concretas a quem quer que seja, a não ser nos casos em que possa apoiar essas affirmações em provas irrecusaveis.

Pergunto por isso como é que se explica que a municipal fizesse fogo sobre os populares, durante aproximadamente tres horas, á porta do Quartel General, quasi a dentro do districto da guarda?

Ha de dizer-se no relatorio official em que altura da fuzilaria interveio o commandante da divisão, para que elle cessasse; mas, como não conheço, repito, o relatorio, não posso fazer a este respeito as considerações que os factos me sugerem. E porque assim é, Sr. Presidente, não considero inteiramente realizado o meu aviso previo com o que hoje disser, reservando-me para o concluir quando o relatorio for publicado.

Sr. Presidente: desde janeiro que a Guarda Municipal estava sob as ordens do commandante da divisão, e isso torna menos explicavel o procedimento do Quartel General, não intervindo aos primeiros tiros, fazendo cessar o fogo. Ou seriam desobedecidas as suas ordens?

A extrema gravidade do facto leva-me a não insistir neste ponto, que analysarei detidamente quando for publicado o relatorio official.

Ao que me consta, e o Sr. Presidente do Conselho dirá se isso é verdade, só respondem em conselho de guerra, como responsaveis pela chacina de 5 de abril, um tenente e um soldado - o tenente que commandou em S. Domingos, e o soldado que em Alcantara matou um popular.

Entendo eu, Sr. Presidente, que o soldado e o tenente, cujas responsabilidades não discuto, não podem ser os unicos a responder por aquelles crimes, sem flagrante iniquidade. (Muitos apoiados da esquerda).

Quando o tenente chegou a S. Domingos, já se tinha aberto o fogo, que principiou ainda a força estava sob o cominando de um sargento, continuando sob o de um alferes.

A força de Alcantara, a que fez fogo, era do commando de um official, e essa força não fora requisitada, segundo a lei, pelo presidente da mesa, mas sim pelo Sr. tenente-coronel Dias.

Lamento, Sr. Presidente, não conhecer o relatorio, por que só esse conhecimento me habilitaria a tratar este ponto com segurança, sem receio de ser injusto para alguem. Sem aventar juizos definitivos, repito que me não parece justo lançar todas as responsabilidades para cima de um soldado e de um tenente, como me consta que se está fazendo. (Apoiados da esquerda).

O Sr. Presidente do Conselho é um homem muito illustrado, e eu já fiz a justiça de o reconhecer quando analysei, embora sem competencia, o seu livro sobre a defesa nacional.

Alem de saber muitas cousas serias, S. Exa. sabe muitas cousas divertidas, podendo considerar-se, um poço de anecdotas. Mas é possivel que não conheça a historia do plantão, que peço licença para contar á Camara, por a julgar apropositada.

Sr. Presidente: em tempos idos, mas não muito remotos havia nos quarteis um individuo, o plantão, que respondia pelas mais pequenas cousas - a limpeza da caserna, qualquer cousa que se partia, um insignificante objecto que se extraviava, ou era posto fora do seu logar. Um dia a Rainha, acompanhada das suas damas, foi visitar um quartel. A visita tinha sido, conforme as praxes, annunciada com a devida antecedencia, de modo que Sua

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8 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Majestade foi encontrar tudo que nem um brinco, no maior asseio ena maior ordem. Diziam as madamas, num justificado espanto: "Parece incrivel como isto se consegue numa casa onde ha só homens. É verdadeiramente extraordinario!" E o Condene Santa Maria, que era do rancho, explicou então: "É extraordinario, sim, minhas senhoras; mas quem se... aguenta é o plantão". (Riso. - Muitos apoiados).

A Camara comprehende que não foi precisamente o aguentar o que empregou o Conde de Santa Maria, mas as liberdades de linguagem que elle tinha com senhoras não as podemos nos ter aqui numa assembleia de homens.

O Sr. Presidente: - Deu a hora de se passar á ordem do dia. O Sr. Deputado Camacho deseja continuar no uso da palavra?

O Orador: - Se a Camara mo permittisse...

Vozes: - Fale, fale.

O Sr. Presidente: - Vou Consultar a Camara.

(Pausa).

A camara resolve affirmativamente.

O Sr. Presidente: - Pode S. Exa. continuar nas suas considerações.

O Orador: - Agradeço á Camara a amabilidade.

Eu, Sr. Presidente, não peço o castigo de ninguem pelo prazer de que alguem soffra; mas exijo a igualdade de tratamento para os culpados da mesma falta. (Apoiados da esquerda). A punição deve visar apenas a corrigir o delinquente, e deve graduar-se pela necessidade da defesa social.

Entendo, em minha consciencia, e pelas informações colhidas no inquerito a que procedeu o partido republicano, que os successos de S. Domingos se originaram num equivoco, que um pouco de serenidade e de bom senso teriam desfeito sem consequencias.

Num dado momento, a multidão que enchia o templo imaginou que alguem queria roubar a uma e desatou em protestos violentos; os soldados imaginavam que pretendiam massacrá-los e desataram a praticar brutalidades. O que se seguiu explica-se facilmente, sabendo-se que existe entre o povo e a guarda mais do que uma irreductivel desconfiança, uma irreductivel má vontade. (Apoiados da esquerda). Digo-o francamente e nada me custa a dize-lo, porque nunca pensei em tirar dos successos tragicos de 5 de abril os banaes effeitos politicos da praxe. O que não quer dizer que para os apreciar eu ponha de banda a minha politica, como se ella me impedisse de ser recto na critica dos factos e na apreciação dos homens.

Não tenho uma politica de tirar e por, como deve ser a de muita gente, que a cada passo trata assuntos politicos, affirmando que deixou a politica em casa. (Riso. Apoiados). Essa mentira é ás vezes uma imbecilidade, e, se eu sou capaz de uma dessas cousas por falta de intelligencia, sou incapaz da outra, por qualidades de caracter. (Apoiados).

Sr. Presidente: para se avaliar do espirito bellicoso dos populares, sobre os quaes a guarda atirava á bruta e ás cegas, basta dizer-se que dois pelotões de cavallaria limparam prontamente o Rocio, apinhado de gente, sem fazerem um tiro e sem ao menos se servirem das espadas (Muitos apoiados da esquerda). E como os officiaes se dirigissem ao povo, aconselhando-o a dispersar, longe de lhes responderem com insultos ou com pedradas, esses cidadãos pacificos respondiam-lhes com os gritos de "viva o exercito" e tratavam de se ir embora. (Apoiados da esquerda).

Mas, ao passo que assim succedia por banda dos populares, os soldados da guarda, numa embriaguez de raiva homicida, atiravam até sobre as pessoas bondosas que se aventuraram a erguer os feridos, ministrando-lhes soccorros. Um dos feridos foi morto no momento em que dois bombeiros o erguiam, do chão para o retirarem do theatro da batalha. Se ha nada mais infame, e se ha infamia mais digna de um castigo exemplar!

Sr. Presidente: é necessario que a guarda municipal, como corpo de segurança, não seja um seguro de morte. Até que a extingam, é preciso discipliná-la no respeito dos cidadãos, que não podem estar á mercê das suas furias e raivas. Quando a mandam sair dos quarteis, entende ella que é para ferir e matar. Nunca se deveria fazer fogo dentro de uma cidade para reprimir um tumulto ou para castigar uma desordem. (Apoiados da esquerda). Se as pontarias são baixas, não escapa quem esteja perto; mas, sendo altas, vão muitas vezes ferir quem estava longe, em sua casa, e nada tinha com. os successos em que se vê envolvida a tropa.

Sr. Presidente: mas, no proprio theatro dos acontecimentos ha sempre muita gente que n'elles se encontra envolvida por acaso, andando a tratar da sua vida, ou que ali foi procurar um parente ou um amigo, com o unico fim de os afastar.

A desculpa de taes selvajarias, aqui como em toda a parte, é sempre a mesma a defesa da ordem!

Mas em nome da ordem é necessario que cada um resista á autoridade, quando ella for despotica e arbitraria, levando essa resistencia até os ultimos extremos.

O cidadão que está dentro da lei tem o direito, que é ao mesmo tempo um dever, de resistir por todas as maneiras á autoridade, quando ella exorbita das suas funcções e quer ser obedecida pela violencia. Já ahi se desenharam, por parte de politicos graduados, umas certas ameaças de ditadura, como correctivo aos desmandos e insufficiencias do Parlamento. Pois bem: se amanhã ahi apparecer um novo ditador, renovando essa ditadura funesta de que temos ainda fresca a memoria, o primeiro cidadão que for gravemente offendido nos seus legitimos direitos, ou esbulhado dos seus legitimos interesses, tem o incontestavel direito de o matar. Não receio dize-lo, e se nenhuma responsabilidade directa me prende aos crimes do passado não a enjeito nos crimes do futuro, se elles vierem a produzir-se. É preciso não apregoar demais o respeito da ordem, porque pode cair-se no culto da cobardia.

A ordem, Sr. Presidente!

Em geral, a desordem é provocada pelos mantenedores da ordem, e isso explica porque decorrem sempre na melhor ordem os comicios republicanos onde não apparece a autoridade, como agora succedeu no Porto. (Muitos apoiados da esquerda). Por grandes que sejam essas reuniões, por violentos que sejam os oradores, se a autoridade não se encarrega de promover desordens, tudo se passa ordeiramente.

Disse o Sr. Presidente do Conselho, respondendo ao Sr. Dr. Affonso Costa, que a autoridade não pode consentir que na rua se soltem gritos subversivos. E citou o que viu em França, quando ali esteve o general Botha, dizendo haver escapado ás. cutiladas da guarda republicana, mettido numa perfumaria. E, comtudo, a multidão nada mais fazia do que gritar - honneur aux vaincus. Mas S. Exa. esquece-se de que nesse momento gritar-se em Paris honneur aux vaincus podia traduzir-se, alem da Mancha, como um grito de mort aos vainqueurs, e a Inglaterra, como diria o Sr. Oliveira Mattos, não é menina com quem se brinque. (Riso. Apoiados). Conhece S. Exa. o Sr. Ferreira do Amaral muito bem a Inglaterra, pais da sua predilecção, e que muito frequentemente cita. Pois bem : na Inglaterra já succedeu a policia ter de garantir ao

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philosopho russo Kropotkine o direito de expor e evangelizar na rua... as doutrinas anarchistas!

Sr. Presidente: não ha crimes de opinião; o unico verdadeiro crime que pode commetter um homem, a falar, é o de dizer tolices. (Riso. Apoiados). Por muito avançada que uma opinião seja, é necessario deixá-la expor livremente, porque, embora falsa na apparencia, ella pode conter uma parcela de verdade, e, embora apparentemente perigosa, pode encerrar um principio de justiça.

As opiniões avançadas, Sr. Presidente, só escandalizam os pobres de espirito, os pygineus do pensamento, atidos aos principios estabelecidos, ás verdades consagradas. Não ser da opinião de toda a gente, romper o circulo das verdades officiaes, é abrir caminho para o futuro, num impulso de revolta que dignifica e ennobrece. É necessario respeitar os que protestam, porque está com elles, em geral, a justiça, e dentro do seu protesto, embora vago e incerto, ha talvez um progresso a realizar.

Eu, Sr. Presidente, tenciono submetter á apreciação da Camara um projecto da extincção da guarda municipal, quando se discutir o orçamento. Acho mau que os militares façam o serviço de policias, porque entre uns e outros ha uma differença de categoria que os inhibe de exercerem igualmente bem a mesma funcção. O policia deve ter o ouvido pouco apurado, de modo que lhe escapem, na maior parte. dos casos, as vaias, insultos ou doestos que lhe dirijam na rua, por occasião de algum motim ou desordem. O militar não pode ter essa especie de anesthesia moral, que todavia não é uma baixeza, por ser um predicado necessario ao exercicio da funcção policial.

Vou terminar porque não desejo de forma alguma abusar do favor da Camara. Esforcei me por falar serenamente, sem violencias de nenhuma espécie, sobretudo sem injustiça para ninguem. Esforcei-me por ser exacto na breve narração que fiz dos acontecimentos, e garanto á Camara que fui sincero, de uma absoluta sinceridade. Por isso mesmo, Sr. Presidente, espero que ella não repudie a proposta que vou mandar para a mesa, e que traduz um sentimento de piedade, que é de todos, porque é humano. (Vozes: - Muito bem).

A proposta e, a seguinte:

"A Camara, lamentando que entre portugueses se produzam conflictos sangrentos, consigna na acta um voto de sentimento pelas victimas de 5 de abril". = O Deputado, Brito Camacho.

Foi approvada.

(O orador, que foi muito cumprimentado pela esquerda, não reviu o seu discurso).

O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Peço a palavra:

O Sr. Presidente: - Ha pouco tive que consultar a Camara para que o Sr. Deputado Brito Camacho continuasse nas suas considerações alem da hora regimental. Não posso agora dar a palavra ao Sr. Presidente do Conselho, sem consultar tambem á Camara.

A Camara, depois de consultada, resolve affirmativamente.

O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Começo por agradecer á Camara a attencão que teve commigo, permittindo que usasse agora da palavra, e, para corresponder por forma igualmente gentil á amabilidade da Camara, vou responder nas mais breves palavras ás considerações do illustre Deputado Sr. Brito Camacho, algumas das quaes ficarão sem resposta; pois as condições acusticas da sala não me permittiram ouvir bem S. Exa.

A base da argumentação do illustre Deputado foi a não publicação do relatorio.

S. Exa. entende que o relatorio já devia estar publicado, e da sua não publicação não sei que conclusões tirou, mas de certo não foram de excessiva amabilidade.

Apesar do relatorio não estar já publicado, elle começou já a produzir os seus effeitos, e prejudicial seria a sua publicação á acção da justiça.

As razões que até agora existiam cessaram ante-hontem; e devo dizer ao illustre Deputado que, se não fiz hoje a publicação, foi porque não queria que se imaginasse que por mais ou menos vinte e quatro horas, eu queria eximir-me ás minhas responsabilidades.

Repito: o relatorio já começou a produzir os seus effei-tos, como é do dominio publico. O official que estava commandando a força foi proposto a conselho de guerra, e S. Exa. vê que se não dá, portanto, o caso da anecdota a que se referiu. (Apoiados).

Sobre, os acontecimentos de Alcantara foi tambem ordenada a formação da culpa.

Tambem ahi não tem applicação a anecdota. (Riso).

Quem commandava era o official. Se os soldados cumpriram ou não as ordens, o conselho de guerra dirá.

Sobre o modo como os factos se passaram, espere S. Exa. pelo relatorio, e verá que muitas das suas informações não são completamente exactas.

Diz S. Exa. que procedeu tambem pelos processos republicanos a um inquerito...

O Sr. Brito Camacho (interrompendo): - V. Exa. dá licença? Não foi pelos processos republicanos. Foi pelos processos de .todo o homem de bem. Os processos republicanos não differem de modo nenhum dos processos monarchicos, quando estes são justos.

O Orador: - Eu julguei que S. Exa. me agradecesse a referencia. Não é um inquerito official regular; é um inquerito de um partido que não pertence ás instituições do Estado, e portanto de um caracter bem diverso d'aquelles que se teem feito. Como S. Exa. bem vê, não houve intenção da minha parte de offender os processos republicanos.

Ora uma das demonstrações mais claras e positivas de que S. Exa. não está absolutamente seguro do resultado a que chegou esse inquérito é que S. Exa., tendo certo interesse em publicar o seu resultado, ainda não me constou que o houvesse feito. É claro que se S. Exa. não publicou ainda o inquerito, não pode estranhar a razão por que o Governo não tenha ainda publicado o seu, quando da sua publicação se podiam levantar difficuldades para a investigação, difficuldades que hoje felizmente já estão postas de parte. (Muitos apoiados).

