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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.º 31

EM 27 DE NOVEMBRO DE 1906

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Augusto José da Cunha

Secretarios - os Dignos Pares

José Vaz Correia Seabra de Lacerda
Joaquim de Vasconcellos Gusmão

SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta. - Expediente: telegrammas do Porto, Viseu, S. Pedro do Sul, Espinho e Albergaria, pedindo que seja discutido e approvado o projecto relativo ao caminho de ferro do Valle do Vouga. - O Digno Par Sr. Jacinto Candido chama a attenção do Governo para o estado em que se encontra a estrada que liga a villa de Penamacor com as freguesias de Aranhas e do Salvador. Responde-lhe o Sr. Ministro das Obras Publicas. - O Digno Par Sr. Teixeira de Sousa refere-se ao conflicto existente entre duas freguesias do concelho de Mirandella, a actos praticados pelo delegado da comarca de Valpassos, e ao comicio realizado no Porto em favor da resolução da crise do Douro. Respondem-lhe os Srs. Ministros da Justiça e das Obras Publicas.

Na Ordem do dia (Continuação da discussão do projecto de resposta ao discurso da Corôa). O Digno Par Sr. Jacinto Candido faz diversas considerações sobre a marcha dos negocios publicos, e fica com a palavra reservada. - É lida na mesa a proposição de lei, vinda da outra Camara, que tem por fim reformar a contabilidade publica. - O Digno Par Sr. Sebastião Baracho trata dos acontecimentos que ultimamente occorreram no seminario episcopal de Beja. O Sr. Ministro da Justiça dá explicações sobre este assumpto. - O Digno Par Sr. Teixeira de Sousa pede que, antes da Camara se occupar das convenções com paizes estrangeiros, seja distribuido o Livro Branco. O Sr. Presidente diz que serão satisfeitos os desejos do Digno Par. - É levantada a sessão.

Pelas 2 horas e 30 minutos da tarde, o Sr. Presidente declarou aberta a sessão.

Feita a chamada verificou-se a presença de 26 Dignos Pares.

Foi lida, e approvada sem reclamação, a acta da sessão anterior.

Mencionou-se o seguinte expediente:

TELEGRAMMAS

Porto, 26. - Exmo. Sr. Presidente da Camara dos Dignos Pares do Reino, Lisboa. -A Camara Municipal do Porto, correspondendo ao pedido que lhe é feito por muitos dos seus municipes e reconhecendo as consideraveis vantagens que advirão para esta cidade da construcção do caminho de ferro do Valle do Vouga, por isso que esta linha facilitará as relações com uma região importantissima pelo seu commercio, industria e agricultura, solicita de V. Exa. e dos seus illustres collegas a sua cooperação para que em breve seja convertida em lei a respectiva proposta levada pelo Governo ao Parlamento. = João Baptista Lima Junior, Presidente.

Viseu, 27. - Exmo. Sr. Presidente da Camara dos Pares, Lisboa. - Associação Commercial e Industrial de Viseu pede seja brevidade discutido projecto Valle do Vouga, melhoramento tanto tempo esperado. Sua demora prejudica sobremaneira interesses esta região. = José Perdigão.

S. Pedro, 27. - Exmo. Sr. Presidente da Camara dos Pares, S. Bento, Lisboa. - Attendendo aos beneficios que o caminho de ferro do Vouga vem trazer a este concelho, rogo a V. Exa. faça apresentar á discussão com a maxima urgencia o respectivo projecto. = Presidente da Camara, Antonio Guedes.

Espinho, 26. - Exmo. Sr. - Camara Municipal Espinho impetra respeitosamente de V. Exa. mercê promover discussão immediata projecto lei caminho ferro Valle Vouga, obra cuja realização representa para nós e toda região atravessada grande prosperidade e brilhante futuro, esperando merecerá approvação da Camara a que V. Exa. digna e illustremente preside. = O Presidente, Henrique Brandão.

Albergaria, 27. - Exmo. Presidente Camara Dignos Pares, Lisboa. - Caminho de ferro Valle Vouga melhoramento indispensavel desenvolvimento economico este concelho e toda a região atravessada, por isso camara municipal minha presidencia pede V. Exa. immediata discussão approvação projecto concessão garantia juro. = Presidente Camara, Bernardino Albuquerque.

Ás respectivas commissões.

O Sr. Jacinto Candido: - Chamo a attenção do Governo, especialmente do Sr. Ministro das Obras Publicas, para o estado em que se encontra a estrada que liga a villa de Penamacor com as freguesias de S. João de Aranhas e Salvador. Começou-se a sua construcção até á villa de Aranhas, fazendo-se até ahi a terraplenagem; mas abandonaram-se os trabalhos, de forma que a freguesia do Salvador, que dista 2 kilometros da villa de Aranhas, continua sem ter uma estrada que a ponha em communicação com a séde do concelho.

Alem d'isso, como se não fez o empedramento da parte que vae até á freguesia de Aranhas, com as invernias, que são agora de esperar, é provavel que venham a dar-se grandissimos prejuizos nas propriedades proximos, alem de ficar destruida a obra já feita.

(O Digno Par não reviu este extracto).

O Sr. Ministro das Obras Publicas (Malheiro Reymão): - Sr. Presidente:

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pedi a palavra para informar o Digno Par de que deram entrada no meu Ministerio as representações, a que S. Exa. se referiu, relativas á urgencia do em-pedramento d'uma estrada em construcção no concelho de Penamacor.

Devo dizer ao Digno Par que estes assumptos merecem a attenção do Governo, de mais a mais quando ha o risco de se poder perder aquillo que já está feito.

Dei ordem para que se começasse desde logo o empedramento da estrada; e sendo informado de que tinha havido alguma demora no começo d'esse trabalho, immediatamente me dirigi ao director das obras publicas de Castello Branco.

Com respeito á continuação da estrada até á freguesia de Salvador, não estou bem certo, mas parece-me que tambem recebi uma representação, e creio que não resolvi o assumpto por não haver verba disponivel 110 orçamento do meu Ministerio.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Teixeira de Sousa: - Já que V. Exa. me dá a palavra, vou usar d'ella para chamar a attenção do Governo sobre alguns factos de interesse publico, sendo o primeiro as difficuldades existentes entre as freguesias de Villarinho das Azenhas no concelho de Villa Flor, e Valverde no concelho de Mirandella.

Estes dois povos andam em rixa, o que não só perturba a vida das respectivas freguesias, mas tambem affecta a de outras que ficam proximos.

Como as autoridades administrativas nada teem podido fazer a este respeito, peço ao Governo que se informe devidamente e tome as providencias que entender, para que se restabeleça o socego entre aquellas freguesias.

Mando aos Srs. Ministros que estão presentes á sessão uma nota escripta para assim mais facilmente poderem S. Exas. tomar conhecimento do assumpto.

Desejo tambem chamar a attenção do Sr. Ministro da Justiça para factos que veem occorrendo na comarca de Valpassos desde muito tempo.

Sr. Presidente: dois individuos intentaram um processo criminal contra o sub delegado da comarca de Valpassos, Mario de Castro.

O delegado do Procurador Regio deixou de promover n'esse processo contra o sub-delegado, motivo por que subiu um aggravo á Relação do Porto, onde está pendente.

Estes factos são conhecidos de toda a comarca; e creio que ao Sr. Ministro da Justiça veiu uma queixa pelo motivo do delegado se ausentar da comarca, deixando a exercer as funcções do Ministerio Publico, quem? O sub-delegado, contra o qual ha um aggravo pendente.

