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36 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Assim, eu combati a conservação das praças da reserva na fileira por mais de um anno, porque todos os tributos, incluindo o de sangue, se votam annualmente, e queria que todos os annos se votasse uma lei para este fim; para que a reserva não estivesse em armas sem auctorisação legal. Da mesma fórma combati a applicação do dinheiro das remissões dos recrutas á compra de armamentos, porque esse dinheiro, que era o suor e o sangue do povo, devia ser applicado ao engajamento de substitutos, para não se pedirem depois tres o quatro supplentes, o que e uma barbaridade inaudita.

Se s. exa. quer a disciplina no exercito, eu já vou mostrar uma cousa, que deverá concorrer para a sustentar e mostrar como ella está!

Em a noite de 17 de junho do anno passado, achava-se reunida uma parte da população de Lisboa no passeio publico do Rocio, dentro d'aquella grande jaula, cercada de grades mais grossas e feias do que as do Limoeiro, e que são conservadas para perpetuar a memoria d'este horrendo facto.

O povo ali agrupado foi sendo empurrado para a porta, e quando tratava de saír, a fim de cada um ir para sua casa, appareseu um troço de soldados da guarda municipal, commandado por officiaes, ou pelo menos em presença d'elles, atacou de espada em punho esta gente desarmada, inerme, e acutilou mais de vinte pessoas que não lhe resistiam, sem respeitar, nem classe, nem condição, nem idade!

A retirada a todos era cortada, e até aos que casualmente passavam, como foi um empregado das côrtes, oram igualmente feridos.

É o facto mais horroroso que se tem presenceado em Lisboa!

Pouco depois deu-se outro do apparencias identicas. Em Madrid houve um tumulto n'um café: quebraram-se mesas, insultou-se a auctoridade, e o resultado foi que se prenderam lá vinte pessoas, e nem uma só ficou ferida. Em Lisboa, na sede do governo, na presença das auctoridades, ha um encurralamento de povo, que não resiste, mulheres, velhos, creanças, até um empregado da outra camara, são acutilados mais de vinte individuos, não ha um preso sequer! Se não havia criminosos, ninguem resistia, era a degolação dos innocentes! Que triste paralello!

E sabe v. exa. o estado da disciplina no nosso exercito?

Procedeu-se a uma syndicancia, que foi mandada para os tribunaes civis, e o exercito sujeitou-se a que n'este caso fosse desprezado o fóro militar; a propria guarda municipal, a quem a syndicancia dizia respeito, não pugnou pelos seus direitos, não resistiu, não lhe importou, e deixou ir o processo para o fôro criminal, para onde vão os malfeitores. Para o fôro civil!

Será isto brio de farda, que deve ter o seu julgamento especial e militar? Assim se tratou a farda!

É cousa para rir? Até os que levaram pancada ficaram contentissimos: não protestaram, não querellaram, não fizeram senão pôr honrosos pachos, senão mostrar as cutiladas, e tão contentes como se tivessem saído de uma batalha!

Eu quero que o sr. presidente do conselho me diga se a jurisprudencia militar do hoje é punir, julgar os crimes militares nos tribunaes civis?

Quando digo isto não quero de maneira alguma offender ninguem da guarda municipal; mas o facto é: ou os soldados indisciplinadamente, sem ordem dos seus officiaes e na presença d'elles, acutilaram o povo, ou os officiaes lhes deram ordens n'esse sentido; uns ou outros são criminosos, e não é nos tribunaes civis que se devem julgar, mas nos conselhos de investigação, nos conselhos de guerra.

Um corpo de melhor apparencia e melhor porte do que a guarda municipal é raro encontrar; e eu sou tão partidista da guarda municipal que, nas paradas, nas grandes reuniões de tropa que temos tido aos olhos de estrangeiros e nacionaes, lastimo que não appareça aquelle corpo, e, não sei porque, deixe de figurar ali nobre e dignamente, para andar de espingarda, e patrulhas dobradas a fazer serviço de policia e de estação, que qualquer veterano n'essas occasiões podia fazer.

Houve epocha em que ss nomeou um general de divisão para commandar este corpo, um batalhão! e um general de brigada para commandar uma divisão! Necessariamente, se elles se juntassem, devia haver conflicto, e foi esta a rasão, talvez, porque a guarda municipal deixou de apparecer nas paradas.

Quando em 1866 fui honrado com a confiança de s. exa. o sr. presidente do conselho, e dos seus collegas no cargo de governador civil de Lisboa, devi attenções, favores e auxilio á guarda municipal, e não posso deixar de dizer n'esta occasião que sou obrigado toda a vida ao caracter bondoso o genio franco do general Vasconcellos, conde de Torres Novas, que sabe conciliar a obediencia militar com as qualidades de homem de boa sociedade, sabe ser valente soldado e bom cidadão. Aos srs. officiaes e á guarda toda fui obrigado, e dou testemunho da sua disciplina.

Fui e sou igualmente obrigado ao seu immediato, o digno coronel Maia. E não posso deixar de dar este publico testemunho, para que se não julgasse que em tudo quanto tenho dito haja qualquer idéa desfavoravel ou que má impressão faça d'aquelle corpo em geral. Se ali ha homens que inspirem um sentimento menos benevolo, não quero attribuir a culpa a ninguem de corpo, mas a desleixo na nossa administração, a ponto de haver actos de impunidade, que são vergonhosos. Apontarei só um: - houve um documento falso, em que a firma do Rei era viciada, e até hoje ninguem foi capaz de encontrar quem praticou aquelle crime! Aliás saído de repartições publicas com a firma falsa do nosso bondoso Rei! O povo indica os criminosos, mas elles desapparecem. Impunidade, sempre impunidade!!

Ora esta impunidade leva-nos á completa desorganisação do paiz.

Eu aprecio muito a guarda municipal e os seus officiaes, e por isso peço que se lhe restitua os seus fóros e se castiguem os criminosos, se os ha, não pelos tribunaes civis, mas sim pelos militares.

Agradeço a v. exa., sr. presidente, e á camara a benevolencia o favor com que me ouviram.

O sr. Presidente do Conselho de Ministros: - Sr. presidente, eu podia dispensar-me talvez de tomar a palavra, porque o digno par não se referiu a assumptos de que eu tenha a responsabilidade, mas a antiga amisade que tenho por s. exa., e o respeito que lhe consagro, bem como á camara, obrigam-me a dizer alguma cousa.

Sabe v. exa. e a camara que eu não estava no governo, nem mesmo em Portugal, quando se deu o facto a que s. exa. se referiu. Ignoro, não só algumas d'essas circumstancias, mas mesmo o andamento do processo. E não é para estranhar que, ha poucos dias entrado no ministerio, não esteja ao facto de um assumpto que julgava findo.

Disse o digno par que lhe parecia não serem os tribunaes civis, mas sim os militares, que deviam entender n'esta questão. Sobre este assumpto não posso dizer nada, porque tudo quanto dissesse n'esta occasião seria talvez inconveniente, estando completamente ás escuras no assumpto.

Direi, porém, a s. exa. que tratarei de me informar do que ha a tal respeito, e que hei de proceder conforme a justiça e as conveniencias publicas.

Quanto ao mais, o digno par, nas poucas palavras que proferiu, não arguiu o governo.

Eu estou acostumado á sua benevolencia, sei quanto é digno a todos os respeitos, conheço a bondade do seu caracter e a rigidez dos seus principios, o estou acostumado a ouvil-o apreciar mais ou menos favoravelmente a politica que tenho sustentado e represento. N'esta parte, o digno par pareceu não gostar da restauração. Eu não posso intervir em um assumpto em que o digno par é juiz.