Outras considerações fez o illustre Deputado.

Disse S. Exa., por exemplo, que as funcções policiaes são absolutamente incompativeis com as condições militares. Não me parece que assim seja, e tanto assim que se eu for examinar. como está organizada a policia estrangeira, por exemplo a da Suissa, vejo que ali os chefes e os proprios guardas teem uma educação inteira e completamente militar. Certamente que o illustre Deputado não ignora isto, visto tanto se interessar pelo assunto.

Se ha educação que melhor forme o espirito e que mais faça ver os deveres de cada um, é sem duvida nenhuma a educação militar. (Apoiados).

Se alguma cousa faz com que um individuo cumpra rigorosamente os seus deveres é a instrucção que recebe. No serviço militar as penas são muito mais rigorosas do que na vida civil.

Alem disto tudo, ha ainda um sentimento que nos militares produz um effeito extraordinario. É o amor pela patria, e a enorme vontade que teem de ter uma folha de serviços completamente limpa.

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A Inglaterra é talvez o unico pais era que a sua organização não é completamente militar. Mas a policia é muito escolhida, são homens de grande estatura, o que não é indifferente, acostumados a fazerem-se obedecer porque o povo ingles respeita a opinião alheia, mas ao mesmo tempo, na Inglaterra, onde o povo tem o conhecimento dos seus direitos, ha, antes de tudo, o zelo e a dedicação pelo cumprimento dos seus deveres, de onde deriva o seu primeiro titulo para poder ser ingles. (Apoiados).

Diz S. Exa. que é permittido a todo o cidadão não cumprir ordens, nem preceitos que não estejam na lei.

O Sr. Brito Camacho: - É do codigo.

O Orador: - De acordo. Mas o que é preciso é que o cidadão, na interpretação do que julga ser a lei, não se engane.

O poder a policia interpretar mal o estabelecido na lei é um caso a dirimir nos tribunaes. O que é preciso é que estes cumpram o seu dever, mas que tambem os cidadãos se sujeitem ao seu veredictum.

Pelo que diz respeito a ditaduras, eu julgo que, se a ditadura tivesse alguma vez vontade de apparecer de novo, tinha o seu maior castigo na condemnação publica. (Apoiados).

E, emquanto eu tiver por collegas os que tenho, emquanto eu tiver a honra de ser Presidente do Conselho, pode S. Exa. ficar descansado e estar certo de que ella nos não incommodará. Tenho dito. - (Muitos e repetidos apoiados).

(O orador não reviu o seu discurso).

O Sr. Presidente: - Vou dar conhecimento á Camara de uma communicação feita pelo Sr? Deputado Eduardo Burnay.

É a seguinte:

Illmo. e Exmo. Sr.-Publica hoje o Diario de Noticias uma resenha de documentos que diz terem sido enviados á commissão de exame da administração do anterior reinado.

Não tendo a certeza de poder comparecer ao principio da sessão de hoje, como relator da dita commissão, e depositário da documentação que lhe tem sido enviada, apresso-me em cumprir o dever de declarar a V. Exa. e á Camara que não foi de mim, directa ou indirectamente, que, verbalmente ou por escrito, aquelle conceituado jornal recebeu qualquer informação, nota ou apontamento sobre a matéria da referida resenha.

Deus guarde a V. Exa. Lisboa, 6 de julho de 1908. - Illmo. e Exmo. Sr. Libanio Fialho Gomes, Digno Presidente da Camara dos Senhores Deputados. = Eduardo Burnay.

Para a acta.

O Sr. Presidente: - Vae passar-se á ordem do dia. Os Srs. Deputados que teem papeis a mandar para a mesa podem faze-lo.

O Sr. Feio Terenas: - Mando para a mesa o seguinte

Requerimento

Requeiro, pelo Ministerio da Fazenda, nota dos empréstimos levantados no Montepio Geral, durante o ultimo reinado, caucionados por qualquer Governo, designando-se a applicação que teve cada um desses empréstimos. = Feio Terenas.

Mandou se expedir.

O Sr. Egas Moniz: - Mando para a mesa os seguintes

Requerimentos

Requeiro que, em conformidade com a declaração do Sr. Ministro das Obras Publicas, me sejam remettidos pelo seu Ministério, e com a possivel urgencia, copias de todos os documentos em que haja abonos á Familia Real no ultimo reinado, incluindo as despesas feitas com comboios especiaes, almoços e jantares realizados nas estações do caminhos de ferro, etc., e bem assim as contas das obras realizadas nos Paços Reaes com a declaração dos respectivos empregados, caso seja possivel, de que nenhum outro documento existe no mesmo Ministerio referente a esse assunto. = Egas Moniz.

Requeiro que, pelo Ministério da Fazenda, e em conformidade com a declaração do Sr. Presidente do Conselho, me sejam remettidas, com a possivel urgencia, copias de todos os documentos relativos a adeantamentos e abonos feitos á Casa Real no ultimo reinado e me seja enviada a declaração dos respectivos directores geraes, ou dos funccionarios desse Ministério que tomem a responsabilidade dessas copias, que nenhum outro documento ali existe que diga respeito a esse assunto. = Egas Moniz.

Mandou-se expedir.

O Sr. Visconde de Corouche: - Mando para a mesa o seguinte

Requerimento

Requeiro que, pelos Ministerios do Reino, da Justiça, da Fazenda, da Guerra, da Marinha, dos Negocios Estrangeiros e das Obras Publicas, me sejam dadas as seguintes informações:

1.ª Informação sobre se houve ou não em qualquer época e sob qualquer pretexto, e com infracção do decreto de 21 de abril de 1892: adeantamentos, supprimentos, subsidios, gratificações, ajudas de custo ou quaesquer abonos feitos tanto, pelos cofres do continente, como pelos cofres das provincias ultramarinas, a favor de quaesquer homens publicos, funccionarios do Estado ou particulares.

2.ª No caso de os ter havido, informação pormenorizada dos nomes das pessoas que autorizaram esses abonos, dos nomes das pessoas a favor de quem foram feitos, das importancias que representam esses abonos em relação a cada um dos contemplados e da totalidade da quantia a que montam, e por ultimo informação das dividas ao Estado, nesta data, proveniente dos referidos abonos. = O Deputado, Visconde de Coruche.

Mandou-se expedir.

O Sr. Mello Barreto: - Mando para a mesa a seguinte

Participação

Participo a V. Exa. e a Camara que se constituiu a commissão dos negocios externos, tendo escolhido para presidente o Sr. Deputado Conde de Penha Garcia, e para secretario a mim participante. = João Carlos de Mello Barreto.

Mando igualmente para a mesa a seguinte

Proposta

Proponho que sejam aggregados á commissão dos negocios externos os Srs. Deputados D. Luis de Castro e José Coelho da Motta Prego. = João Carlos de Mello Barreto.

Consultada a Camara resolve affirmativamente.

O Sr. Brito Camacho: - Mando para a mesa o seguinte

Requerimento

Requeiro que, pelo Ministério da Fazenda, me seja enviada com urgencia uma relação do pessoal exclusivo dos serviços dos bens dos conventos de religiosas supprimidos pelo artigo 6.° do decreto de 3 de janeiro de 1905, com a

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data dos seus despachos e vencimentos, é a indicação das repartições onde trabalham. = O Deputado, Brito Camacho.

Mandou-se expedir.

O Sr. Antonio Centeno: - Mando para a mesa os seguintes

Requerimentos

Requeiro que, pelo Ministerio das Obras Publicas, me seja enviada copia dos documentos seguintes:

1.° Copia do contrato realizado para o fornecimento do material para installação electrica no interior do Paço de Belem e sua collocação;

2.° Caderno de encargos que serviu de base ao concurso que foi aberto para realizar tal contrato de fornecimento;

3.° Parecer e consultas das estações competentes sobre este concurso;

4.° Propostas apresentadas e nomes de todos os concorrentes. = O Deputado, Antonio Centeno.

Requeiro que, pelo Ministerio das Obras Publicas, me sejam enviadas, com urgencia, copias dos documentos seguintes, relativos ao provimento das tres ultimas vagas occorridas na 3.ª classe do quadro dos agronomos:

1.° Relação dos documentos especiaes apresentados por cada um dos candidatos, isto é, dos apresentados alem dos que se exigiam no programma do concurso.

2.° Relatorio do jury, informações da repartição competente e da Direcção Geral;

3.° Consulta da Procuradoria Geral da Coroa;

4.° Despacho do Ministro. = O Deputado, Antonio Centeno.

Requeiro que, pelo Ministério das Obras Publicas, me sejam enviadas copias dos documentos seguintes:

1.° Caderno de encargos para o concurso que se realizou para a installaçao eléctrica para illuminação das casas em que funccionam o Ministério das Obras Publicas e a Repartição dos Correios e Telegraphos;

2.° Parecer e consultas das estações competentes sobre este concurso;

3.° Nome dos concorrentes convidados a apresentar propostas;

4.° Propostas apresentadas;

5.° Contrato realizado com o Arsenal da Marinha para fornecimento de corrente eléctrica. = Antonio Centeno.

Mandou-se expedir.

O Sr. João Pinto dos Santos: - Mando para a mesa o seguinte

Requerimento

Requeiro que, pelo Ministério das Obras Publicas, Direcção Geral de Agricultura, me seja enviada a nota da classificação que, no concurso de 9 de março deste anno, obtiveram os candidatos aos logares de regentes silvicolas de 3.ª classe.

Requeiro igualmente que a repartição competente informe quaes foram, na ordem da classificação, os candidatos que o jury mandou inspeccionar no dia 27 do proximo passado mês de junho. = João Pinto dos Santos.

Mandou-se expedir.

O Sr. Presidente: - Communico á Camara ter o Sr. Deputado Brito Camacho pedido a palavra para um negocio urgente. S. Exa. deseja apresentar algumas considerações a proposito da declaração feita pelo Sr. relator da commissão de inquerito parlamentar.

Consulto, pois, a Camara sobre se considera, ou não, urgente o assunto.

Não foi considerado urgente.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do projecto de lei n.° 14 - fixando a dotação de Sua Majestade El-Rei e a de Sua Alteza o Senhor D. Affonso

O Sr. Adriano Anthero: - Sr. Presidente: Os prin-ipaes themas dos oradores da opposição que precederam o Sr. Dr. Affonso Costa, na matéria que se debate, foram, o ataque aos partidos rotativos; a virulencia contra o Sr. Ministro da Fazenda; a condemnação do artigo 5.° do projecto; e a questão dos adeantamentos.

O Sr. Dr. Affonso Costa não saiu tambem desses moldes. E, naturalmente, insistirão ainda nos mesmos themas os oradores da opposição que se seguirem.

Por isso, para responder a argumentos passados e prevenir argumentos futuros, acceito a discussão, franca, ampla e desassombradamente, neste campo; e mesmo, com respeito aos adeantamentos, supposto, nessa parte, eu podesse invocar a doutrina verdadeira e legal do Sr. Brito Camacho, de que este projecto não é proprio para tratar desse objecto.

E, sem mais considerações, entro immediatamente na questão.

Os quatro primeiros artigos do projecto teem sido discutidos amplamente nesta casa. A Camara deve estar já identificada com a justiça desses artigos; e tanto mais que a opposição não destruiu os argumentos apresentados pelo Sr. relator e, por outros Deputados da maioria. Por isso, eu podia deixar de me referir a esses tres artigos, sem prejuizo da discussão; mas o Sr. Dr. Affonso Costa fez diversas considerações tambem nessa parte; consignou até modificações no projecto que apresentou; e por esse motivo é meu dever responder-lhe.

Revista-se, pois, a Camara de paciencia, até que eu possa entrar em materia que mais a interesse.

O artigo 1.° estabelece a lista civil de Sua Majestade El-Rei num conto de réis diario.

Já assim era pela lei de 11 de julho de 1821, emquanto ao Senhor D João VI;. pela lei de 21 de dezembro de 1834, emquanto á Senhora D. Maria II; pela lei de 18 de julho de 1855, emquanto ao Senhor D. Pedro V; pela lei de 1 de julho de 1862, emquanto ao Senhor D. Luis I; e pela lei de 23 de julho de 1890, emquanto ao Senhor D. Carlos.

Tudo isso representa o consenso unanime de muitas centenas de Deputados e Pares do Reino, e esse consenso é já um criterio da verdade.

E representa igualmente diiferentes decisões em casos análogos, que, por esse motivo, podem ser invocadas como fundamento de uma igual e nova decisão.

Já as nossas antigas ordenações estabeleciam o principio de que onde ha a mesma razão de ser, vigora a mesma decisão; e aqui não ha somente razão igual de ser: ha melhoria de razão, porque a vida tornou-se mais cara, e o dinheiro, relativamente menos valioso.

E isto; porque, de um lado, a civilização trouxe novas necessidades e novas commodidades, e criou differentes exigencias, que se tornaram o apanagio indispensavel de certas posições; e, do outro lado, o aumento do numerario, a amplidão do credito e a diffusão dos titulos fiduciarios diminuiram o valor especifico da moeda.

O Sr. Dr. Affonso Costa disse, a proposito deste primeiro artigo, que se devia attender a que o Rei tinha os rendimentos da Casa de Bragança, e que esses rendimentos lhe deviam ser levados em conta, na fixação da lista civil.

Foi um equivoco de S. Exa.; pois a Casa de Bragança não pertence aos reis. Pertence aos principes, como se vê da carta patente de 27 de outubro de 1645, que a criou, confirmada pelas Cortes Constituintes de 1821, no artigo 5.° da carta de lei de 11 de julho desse anno; e tambem

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pelo Congresso Constituinte de 1838, nas sessões de 26 de março e 20 de maio.

Ainda mesmo que o Rei não tenha filhos, ou emquanto os não tiver, á Casa de Bragança está sujeita a uma administração distincta, e por administradores separados, dos outros bens da Casa Real.

E, embora se entendesse que os rendimentos do Principe Real aproveitavam ao Rei, como em geral, tambem os rendimentos do Rei aproveitam aos filhos, é certo que os proventos da Casa de Bragança actualmente são muito diminutos.

Tambem o Sr. Dr. Affonso Costa ponderou que Sua Majestade El-Rei, pela cedencia que fazia ao Estado dos palacios de Queluz, Caxias e Belem, aumentava a sua for tuna, por se livrar dos encargos de reparações d'esses palacios.

Deve, porem, attender-se a que El-Rei podia arrendá-los e locupletar-se assim com a renda respectiva, e que, desse modo, certamente sobraria muito da despesa d'aquelles reparos, e elles aumentariam os recursos da Casa Real

Pela doutrina do Sr. Dr. Affonso Costa, quem pretender ficar mais rico, é dar o que tem.

O Sr. Dr. Affonso Costa citou depois alguns exemplos de republicas e monarchias, para provar que a lista civil, nos respectivos Estados, é menor do que entre nós.

Ora, relativamente ás republicas, nos vivemos e queremos viver com a monarchia; porque julgamos este regime o mais apropriado á paz e tranquillidade do reino, á conservação da nossa autonomia, á integridade das nossas colonias e á respeitabilidade das nossas relações internacionaes.

Vivendo com a monarchia, temos de nos accomodar ao seu modo de ser proprio e ás condições geraes em que ella subsiste na Europa; visto que é principio indiscutivel que toda a pessoa ou instituição tem de sujeitar-se ao meio em que vive ou á sociedade em que vigora.