Esta circunstancia e bem assim a do delegado ter deixado de promover contra o sub-delegado, quando aliás promove contra tudo e contra, todos, são do conhecimento do Sr. Ministro da Justiça, o que não me impede de pedir a S. Exa. que dê as providencias necessarias para que aquelle estado de cousas não continue.

O delegado da comarca está mal disposto contra os que se queixaram perante o Sr. Ministro da Justiça, e d'aqui uma serie de processos que o juiz de direito, que aliás não communga no meu credo politico, tem mandado archivar.

Peço a attenção do Sr. Ministro da Justiça para este assumpto, a fim de que S. Exa. dê as providencias que o caso requeira.

Desejo agora referir-me a uma questão da mais subida importancia, e que já por vezes tem aqui sido traduzida: - a questão do Douro.

V. Exa. e a Camara teem conhecimento de que ante-hontem, na cidade do Porto, se realizou um comicio de tal magnitude, que os correspondentes dos jornaes dizem não haver memoria de outro mais concorrido e imponente.

As informações que tenho são de que se retiniram mais de 10:000 pessoas, e dois factos desejo principalmente notar: primeiro a imponencia extraordinaria d'esta manifestação; depois o facto de a ella ter adherido a cidade do Porto, especialmente respeitaveis casas exportadoras de vinhos.

Seis mil pessoas vieram do Douro assistir ao comicio, o que se prova pelos bilhetes vendidos nas estações do caminho de ferro, e as restantes pessoas eram habitantes da cidade do Porto.

Sr. Presidente: tenho grande satisfação em reconhecer que uma boa parte da população d'aquella cidade, havendo considerado a triste situação em que encontrava a importante região do Douro, se associou ás suas justas reivindicações, e tenho ainda muita satisfação em poder assim contraprovar que eu não estava em erro quando, em resposta ao Digno Par Sr. Pedro de Araujo, affirmava que o dissentimento entre a causa do Douro e os exportadores do vinho do Douro era apenas uma phantasia, derivada de erradas informações dadas a S. Exa.

O comicio foi presidido por um membro d'esta Camara, que já teve uma alta importancia na administração d'este paiz, e que não só tem um nome res-peitabilissimo, mas tambem preponderante situação n'uma companhia que se occupa exclusivamente do commercio de vinhos: refiro-me á Companhia Vinicola do Norte de Portugal.

Não é isto que principalmente me leva a concluir que o commercio do Porto está ao lado das justas reivindicações do Douro.

Os jornaes d'aquella cidade trazem uma representação que no comicio foi approvada e que é dirigida ás duas casas do Parlamento e ao Governo.

Ora n'essa representação figuram as seguintes assignaturas:

(Leu).

Não posso affirmar que estejam aqui representados todos os exportadores de vinhos do Porto; mas sim que subscrevem a representação casas respeitabi-lissimas entre as que são exportadoras.

Razão tinha eu, pois, quando affirmava n'esta Camara que ao lado do Douro estava o commercio dos vinhos do Porto; que ao lado do Douro estavam todos os que comprehendiam que para se manter o mercado d'esses vinhos, por maneira que o Porto possa tirar da exportação o maior proveito economico possivel, é necessario garantir a qualidade, a genuinidade d'esses vinhos, porque só assim poderá o Porto concorrer aos mercados estrangeiros com decidida vantagem.

Na representação que hontem foi approvada no comicio, toma-se como base fundamental, para resolver a questão do Douro, restringir a barra do Porto á saida de vinhos licorosos produzidos na região duriense.

Não pode haver duvidas nem equivocos ácêrca d'esta asserção, porque foram os principaes exportadores de vinho do Porto que vieram em seu nome dizer, que para se assegurar a exportação e manter lá fora a fama e creditos do producto, era indispensavel que a saida de vinhos licorosos pela barra do Porto se restringisse aos da região duriense.

Ainda me parece que eu não estava em erro quando ha dias affirmei que na região do Douro se produzia o vinho necessario para manter toda a exportação de vinhos licorosos com o nome de Porto, não só de primeira mas tambem de segunda ou terceira qualidade.

Citei varios exemplos e adduzi varios argumentos para chegar á conclusão de que aquella região produziu, no ultimo anno, o dobro do vinho que em regra é exportado pela barra do Porto.

Parece-me que a questão está sufficientemente esclarecida, e que é chegada a opportunidade de se lançar uma resolução immediata a fim de defender os interesses valiosos que estão em jogo, e dar a tranquillidade aos povos do Douro que, justamente alarmados, esperam anciosamente a approvação do projecto apresentado pelo Governo.

A situação é grave e afflictiva n'aquella região, onde se não faz nenhuma politica partidaria com este assumpto, porque a verdade é que dez mil pessoas, reunidas hontem no comicio do

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Porto, não clamaram contra o Governo, não foram contrarias ás ideias do Governo, mas, pelo contrario, deram o seu applauso ao pensamento fundamental da proposta, por cuja approvação anceiam.

Sr. Presidente: mal andaria eu se me não mostrasse convencido de que o Sr. Ministro das Obras Publicas está empenhado em que a actual sessão legislativa se não encerre sem esta questão ser resolvida, e em que se não perca o principio fundamental da proposta que foi apresentada á outra casa do Parlamento.

Vejo infelizmente que algumas difficuldades se teem levantado no seguimento parlamentar da proposta, mas não me surprehende isso, porque, quando tive a honra de falar sobre este assumpto, disse que a meu ver se encontravam n'essa proposta deficiencias que haviam de tornar se n'outras tantas difficuldades para a sua approvação.

Parece-me que o Governo tinha um recurso de que podia lançar mão para até certo ponto compensar os interesses de outras regiões, que se teem mostrado até agora antagonicas com a região do Douro.

É evidente que, como vinhos licorosos, só poderão sair pela barra do Porto os vinhos d'aquella região; mas deixam os viticultores do sul de vender cêrca de 25:000 pipas dos seus vinhos.

Não ha duvida que a justiça está do lado do Douro, mas não ha tambem duvida de que as questões economicas não se resolvem só por principios absolutos - é necessario respeitar a equidade.

Afigura-se-me, portanto, de bom conselho, sempre que seja possivel, compensar todos os interesses, os do Douro e os dos lavradores do sul, e isso poder-se-hia conseguir prohibindo o fabrico do alcool industrial.

O Sr. Francisco José Machado: - Apoiado.

O Orador: - Se este recurso é sufficiente, não sei; mas o que desejo n'este assumpto é collaborar com o Governo.

Permitta-se-me ainda lembrar uma circumstancia.

Por virtude do decreto de 15 de janeiro de 1905 foi alterada a tributação dos vinhos a consumir na cidade de Lisboa, do que resultaria um augmento de receita calculado na importancia de 319 contos, devendo applicar-se metade d'essa verba ao fundo de fomento commercial e a outra metade a premios destinados aos vinhos com marcas registadas que entrassem na cidade de Lisboa.

O Sr. Ministro das Obras Publicas tem no seu Ministerio e nas outras secretarias do Estado os elementos necessarios para conhecer, sob este ponto de vista, os effeitos exactos do decreto de 15 de janeiro de 1905.

Como quer que seja, no orçamento para o exercicio corrente, conforme está proposto, vem inscripta a verba de 170 contos de réis destinados áquelle fim.

Pergunto eu, Sr. Presidente: ha alguem que se possa convencer de que do regimen de 1905 tenha resultado o augmento do consumo de 1 litro de vinho, sequer, na cidade de Lisboa?

Ninguem, Sr. Presidente.

Pois se d'esse premio a marcas registadas não resultou augmento de consumo na cidade de Lisboa, pergunto eu: os 170 contos de réis não poderiam ser applicados a um premio de fabrico da aguardente do sul?