Por isso, estando a monarchia rodeada na Europa de um certo decoro ou, se tanto quiserem, de um certo lustre, nos precisamos de acompanhar esse estado de cousas, para que não fique depreciada perante as Cortes estrangeiras a dignidade dos nossos Reis, que é outra base da nossa autonomia.

E, mesmo no interior, se a realeza fizesse uma figura ridicula, perderia o prestigio perante a nação.

Alem disso, o Presidente da Republica não foi educado para esse alto cargo, emquanto que o Rei, já desde criança, foi tratado, educado e considerado como quem tem de presidir um dia aos destinos da patria.

E a educação, segundo Aimé Martin, é uma segunda natureza que impõe novas exigencias e novas despesas.

O Presidente da Republica, antes de o ser, pode ter a sua agencia ou industria particular. Pode exerce-la tambem durante o periodo da presidencia; e a ella pode voltar depois disso. Portanto, sé a sua fortuna for desfalcada, emquanto elle exerce aquellas altas funcções, pode muito bem restabelece-la depois.

Com a Monarchia á não acontece isso. E, se as dividas vergonhosas de Presidente da Republica se não reflectem tão directa e permanentemente na historia da Nação, as dividas vergonhosas do Rei, deixam uma nodoa indelevel na patria, porque a Monarchia forma uma parte integrante das suas glorias e das suas desgraças.

Por isso mesmo, qualquer Monarcha precisa de ter os meios necessarios, para não cair nessas vergonhas. (Muitos apoiados).

Demais, segundo a Constituição, o Rei é hereditario e vitalicio. Não podemos substitui-lo nem demitti-lo; e por isso havemos de lhe dar os meios necessarios de subsistencia, para elle viver com desafogo.

E tanto mais que só desse modo poderá manter justamente o equilibrio dos outros poderes do Estado e ter o espirito despreoccupado dos embaraços ou pressões financeiras, para bem cuidar dos interesses da nação.

O Presidente da Republica, porem, é transitorio. Não tem a sua vida ligada á Constituição do Estado, e é eleito livremente. E, por isso mesmo, se não tem fortuna propria, se a lista civil lhe não chega, e elle não tem os meios economicos para bem desempenhar as suas funcções, pois pode livremente escolher outro que os tenha. Finalmente, como o Sr. Dr. Affonso Costa reconhece, o Rei tem maiores exigencias de caridade e representação do que o Presidente da Republica.

Por tudo isto, não admira que a lista civil das republicas seja menor; mas, em compensação, a Monarchia tem para nos as outras vantagens que eu já ponderei. (Muitos apoiados).

Emquanto ás monarchias, o Sr. Dr. Affonso Costa quis tambem procurar exemplos, para provar que a lista civil de alguns monarchas era menor do que a nossa. Mas já o Sr. Dr. Ulrich demonstrou brilhantemente, num quadro que apresentou á Camara, que, em todas as. monarchias, attendendo á superficie, capitação tributaria, população e outras circunstancias, a lista civil é maior que em Portugal.

Referiu-se o Sr. Dr. Affonso Costa á Belgica e Hollanda. Mas, na Belgica, a lista civil do Rei é superior á nossa, porque é de 3.300:000 francos por anno ou réis 594:000$000; e, na Hollanda, se o Rei tem 600:000 florins du 225:000$000 réis em dinheiro, tem a maior o rendimento de importantes bens nacionaes, que faz completar uma somma superior á nossa lista civil.

O Sr. Affonso Costa: - Eu não comparei em absoluto, comparei com algumas monarchias, e citei os exemplos da Noruega e da Dinamarca, principalmente.

Está claro que na Belgica o Chefe do Estado tem tres milhões e meio.

O Orador: - Mas V. Exa. falou na Hollanda, onde o Rei, alem da sua dotação, tem bens proprios que rendem muito mais! E, emquanto ás outras monarchias, dou como reproduzida a demonstração do Sr. Dr. Ulrich.

A proposito d'este conto de réis, consignado no projecto para a lista civil do Senhor D. Manuel, disse o Sr. Dr. Alexandre Braga que, emquanto o Monarcha gozaria desse dinheiro, havia muitos desgraçados que amolleciam os ossos com o sangue do corpo e comiam o pão ensopado nas lagrimas do rosto.

Mas acontece a mesma cousa com o Presidente da Republica dos Estados Unidos, com o Presidente da Republica Francesa e de todas as outras republicas; e até com o proprio Sr. Dr. Alexandre Braga. Emquanto elle está gozando das regalias do seu grande talento e da sua grande illustração, ha muitos desgraçados, mesmo clientes que tem defendido com a sua palavra eloquente, que vivem na miseria e na desventura!

É que nem todos poderá ser iguaes; e o carro da vida é como o carro do Jagrenate, a funesta divindade dos Brahmanes, que leva rosas no topo, e vae esmagando nas rodas as victimas do sacrificio!

E esta desigualdade tem de existir sempre, porque são tambem desiguaes as condições, os temperamentos, as faculdades e o trabalho de cada um.

Mas, Sr. Presidente, muitas vezes aquelle que vive na pobreza e na miseria é mais feliz que o desgraçado que hora as lagrimas da orfandade, e vê sempre deante dos olhos o espectro sangrento da hecatombe terrivel de um pae e de um irmão. (Muitos apoiados).

Nada ha mais triste do que a pobreza engravatada! E por isso aquelles que vivem opprimidos pelas exigencias sociaes a que não podem satisfazer, e andam apavorados nas incertezas e receios do futuro, são mais dignos de dó do que outros individuos que, embora não tenham certo o

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pão de cada dia, vivem comtudo, sem receios do futuro nem exigencias sociaes, tranquillos da graça de Deus e da caridade dos homens. (Apoiados).

No § unico do artigo 1.º trata-se da dotação do Sr. Infante D. Affonso. A lei de 19 de junho de 1865 fixou-a em 10:000$000 réis, e, pela lei de 28 de julho de 1890, a dotação do Principe Real estava fixada em 20:000$000 réis.

O aumento que se dá agora é portanto de 6:000$000 réis.

A razão é simples. O Senhor D. Affonso, como Principo Real e herdeiro presuntivo da Coroa, tem outras responsabilidades que não tinha como simples Infante; porque, se, por exemplo, o herdeiro presuntivo fizer uma divida vergonhosa ou viver miseravelmente, esse facto, se elle chegar um dia a ser Rei, cairá como uma nodoa indelevel sobre a nossa historia; emquanto que simples Infante era por assim dizer, estranho aos destinos da nossa patria.

Por isso, não admira que se aumente por esta forma a dotação do Senhor Infante D. Affonso; e ainda ella fica inferior á de 20:000$000 réis, que tinha o Principe Real.

O Sr. Dr. Affonso Costa disse, e apresentou essa ideia no seu projecto, que devia cortar-se a lista civil da Senhora D. Amelia e da Senhora Dona Maria Pia...

O Sr. Affonso Gosta: - Eu não pedi que se cortasse nada, porque sabia que não se podia cortar nada, emquanto á Senhora D. Maria Pia, até á sua saida do reino.

O Orador: - Imaginei que S. Exa. se tinha referido tambem á Senhora D. Maria Pia; mas referiu-se á Senhora D. Amélia, querendo que se lhe supprimisse a dotação que ella recebe actualmente, e que vem a ser de réis 60:000$000 annuaes, por lei de 23 de julho de 1892, igual á que foi arbitrada á Senhora D. Maria Pia, por lei de 1 de julho de 1862.

Ora, na Carta Constitucional não temos poder nem direito para supprimir essa lista civil.

E senão digam-me V. Exas. qual é o artigo que nos dá semelhante faculdade? (Apoiados).

Mas, independentemente da Carta Constitucional, se nos quisermos applicar o direito em geral, desde que a doação está feita, e é doação intervivos, nada podemos revogar; pois a Senhora D. Amelia, por ser Rainha, não pode ficar abaixo das condições de qualquer particular. (Apoiados). O artigo 2.° do projecto trata da cedencia dos Paços de Belem, Queluz e Caxias, feita por Sua Majestade El-Rei. E estabelece-se ahi como esses bens devem ser administrados, qual o destino a que devem ser applicados, e o modo como se hão de legalizar as despesas da sua reparação.

É claro que, se taes bens passam para o poder da nação, é esta que os deve administrar, e portanto a que. deve pagar as despesas da sua reparação a lei de 16 de julho de 1855 mareava o limite de 6:000$000 réis annuaes para taes despesas. O projecto cortou essa disposição, e com justiça o fez; porque as despesas podem ser maiores ou menores, e até nullas, em qualquer anno, conforme as circunstancias. Mas, em todo o caso, emquanto ao acautelamento e legalização d'essas despesas, o artigo prescreve as condições necessárias, como d'elle se vê.

N'esta parte, o Sr. Dr. Affonso Costa propõe tres modificações.

A primeira é que o Estado tome conta de todos os outros paços reaes a que se referia a citada lei de 1855 e o decreto de 13 de março de 1834.

Mas essa modificação não pode acceitar-se; pois equivaleria á usurpação de bens que estão na posse da Casa Real e lhe pertencem. Se qualquer proprietario não pode ser forçado a largar mão dos seus bens, senão por expropriação, o Rei não pode ter menos direitos que um particular. E, entretanto, o Sr. Dr. Affonso Costa queria que, por esta forma summaria, sem expropriação nem indemnização, o Senhor D. Manuel fosse privado do que o seu, ou, pelo menos; do que está no gozo da Casa Real!

O proprio Sr. João Franco tanto reconheceu que os referidos palácios não podiam ser tirados á Coroa, tão violentamente, que, no decreto de 30 de agosto de 1907, de acordo com El-Rei D. Carlos, lhe consignou a indemnização de 465:715$700 réis.

Não se pode, portanto, admittir este alvitre apresentado por S. Exa.
Outro alvitre do illustre Deputado é que as despesas sejam approvadas previamente pelo Parlamento.

V. Exa., Sr. Presidente, comprehende bem, assim como o Sr. Dr. Affonso Costa, que é impossivel, ou, pelo menos, altamente prejudicial, esperar, em muitos casos, por essa approvação previa. Por exemplo, quando um tecto ou cobertura exterior tenha desabado, durante o intervallo parlamentar, e seja urgentissimo repará-lo, por causa dos temporaes, não se havia de estar á espera que o Parlamento se reunisse e deliberasse a tal respeito, para se fazerem as obras necessarias. E tanto mais que nos sabemos bem a brevidade com que ás vezes se obtém a approvação do Parlamento.

Outro alvitre que S. Exa. propõe é que se faça o inventario desses bens; que o Ministerio Publico entre officiosamente nesse inventario; e que d'elle se tirem tres exemplares, sendo um enviado a esta Camara, outro á Camara dos Pares e o terceiro ao archivo da Torre do Tombo. Mas tudo isso está já consignado no artigo 3.° da carta de lei de 18 de julho de 1855, que diz o seguinte:

"Proceder-se-ha a inventario judicial dos bens da Coroa, immoveis e moveis, mencionados nos artigos antecedentes, avaliando-se os terrenos productivos e os moveis susceptiveis de deterioração, e fazendo-se dos objectos preciosos uma exacta descrição. Nos archivos das Camaras legislativas serão depositadas copias autenticas do mesmo inventario e uma outra no archivo da Torre do Tombo".

Não fala este preceito na intervenção officiosa do Ministerio Publico, mas essa intervenção está determinada no respectivo regulamento e no Codigo do Processo Civil.

Num dos paragraphos do artigo 2.° que estou analysando, declara-se que o museu dos coches, estabelecido no antigo picadeiro do Palacio de Belem, é considerado museu nacional.

Desde que assim é, fica elle sujeito á legislação que regula os outros museus; e por isso o projecto nada mais precisava de acrescentar.

No artigo 3.° fala-se das despesas com as viagens officiaes do Rei e das despesas com a recepção official dos Chefes de Estado estrangeiros; e, neste ponto, o Sr. Dr. Affonso Costa consignou no seu projecto que, depois da palavra estrangeiros, se acrescentassem as seguintes: como guaesquer outras despesas de representação official.

Desde que essas outras despesas são officiaes, é desnecessário consignar que devem ser feitas pelo Estado. Entretanto, para maior clareza, eu não teria duvida em acceitar o acrescentamento de S. Exa. Mas, para isso, como o seu projecto não foi admittido á discussão, seria necessario que elle fizesse qualquer proposta em separado, neste sentido.

Nada tenho a dizer sobre o artigo 4.°, nem elle foi ainda combatido.

Sr. Presidente: vou entrar agora no artigo 5.°, que tantos clamores tem levantado da parte da opposição.

Para bem se comprehender e apreciar a sua materia, é preciso dividi-lo nas partes que encerra, que são seis, a saber:

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1.ª Liquidação de contas entre a Casa Real e o Thesouro;

2.ª Conjunção dessa liquidação com a fixação da lista, civil;

3.ª Nomeação de uma commissão extra-parlamentar, para tratar desse objecto;

4.ª Competencia dada a essa commissão extra-parlamentar,

5.ª Approvação por lei do resultado da liquidação;

6.ª Forma de pagamento do "saldo que houver contra a Casa Real.

Emquanto á primeira parte, foi o proprio Rei que se offereceu a pagar pela lista civil o saldo que resultasse da liquidação; e, embora elle tivesse obrigação juridica de pagar as dividas do pae, pelas forças da herança, é já para registar com louvor a magnanimidade do Monarcha que, sem saber qual o importe da divida e a parte que o seu pagamento lhe absorveria na lista civil, tão espontaneamente se prestou a esse pagamento.

Emquanto á segunda parte, o artigo 80.° da Carfca Constitucional dispõe que as Cortes Geraes, logo que o Rei succeder no reino, lhe assinarão, e á Rainha sua esposa, uma dotação correspondente ao decoro da sua alta dignidade.

Portanto, essa dotação ha de ser agora fixada, e pela forma que for, se conservará durante o reinado; de modo que para a lista civil poder ser reduzida, é necessario consignar também, desde já, a reducção effectiva ou o direito a faze-la.

De outra forma, digam-me os Srs. Deputados que lei ou que artigo da Carta Constitucional autorizava o Parlamento a cortar depois, numa dotação acceita pelo Monarcha, fixada no principio do reinado, e que, mesmo pelo Codigo Civil, é irrevogavel, como toda a doação intervivos?

Com referencia á terceira parte do artigo 5.°, que estou analysando, esta Camara, pelo artigo 15.°, § 5.°, da mesma Carta Constitucional, podia examinar directamente os actos da administração que acabou ou nomear uma commissão que os examinasse, como se deprehende do sentido das palavras instituir exame de administração, empregadas no mesmo artigo.

Por proposta, porem, do Sr. Pereira dos Santos nomeou-se uma commissão parlamentar que está examinando essas contas; e está muito bem nomeada. Mas quaes são os poderes d'essa commissão?

Certamente que não tem poderes para julgar, porque a Carta Constitucional não dá semelhante faculdade á Camara dos Deputados. Vê-se claramente isso dos artigos 11.° e 118.°

Para os julgamentos criminaes, a incompetencia d'esta Camara acha-se até especialmente determinada no artigo 41.° da mesma carta e nos artigos 3.° e 4.° da lei de 24 de julho de 1855; e, se tambem o não está especialmente para as questões civis, ha os preceitos geraes, já citados, que levam á mesma conclusão.

Ora, na liquidação de que se trata, ha ou pode haver materia que envolve julgamento: por exemplo se apparecerem casos de novação, prescrição, compensação, ou de validade de contratos; e pergunto eu se algum Sr. Deputado, em sua consciencia politica, se julga competente, pela Carta Constitucional, para sentenciar sobre qualquer d'esses casos?

Por isso, era mister delegar o julgamento d'essa materia, ou, o que vale o mesmo, a liquidação das contas, para um tribunal competente.

Qual devia ser esse tribunal? O civil não podia ser; porque a liquidação envolve tambem materia administrativa, tal é a que deriva das relações entre o Estado e a Casa Real. Um tribunal administrativo exclusivo, tambem não porque a liquidação envolve materia civil, por exemplo, a dos contratos que tenha havido entre as duas corporações matéria essa de que os tribunaes administrativos não podem conhecer, como se vê do artigo 326.° do respectivo codigo.

Por outro lado, nessa liquidação, podem surgir duvidas, cuja resolução seja da competencia do Tribunal de Contas que devia ter visado o levantamento de quaesquer quantias a favor da Casa Real; e mesmo da Junta de Credito Publico, se porventura houve qualquer complicação com os titulos do Thesouro.

Por isso, não havendo um tribunal já constituido que tivesse competencia legal para julgar aquellas questões, ou, por outra, para fazer a referida liquidação, o unico expediente era o Parlamento constitui-lo ou nomeá-lo, pela maneira mais idonea e mais competente. E foi o que fez, em a nomeação da commissão extra-parlamentar de que fala o projecto.

Nem podia escolhe-lo mais respeitavel, porque esse tribunal vem a ser composto de dois membros do Supremo Tribunal de Justiça, de um membro do Supremo Tribunal Administrativo, de um vogal do Tribunal de Contas, e de um outro da Junta do Credito Publico.

Emquanto aos dois membros da magistratura judicial, sabe-se bem como ella tem amparado debaixo da sua justiça a segurança das pessoas e da propriedade. E, emquanto aos outros membros, tão levantadas e dignas são as corporações respectivas, que não. podemos deixar de confiar tambem na imparcialidade d'elles.

Já pela opposição foram acoimados de politicos, e como taes subservientes, neste caso, os membros do Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de Contas e Junta do Credito Publico; e chegou-se mesmo a dizer que a commissão não apresentaria o resultado dos seus trabalhos, para que os adeantamentos nunca viessem a publico.

O caracter, respeitabilidade e dignidade dos individuos que compõem essas corporações, repellem, desde logo, semelhantes suspeitas. Mas suppondo mesmo que ellas tenham algum fundamento, que responsabilidade pode ter o Governo ou que culpa se lhe pode irrogar, por ter proposto uma commissão ou tribunal organizado por essa forma, se era a unica legal e justa?

Pela sua parte, o Governo fez o que devia fazer. E, se os outros não cumprirem a missão de que forem encarregados, é somente contra elles que a indignação publica se deve levantar.

Em todo o caso, ha tambem materia de que essa commissão ou tribunal não pode conhecer, e é a que se relacionar com as attribuições constitucionaes, exclusivas do Parlamento, como seria, por exemplo, o apreciar sé alguma verba que jogue com a referida liquidação, foi applicada para despesas officiaes feitas com a recepção de reis ou principes estrangeiros, ou se ha qualquer outra despesa que deva ficar a cargo do Thesouro. Nesse ponto, se a commissão as incluisse no debito da Casa Real, praticaria uma invasão dos poderes constitucionaes do Parlamento.

Ora para esta hypothese é que neste artigo 5.° se declarou que o saldo a favor do Estado seria approvado por lei, a fim de que o Parlamento possa rever, n'aquella parte, a decisão da commissão, e cohibir ou emendar qualquer invasão que, porventura, tenha havido, com respeito ás funcções constitucionaes.

Ficam assim justificadas a 3.ª, 4.ª e 5.ª partes do artigo.

Emquanto á ultima parte, vê se que o saldo a favor do Estado será pago pela Fazenda da Casa Real, em prestações annuaes, não inferiores a 5 por cento dessa quantia, até integral pagamento, e sem juros.

E essa falta de juros tem levantado tambem os maiores, clamores por parte da opposição.

Ora o Rei não deve pagar juros, nem pela lei, nem pela equidade.

Pela lei, porque o artigo 732.°, combinado com o artigo 771.° do Codigo Civil, preceitua que os juros só correm

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desde a interpellação, isto é, desde que é pedida a quantia devida.

E aqui, longe de se ter pedido ao Rei o pagamento de qualquer saldo que elle porventura deva, foi o Rei que, voluntária e magnanimamente, se offereceu a pagá-lo.

E, por equidade, tambem a Casa Real não deve ser onerada com juros, porque já por muitas vezes foi credora do Estado de avultadas quantias, e tambem não recebeu juros nenhuns por ellas.

Em 1905, por exemplo, devia-lhe o Estado 401:000$000 réis como em breve farei ver.

Alem d'isso, em 1892 a Casa Real deu ao Thesouro 465:715$700 réis; e quem procede assim, tem direito a que sejam tambem generosos para com elle. (Apoiados). É bom que o pais saiba que tambem o Rei tem feito destes sacrificios a favor da nação. (Apoiados).

(Ápartes).

Agora estou a ver que alguns dos membros da opposição estão embaçados - permitta-se-me esta expressão - por verem assim desfazer completamente esse castello de bogalhos da sua argumentação sobre o artigo 5.°, que elles tinham levantado com tanto trabalho e festejado com tantos clamores.

Pois revistam-se de paciencia que ainda a procissão vae na rua; e o melhor da festa é a questão dos adeantamen-tos, que passo a tratar.

Sr. Presidente: vem de longa data as operações de debito e credito entre o Estado e a Fazenda da Casa Real. Por causa disso, foi publicada a portaria de 22 de novembro de 1879, no Diario do Governo n.° 279, e cito o numero do Diario, para que possa facilmente ser encontrado, pela qual se nomeou uma commissão para liquidar os creditos e débitos que houvesse, de parte a parte.

Essa commissão era composta de Lopo Vaz, Ferreira de Lima e Luis de Sousa Fonseca Junior; é já se reconheceu na portaria que realmente a Casa Real tinha creditos sobre o Thesouro, mas que, por outro lado, lhe era devedora de certos direitos de alfandega, não cobrados.

Até 1894, nada se fez. Então, pela saida de Lopo Vaz, e por decreto de 28 de junho, foi recomposta a commissão, ficando presidida pelo actual presidente do Supremo Tribunal de Justiça o Sr. Conselheiro Antonio Emilio de Sá Brandão; e essa commissão, assim recomposta, deu o seu parecer, liquidando um saldo de 628 contos de réis a favor da Casa Real, que, pelo abatimento de 54 contos de réis de direitos3de alfandega e outras verbas, ficou reduzido a 401 contos.

Em 1896, pelo artigo 30.° da lei de 13 de maio, que precedeu o orçamento, ficou o Governo autorizado a liquidar o debito de que a Casa Real fosse credora, encontrando n'elle os direitos da alfandega que ella devesse, nos termos da citada portaria de 22 de novembro de 1879.

Depois, por decreto de 31 de dezembro do mesmo anno, abriu-se um credito especial de 324 contos de réis a favor da Casa Real.

Continuaram as operações de debito e credito entre as duas entidades; e quando, em 1899, o Sr. Conselheiro Espregueira saiu do Ministério, a Casa Real era ainda credora de 14 contos de réis. Continuaram da mesma forma essas operações em 1900 e em 1901; e, pelo artigo 19.° alinea a) da lei de 12 de junho, que precedeu o orçamento, o Governo regenerador, que então se achava no poder, ficou tambem autorizado a liquidar as rendas dos prédios da Casa Real, podendo para isso abrir os creditos especiaes necessários, e sendo essa disposição de execução permanente.

Por isso, por decreto de 24 de maio de 1902, abriu-se outro credito especial de 307:718$160 réis, que, junto ao credito especial anterior, perfazia 631:788$165 réis; e, em 2 de agosto do mesmo anno, abriu-se ainda um outro credito especial, no importe de 83:504$000 réis, para pagar as rendas dos referidos predios.

E de notar que essas rendas andavam calculadas em 28:900$000 réis, e que o administrador da Casa Real, o Sr. Pedro Victor, reclamou então contra esse calculo, dizendo que ellas deviam ser avaliadas em quantia muito superior, não sei agora precisamente qual, e ponderando que estavam em divida, se me não engano, desde 1894.

Foi então que appareceu aquelle credito especial de 83:504$000 réis, para pagar as taes rendas, e não da somma anteriormente destinada para esse fim - a de réis 28:900$000. A conclusão que d'ahi se deve deduzir, é que a reclamação do aumento das rendas foi attendida, e que por isso ellas passaram a ser de 83:504$000 réis.

Em 1906, por decreto de 30 de, julho, no Ministério do Sr. João Franco, abriu-se tambem um credito especial, para pagar, não os 83:500,3000 réis, mas os antigos 28:900$000 réis das mencionadas rendas.

E, finalmente, o decreto de 30 de agosto de 1907, tambem do Ministerio João Franco, declarou que os adeantamentos feitos á Casa Real importavam em 771:715$700 réis. E, para os liquidar, encorporou nos bens nacionaes os palacios de que falava o citado decreto de 13 de março de 1834, mediante a indemnização de 465:717$700 réis para a Casa Real, e encorporou tambem definitivamente na marinha do Estado o yacht D. Amélia, mediante a compensação de 306:000$000 réis.

Eu voltarei daqui a pouco a este ponto.

Ora que significa esta serie de operações? Por mais que se volva e revolva a nossa legislação, não se encontra contrato ou materia onde possam filiar-se, senão a de conta corrente, de que fala o Codigo Commercial, nos artigos 344.° e seguintes.

E nem se diga que estes artigos são inapplicaveis, por se não tratar de negociantes; pois havendo, como ha, mais casos análogos, são elles perfeitamente adaptaveis á presente hypothese, como se ve do artigo 16.° do Codigo Civil, que diz: Se as questões sobre direitos e obrigações não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei, nem pelo seu espirito, nem pelos casos analogos prevenidos noutras leis, serão decididas pelos principios de direito natural, conforme as circunstancias do caso. E o Codigo Commercial, no artigo 3.°, diz tambem: Se as questões sobre direitos e obrigações commerciaes não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei commercial nem pelo seu espirito,, nem pelos casos analogos n'elle prevenidos, serão decididos pelo direito civil.

Tratando-se assim de uma conta corrente, não pode dizer se que houve adeantamentos, nem mesmo se podia saber quem devia, senão quando a conta se fechasse. E, como ella não foi fechada mais cedo, só terminou na morte de El-Rei D. Carlos, nos termos do artigo 349.° do citado Codigo do Commercio.

Por isso mesmo, nenhuma responsabilidade cabe aos Ministros que, á sombra dessa conta corrente, foram dando e recebendo dinheiro por conta do Estado. Quando muito, só pode reparar-se em não a terem fechado ou encerrado mais cedo; mas é sabido que a liquidação de uma conta ao corrente, nesses termos, levava tempo a fazer; só podia ser liquidada de harmonia com as duas partes interessadas; e os Ministerios ultimamente succederam-se com tal rapidez que, certamente, não davam logar á resolução das grandes difficuldades dessa liquidação.

E, afinal, quem deve: a Casa Real ou o Thesouro? É para mim duvidoso, porque, segundo já disse, o decreto de 30 de agosto de 1907 apurou o debito da Casa Real era 771:715$700 réis; e, para o liquidar, encorporou os predios que estavam na posse d'ella nos Proprios Nacionaes, mediante a indemnização de 465:717$700 réis, e incluiu tambem definitivamente na marinha do Estado o yacht D. Amelia, mediante a compensação de 306:000$000 réis.

Mas, quanto ao debito, como calculou elle as referidas rendais, a 28:900$000 réis annuaes, conforme eram calcu-

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ladas primitivamente, ou a 83:504$000 réis, conforme foram calculadas pelo Ministerio Hintze Ribeiro, em 1902?

Se as calculou daquella forma, andou mal; porque a reclamação do Sr. Pedro Victor fora admittida, e por ella deviam calcular-se as rendas nos citados 83:504$000 réis. Se foi por esta ultima quantia, que as avaliou, então, desde 1894 em que estavam em divida, o importe total d'ellas attingia a cifra de 1.035:552$000 réis, cifra essa que dava para pagar todo o debito da mesma Casa Real.

Nem se venha dizer que o Rei assinou tambem aquelle decreto de 30 de agosto de 1907, e assim reconheceu que, realmente, devia os 771:715$700 réis; porque o artigo 758.° do Codigo Civil dispõe terminantemente que quando, por erro de facto ou de direito, alguem paga o que realmente não deve, pode recobrar o que houver dado. Ora se aquelle que já tem dado o seu dinheiro ao supposto credor, o podo reclamar, muito mais pode reclamar quem, por erro de facto ou de direito, concordou numa simples liquidação. Tenho demonstrado deste modo que a tal celebre questão dos adeantamentos á Casa Real não passa de um simples caso de conta corrente, de onde não pode resultar qualquer responsabilidade para os respectivos Ministros; e, o que é mais, nem ao menos se sabe por emquanto qual das duas entidades - Casa Real ou Thesouro Publico - é devedora.

Vamos agora a outra serie de adeantamentos: os feitos á Senhora D. Maria Pia.

Não sei o que a tal respeito ha, nem tão pouco venho para aqui defender qualquer abuso que porventura se tenha praticado. Quero apenas estabelecer os principios geraes que devem resolver a questão.

Ou esses adeantamentos foram feitos legalmente ou illegalmente. No primeiro caso, está morta a discussão; no segundo caso, os adeantamentos constituem actos de ditadura. E os actos de dictadura teem de ser apreciados segundo as circunstancias em que se deram, segundo a intenção de quem os praticou, e conforme o resultado do proprio acto.

Começando pelo primeiro requisito.: em que circunstancias foram feitos esses adeantamentos? Ninguem o disse por emquanto, e é certo que bem podia acontecer que elles se tivessem feito, para salvar o pais de alguma crise financeira, de algum desaire para as instituições, de alguma vergonha para a nação.

Por exemplo, sabem todos que Reillac tem espreitado todas as occasiões de fechar as praças estrangeiras á cotação dos nossos fundos, de deprimir o nosso credito, de arrasar as nossas finanças; e isto, por lhe não terem dado o que elle queria, á conta do emprestimo de D. Miguel.

Por isso mesmo, elle tem estado sempre de garras aduncas e fauce escancarada, para cair sobre o nosso Thesouro como abutre carniceiro do nosso credito e da nossa economia. E, supponha-se agora que elle cubicava qualquer letra assinada pela Senhora D. Maria Pia, para colher assim matéria prima, para nos poder vexar e opprimir; e que foi nessas condições que o Governo Português resgatou, essas letras.

É claro que, neste caso, havia, pelo menos a maxima desculpa para os actos do Ministro que assim procedesse.

Emquanto á intenção com que o acto ditatorial fosse praticado e ao resultado do mesmo acto, devem distinguir-se tres hypotheses:

1.ª Ou a intenção foi boa, e tambem foi bom o resultado do acto;

2.ª Ou a intenção foi boa, mas o resultado foi mau;

3.ª Ou a intenção foi má, e mau foi tambem o resultado do acto.

Na 1.ª hypothese, deve louvar-se o Ministro, porque o bem do Estado está acima de todas as considerações;

Na 2.ª hypothese, louva-se a intenção e censura-se o acto;

Na 3.ª hypothese, fulmina se a intenção, e fulmina-se o acto.