Pois não poderiamos encontrar um meio de compensar os viticultores do sul, prohibindo o fabrico do alcool industrial, e concedendo premios de fabrico á aguardente, por maneira que ella pudesse attingir o preço legal, marcado no decreto de 14 de julho de 1901?

Eu não me permitto orientar o Sr. Ministro das Obras Publicas, que é muito intelligente e trabalhador, mas parece-me que S. Exa. poderia encontrar aqui uma base de compensação para a viticultura do sul.

Cumpro o meu dever, dirigindo-me novamente ao Governo, principalmente ao Sr. Ministro das Obras Publicas, a pedir-lhe que envide todos os seus esforços e empregue toda a sua energia para que a questão do Douro tenha uma solução rapida.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes): - Pedi a palavra, Sr. Presidente, para declarar ao Digno Par Sr. Teixeira de Sousa que eu transmittirei ao Sr. Presidente do Conselho as considerações que S. Exa. fez ácêrca de perturbações de ordem publica nas freguesias de Villarinho das Azenhas e Valverde, e logo que S. Exa. se digne enviar-me a respectiva nota, eu entrega-la-hei ao Sr. Presidente do Conselho.

Cumpre-me agora, no que diz respeito á pasta que tenho a honra de gerir, dizer a S. Exa. aquillo que se tem passado relativamente ao delegado de Valpassos.

Em outubro, creio eu, recebi um telegramma assignado por dois individuos do concelho de Valpassos, participando-me que o delegado se tinha ausentado da comarca, e havia deixado a substitui-lo o sub delegado, contra o qual corria um processo.

Immediatamente mandei telegraphar ao Procurador Regio do Porto.

No dia seguinte os dois individuos, que me tinham mandado aquelle telegramma, mandaram-me outro agradecendo-me as providencias que eu havia tomado, como aliás era do meu dever.

No principio d'este mez recebi uma representação assignada, creio, pelos mesmos individuos, na qual eram formuladas queixas sobre diversas faltas commettidas por esse delegado.

É certo tambem que dias depois recebi um requerimento do delegado pedindo que fosse feita uma syndicancia aos seus actos.

Como vae partir para o Porto o novo Procurador Regio, dar-lhe-hei instrucções a este respeito.

Agora mesmo recebi um telegramma participando-me que o delegado está ausente, e o sub-delegado em exercicio.

O Sr. Teixeira de Sousa: - Tambem aqui tenho outro.

O Orador: - Em consequencia do fallecimento de um funccionario, a secretaria da Justiça está hoje fechada; mas amanhã, logo que eu ali chegue, tomarei providencias, chamando ao seu logar o delegado de Valpassos.

(S. Exa. não reviu}.

O Sr. Ministro das Obras Publicas (Malheiro Reymão): - Agradeço ao Digno Par Sr. Teixeira de Sousa os alvitres com que S. Exa. quiz elucidar o Governo ácêrca da proposta de lei sobre o commercio e exportação de vinhos licorosos.

Posso assegurar á Camara e ao Digno Par que tenho todo o empenho em que essa proposta saia da commissão o mais brevemente possivel.

Mas n'este assunto serão bemvindos todos os alvitres, todas as considerações, porque, como tive occasião de declarar no relatorio da minha proposta, não se trata de um acto partidario, mas sim de um acto nacional, em que é legitimo solicitar e agradecer a cooperação de todos.

(S. Exa. não reviu).

ORDEM DO DIA.

Continuação da discussão do projecto de resposta ao Discurso da Corôa

O Sr. Jacinto Candido: - Sr. Presidente: continuando hoje, pelo favor de V. Exa. e da Camara, no uso da palavra, proseguirei na parte do meu discurso, que é a resposta ao Digno Par e illustre relator do projecto, o Sr. Beirão.

Sinto que não esteja presente o Sr. Presidente do Conselho, como chefe do Governo; mas certamente S. Exa., pelos seus collegas e pelos registos das nossas sessões, terá conhecimento do que vou dizer, e dirá depois, quando

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julgue conveniente, o que entender a bem da situação politica.

Falo sempre sem receios, mesmo na ausencia das pessoas, a quem tenha de referir-me, porque n'essas referencias ponho cuidadoso escrupulo, sem faltar á verdade e á lealdade, que devo ao paiz e a mim proprio.

Noto, desde já, Sr. Presidente, que o discurso do Sr. Beirão é, verdadeiramente, um novo projecto de resposta á fala da Corôa.

O Digno Par foi o illustre relator do projecto, que está em discussão: uma cousa, porem, é esse projecto, e outra foi o seu discurso de outro dia, não simplesmente na forma, mas na ideia, em que um e outro são divergentes, por vezes, até fundamentalmente.

Temos, pois, dois projectos: um escripto, e outro falado; e se me inscrevi contra o projecto escripto, em grande parte estou de accordo com o projecto falado, o que mostra bem as differenças que entre um e outro existem.

Esta mudança de opinião, da parte do digno relator, não pode levar-se á conta de leviandade, de incoherencia, ou de qualquer motivo menos plausivel, o que seria antinomico com o caracter reflectido e ponderado do Digno Par. Temos, pois, que ver no facto, aliás bem estranho e notavel, se não que unico nos annaes parlamentares, um forte motivo de necessidade de salvaguardar responsabilidades, e um alto pensamento de corresponder ás conveniencias publicas, e determinado por um nobre sentimento patriotico.

Quando S. Exa. escreveu o projecto, que está em ordem do dia, limitou-se a dizer que a Camara aguardava a apresentação das propostas annunciadas pelo Governo para, sobre ellas, emittir o seu parecer; mas, mais tarde, julgou necessario manifestar de um modo inequivoco a sua divergencia acêrca da orientação governativa, e dar salutares e prudentes conselhos ao Governo, para modificar os seus planos e alterar os seus projectos. E não se ficou por aqui, mas foi até ao ponto de expressar, bem significativamente, a sua desapprovação a alguns dos mais importantes factos já praticados pelo Governo.

Não posso deixar de me congratular, com a Camara, por este nobre exemplo do Digno Par, dizendo desassombradamente o que entendia ser a bem do paiz, embora condemnasse, em parte, tambem, o que anteriormente havia escripto.

O mal não está em emendar; mas em persistir no erro. Bem andou, portanto, o illustre relator do projecto em corrigir, no seu discurso falado, as deficiencias do seu discurso escripto.

Vamos ao discurso falado. Começou o Digno Par por notar que, afinal, a resposta ao discurso da Corôa, que é o projecto em ordem do dia, não tem sido discutida, e que, de sua memoria, apenas o Digno Par, o Sr. Bispo da Guarda, a ella se referira, estranhando e lamentando a falta de referencia ás justas reclamações do clero parochial, quando de tantas outras classes sociaes se tratava com zelo e solicitude.

Peço perdão ao Digno Par para rectificar que o Sr. Bispo da Guarda falou antes da ordem do dia, e não sobre a discussão do projecto. E aproveito esta occasião para felicitar a Camara pelo elevado e conceituoso discurso do illustre Prelado, em que S. Exa. Rma. revelou altas qualidades e notaveis dotes de orador distinctissimo, que muito honram esta casa do Parlamento.

Do mesmo modo não quero perder o ensejo de dizer, a V. Exa. e á Camara, que estou de inteiro accordo com o venerando Prelado, e que, com elle, lamento e sinto profundamente que o Governo esquecesse, no Discurso da Corôa, a menor referencia aos justissimos clamores da benemerita classe parochial, falta tanto mais para censurar, quanto é certo que no anterior discurso a elles se referira, que n'este de outras classes sociaes se occupara, e que as representações e as queixas e pedidos do clero não podiam ser-lhe desconhecidos, depois dos seus congressos e das suas claras manifestações, que, por serem ordeiras, não deixam de ser energicas, como o reclama a propria justiça d'ellas.