Mas esta hypothese está fora da discussão; porque a propria opposição reconhece que o Sr. Ministro da Fazenda, no adeantamento dos 4:000$000 réis de que foi accusado, oirnoutros quaesquer que porventura tenha feio, procedeu com boa intenção.

Ora, neste caso, esses adeantamentos representam apenas, e quando muito, simples irregularidades ou simples erros, e erros desses teem sido communs a todos os Ministros.

O Sr. Alexandre Braga: - De boas intenções está o inferno cheio.

O Orador: - V. Exa. sabe muito bem que onde não ha intenção criminosa não ha crime, e portanto foi injusta a opposição, quando, por uma simples irregularidade tão commum, intimou o Sr. Ministro da Fazenda a sair d'aquelle logar.

Ia eu dizendo, Sr. Presidente, que os erros são proprios da natureza humana. Devemos por isso ser complacentes com os erros alheios, para que os nossos sejam tambem desculpados.

O erro de hoje é o aviso de amanhã; e quem se colloca acima dos proprios erros, alcança uma dupla victoria - sobre o seu orgulho e sobre a sua intelligencia.

Nesse sentido, se o Sr. Ministro da Fazenda errou, tem-se collocado acima do seu erro, trabalhando affincadamente a favor da Fazenda Publica e levantando o nosso credito e as nossas finanças.

O Sr. Dr. Affonso Costa disse aqui, na resposta ao Discurso da Coroa, que neste ultimo periodo constitucional só tinha havido tres Ministros amantes do povo - o Sr. Dias Ferreira, o Sr. Fuschini e o Sr. Bernardino Machado.

Pois emquanto aos dois primeiros, esses dois grandes amoralhudos do povo, na frase de S. Exa., tambem fizeram adeantamentos; e o Sr. Bernardino Machado, se os não fez, porque não foi nunca Ministro da Fazenda, praticou outro erro ainda mais grave.com a reforma dos institutos industriaes e commerciaes, elaborada por elle e referendada pelo Sr. João Franco.

Sr. Presidente: custa-me o ter de referir-me ao Sr. Bernardino Machado, por quem tenho uma amizade quasi fraternal, por cujo caracter e talento sinto uma grande veneração, e cujo nome é pronunciado no meu lar quasi como se fosse uma pessoa de familia. Más não posso escolher exemplo que .mais autoridade tenha perante a opposição republicana, e que mais possa cobrir a minha argumentação.

O Sr. Dr. Bernardino Machado praticou um dos erros mais graves para o nosso pais,, que atrofiou, durante dez annos, o nosso ensino industrial e commercial, e tolheu portanto os passos da nossa industria e commercio.

Eu podia até, neste ponto, dar a palavra ao Sr. Conselheiro Ressano Garcia, que demonstrou no, Parlamento, por uma forma evidentissima e sem replica, quão desastrosa foi aquella reforma e quão grave e attentatorio da nação foi aquelle erro.

E, entretanto, os republicanos não julgam por isso indigno o Sr. Dr. Bernardino Machado de ser Presidente de Republica, como eu proprio o não julgo.

O Sr. Augusto José da Cunha, por quem tenho tambem veneração, cujo caracter, honradissimo admiro, e que lamento não poder mais ver-a meu lado como tanta vez me alegrei de ver, foi escolhido pelos republicanos para lhes presidir a um meeting, sinal de que entendiam que elle lhes honrava a assembleia, como de facto honrou. Pois tambem esse fez adeantamentos.

Quer isto dizer que todos os Ministros os teem feito, e que esses ou outros erros semelhantes, se é que o são, teem sido communs a monarchicos e republicanos, e que estes não devem por isso ter os olhos direitos para as ir-

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regularidades dos seus correligionarios e os olhos vesgos para as dos seus adversarios.

Sr. Presidente: vou referir-me agora ao Sr. Ministro da Fazenda, outro dos themas favoritos da opposição e de que eu mo propus tambem tratar.

S. Exa. tem sido atacado violentamente, e foi até intimado a sair d'aquelle lugar. Mas o Sr. Espregueira está ali porque foi muito pedido e instado; está ali com sacrificio da sua vida e saude; está ali, levantando o nosso credito no estrangeiro e reorganizando as nossas finanças no interior. E ali deve permanecer, embora com sacrificio da sua vida e saude, porque assim o exige o seu patriotismo e o bem da nação. E a historia, nas suas paginas douradas, ha de indemnizá-lo dos desgostos que tem soffrido.

Sr. Presidente: estamos numa situação critica e historica da maxima gravidade.

Depois de uma ditadura violenta, que subverteu as liberdades publicas; depois de uma revolução gorada, que tentou alluir as instituições, como confessou o Sr. Dr. Egas Moniz; depois do morticinio cruel de um Rei e de um Principe: senta-se no throno uma criança de dezanove annos, que tem já o juizo e a prudencia de um velho. E essa criança, que principiou por declinar o aumento de réis 160:000$000 na lista civil, que lhe tinha conferido o Governo transacto; que veio no Parlamento declarar que só queria governar com a lei e pela lei; que está fazendo e tem feito reducção nas suas despesas particulares, para mostrar que a economia tambem se aceita nos Paços Reaes; que tem annunciado a sua visita e a sua estada temporaria nas provincias, para estudar as necessidades do povo e fazer transfundir a civilização da Corte por todos os recantos do país; que chamou professores, para lhe ensinarem as sciencias mais precisas a um reinante - o Direito Publico e a Economia Politica; que trocou o tratamento vexatorio de tu, usado por seu pae, pelo trata, mento respeitoso de senhor; finalmente, que encanta a quantos o procurara, com a lhaneza do seu trato e a affabilidade do seu caracter: é hoje a esperança mais legitima da nossa patria.

Ao mesmo tempo, um Governo de aclimação vae restabelecendo, prudente e seguramente, as nossas liberdades, e reparando o edificio arruinado das nossas finanças, do nosso fomento, da nossa administração.

Mas as nações estrangeiras olham para nós, neste dilemma terrivel de saberem se somos um país de cannibaes e de assassinos, ou se temos ainda nas veias o sangue generoso dos antigos portugueses.

E é nestas circunstancias que a opposição desta casa, com discursos vehementes e apaixonados, trata de perverter a razão do povo e de perturbar o equilibrio dos elementos sociaes!

Se Presidente: que desalento profundo eu sinto no meu coração de patriota!

Pois, meus senhores, o caminho é outro: é agruparmo-nos em volta da bandeira da pátria, unidos como irmãos e crentes como apostolos!

Tenho dito. (Vozes: - Muito bem, muito bem).

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Moreira de Almeida: - Sr. Presidente: cabe-me a palavra em condições de muito desfavor, visto que o meu pallido discurso é proferido depois de ter a Camara ouvido a palavra autorizada do eminente jurisconsulto e notavel parlamentar Sr. Dr. Adriano Anthero, a quem não posso felicitar por ter posto o seu talento e o seu saber ao serviço de tão ruim causa!

Mas, por outro lado, Sr. Presidente, entro neste debate com todo o ardor da minha convicção, com toda a sinceridade da minha palavra, para defender os principios consignados na moção da dissidencia progressista, apresentada pelo illustre Deputado Sr. Dr. Egas Moniz; e com prazer reconheço que se vae dando razão á dissidencia, desde que se acceitou que a commissão, parlamentar do inquerito formule um parecer especial sobre os adeantamentos á Casa Real, dando se prioridade a este sobre todos os outros assuntos de que deve occupar-se,
Sr. Presidente: depressa factos extraordinarios vieram dar plena razão á dissidencia progressista!

Os documentos já apresentados á commissão de inquerito parlamentar, só pelo Ministerio da Fazenda, e de que o Diario de Noticias de hoje publica o pavoroso extracto, justificam bem a prioridade que os dissidentes reclamaram para. o apuramento dai som mas desviadas illegalmente do Thesouro para a Casa Real e que envolvem numa tremenda responsabilidade os homens que as autorizaram! (Apoiados da esquerda).

Assim dispunham os Ministros dos dinheiros publicos, como se neste pais não houvesse leis de contabilidade e orçamentos votados em Cortes!

Muitas dezenas de milhares de libras se entregaram successivamente, desde 1890, em que o primeiro adeantador foi o Ministro João Franco, até o ultimo Ministro rotativo do reinado do Senhor D. Carlos!

Com que direito se procedeu assim e com que fim, senão o do engrandecimento do poder real, fazendo crer ao Senhor D. Carlos que, de facto, era dono e senhor destes reinos e nós todos seus vassallos, podendo dispor da Fazenda Publica, como se fôra sua propria particular! (Muitos apoiados da esquerda).

Na lista desses adeantadores figura como um dos mais generosos o Sr. Espregueira, actual Ministro da Fazenda, o mesmo que disse na Camara, quando se levantou o incidente da carta reservada, que só fizera adeantamentos ao Rei, mas como os faria a qualquer funccionario do Estado, parecendo esquecido de que os adeantamentos ao Chefe do Estado não estão pravados na lei de 21 de abril de 1892, o não se fariam senão pela Caixa Geral dos Depositos com as formalidades na mesma lei designadas.

O Sr. Espregueira a nada disto obedeceu, e assim como se provou já que eram inteiramente destituidas de fundamento as suas desculpas a esse respeito, ha de provar-se na Camara - affirmo-o eu clara e terminantemente em nome da dissidencia - que não foi por conta de um saldo de 165 contos a credito da Casa Real, como pode inferir-se da nota do Diario de Noticias - saldo que nunca foi reconhecido - que o Sr. Espregreira adeantou mais de 38:000 libras!

Quem deu ao Diario de Noticias a sensacionalissima local que publicou hoje?

Não foi o illustre relator Sr. Dr. Eduardo Burnay? Não foram os outros membros da commissão?

O Sr. João Pinto dos Santos: - Posso affirmar a V. Exa. e á Camara que não fiz communicação alguma, nem me parece que a fizesse qualquer dos outros membros da commissão, que apenas ouviram ler os documentos.

O Orador: - Então quem foi?

E porque não hão de vir agora esses documentos ao conhecimento de todos os Deputados e do pais, se elles já chegaram á imprensa?

Eu reclamo-os, Sr. Presidente.

Façam o que fizerem os que estão compromettidos nessas operações de thesouraria, não se pode já hoje dominar esta questão momentosa e gravissima!

Nada haveria peor para o novo reinado do que a solidariedade do silencio, com que pretendem acorrentá-lo ao passado.

Enganam-se os que suppoem que sobre taes factos ha de recair o esquecimento! A dissidencia progressista não entra nesta questão para inutilizar os homens publicos. Não a movem odios! Mas ha de conseguir-se a eliminação completa dos antigos processos, e não são os que os usa-

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ram que podem predominar mais na politica portuguesa! (Apoiados da esquerda).

Apesar disto, não falta quem argua os dissidentes do trazerem a este debate, numa discussão prolongada e viva, uma nota de incompatibilidade com os principios monarchicos que professam. Esses que nos accusam não fazem a distincção necessaria que se estabeleceu já entre os defensores do regime, no qual a dissidencia se orgulha de occupar posições muito distanciadas de todos os outros agrupamentos, defendendo principios radicaes que considera inteiramente conciliáveis com este systema politico.

Os proprios republicanos, Sr. Presidente, reconhecem lealmente a possibilidade de haver na monarchia quem pretenda fazer essa tentativa, e se dispõem a não hostiliza-la, sem quebra dos seus principios, e desde que lealmente se proceda, disse o nestes periodos, com que concluiu o seu ultimo e notavel discurso, o illustre Deputado e eminente parlamentar Sr. Dr. Affonso Costa:

"Se ainda pode separar se da solidariedade monarchica um grupo homens rectos e virtuosos, que queiram resolver esta questão pela justiça e pela moral e inaugurar nestas bases uma nova monarchia, o partido republicano, sem quebra dos seus principios, offerece-lhes lealmente a sua collaboração".

Sr. Presidente: em qualquer outro pais, onde houvesse uma politica monarchica conscia das suas responsabilidades e defensora intelligente da sua situação, estas nobres e leaes palavras, que provam os elevados sentimentos patrioticos do illustre Deputado republicano, e do seu grande e poderoso partido, seriam acolhidas com alvoroço, e não com desconfiança, indifferença ou retrahimento, como succedeu no Parlamento Português. (Muitos apoiados da esquerda).

Ora, desse mal, Sr. Presidente, não enferma a dissidencia progressista. E já que o acaso da inscrição quis que eu seja o primeiro que, pela dissidencia progressista, use da palavra depois do Sr. Dr. Affonso Costa, na discussão deste projecto, não deixarei, Sr. Presidente, de registar a offerta de tal collaboração para que, em bases de justiça e de moralidade, se erga sobre os destroços da antiga monarchia, tragicamente derrubada na tarde de 1 de fevereiro, uma nova monarchia que seja essencialmente democratica, e dentro da qual o povo português possa, honrada e livremente, realizar muitas das suas nobres aspirações e o progresso a que tem direito. (Apoiados).

Não trahiram os seus principios, não faltaram á lealdade devida ao seu Rei, os monarchicos de Italia que, depois da morte trágica do Rei Humberto levantaram, sobre o tumultuar das paixões mais opyostas e mais impetuosas, uma monarchia radical a que preside a sympathica personalidade desse Rei que é um trabalhador infatigavel, intelligente e um convicto liberal: Victor Manuel III. (Muitos apoiados). Com os radicaes governa, com elles atravessou temerosas crises, e não pode comparar-se a effervescencia das correntes clericaos e socialistas da Italia, com o movimento politico entre nos, quer dos reaccionarios, quer dos partidos mais avançados.

É que na Italia comprehendeu-se a tempo que uma politica repressiva, contraria o espirito do nosso tempo é á evolução rapida do moderno direito publico, seria a ruina da monarchia, a desordem e o descredito d'aquelle grande povo. (Muitos apoiados). E Sr. Presidente, quando, por toda a parte, de um a outro extremo da Europa, a Liberdade leva a sua influencia fecunda, abrindo brecha formidavel no cezarismo russo, conquistando os socialistas uma larga representação no Parlamento Allemão, chamando Eduardo VII. aos seus Conselhos da Coroa representantes do partido do trabalho, consolidando-se em França a politica radical de Clemericeau, e criando se em Espanha obstaculos invenciveis á orientação conservadora do illustre homem de Estado que hoje preside ao seu Governo, não será decerto era Portugal, Sr. Presidente, affirmo-o, que resuscitará o poder pessoal do Rei, poder que deve considerar-se amortalhado na ditadura que teve ha cinco meses tão funesto epilogo!

Querem os dissidentes uma monarchia nova. Ser-lhes-hia mais facil o accesso integrando-se nos moldes gastos da antiga politica portuguesa. Bastar-lhes-hia encorporarem se nas longas tilas dos que cortejam o Paço e divinizarem, na sua adoração extatica, os chefes dos velhos partidos. Com é esforço de que teem dado provas, com a tenacidade de que dispõem, e com o vigor que a muitos d'elles se não contestará, a subida seria rápida e pouco extenuante. Nada ha mais commodo do que o monarchismo e o partidarismo incondicionaes!

Os dissidentes porem, Sr. Presidente, não seguiram esse caminho. Nada os fará entrar n'elle! Nem as desilusões, nem as violencias, nem as perseguições, nem os odios, nem as seducções do poder, nem a tentação deslumbrante do mando e das honrarias.

Se amanhã se repetisse a politica que dominou neste pais desde 10 de maio de 1907 até ao cair da tarde de 1 de fevereiro de lt08, a attiiude dos dissidentes seria a mesma que então foi ao lado da lei contra o Rei, ao lado da liberdade contra o despotismo!