A este respeito mando para a mesa um requerimento e uma moção, e peço a V. Exa. que lhes dê os respectivos destinos.

Vou ler á Camara estes dois documentos:

MOÇÃO

A Camara dos Pares do Reino convida o Governo a empregar a sua iniciativa parlamentar na satisfação justa das reclamações do clero parochial. - O Par do Reino, Jacinto Candido.

Requeiro que pela Secretaria de Estado dos Negocios Ecclesiasticos e de Justiça me seja enviada copia de todos os documentos relativos a nomeação de commissões e aos seus trabalhos, para o fim de se cuidar da dotação do clero parochial. = O Par do Reino, Jacinto Candido.

Outrosim requeiro que, pelas Secretarias d'esta Camara e da dos Senhores Deputados, me seja enviada nota official de todos os projectos ou propostas de lei que sobre o mesmo assumpto da dotação do clero parochial teem sido apresentados ás Côrtes. = O Par do Reino, Jacinto Candido.

Mas, Sr. Presidente, o Digno Par Sr. Beirão, alem de se ter equivocado quanto ao Sr. Bispo da Guarda, esqueceu que, sobre o Discurso da Corôa, ha pelo menos a extensa moção do Sr. Baracho, que é um novo projecto de resposta, em substituição do que está na ordem do dia.

E, sem mesmo falar d'este bem expressivo documento, certo é que todos os Dignos Pares discutiram o projecto em ordem do dia, falando do passado do Governo e dos seus planos futuros, nem outro é o campo do debate.

O que significa elle, na verdade, senão uma apreciação, quanto ao passado, e quanto ao futuro da acção governativa, tal qual é annunciada na fala da Corôa?

Só d'este modo se cumpre o nosso dever constitucional, dever primario e fundamental para com o paiz, e até de cortezia para com a Corôa, porque se lhe mostra como as suas palavras foram apreciadas e discutidas.

E por aqui fico, quanto a este reparo do Digno Par.

Aproveitou o Sr. relator um asado ensejo do seu discurso para manifestar de um modo tão claro, como energico, que reprovava o procedimento do Governo, promovendo a publicação das cartas de El-Rei.

E disse: - para mim, o precedente não fica. E, largamente, desenvolveu os seus principios a tal respeito, indo até a affirmar que se o proprio Rei lhe ordenasse a publicação das cartas, elle se demittiria de ministro, mas não a faria.

Esta é, tambem, Sr. Presidente, a minha opinião sobre este delicado e importante assumpto. Aquellas cartas não eram documentos do Governo do paiz, não eram actos officiaes, eram documentos particulares; não podiam nem deviam ser publicadas. A sua publicação foi erro gravissimo do Governo, a todos os respeitos e por todos os titulos.

Podem não ver-se desde já todas as suas consequencias; mas ellas ficaram, e hão de apparecer. E já bem bastam todas as que foram manifestas a toda a gente.

Alem de tudo o mais, notavelmente infeliz foi o Sr. Presidente do Conselho quando, na outra casa do Parlamento, disse que uma d'essas cartas era a carta de alforria da nação. Não posso deixar de repellir, energicamente, para bem longe, e do alto da minha dignidade de homem livre, uma tão deprimente classificação.

Cartas de alforria dão-nas os senhores aos escravos.

Escravo de alguem, não; não o sou eu.

Carta de alforria - é a suprema infelicidade de expressão. (Apoiados).

Se eu estivera presente quando o assumpto veio ao debate, e a Camara,

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a respeito da publicação das cartas, foi consultada, eu teria abertamente votado contra tal publicação. Não teria ficado isolado o voto do Digno Par o Sr. Machado. Teria, ao seu lado, o meu tambem. E agora vejo que tambem o do Sr. Beirão, pelo que lhe ouvi a tal respeito.

Noto, pois, Sr. Presidente, e assinalo, esta primeira divergencia do Sr. Beirão, a respeito da orientação do Governo.

O Digno Par referiu-se, ainda a este proposito, á attitude d'esta Camara, quando V. Exa. poz á votação se deveria, ou não, proseguir o debate chamado das cartas de El-Rei.

Fui eu um dos que entendeu que não podia a questão, tal qual foi posta, ser votada pela Camara.

Retirei-me por isso da sala. Não votei, e vim dar a razão da minha abstenção.

Entendi, como hoje ainda entendo, que a Camara não pode votar se sim, ou se não, deve cumprir-se um artigo da Carta sobre materia constitucional. Sem poderes constituintes, seria um acto de revolução, a que eu, nem nenhum homem de ordem, poderia associar-se. Este ponto era fundamental, e por si sómente dirimia a questão. Mas havia mais. A questão foi posta tardiamente.

Se discutir as cartas era, ou não, discutir a pessoa do Rei, devia ter-se assente, não a meio do debate, más no começo d'elle. Assim, deixou se ao Governo fazer e dizer tudo o que quiz, e depois coarctou-se aos Pares do Reino o seu direito, que era igual ao do Governo pelo menos. Era uma desigualdade de tratamento revoltante, e uma flagrante injustiça.

Não podia eu associar-me a ella. Este triste incidente da vida do Governo pode ter-lhe aproveitado de momento, para tirar effeitos politicos e para a vida ministerial; mas a quem fez mal irreparavel foi á Corôa.

O Governo arrogou-se uma qualidade que lhe não pertence, e usurpou funcções que são nossas, privativamente nossas.

Disse-se representante da nação, quando elle só representa o Rei. A nação representam-na as Côrtes.

Este e muitos outros erros em materia constitucional, cumpre accentuar bem, e não deixar proferir taes heresias juridicas e politicas sem protesto.

O Governo é um instrumento do Rei. O poder executivo reside no Rei, que o exerce pelos ministros. É a letra da Carta. Os ministros nem sabem bem o que são.

Não conhecem a Carta.

A lei fundamental é adulterada e sophismada. Nem já ao menos a lêem. Por isso se vive na desordem politica, no regimen do puro arbitrio, e este é o mal primario e fundamental.

Os Pares do Reino não são do Rei, são da nação, seus legaes e legitimos representantes. É letra expressa da lei fundamental, apesar de serem de nomeação regia.

O Governo, os Ministros, esses sim, são do Rei, para o Rei exercer o poder executivo. Não são da nação, nem seus representantes, senão de um modo indirecto, porque o Rei o é tambem, elle proprio.

N'esta sala, pois, os Pares do Reino não estão como meros particulares, não são aqui simples cidadãos, mas directos representantes da soberania nacional, e é n'essa qualidade que falam ao Rei a linguagem da verdade, como cumpre ás altas funcções que exercem.

Não colhe, pois, o parallelo que o Digno Par quiz estabelecer entre os Pares do Reino e o Dr. Pinto Coelho, quando recebeu El-Rei D. Luiz na Associação dos Advogados.

Lá era uma cortezia de palacio, aqui tem de haver a maxima cortezia, sim, mas a maior franqueza, lealdade e sinceridade, sem o que trahimos a nossa missão. Esta é a cortezia das Côrtes, honrosa nas nossas tradições politicas, de que não devemos abdicar. Não somos simples cidadãos perante o Rei. Somos um poder do Estado em face de outro poder do Estado. Cumpre respeitar tanto o poder do Rei, como o de que estamos investidos, que é o poder da nação.

É de termos sido, e de sermos, mais palacianos e cortezãos do Rei do que servidores leaes da nação, que tem provindo o desprestigio do poder legislativo.

Precisamos de manter, solicitos e vigilantes, uma linha de aprumo politico, que não exclue o maior respeito pela pessoa do Rei. Mas não esqueçamos o respeito por nós proprios. Mal pode respeitar os outros, e respeito esse é de pouca monta, quem a si proprio se não respeita.

Não é esta a primeira vez que assim falo. Vem de longa data esta campanha, e n'ella continuarei combatendo pelos bons principios, sempre, e intemeratamente.

Outro ponto, de que seguidamente tratou o Sr. Beirão, foi a referencia feita no projecto aos tratados de commercio. O illustre relator tambem aqui accentuou a sua divergencia dos principios governativos, e tambem deu ao Governo avisos de bom senso e de prudencia, com os quaes estou de pleno acordo, não me demorando por isso mais n'esta parte.

Depois o meu illustre amigo e collega, referindo-se á attitude do Governo nas eleições, divergiu ainda, de um modo radical, censurando os desdobramentos, que tiraram ás opposições, em proveito do Governo, as minorias. E accentuou bem, frisantemente, como o espirito da lei fôra assim sophismado e adulterado.

Nem uma palavra a tal respeito dizia o projecto em discussão, e n'este ponto, essencialmente politico e de uma importancia capital, teem um alto significado as declarações do Digno Par, que a Camara toda ouviu, e que eu applaudi, porque o meu partido tambem foi victima d'esse processo governativo.

E, como aqui esteja de plenissimo acordo com o Digno Par relator, limito-me a registar mais esta terceira divergencia do Governo por parte do Sr. Beirão, illustre marechal progressista.

Tratando da famosa questão dos tabacos, o Sr. Beirão, no seu discurso, depois de notar que todos queriam compartilhar das glorias da sua solução, salientou que, afinal, no coro de louvores se não falava justamente de quem principalmente os merecia, que era o paiz, pela sua correctissima attitude e profundo bom senso.

Tambem estou de acordo com o Digno Par a este respeito, e passo adeante.

Chego ao capitulo da responsabilidade ministerial, seguindo a mesma ordem das considerações do Sr. Beirão no seu discurso, a que respondo.

Quero mais uma vez ler á Camara a conclusão 24.ª do programma nacionalista que diz assim:

"O nacionalismo insiste na sua affirmação de tornar effectivas, regulamentando-as devidamente, as responsabilidades ministeriaes, discriminando as suas differentes especies, e conforme a natureza de cada uma, commettendo o julgamento de cada uma a tribunaes especiaes, de nomeação da Camara dos Pares, e constituidos, segundo a especie arguida, por juizes do Supremo Tribunal Administrativo, ou do Tribunal de Contas, ou do Supremo Tribunal de Justiça e havendo sempre recurso para o Conselho de Estado".

Esta é a doutrina do meu partido a tal respeito, e n'ella me conservo. Portanto a Camara vê bem que, applaudindo a iniciativa do Governo, me reservo, quanto ao modo por que ella se exercer, o direito de critica, orientado pelos meus principios, e não pelo meu arbitrio.

A este respeito, o Digno Par alongou-se em considerações de alto valor, sobre as responsabilidades dos Pares e Deputados, por não zelarem devidamente as suas prerogativas, e deixarem impunemente violar os seus direitos, e atropellar o normal funccionamento das Côrtes.

No presente, estão ahi os Annaes d'esta Camara a falar bem alto, em meu nome, sobre a energia e constancia dos meus protestos a tal respeito.

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400 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Tenho a intima convicção de que o nosso mal estar provém, fundamentalmente, de não termos poder legislativo, porque as Camaras são, apenas, uma simples chancella do executivo, sem força, nem valor proprio.

Applaudo vivamente o Sr. Beirão n'esta ordem das suas considerações, que vem em reforço da minha tenacissima campanha, em favor do poder legislativo, e a este assumpto volverei ainda, no decorrer das minhas considerações.

Outro capitulo do discurso do illustre relator refere-se á contabilidade publica, em que applaude a iniciativa do Governo; mas dando-lhe leaes conselhos para que seja a lei clara, e se cumpra integralmente.

Reservando-me, tambem, o direito livre de critica sobre a proposta governamental, eu tambem me congratulo por vir ao debate esta importante e momentosa questão; e, a este respeito, por vezes tambem tenho exposto os principios do meu partido, pelos quaes me hei de orientar, nas minhas apreciações. É necessario que as contas do Thesouro sejam organizadas, e do mesmo modo os orçamentos, de tal modo que qualquer simples cidadão possa, facilmente, inteirar-se do estado da Fazenda Publica. (Apoiados).

Concordo com o Digno Par em que é preciso que o poder legislativo exerça, com efficacia, as suas funcções de fiscalização, para o que se torna necessario rodear-se de garantias, que o defendam contra os abusos e violencias do executivo. (Apoiados).

Não me offerecem reparo as reflexões do Digno Par acêrca da crise duriense, a que tambem se refere a minha moção de ordem.

Vou agora entrar n'um ponto importantissimo, de que o Digno Par cuidou, com toda a prudencia e circumspecção, - as reformas sociaes.

Aqui, Sr. Presidente, aqui, mais do que em parte alguma, é para notar-se a profunda divergencia entre o Digno Par e o Governo, e entre o projecto escripto, e o projecto falado, de resposta ao Discurso da Corôa.

É frisante o contraste entre os principios conservadores, prudentes, de bom criterio, que o Sr. Beirão proclamou, no seu discurso, e as ideias menos bem orientadas, ou sem orientação, reveladas pelo Governo.

Invocando diversas auctoridades, acima de todas poz o Sr. Beirão a do Papa Leão XIII, o grande e admiravel pontifice das immortaes encyclicas, que representam, hoje ainda, é que ha de mais notavel, sobre a grande questão do seculo, que é a questão social. Muito bem.

Fervorosos applausos teve, da minha parte, este ponto do discurso do Digno Par.

É preciso ser prudente e cauteloso n'este campo, tão escorregadio e melindroso, e caminhar com bom senso, e orientado por principios certos e doutrinas firmes. É perigosissimo explorar estas questões, como elementos de popularidade, e como armas de manejos politicos e partidarios. Acima de tudo, a justiça e os principios. E se é repugnante sempre a especulação do personalismo e do partidarismo, sobe de ponto essa repugnancia, tratando-se da desgraça ou mal estar das classes proletarias.

Foram de aviso amigo as nobres palavras do Digno Par, e apenas no que se refere ao projecto do descanso semanal, eu divirjo do seu ponto de vista, porque sou partidario aberto do descanso dominical, e tenho o meu nome ligado a um projecto, que está pendente n'esta Camara, apresentado pelo Digno Par e meu amigo, o Sr. Conde de Bertiandos.

O digno relator receou que, correndo sem bussola, o Governo, pelos mares revoltos das doutrinas socialistas, naufragasse nos perigosos escolhos que povoam esses mares.

Foram de bom aviso, e de bom e leal amigo, os seus prudentes conselhos. Deve agradecer-lh'os o Governo. Mais tarde eu me occuparei, no logar competente do meu discurso, com a largueza que o caso exige, da questão social, consoante os principios do programma nacionalista.

Notavel divergencia foi esta, em tão capital e momentoso assumpto, a do Digno Par; mas não é de somenos valia a outra, que, logo seguidamente, elle formulou, de um modo tão claro e tão fulminante para os planos governativos, quando se referiu ás despesas publicas, e ás authenticas e legitimas reclamações da opinião publica a tal respeito.