Se nesse embate a monarchia tivesse que succumbir, ella que ficasse por terra. Porque tudo seria preferivel á ignominia de tal tyrannia! (Apoiados da esquerda).

Quem assim fala, Sr. Presidente, e eu tenho a certeza de que assim pensa toda a dissidencia, riem faz a corte ao Rei, nem busca popularidade entre os republicanos, visto que lhes não occulta os principios que professa.

Se daqui viesse o largo ostracismo do poder, os dissidentes preferilo-hiam a uma transigencia servil que os deshonrava.

A sua collaboração só pode ser pedida e comedida para uma obra politica rasgadamente democratica, que alcance na politica portuguesa não a acalmação artificial que se fez no principio deste reinado, mas aquella profunda tranquilidade, que não exclue as luctas politicas pelos principios que uns e outros defendam, mas que permittirá o estudo retido e a solução acertada de tantas questões economicas que interessam é nação. (Apoiados da esquerda).

É assim que os dissidentes, Sr. Presidente, comprehendem a monarchia nova á que se referiu o Sr. Dr. Affonto Costa.

Querem os dissidentes congregar, para larguissimas reformas, todas as forças democraticas do país. Ficando os republicanos com os seus principios, e nos os dissidentes, como monarchicos, com a sua causa, distinguir-se-hão porque uns consideram inevitavel a mudança de instituições, outros julgam que não é preciso arrostar com as eventualidades d'essa transformação politica para se conquistarem os effeitos praticos de um radicalismo intelligentemente comprehendido.

Pouco importa aos dissidentes que assim, os confundam com os republicanos. Confundir-se não querem com os serventuarios de uma instituição que abandonariam no dia em que se tornasse absolutista e que combateriam, por todas as formas, se ousasse tocar outra vez nas liberdades populares, que estão confiadas á guarda é á honra de cidadãos, que não são vassallos de um Rei, e de cuja soberana vontade depende a existencia de um Throno. (Apoiados da esquerda).

Se os dissidentes assim servem, para elles chegará cedo a sua hora de governo. Se não servem, elles conquistarão, contra todos, o poder, pelo seu legitimo esforço, durante meses, durante armos, numa luta sem treguas, e até que essa hora haja chegado. Nem teem pressas, nem hesitações.

Sr. Presidente: estou profundamente convencido de que a monarchia do Rei D. Carlos teria tido mais feliz destino,

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se o movimento extra-partidario dos chamados regeneradores liberaes tivesse levado outro rumo.

Desnortearam-se e perderam-se, trahiram no poder os seus compromissos de opposição, e foram levados assim a um suicidio politico.

Com os dissidentes, porem, creio que não succederia o mesmo; porque no dia em que a dissidencia fizesse apostasia dos seus principios, estaria miseravelmente morta.

Corre-la-hiam do Paço com desprezo pelo seu servilismo, apedreja-la-hiam na praça publica, com indignação, pela sua cobardia.

Até aqui, Sr. Presidente, o passado da dissidencia responde pelo seu futuro e ella pode, sem desdouro e com honra, acceitar lealmente a collaboração que o Sr. Dr. Affonso Costa, em nome do partido republicano, offerece, dentro da inquebrantável integridade dos seus principios, a monarchia nova. (Apoiados da esquerda).

A monarchia nova, Sr. Presidente, não pode ser a dos adeantamentos! A Coroa deve estar intangivel ás paixões politicas, pairar muito alto, tão alto que, segundo a bella formula de um grande parlamentar ingles, só veja os partidos nivelados no mesmo plano! Para que o esteja, ella não pode pedir aos Ministros, nem receber adeantamentos!

Não ha prestigio tradicional, não ha autoridade majestatica, que resistam a tal humilhação e a semelhantes dependencias! (Muitos apoiados da esquerda).

Feitas estas preliminares considerações de ordem politica, entrarei agora propriamente no assunto, que os dissidentes entendem merecer larga discussão, porque não se vota uma lista civil, em nenhum Parlamento do mundo, como um cumprimento á Coroa.

E um problema politico, financeiro e até, no caso actual, de ordem moral. Assim o apreciarei, quer nos precedentes que dizem respeito às relações entre o Thesouro e a Casa Real, quer na analyse restricta dos artigos deste projecto.

Vou, Sr. Presidente, confrontar imparcialmente o decreto ditatorial de 30 de agosto com o projecto actual. Não apreciarei o aspecto moral d'aquelle decreto. É um caso julgado. Nunca se viu um devedor perdoar as suas proprias dividas, pagando-se por suas mãos, outorgando-se uma nova lista civil porque outra cousa não eram os artigos 2.° e 3.° de um decreto que, a pretexto dos coches reaes e custeio das propriedades da Coroa, arrancava ao Estado mais 160 contos de réis por anno! (Apoiados da esquerda).

Não se insiste, Sr. Presidente, no que não tem defesa, quanto á sua forma e á sua essencia, e até mesmo quanto á sua maxima inconveniencia politica, deixando a claro as razões fundamentaes da ditadura que assolou o país e acabou por deixar ensopados em sangue os degraus do Throno. (Apoiados). Teve esse decreto de 30 de agosto um mérito incontestável, apesar da enormidade do erro que representa. Foi o de deixar feita uma confissão que é o mais formidavel e severo libello dos homens publicos, que em favor da Casa Real defraudaram a Fazenda Nacional. (Muitos apoiados da, esquerda).

Basta ler estes trechos do relatorio dirigido ao Rei Senhor D. Carlos, com que esse Monarcha concordou, assinando o respectivo decreto:

"Vendidos os diamantes para comprar inscrições, vendidas as inscrições para pagar empréstimos, empenhados até a quasi completa absorpção dos seus rendimentos os bens particulares da Casa de Bragança, já nada havia que vender nem que empenhar. E como se evitava sempre encarar o problema nas suas rigorosas causas economicas e no seu verdadeiro alcance politico, inaugurou-se um novo systema de expedientes, que nem resolvia nem era de molde a acrescentar o prestigio que ás instituições é indispensável manter.

Primeiramente, a titulo de liquidação de antigas reclamações da Coroa, foram autorizados pagamentos pelas leis de 13 de maio de 1896 e de 12 de julho de 1901; esgotado porem este ultimo meio, recorreu-se por um lado aos adeantamentos a descoberto autorizados por despachos dos ultimos Governos, contrahindo-se por outro lado novas dividas a pessoas e estabelecimentos particulares, que se elevam já hoje a centenas de contos de réis".

Esta espantosa exauctoração da Casa Real, feita no reinado transacto, Sr. Presidente, chega a perdoar-se, pela preciosa confissão que fez sobre os adeantamentos a descoberto, autorizados por despachos illegalissimos, que deste modo ficaram reconhecidos, restando saber-se quaes foram os Ministros que assim praticaram um abuso do poder, previsto no artigo 103.° da Carta Constitucional.

Alem disso, o decreto de 30 de agosto confessa tambem que cessaram, não se diz desde quando, as deducções a que se havia procedido, em conformidade com a regia cedencia, na lista civil, desde a lei de salvação publica de 26 de fevereiro de 1892, cujos effeitos ainda não cessaram para os funccionarios do Estado, nem para os portadores da divida. Mas, Sr. Presidente, as circunstancias destes, guardadas as devidas proporções, não são menos dignas de respeito e apreço do que as da Familia Real, com a aggravante de não terem esses funccionarios e juristas a faculdade de acudir aos defaits das suas finanças com adeantamentos a descoberto! Occorre, por isso, perguntar : porque não foi o decreto de. 30 de agosto buscar de preferencia a uma restituição á Fazenda Real dos 567:900$000 réis, que diz ter sido a importancia deduzida na lista civil, o pagamento dos adeantamentos, em vez de se recorrer á operação macabra da novissima compra do yacht Amelia por 306 contos de réis, arranjando se os 465 contos de réis restantes, para os 771 contos de réis da divida, com a compensação da privação perpetua das rendas? (Apoiados da esquerda).

Se o Senhor D. Carlos havia cedião o que as suas finanças lhe não permittiam ceder, e queriam favorece-lo com essa liquidação, a mim me parecia, Sr. Presidente, mais moral, mais logico e mais facil restituir-lhe o que havia doado ao Thesouro! (Apoiados da esquerda).

Se assim se fizesse, Sr. Presidente, só restaria encontrar um processo habilidoso para eliminar o saldo, que seria de duzentos e seis contos.

Ou então, Sr. Presidente, esses 567 contos de réis já teriam sido anteriormente restituidos, a qualquer titulo, ou sob qualquer forma não especificada? Nada affirmo, nem posso affirraar; não devo, porem, occultar o meu desejo de ouvir do Sr. Ministro da Fazenda uma resposta clara a este respeito.

E dito isto, Sr. Presidente, comparando os dois decretos da ditadura e o que se discute, eu não posso deixar de accentuar que a verba fixada n'aquelle decreto, 771 contos de réis, passou a ser uma hypothese, susceptivel de erratas ou acrescimos successivos, desde que se descobre haver adeantamentos a pessoas da Familia Real feitos até em simples cartas reservadas! Para o confronto, e como simples hypothese, servem os 770 contos de réis como serviriam 7:700 contos de réis, se se provasse que a tanto ascenderam os adeantamentos feitos por vários feitios e não só para o Chefe do Estado e para a sua Casa. (Apoiados da esquerda).

Ora, Sr. Presidente, segundo o decreto ditatorial, o Thesouro sabia o que recebia da Casa Real, nessa bem combinada operação. Pagava 306 contos pela nova e mais moderna edição do chamado yacht D. Amelia, que por sinal já estava a seu cargo, e continua estando. Resta saber agora a quem pertence, desde que se annullou o decreto de 30 de agosto, parecendo que o Estado, se que ser conservá-lo, ainda tem de pagar novamentete, 306 contos de réis, visto estar sem effeito a transacção ult-mada com o Senhor D. Carlos.

Mais pagava o Estado por aquelle decreto ditatorial

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465:115$700 réis a titulo de compensação da cessação perpetua das rendas dos predios da Coroa, dados de arrendamento para diversos serviços publicos.

E alem disto tinha mais um encargo fixo annual de 160 contos réis, sendo 60 para coches reaes e 100 para custeio de propriedades da Coroa.

Não era barato, mas tinha a virtude de ser claro e definido! Posta de lado a illegalidade do caso, e considerado, só o aspecto financeiro da questão, eu, Sr. Presidente, não hesito em dizer que esse decreto permitte fazer-se sobre o encargo um juizo muito mais seguro do que o projecto actual.

Este projecto é omisso, e silencioso, sobre os arrendamentos a que se referiu o decreto ditatorial de 30 de agosto. Subsistem? É da maior importancia averiguar se. Esse caso dos arrendamentos da Coroa é dos mais complicados. (Apoiados da esquerda).

Nem todos sabem o que são esses predios arrendados, e resta provar que taes arrendamentos sejam illegaes.

Com effeito, invocasse a lei de 16 de julho de 1855.

Ora, Sr. Presidente, o artigo 3.° dessa lei permitte que se arrendem os bens da Coroa, com a clausula de que o prazo da arrendamentos não excederá a vinte annos, nem será renovado sem lei especial, antes dos ultimos tres annos.

Pergunto: estão os arrendamentos nestes casos? Embora, porem, o estejam, o § unico desse artigo 3.° diz:

"A disposição deste artigo não comprehende os jardins de recreio, nem os palacios destinados para decencia ou recreio do Rei, os quaes nunca poderão ser arrendados".

Quaes são elles? Di-lo claramente o artigo 2.° do decreto de 18 de marco de 1834 a que se reporta o artigo 1.° da lei de 1855, e que é do teor seguinte:

"Art. 2.° Os bens da extincta Casa do Infantado ficam pertencendo á Familia Real e encorporados nos proprios d'ella: porem os palacios de Queluz, da Bemposta, do Alfeite, de Samora Correia, de Caxias, e de Murteira, casas, quintas e mais dependencias d'elles, são destinados para decencia e recreio da Rainha, como os palacios e ter menos de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional da Monarchia".

Logo nenhum desses palácios, nenhuma dessas dependencias podiam ser arrendados. Pois não é isto evidente? Se o Rei mão precisava d'ellas, era-lhe licito dispensá-los para serviços publicos, mas não arrendá-los. Nem outro podia ser o espirito da lei. Comprehende-se o arrendamento a terceiros, mas para serviços publicos só se explica a cedencia d'esses bens nacionaes.

Comtudo uma nota officiosa publicada em aclaração ao decreto de 30 de agosto fez saber que entre os prédios arrendados pela Coroa ao Estado, e pelos quaes a Coroa recebe a importante verba annual de 28:904$000 réis, estão a Bemposta (edificios da Escola do Exercito e do Instituto Agricola) e dependencias do palacio de Queluz. Mas a Bemposta e suas dapendencias foram cedidas ao Estado, para os institutos de ensino ali installados, pôr decretos de 1850 e 1853, como outro decreto de 1861, cedeu o terreno para o hospital Estefania. A que titulo pois, Sr. Presidente, só no reinado do Senhor D. Carlos, se pagaram rendas á Casa Real, por taes bens nacionaes? Porque? Com que direito?

Invocar-se-ha decerto a disposição de execução permanente da lei de 12 de junho de 1901, que autoriza o Governo a pagar á administração da Casa Real rendas pelos edificios pertencentes á mesma Casa e que o Estado usufrue para serviços publicos.

Mas occorre naturalmente perguntar se os arrendamentos são anteriores ou posteriores á lei de 1901 e sendo num e noutro caso immoraes, illegalissimos são na primeira hypothese, visto que a lei não podia ter effeito retroactivo.

Pelo decreto de 30 de agosto esses arrendamentos illegaes terminavam, a troco de tal compensação da cessação perpetua das rendas. Pelo projecto actual parece que continuam. E assim o Estado tem pago rendas á Casa Real pelos seguintes predios:

Edificio do regimento de cavallaria n.° 4.
Terras do Desembargador.
Escola do Exercito.
Instituto Agricola.
Convento de Mafra (Escola pratica).
Reaes cavallariças de Belem.
Dependencias de Queluz.

Continua este encargo? Consideram-se legaes esses arrendamentos?

Ha, Sr. Presidente, uma indicação que me deixa responder afirmativamente. Da proposta de lei eliminou-se no projecto actual a disposição pela qual as dependencias de Belem eram cedidas ao Estado. Porque? São casas arrendadas? É o edificio do regimento de cavallaria n.° 4? Será este o motivo por que ficam na Casa Real?

Em resumo: no decreto de 30 de agosto o encargo futuro era de 160 contos de réis annuues. Neste ha o custeio indeterminado dos bens que entram na posse do Estado e do novo museu dos coches, ficando ainda mysteriosa a questão dos arrendamentos! E os contratos onde existem? Quem os firmou? (Apoiados da esquerda).

Posto isto, Sr. Presidente, vou entrar na analyse do artigo 1.° do projecto, que fixa em 1 conto de réis diarios a dotação de El-Rei D. Manuel - como se fez nos reinados anteriores - segundo o projecto diz. Pois, a meu ver, diz mal, porque differente é, Sr. Presidente, votar-se 1 conto de réis, como em 1821, ficando então a cargo da Casa Real despesas que passaram agora para o Estado. Mas para uma justa apreciação não basta invocar um precedente como o de uma dotação fixada no primeiro quartel do seculo XIX, quando, as funcções da realeza eram diversissimas das que são hoje. É preciso saber em que se funda essa dotação, se ella é sufficiente ou se, conjugada com. as circunstancias financeiras do Thesouro e as economias da nação, é excessiva ou não pode reduzir-se. É este o principio que se defende na moção da dissidencia progressista apresentada pelo Sr. Dr. Egas Moniz no seu magistral discurso, que tanto exaltou, pelo seu desassombro, o illustre Deputado, na opinião de todos os homens de bem. (Muitos apoiados da esquerda).