Eu espero - dizia ao Digno Par - que todas as propostas que importam e representam augmento de despesa publica não terão seguimento. Esta é a reclamação justa da opinião do paiz.

Sr. Presidente: chamo a illustrada attenção de V. Exa. e da Camara para estas palavras do Digno Par o Sr. Conselheiro Beirão, que, certamente, tem uma especial autoridade, nas condições actuaes da colligação franco-progressista.

Não é dos lados das opposições que partem as advertencias, ao Governo, sobre a necessidade de se manter n'um regimen de severa economia.

Essa reprimenda salutar parte do proprio relator da resposta ao Discurso da Corôa, a quem, nem o Governo, nem pessoa alguma, pode ter na conta de suspeito.

O Governo, que tanto se tem jactado de acatar as aspirações da opinião publica, de ser o seu orgão no poder, ouça bem o que diz o Sr. Beirão, em nome d'essa mesma opinião publica.

Por mim, Sr. Presidente, faço meus os leaes conselhos do digno relator, e tambem digo ao Governo que tenha cautela. Este tem sido tambem um dos vicios capitaes das administrações rotativas, - servir-se do Thesouro Publico para captar sympathias, e consolidar clientelas. O Governo vae enveredando pelo mesmo caminho. Nós temos um deficit orçamental, e esse deficit não só se vae manter, mas vae-se avolumar ainda mais com os planos do Governo. Cautela!

Certamente que o Governo possue mais completos elementos, para avaliar com justiça e exactidão da situação do Thesouro Publico, do que eu os tenho, ou qualquer de nós. Mas, se ha possibilidade de se decretarem mais despesas, sem inconvenientes para as finanças do Estado, então seja-se justo, e attenda-se por igual a todas as classes, que reclamam melhoria de situação.

Não sejam filhos uns, e outros enteados.

Merece-me sympathia o augmento dos soldos aos officiaes do exercito, porque reconheço que andam mal pagos; mas, do mesmo modo, se não que ainda com muito maior fundamento, porque muito mais precaria é a sua situação, merece toda a minha attenção a classe benemerita do clero parochial, que, desde largos annos, vem reclamando justiça da parte dos poderes publicos, sem que sejam ouvidos os seus clamores tão fundamentados.

É preciso ter em conta que, se o exercito representa a força physica, defensiva da ordem, o clero parochial representa a maior força moral para as classes conservadoras. Mal vae a quem só considera a força material, e a quem só respeita e attende a quem n'ella se apoia. Mal vae.

Por isso, Sr. Presidente, eu já apoiei calorosamente as considerações justissimas do illustre Prelado o Sr. Bispo da Guarda, e, mais uma vez, chamo a attenção do Governo para este assumpto. É preciso que haja sempre, como superior criterio de governo, a justiça, sobretudo a justiça relativa, que exige a igualdade de tratamento e de publica consideração para todas as classes sociaes.

No entanto, acêrca da questão financeira do Thesouro Publico, a doutrina está na minha moção de ordem, consoante os principios do programma do meu partido, em que expressamente se acha consignado que, a despeito da sua complexidade, a questão tem uma unica solução verdadeiramente efficaz, - o equilibrio do orçamento - effectivo e real, sem ficções, sem artificios. Desde largos annos que eu venho aqui defen-

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dendo esta doutrina n'esta tribuna, e clamando pela realização do equilibrio orçamental, sem o que não pode nunca haver administração financeira, que tranquillize o espirito publico, e que satisfaça ás justas exigencias da opinião do paiz, e aos principios de um bom Governo. (Apoiados).

Veja a Camara como eu estou tanto de acordo com o discurso falado do Sr. Beirão, quanto em divergencia com a sua resposta escrita sobre o Discurso da Corôa.

Sobre as reformas constitucionaes tambem o Digno Par expoz principios que são os do programma politico do meu partido e com os quaes estou de acordo, e a esse respeito bem clara é a minha moção de ordem, que eu completo ainda com os projectos de lei que hei de mandar para a mesa acêrca das eleições, do poder executivo e do poder legistativo, e mais de espaço volverei a este ponto.

Em todo o caso, n'este ponto ainda, o Digno Par relator dissentiu das ideias do Governo, o que convem salientar.

Referiu-se depois o Digno Par á concentração liberal, e contou á Camara o modo como ella se realizára, e qual fôra a interferencia de S. Exa. n'esse movimento politico, estranhando que o Sr. Hintze Ribeiro censurasse essa alliança, não em nome de principios, mas invocando velhos e mutuos aggravos, e lembrou então que o Divino Nazareno dissera aos que accusavam a peccadora: "atire a primeira pedra aquelle de vós que estiver innocente".

Noto ao Digno Par e meu illustre amigo que a sua defesa não procede, porque se o Divino Redemptor podia perdoar, e perdoou, nem par isso deixou de ser censuravel o peccado, em si, e o Digno Par, embora espere o perdão e chame aos outros peccadores tambem, confessa, assim mesmo, o peccado proprio.

Respondendo ainda ao Sr. Hintze Ribeiro disse o Sr. Beirão: - o Governo cae, mas a situação fica. E noto ainda que, no decorrer das suas considerações, S. Exa. aventou a hypothese de ser um dia chefe de uma situação politica.

Conjugando-se as duas phrases, ha, talvez, que prescrutar n'estas reflexões do Digno Par; mas eu deixo essa tarefa para os decifradores de charadas e cousas nebulosas, e não me detenho mais n'esta parte do meu discurso, que, tão somente, pretendeu ser o commentario á proficiente oração do illustre relator, dando o relevo devido ás innovações e ás divergencias de S. Exa., tanto sobre o que escreveu no projecto em relação aos actos e aos planos do Governo.

Vou agora occupar-me da minha resposta ao Discurso da Corôa, isto é, do desenvolvimento da minha moção de ordem, na qual está expresso o que, em meu entender, deve ser dito ao augusto Chefe do Estado pela Camara dos Dignos Pares do Reino, em substituição do projecto que está na ordem do dia.

A minha moção refere-se ao passado do Governo, cuja critica cabe fazer n'este debate, e ao seu programma futuro, sobre o qual, de um modo generico, tem igual cabimento uma apreciação ligeira e referida á orientação geral que preside á situação governativa.

Escusava bem de o dizer de novo, Sr. Presidente, mas não será nunca de mais repeti-lo, que, nos meus commentarios e apreciações, me guiarei sempre por um criterio de imparcialidade, sem resaibos de partidarismos ou personalismos, sendo fiança do meu proceder o programma do meu partido, onde se contém os principios superiores de Governo, á luz dos quaes verei e criticarei os actos publicos da situação governativa, apoiando o bem, e combatendo o mal.

Quanto ao passado, naturalmente se divide nos seguintes onze capitulos, a materia de que me vou occupar, a saber:

l.° Solução da crise ministerial aberta pela demissão do Gabinete do Sr. Hintze Ribeiro, e formação do actual Ministerio;

2.° Dissolução das Côrtes;

3.° Syndicancia aos acontecimentos de 4 de maio, na estação do caminho de ferro do Rocio;

4.° Decreto sobre os vencimentos dos empregados publicos;

5.° Decreto sobre a collocação, nos seus respectivos logares, dos funccionarios do Estado;

6.° As eleições feitas pelo Ministerio actual;

7.° O regimen de liberdade do actual Governo;

8.° O seu regimen de tolerancia;

9.° O seu criterio da opinião;

10.° O seu processo de defeza da ordem social;

11.° A questão dos adeantamentos.

Acêrca dos futuros projectos do Governo, poderia eu discutir, embora ligeiramente, como disse já, e apenas sob um ponto de vista geral, as seguintes questões, a saber:

1.ª Do Douro;

2.ª Dos tratados de commercio;

3.ª Da liberdade de imprensa;

4.ª Da responsabilidade ministerial;

5.ª Da contabilidade publica;

6.ª Da reforma eleitoral;

7.ª Das reformas constitucionaes;

8.ª Da instrucção publica;

9.ª Do poder judicial;

10.ª Da defeza nacional;

11.ª Da administração ultramarina;

12.ª Da situação economica;

13.ª Do porto de Lisboa e estradas;

14.ª Das reivindicações operarias;

15.ª Da melhoria do funccionalismo;

16.ª Das finanças do Thesouro.

Seguiria, d'este modo, pari passu, os projectos do Governo; mas não se alarme a Camara, em presença de um tão longo plano de trabalho, que seria realizavel somente á custa da sua attenção, durante largas sessões.

Reservo-me para dizer de minha justiça, quanto ao futuro da acção governativa, quando vierem aos debates parlamentares as propostas do Governo, e, por agora, limitar-me-hei aos onze capitulos, referentes ao passado ministerial, que ficam enunciados, e de que já vou occupar-me, bastando, quanto ao futuro, as indicações que vão já expressas na minha moção de ordem

E assente, d'este modo, o meu plano de trabalhos, entro já no capitulo I, - a crise ministerial, de que proveio o actual Ministerio.

Este assumpto pode encarar-se sob tres aspectos distinctos: constitucional, politico e moral. Já me referi ao caso, e, como fiz agora, na minha moção de ordem, tambem em junho citei as disposições da Carta Constitucional, que foram offendidas, com a formação do actual, gabinete, quando apreciei a solução da crise, na occasião do Ministerio se apresentar ás Côrtes.

O argumento resulta dos preceitos, claros e terminantes, dos artigos 10.°, 15.° § 7.°, 71.°, 72.° e 74.° § 5.°, da nossa lei fundamental. Na verdade, a Carta manda observar o principio do equilibrio entre os poderes do Estado, e confere ao Rei o encargo de velar, incessantemente, para que elle seja mantido; - artigos 10.° e 71.° Esse equilibrio não só se não observou, mas foi abertamente violado, sacrificou-se mais uma vez o poder legislativo, ao poder executivo, pela dissolução das Côrtes, visto a constituição do Ministerio se não fazer de harmonia com os resultados parlamentares, derivados das eleições, que acabavam de realizar-se.

E, como ás Côrtes cabe a missão de velar na guarda da Constituição, - artigo 15.°, § 7.° - no cumprimento do meu dever, eu, membro das Côrtes, notei, e accentuei, o facto.

A responsabilidade do facto arguido é do Governo, por virtude dos artigos 72.° e 105.° da Carta, mas mais ainda na hypothese, em que elle acceitou a missão de governar, e, portanto, con-

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sequentemente, todas as responsabilidades, que lhe são inherentes.

Chamei, então, como hoje chamo ainda, o Governo á responsabilidade d'esta violação da lei fundamental do reino.

O Sr. Presidente do Conselho, quando em junho me respondeu, acceitou, como lhe cumpria, integra, esta responsabilidade, e defendeu-se, dizendo-me que não acceitára o encargo da formação do gabinete actual, senão depois que se convencera da impossibilidade de formar-se outra situação, compativel com os resultados das eleições, que acabavam então de se realizar, tendo para este effeito empregado as suas maiores e mais solicitas diligencias.

Mas não disse á Camara quaes foram essas diligencias, e cabe-nos, por isso, o direito de lhe perguntar, quaes foram ellas, e porque foi que não tiveram resultado.

O caso é grave demais, para que se não apure bem, e se deixe sem averiguação uma tão viva e flagrante offensa ás prerogativas das Côrtes, e ás disposições da Carta Constitucional. É mister que os representantes da nação saibam, como é do seu direito, os motivos por que, uma vez mais ainda, foram as Côrtes dissolvidas, forçando-se essa dissolução, pela formação do actual Governo.

Não pode admittir-se que uma tal violencia, como é a dissolução das Côrtes, se pratique de animo leve, sem fortes razões de interesse publico, e por simples motivos de partidarismo estreito, ou de favoritismo pessoal. Cumpre saber tudo quanto a tal respeito se passou, sobretudo depois das declarações feitas pelo Sr. Presidente do Conselho a tal respeito. Não estamos n'um regimen de arbitrio, e de vontade despotica.

É preciso dar satisfação á lei e ao paiz.

A livre nomeação e a livre demissão dos ministros, - prerogativa da Corôa, - não pode entender-se como synonyma de arbitrio ou de capricho. O Rei tem de governar com a lei, e a lei é a que fica citada, e pela sua execução respondem os Ministros responsaveis.

Vejo agora que os chefes politicos dos dois partidos chamados de rotação, os Srs. Hintze Ribeiro e José Luciano, vieram fazer ao Governo declarações de apoio, e de coadjuvação politica, acudindo, na gravidade da conjunctura, para a defeza da ordem, e dos principios conservadores. Applaudo. Esse é um dos fins da minha moção, e, de ha muito, que eu venho fazendo essa propaganda.

Mas ha um só campo, em que a concentração conservadora se pode fazer, com vantagem, - é o campo legal. E é preciso que a concentração seja geral,
e se não tratem de resto, como elementos sem valor, os homens e grupos politicos que estão fóra do rotativismo.

Melhor fôra que a concentração se fizesse mais cedo, antes do mal se ter aggravado tanto. Porque se não fez, e porque se andou numa lucta feroz de demolição?

Ainda até hoje não foi solicitado, por parte do Governo, o auxilio do partido que tenho a honra de representar, e que não é para desprezar, com orgulhos mal cabidos, n'uma hora afflicta, em que todas as forças se devem utilizar. O Nacionalismo não tem aguerridas cohortes eleitoraes, com experimentados galopins a dirigil-as. Mas tem uma força eleitoral valiosa, embora mal organizada, ainda; tem uma imprensa numerosa e acreditada, á frente da qual a Palavra, o jornal de maior assignatura no norte do paiz; e tem, sobretudo, a nobreza e elevação dos seus ideaes patrioticos, condensados n'um programma de doutrina que não tem outro que se lhe avantage, e tem o seu desinteresse, a sua abnegação, o seu espirito de sacrificio, o seu amor patrio, a impol-o á consideração e ao respeito publicos.

Pois o partido nacionalista está no seu posto, sem condições, somente em obediencia aos seus principios, e o Governo terá d'elle apoio, decidido e leal, na defeza da ordem, e dos superiores interesses da nação. Não o declaro para ser agradavel ao Governo, nem a ninguem. Declaro-o, em obediencia ao proprio programma e á propria doutrina nacionalista.

Mas a lei tem de ser respeitada, e só no campo da legalidade eu posso estar com os meus amigos.

E porque a lei é o meu guia, insisto nas explicações pedidas ao Governo sobre a solução da crise politica, a que elle deve a sua existencia.

Este é o aspecto constitucional d'este primeiro capitulo do meu discurso. Vejamos agora o aspecto politico.

Como se explica que, não tendo sido chamado ao poder o Sr. Franco, quando caiu o Sr. José Luciano, estando as Côrtes dissolvidas, e podendo então, sem violencias constitucionaes, formar-se um Ministerio qualquer, - cincoenta e oito dias depois, a seguir a umas eleições geraes que, apenas, acabavam de effectuar-se, e com cujos resultados parlamentares era manifestamente incompativel uma situação franquista, fosse chamado o mesmo Sr. João Franco a formar Ministerio?