A mim me quer parecer, Sr. Presidente, que não deveria votar-se uma dotação ao Rei por jornal, uma verba diária. Tem graves inconvenientes este systema, que não está generalizado noutros países. Leva a estabelecer uma comparação, decerto errada, mas facil de conceber, entre o jornal ou salário do Rei e o salario normal, o que se recebe na vida rural e industrial, e até o que se auferi no exercicio das profissões liberaes.

Como são differentissimas as circunstancias, e o Chefe do Estado tem encargos imprescindiveis de representação, é certo que o confronto tem que soffrer um grande coefficiente de correcção e ainda assim não ficaria exacto. Mas não deixa de fazer-se. Tudo isso se evitaria desde a fixação da lista civil fosse parcelar e não global. É o systema inglês. E quando tanto se fala entre nos na Inglaterra e para esse grande país, patria de todas as liberdades, só olha como um exemplo, bem poderia attender-se ao que nos ensina a esse respeito a Gran-Bretanha, onde o principio tradicionalista tem um grande culto, a realeza uma devoção ardente no coração popular, mas onde a majestade popular nunca soube abdicar deante d'elle. Essa nitida comprehensão das relações que devem existir entre a Coroa e o país é um dos factores mais fundamentaes da prosperidade do Reino-Unido.

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Ora, Sr. Presidente, como se fixa ali a lista civil? Em 1830, tendo Guilherme IV feito encorporar no Thesouro britannico todas as rendas importantissimas da sua Coroa, passou a fixar-se-lhe lista civil, que foi de £ 510:000. Quando a Rainha Victoria subiu ao Throno, a sua lista civil fixou-se em £ 385:000, alem de todos os encargos dos chamados serviços publicos. Mas fez-se essa fixação em globo? Não!

O Parlamento inglês reservou-se o direito de fixar as verbas em que se subdividia a lista civil, e até entrou nos dominios da beneficencia particular da Rainha, attribuindo-lhe uma reduzidissima somma para taes despesas, que não ia alem de £ 1:200 annuaes. Porque o fizeram? Para maguar a Rainha, que até a sua morte foi objecto da mais commovente veneração de todos os ingleses? Evidentemente outro era o fim! O Parlamento quis defender Sua Majestade Graciosa contra a sua propria generosidade e contra as excessivas pretensões da miséria que se lhe dirigisse. Por isso limitou as suas despesas de beneficencia, como fixou as despesas de obras e muitas outras. Esse precedente renovou-se quando o Rei Eduardo VII, que a Inglaterra hoje tanto estima, cingiu a Coroa. A lista civil do Rei e da Rainha Alexandra fixou-se desta forma:

£ 110:000 para as despesas particulares do Rei e da Rainha.

£ 125:800 para as despesas com o pessoal da Casa Real e com as pensões a inaálidos e reformados.

£ 193:000 para as despesas proprias de representação da Casa Real.

£ 20:000 para obras e reparações.

£ 13:000 para beneficencia e actos de caridade dos Soberanos.

£ 8:000 para suas despesas eventuaes ou imprevistas.

Decerto, Sr. Presidente, estas verbas do grande e opulento Imperio britannico não podem ter confronto, de qualquer natureza, com as do pequeno e arruinado reino de Portugal. Cito-as como exemplo da intervenção do Parlamento nas despesas do Rei e da Rainha, o que ali nunca se considerou offensivo para a dignidade real.

E a proposito occorre-me narrar á Camara um facto curioso, e que vem a proposito de costumes parlamentares ingleses, o que não deixa de ser conveniente conhecer, para se fazer o confronto deante dos que, Sr. Presidente, sem nada saberem, dizem, por snobismo, mal do nosso Parlamento. Em 1894, na Camara dos Communs, suscitou se uma duvida sobre se o Duque de Edimburgo, que fora declarado herdeiro presumptivo do grão-ducado de Saxe Coburgo, perdera ou não, por esse facto, o direito á dotação como Principe da Casa Real britannica. Ninguem se lembrou de chamar republicano ao Deputado monarchico que no Parlamento d'aquelle país, tão respeitador da Familia Real, levantou esta questão a qual foi pelos representantes da Inglaterra discutida com toda a gravidade e cônscios do seu direito de apreciá-la.

Teve sessenta e sete votos a proposta para ser retirada a dotação ao Duque de Edimburgo, e nenhum desses Deputados mereceu a suspeita de ter traindo a causa monarchica, porque assim votou. Pouco depois, Sr. Presidente, tambem na Camara dos Communs, um dos seus membros, Mr. Lawson, apreciando o modo como a Rainha Victoria distribuia mercês honorificas, propôs que se lhe dirigisse uma mensagem convidando-a, em nome do Parlamento, a fazer acompanhar todas as mercês de notas explicativas dos serviços distinctos que ellas premiavam. Esta proposta foi rejeitada só por uma maioria de dezoito, votos, e as instituições britannicas não se julgaram melindradas com tal indicação parlamentar. Entre nos então, julga-se intangivel a Coroa ás discussões do Parlamento, estabelecendo-se assim um falso direito divino que só serve para divorciar o Rei e a Familia Real da estima popular. Admiram-se então depois, Sr. Presidente, da republicanização do país, e do repudio que essa idolatria encontra em muitos espiritos illustrados e no criterio independente de muita gente a quem repugnam servilismos, de que a Familia Real será a menos culpada, porque talvez a desgostem. (Apoiados).

A dissidencia progressista, Sr. Presidente, votaria ao Senhor D. Manuel, que muito considera, uma dotação que fosse adequada ao seu decoro e dignidade. Mas quereria que, em primeiro logar, o mordomo, a que se refere o artigo 84.° da Carta, para representar o Rei, e a que actualmente corresponde o cargo de administrador da Casa Real facultasse ao Governo uma nota, por capitulos, das despesas imprescindiveis da Casa Real.

Trazida ella ao Parlamento, haveria elementos para se fixar, como fosse equitativo, a lista civil, de modo a merecer a approvação do país, collocando o Rei excellentemente deante da opinião publica. (Apoiados da esquerda). Talvez seja melhor monarchismo dar-lhe ás cegas 1 conto de réis por dia, que nem se sabe se. é muito ou pouco, e só porque assim se votou desde 1821!

Mas os dissidentes entendem que esse monarchismo que vota hoje só porque se votou assim ha oitenta e sete annos, não é o que o seu criterio de homens modernos aconselha aos representantes da nação. (Apoiados, da esquerda).

Já aqui foi explicado, nesta Camara, pelo illustre Deputado Sr. Dr. Egas Moniz o motivo por que a dissidencia progressista não fez referencia, na sua moção de ordem, á dotação do Senhor D. Affonso.

E, Sr. Presidente, peloque se tem ouvido aos oradores que defendem o projecto, não me convenço de que tenha chegado a opportunidade de se elevar essa dotação, conforme dispõe o § unico do artigo 1.° do projecto. Digo-o, Sr. Presidente, francamente, sem intenção desagradavel para o Senhor Infante D. Affonso, ácerca de quem desde a tarde de 1 de fevereiro, e depois do seu corajoso e nobilissimo procedimento, na occasião do attentado, faço um juizo completamente diverso d'aquelle que tinha ácerca de Sua Alteza até esse acontecimento. (Apoiados).

Posteriormente tive conhecimento de factos muito honrosos e sympathicos quanto á correcção do proceder de Sua Alteza, e á sua lealdade e dedicação pelo novo Rei.

Apraz me dizer isto aqui, espontanea e sinceramente, porque estas palavras representam uma justa homenagem, que partem de lábios nunca maculados pela lisonja. (Muitos apoiados da esquerda)

Tanto basta, Sr. Presidente, para que nenhuma intenção hostil possa animar a minha palavra ao discutir o aumento- de dotação proposto. Considero-o apenas em face dos principios legaes.

Sr. Presidente: por parte da maioria tem-se dito, até invocando os precedentes, que o Senhor D. Affonso não é Principe Real. Se o não é, não se percebe como a commissão de fazenda, para justificar que esta dotação se eleve a 16 contos de réis annuaes, invoca o artigo 81.° da Carta! Esse artigo diz o seguinte:

"As Cortes, assinarão tambem alimentos ao Principe Real e aos Infantes, desde que nascerem".

Como Infante já as Cortes fixaram ao Senhor D. Affonso, desde que nasceu, a dotação que até este momento tem recebido. Se era seu favor se invoca de novo o artigo 81.°, não é porque seja Infante, mas porque passou a ser Principe Real, e só por esta razão pode elevar-se a sua dotação.

Allega-se, porem, que não é Principe Real, mas só herdeiro presumptivo do reino. Não há tal distincção na Carta. Basta ler agora o artigo 78.° que diz o seguinte:

O herdeiro presumptivo do reino terá o titulo de Principe Real.

A Carta não diz que o Principe Real é só o filho pri-

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mogenito do Rei, mas o herdeiro presumptivo, qualquer que elle seja. Qual é este? O que num dado momento for o successor legitimo do Throno conforme a ordem de successão regulada no artigo 87.° da Carta. E como não ha duvida que, emquanto El-Rei não casar e tiver um filho, esse herdeiro é o Senhor D. Affonso, duvida não pode haver tambem que elle tem de ser Principe Real, quaesquer que sejam os illegaes precedentes. (Apoiados da esquerda).

Mas para que o seja, Sr. Presidente, tem que ser reconhecido como tal pelas Cortes, nos termos expressos na lei de 28 de janeiro de 1864, e prestará o juramento de fidelidade á Constituição prescrito no artigo 79.° da Carta.

Nada disto ainda se fez por emquanto; logo ainda não ha Principe Real reconhecido pelas Cortes, e só quando o haja terá logar o aumento da dotação. Por emquanto é prematura a disposição do § unico do artigo 1.° do projecto, que deve eliminar-se. (Apoiados da esquerda).

Se a Carta estabelece dotação differente para o herdeiro da Coroa e para os Infantes, não é só pela categoria, mas pelas maiores despesas inherentes a essa mais alta hierarchia, como pode ser a de ter o herdeiro da Coroa uma casa militar, que os simples Infantes não teem. Não consta que as despesas do Senhor D. Affonso tenham mudado, ou acrescido a sua representação desde o dia 2 de fevereiro.

Portanto, não ha razão legal nem material para se estabelecer agora o aumento de dotação, restando saber se tal aumento cessaria no dia em que El-Rei tivesse um filho e herdeiro da Coroa, restituindo-se então o Senhor D. Affonso á situação em que estava até 1 de fevereiro.

Os precedentes neste caso, Sr. Presidente, respondem com a negativa, o que é um argumento em favor do Thesouro, para que se não precipite em pagar o que nunca mais deixaria de pagar, embora mudassem as circunstancias. (Apoiados da esquerda).

Eu, Sr. Presidente, não julgo correcta a redacção do artigo 2.° do projecto, dizendo se numa lei, que ha de ter, se for promulgada, a assinatura de El-Rei, que "por cedencia expressa de Sua Majestade El Rei. o Senhor D. Manuel II" ficam encorporados nos Proprios Nacionaes os bens á que se refere esse artigo.

A meu ver, bastaria assinalar este ultimo facto, o que evitaria discussão e commentarios ácerca dos intuitos de ordem economica que determinam tal cedencia.

Desejaria eu saber qual o encargo que ella traz para o Estado, isto é, emquanto importa o custeio dos palácios de Caxias, Queluz e Belém, com os seus jardins e dependencias.

O Sr. Presidente: - Devo prevenir o Sr. Deputado de que fala ha uma hora. S. Exa. tem ainda um quarto de hora para terminar o seu discurso.

O Orador: - Agradeço a V. Exa. Pela tradição historica e artistica que se liga ao palacio e quinta de Queluz, decerto o Estado os conservará em sua posse.

O palacio de Belem fica a cargo do Ministério dos Estrangeiros e tarde virá a lei que de destino ao de Caxias. De modo que esta cedencia expressa vem a constituir para o Estado um grande onus, que as Cortes deveriam conhecer, ao votarem, esta lei, definindo-se tambem, como muito bem propôs o Sr. Queiroz Ribeiro, o que seja o museu dos coches, e estabelecendo-se uma dotação, o que evitará muitas generosidades! (Muitos apoiados da esquerda).

Sr. Presidente: o § 3.° do artigo 2.° de nenhum modo corresponde á revogação inteiramente indispensável do artigo 5.° da. lei de 16 de julho de 1855, á sombra do qual, principalmente depois da interpretação parlamentar que se lhe deu, se teem praticado os abusos mais importantes nas obras dos Paços Reaes.

Segundo a peregrina doutrina estabelecida pelos que eram ainda mais realistas do que o Senhor D. Carlos, e muito contribuiram assim para o seu desvario e para a sua perda, podia o Chefe do Estado mandar fazer as obras de conservação, melhoramento ou aformoseamento que entendesse, e só depois as Cortes julgariam e dariam o seu voto para o pagamento!

Claro está que, deste modo, os 6 contos de réis an-nuaes, autorizados no artigo 4.° da lei de 1855 para os concertos e reparações nos palácios e jardins reaes, subiram a centenares e a milhares de contos de réis, attribuidos á responsabilidade da Casa Real, onde de certo se não gastou cousa que se pareça com o que accusam as contas respectivas.

Um inquerito rigorosissimo a essas contas, Sr. Presidente, deveria ser feito, até pedido pela propria Casa Real, não só no interesse da sua rehabilitação, como a bem da memoria do fallecido Monarcha, a quem se attribuem, neste capitulo, grandes culpas que por muitas outras pessoas devem ser repartidas.

Os algarismos lidos á Camara pelo illustre Deputado Sr. Dr. João de Menezes, extrahidos todos elles de documentos officiaes, são aterradores! (Apoiados da esquerda).

Não basta, Sr. Presidente, que, conforme se preceitua no artigo 3.° do projecto, os orçamentos sejam approvados nas estações competentes, que são dependencias directas do poder executivo ou simplesmente corporações techinas.

Da opportunidade da despesa e da forma e conveniencia do pagamento, só o Parlamento pode ser juiz.

Na Inglaterra ha obras orçamentadas pelo Parlamento para cada um dos palácios reaes, prescrevendo-se o que em cada um destes pode gastar-se.

A meticulosidade é tal que se a Camara consultar os desenvolvimentos do orçamento britannico verá que, por exemplo, para o Palacio Real de Buckingham até está fixada, pelo Parlamento a verba destinada á gratificação pelo Natal ao respectivo jardineiro!

Isto faz-se na tradicional e riquissima Inglaterra!

Neste solar arruinado de Portugal, com falsas pretensões fidalgas, entende-se, Sr. Presidente, que é de boa politica atirar-se fora com muitas centenas de contos para obras em palacios reaes, quando se regateiam verbas indispensaveis aos mais importantes serviços publicos, miseravelmente dotados. (Apoiados da esquerda).

O artigo 4.° do projecto é uma disposição igual á de todas as leis orçamentaes. Impedirá tanto os abusos como estas o teem impedido!

Os artigos 6.° e 7.° deixam de pé o famoso artigo 5.° da lei de 1855, se este não for expressamente revogado. (Apoiados da esquerda).

Agora, Sr. Presidente, vou passar a tratar da questão dos adeantamentos.

A Camara de certo terá notado que os oradores das maiorias, defensores do projecto, evitam cuidadosamente occupar-se da questão dos adeantamentos, e se circunscrevem á defesa da lista civil.

Este plano obedece ao proposito de separar na discussão parlamentar o que está conjugado no projecto de lei que se discute, e que tinha o intento visivel de afastar, durante alguns annos uma questão em que os partidos responsaveis pela desgraçada administração deste país se encontram numa situação lastimosa!

Devem separar-se as duas questões! Assim bradam os defessores do projecto que as uniu!

Quem, melhor e mais claramente do que a dissidencia progressista, o tem dito sempre?

Quem mais lealmente expôs a doutrina de que El-Rei D. Manuel II não tem responsabilidades moraes ou legaes nesse passado tenebroso que teve como epilogo uma ditadura de adeantamentos?

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Quem tem pugnado com maior ardor e com mais intemerata convicção para que se não confunda o que tem de votar-se legalmente a El-Rei, com o que tem de exigir-se, em responsabilidades effectivas, não só a Fazenda Real para reembolso do Thesouro, mas aos Ministros que tenham prevaricado no exercicio das suas funcções, e que tenham pago, com condescendencias á custa do Estado, a sua permanencia no poder e as culminancias politicas a que ascenderam? (Muitos apoiados da esquerda).

Separar as duas questões não é conchavar num projecto de dotação regia uma disposição traiçoeira ou illusoria que, se um dia for lei, impedirá o Parlamento de se occupar dos adeantamentos, porque elles estão enterrados na commissão burocratica, que não tem prazo para os seus trabalhos, podendo portanto prolongá-los durante muitos annos, como succedeu á commissão de 1879, que só em 1895 entregou um relatorio, ainda agora desconhecido, tendo desapparecido já, quando o relatorio se fez, quasi todos os que compunham a commissão ao ser nomeada! Pode suppor-se o que succederá agora com tal disposição de lei: succeder-se-hão os venerandos juizes, de provecta idade, do Supremo Tribunal de Justiça, substituir-se-hão os do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas, e tambem os representantes da Junta do Credito Publico, que são amoviveis. (Apoiados da esquerda).

E assim como os processos judiciaes de habilitação de heranças param quando morre algum dos interessados para se lhe substituir legalmente o successor, assim esse inquerito se eternizará, não succedendo o mesmo á actual commissão parlamentar, de inquerito, de que então só existirá a memoria, visto que o seu mandato finda com a vida da Camara que a elegeu e á politica dos adeantamentos pode convir dissolve-la, o que será a logica consequencia de uma dissolução de Cortes, prevalecendo então só a commissão feita ad hoc!

Ora, sendo assim, Sr. Presidente, com que boa fé se diz, do lado da maioria, que esperem as opposições que se discuta a questão dos adeantamentos?

Se o artigo 5.° fosse eliminado, então comprehender-se-hia que se aguardasse esse parecer, separando-se do actual projecto tudo quanto importa ao passado, e só se discutindo agora a lista civil. Essa era a boa doutrina constitucional, a do artigo 80.° da Carta, que manda fixar pelas Cortes a dotação do Rei, immediatamente ao seu advento ao Throno.

Nenhum outro caminho poderia seguir-se mais conveniente ao prestigio da Coroa, e que fosse mais fácil para a marcha regular dos trabalhos parlamentares. Porque se não foi por elle? Porque, occultos sob o manto real, querendo acobertar-se á sua sombra, estão os adeantadores, que veem mais imminente a sua liquidação politica do que a liquidação financeira dos adeantamentos que fizeram. (Apoiados da esquerda). Não é da Coroa que se trata, pois a comprornettem pela falta de abnegação com que a servem, e porque muito acima dessa apregoada dedicação que dizem ter pelo Rei está o egoismo feroz, o salve-se quem puder, que é o grito de alarme que resta entre os responsáveis por aquelles abusos criminosos que o decreto de 30 de agosto de 1907 veio denunciar ao país, e que o Rei D. Carlos reconheceu e confessou ao assinar esse diploma.

É preciso, Sr. Presidente, que o país veja quem faz discutir com tanta imprudencia, simultaneamente, questões tão distinctas! É indispensavel que o Rei saiba quaes são os excellentes e incondicionaes monarchicos que assim desfazem, numa tempestade cujos effeitos desastrosos se não pode prever onde chegam, a acalmação com que se abriu este reinado, annunciando-se uma era nova de liberdade, de legalidade e de justiça!

Se a justiça e a legalidade da vida nova mandam que se destitua o Parlamento das funcções de fiscal dos dinheiros publicos, que lhe são exclusivas, então não se sabe em que se distingam, uma e outra, a politica do reinado novo e a dessa mystificação que foi a do reinado extincto, e de que os adeantamentos illegaes, confessados e reconhecidos nas columnas do Diario do Governo, offerecem o caracteristico mais perfeito!

Sr. Presidente; votam as Cortes orçamentos, arrancam-se pela lei da salvação publica milhares de contos aos funccionarios e aos juristas, falta o Estado aos seus compromissos sagrados com os portadores da divida interna e externa, promulgam-se disposições coercitivas para as despesas publicas, e entretanto dão-se ás centenas ou aos milhares de contos para a Casa Real, por simples despachos ministeriaes, sob titulos varios e sendo tudo; a final, abonos lançados em conta da Casa Real!

Quaes foram os autores dessas graves irregularidades?

Nelles está a causa unica de se ter conjugado num unico projecto o que não poderia nem deveria, legal nem moralmente, juntar-se no mesmo diploma (Apoiados da esquerda).

Agradeça o Chefe do Estado aos partidos chamados historicos - triste historia a sua! - este serviço negativo, e os desgostos que assim lhe trouxeram. O monarchismo dos dissidentes não é do mesmo quilate; elles não transigem com os adeantamentos, mas não compromettem o Rei envolvendo-lhe a Coroa em absurdas suspeitas onde ella nunca deve macular-se! Não sabem se assim desagradam ao Paço, nem se, porque exaltam o novo Rei, desgostam a praça publica. Servem os dissidentes a sua causa, manteem altivamente os seus principios. Não sabem nem querem cortejar o Rei, como o fazem os monarchicos incondicionaes, os mesmos que, durante tantos annos, fizeram da monarchia que era adorada ao tempo da morte do saudosissimo D. Pedro. V a monarchia vacillante, cercada de odios, a monarchia de 31 de janeiro, data em que o Senhor D. Carlos assinou o seu ultimo decreto!

Sr. Presidente: desde que a commissão de inquérito parlamentar vae estudar as relações entre o Thesouro e a Fazenda Real, decerto poderá e deverá apurar o- saldo a favor do Estado, verificando como se chegou ao apuramento de 771 contos de réis do decreto de 30 de agosto, e o que ha mais.

A que vem, pois, a commissão burocrática, constituida por uma lei?

O poder executivo pode nomear quantas commissões quiser, mas essa faculdade não pode collidir com a livre fiscalização dos dinheiros publicos, exercida privativamente pelo Parlamento.

Suppondo que a commissão parlamentar ultime os seus trabalhos, como é quasi certo, antes da commissão burocratica, espera-se por esta para confrontar os resultados?

Mas essa commissão, Sr. Presidente, nem sequer é uma espécie de tribunal arbitrai, visto que os seus trabalhos veem á discussão parlamentar, e nem pode dizer-se que tenha funcções semelhantes ás do. Tribunal de Contas, que funcciona como tribunal de justiça administrativa e tribunal fiscal das leis financeiras do Estado, segundo a sua lei organica de 30 de agosto de 1866. (Apoiados da esquerda).

Para que serve, pois, essa commissão? E como se com prehende que se fixe desde já, antes de conhecido o quantum da divida da Casa Real, a percentagem com que esta ha de amortizar-se? Apurada uma divida, é só então que se estabelece a forma do pagamento. Nunca se viu dizer como ha de pagar-se, sem se saber quanto ha de pagar-se. Argumenta-se que o motivo é a fixação da lista civil depender do encargo dos adeantamentos. Eu, Sr. Presidente, protesto energicamente contra semelhante doutrina, que offende o senso moral, é attentatoria da Carta, e deprimente para o Rei. (Muitos apoiados da esquerda).

A dotação do Rei assinam-na as Cortes pelo que for "correspondente ao decoro da sua alta dignidade" (artigo 80.°). Não é, Sr. Presidente, nem pode ser dinheiro do Estado para se pagarem dividas ao proprio Estado!

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(Apoiados da esquerda). A que se reduziria então o acto de isenção e de nobreza de El Rei?

O que disse El-Rei na sua carta de 5 de fevereiro ao Sr. Presidente do Conselho, documento que muito o nobilita? "É meu firme proposito que a Fazenda da Casa Real não utilize recursos que não tenham a sancção parlamentar". Se os adeantamentos não tiverem sancção parlamentar, como ha de utilizar-se El-Rei d'esses recursos, recebendo do Thesouro o que ao Thesouro vae pagar em reembolso dos adeantamentos?

Mas, sendo assim, Sr. Presidente, a dotação fixada é superior ao indispensável ao decoro da dignidade real, visto que comprehende a verba para a prestação annual dos adeantamentos. E quando estiverem pagos no fim de vinte annos? Diminue-se a lista civil? Não, porque ella não pode modificar-se durante o reinado!

Era resumo: o artigo 5.° é legalmente e moralmente insustentável, deve eliminar-se e o projecto reduzir-se á lista civil, o que, se tivesse sido feito desde logo, teria evitado grandes desgostos á monarchia. (Muitos apoiados da esquerda).

Supponho por esta forma haver justificado a moção de ordem que mando para a mesa.

Moção de ordem

"A Camara, aguardando o parecer especial da commissão parlamentar de inquérito sobre a liquidação de contas entre o Thesouro e a Fazenda Real, reconhece que o actual projecto de lei deve limitar se á fixação da lista civil, e continua na ordem do dia".

É para o Sr. Presidente do Conselho que me volto exhortando-o a acceitar esta moção de ordem, ou a promover que a commissão de fazenda proponha a eliminação reclamada. Appello para a honra politica do Sr. Presidente do Conselho, recordando a sua isenção de responsabilidades na vida velha dos adeantamentos, e relembrando-lhe as suas responsabilidades com o Rei e com o país; sendo certo que basta para attenuar tristemente o esplendor da sua carreira publica a sua solidariedade ministerial com o Sr. Espregueira, depois do que se passou nas sessões memoráveis de 17 e 19 de junho. Não leve mais longe, o sacrificio o Sr. Ferreira do Amaral: não consinta S. Exa. que o artigo 5.° continue a dividir em dois grupos irreductivel mente hostis a politica portuguesa! Se a commissão de inquerito parlamentar vae estudar os adeantamentos, prescinda-se dessa commissão burocrática, que é uma duplicação inutil e levanta no espirito publico serias duvidas sobre as intenções dos poderes do Estado nesta questão de transcendente moralidade. (Muitos apoiados da esquerda).

Não é com os adeantadores, Sr.. Presidente, que se ha de fazer a monarchia nova! O Sr. Ferreira do Amaral tem que prestar ao Rei esse ultimo e relevante serviço. Jogará nessa carta a sua vida ministerial? Mas prova ao país á sinceridade das suas intenções e fecha com chave de ouro a sua impolluta vida publica. Creia V. Exa., Sr. Presidente, creia a Camara que não me domina a paixão partidária ao dirigir-me nestes termos ao Sr. Presidente do Conselho.

Acredito firmemente que a dissidencia progressista cum pré uma grande missão patriotica pondo assim a questão. (Muitos apoiados da esquerda).

O momento é decisivo para o Sr. Presidente do Conselho: fite S. Exa. os seus olhos em todo o seu passado, e desvie-os depois sobre o Throno onde um Rei, experimentado rudemente na desventura, espera de uma politica novas horas ridentes de felicidade que só ella pode trazer.

Separe o Sr. Presidente do Conselho, completamente, as duas questões: o passado e o presente. Talvez nesse instante tenha salvo a monarchia!

Lembre-se S. Exa. de que o Senhor D. Manuel II, a quem eu neste momento folgo de prestar do alto da tribuna parlamentar a homenagem cordial da minha sympathia, é inteiramente estranho ás responsabilidades do reinado anterior, e que o dever dos monarchicos leaes e dedicados é separarem no totalmente de um passado entenebrecido e culpado, e firmar-lhe o futuro no amor do povo, sem o qual é nada a realeza. (Muitos apoiados da esquerda).

Sr. Presidente: a sociedade portuguesa e as suas instituições atravessam neste momento uma grave crise moral, peor do que todas as crises politicas.

Essa crise já não é só partidária, nem dynastica: tornou-se nacional. (Muitos apoiados da esquerda).

E para vence-la, Sr, Presidente, faz-se mester que todos concorram com o brilho do seu talento e com a energia do seu esforço, para essa grandiosa obra de rehabilitação a que devem ser chamados todos os homens de boa vontade e de honradas intenções, seja qual for o seu modo de pensar, seja qual for a sua categoria, bastando que, pelo coração e pelo cérebro, sejam portugueses. (Muitos e repetidos apoiados).

(O orador, que foi muito cumprimentado pela esquerda, não revia o seu, discurso).

É lida na mesa a moção do Sr. Moreira de Almeida.

Consultada a Camara, foi admittida e ficou em discussão juntamente com o projecto.

O Sr. Presidente: - Pediram a palavra para antes de se encerrar a sessão os Srs. João Pinto dos Santos e Aifonso Costa. Os Srs. Deputados que entendem que devo dar a palavra a estes Srs. Deputados teem a bondade de se levantar.

(Pausa).

O Sr. Presidente: - Está rejeitado.

O Sr. Antonio Centeno: - Peço a contraprova.

O Sr. Presidente: - Peço aos Srs. Deputados que occupern os seus logares. Os Srs. Deputados que entendem que devo dar a palavra aos Srs. João Pinto e Affonso Costa deixam-se ficar sentados.

(Pausa).

O Sr. Presidente: - Está rejeitado.

(Varios Srs. Deputados pedem a contagem).

O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados que entendem que não devo dar a palavra aos Srs. João Pinto e Affonso Costa para antes de se encerrar a sessão conservem-se de pé.

(Pausa).

O Sr. Presidente: - Estão de pé 28 Srs. Deputámos e estão sentados 27. Está rejeitado.

A ordem do dia para amanhã é a mesma que estava dada para hoje.

Está encerrada a sessão.

Eram 6 horas e 50 minutos da tarde.

Documentos enviados para a mesa nesta sessão

Representações

Do alferes da guarnição de Moçambique, Antonio Vicente Goularte Scarnichia, pedindo melhoria de vencimento.

Á commissão do ultramar.

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SESSÃO N.° 36 DE 6 DE JULHO DE 1908 25

Da Caixa de Soccorros a Estudantes Pobres, pedindo a cedencia de tres salas em qualquer edificio do Estado, e isenção de sello de franquia na correspondencia do seu expediente.

Apresentada pelo Sr. Presidente da Camara, Libanio Antonio Fialho Gomes, e enviada á commissão administrativa.

De diversas associações de classe e de soccorro mutuo, fazendo diversas considerações sobre a proposta de lei apresentada pelo Sr. Ministro do Reino, sobre construcções economicas e higienicas para operarios.

Apresentada pelo Sr. Presidente Libanio Fialho Gomes, enviada á commissão de administração publica e mandada publicar no "Diario do Governo".

O REDACTOR = Albano da Cunha.

Página 26

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