Porque?

Que factos se passaram n'esses cincoenta e oito dias de Governo do Sr. Hintze Ribeiro, que dessem ao Sr. João Franco uma força, que cincoenta e oito dias antes não tinha, e constituisse uma indicação constitucional para o Chefe do Estado?

Só dois factos publicos se deram, a saber:

- a colligação liberal;

- a agitação republicana.

alo só dos factos publicos: não quero occupar-me do que por ahi tem corrido de versões extraordinarias sobre estranhas influencias, a actuarem, para fins mesquinhos de vaidade e de ambição pessoal, na solução dos mais graves negocios do Estado.

Vou, pois, ver os dois factos publicos. A colligação liberal é o primeiro, e esse parece ser, na verdade, a causa do actual Governo.

Mas se foi então o Sr. José Luciano quem levou o Sr. João Franco ao poder, pela sua mão, o Sr. João Franco é uma nova encarnação do Sr. José Luciano, que renasce das suas proprias cinzas, a que o reduzira a violenta e tenaz campanha das opposições, com o Sr. João Franco á frente, como o mais violento e mais tenaz. Assim, o Sr. João Franco que tomara, cincoenta e oito dias antes, o mais importante papel na destruição do Sr. José Luciano, é, cincoenta e oito dias depois, levado ao poder pela mão do mesmo Sr. José Luciano.

E este Sr. José Luciano, que hontem ainda era o mais nefasto homem publico, hoje é o mais benemerito cidadão, e o amparo mais valioso da situação!

O Sr. João Franco está, pois, servindo o Sr. José Luciano para ser Governo, e é uma nova modalidade do velho regimen rotativo, contra o qual tanto combateu.

S. Exa., chefe de um novo partido, com seu programma proprio, e promettendo nova vida e novos processos, submette-se, afinal, ao velho chefe rotativo, e entra na engrenagem do rotativismo pela mão do que mais acerbamente combatera, ainda cincoenta e oito dias antes apenas!...

Que tristeza tudo isto faz!...

Não me parece que o Sr. João Franco tivesse sido feliz em conseguir o seu almejado fim da conquista do poder, em taes condições de humilhação, que o reduzem desde logo a uma situação bem precaria. O Sr. José Luciano, sim; esse tirou a sua desforra.

Mas não quero confundir o lado moral com a feição politica do caso, bem que inteiramente unidos. O certo é que, não podendo ser a agitação republicana a causa, só o podia ter sido a colligação.

E digo que não podia ter sido a agitação republicana, porque essa agitação foi animada, foi sustentada, foi, talvez, promovida, em grande parte até, pelo franquismo. Todos nós vimos, nos jornaes e nos discursos franquistas, ap-plaudir-se o movimento republicano, e confundir-se o movimento revoluciona-

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rio com as reclamações do paiz, identificando-se os revolucionarios com a nação inteira, e dando-se assim toda a importancia e todo o relevo á agitação jacobina.

Será este o melhor e o mais curto caminho para a conquista do poder?

Mal vamos por tal caminho, se por tal caminho se enveredou. E eu quero suppor, na pureza dos principios, que tal procedimento, longe de o aproximar, devia de afastá-lo do poder.

Fica, pois, tão somente a causa da colligação liberal, isto é, fica o triumpho do Sr. José Luciano, vingando-se, cincoenta e oito dias depois, da sua queda e levando, pela sua mão, ao poder o seu mais acerrimo e cruel inimigo.

E agora que julguem todos dos effeitos publicos de um tal golpe politico. Que se ha de dizer das campanhas do Sr. João Franco contra o Sr. José Luciano?

E estamos já no lado moral da questão.

Sim: que se ha de dizer d'esta identificação dos Srs. José Luciano e João Franco, depois da crua guerra, ainda ha apenas cincoenta e oito dias, entre os dois homens publicos?

Estes dois homens estão agora unidos e ligados entre si: quer dizer que o Sr. João Franco assumiu as responsabilidades dos actos, que mais verberou no Governo do Sr. José Luciano, como nocivos ao paiz e attentorios dos seus mais caros interesses. Que falta de senso moral n'uma tal situação!

Que ha de dizer o paiz?

Quando se lhe falou verdade?

Quando o Sr. José Luciano era apontado como o mais nefasto dos politicos, ha cincoenta e oito dias, ou quando agora é apresentado como o mais prestimoso sustentaculo da situação?

O que se vê, e se conclue afinal, é que o poder moderador continua a não ver, no nosso meio politico, senão os dois chefes rotativos, e se chamou o Sr. João Franco, foi somente porque elle era o delegado do Sr. José Luciano.

Ao Sr. José Luciano succedeu o Sr. Hintze, e ao Sr. Hintze succedeu o Sr. José Luciano, na pessoa do Sr. João Franco. Sempre a mesma forma dualista do rotativismo classico, com uma leve variante somente.

E, a este artificio constitucional, se sacrificou inexoravelmente o funcciona-mento normal dos poderes do Estado, dissolvendo-se as Côrtes. Ao Sr. Hintze Ribeiro recusara-se um adiamento, para se ir formar uma situação, a quem se havia de conceder uma dissolução!

Que tristeza tudo isto faz, e produz, em quem tem o respeito pela lei!...

E estamos assim chegados ao segundo capitulo: a dissolução das Côrtes. Fez-se de animo leve, sem ao menos se salvaguardarem as apparencias, nem esperar-se que surgisse um conflicto constitucional. O mais futil pretexto serviu. Já se sabia de ante-mão. É facto que já não suscita duvidas: em as Côrtes se lembrando de serem um poder do Estado, sem estarem sob o ferreo jugo do executivo, cae logo sobre ellas o gladio da dissolução.

Pois que?

Pois as Côrtes podem lá ter outro criterio, que não seja o da estricta obediencia ás ordens que lhe impõe o executivo?

As Côrtes são para dar força e cobrir a acção do Governo, e nada mais.

As Côrtes nem podem sequer ter velleidades de incommodar as pessoas dos Ministros. Mal d'ellas se tal ousam.

O commodismo pessoal dos Ministros é uma suprema razão de Estado, para dissolver, seguidamente, quantas Côrtes o paiz eleja.

Bem do Estado - Salvação publica - são cousas, que valem bem menos do que um mau bocado passado em Côrtes, por qualquer chefe de situação. Pois quem governa?

Que importam os artigos 10.°, 15.° e § 7.°, 71.°, 72.° e 74.°, § 5.° da Carta Constitucional?

Que importa a letra expressa da lei, e o seu claro espirito, e a propria essencia do systema constitucional?

Que importa tudo isso?

Outro poder mais alto se alevanta.

E assim as Côrtes foram dissolvidas, ainda antes até de se constituirem. Sem mais cerimonias, sem mais formalismos.

Até o Conselho de Estado, formado todo de rotativos illustres, achou muito bem, e todos votaram pela dissolução.

É isto a lei, Sr. Presidente?

Não é, não. É o arbitrio a imperar, hoje como hontem, n'este alvorecer d'uma pseudo vida nova, como no supposto declinar da vida velha, que não declinou tal, e continua enfermando dos mesmos vicios, revestindo, apenas, aspectos diversos, e nada mais.

É doloroso ter de me expressar assim; mas se é o que eu sinto, e penso, em face d'esta violencia contra o poder legislativo, e da continuação d'este regimen de desprezo, a que, de longa data, tem estado sujeito?

Esta é a verdade das cousas. A verdade tenho eu que dizê-la, no cumprimento de um imperioso dever de consciencia, dôa quem doer. É o meu dever. Hei-de cumpri-lo, integro, e intemeratamente.

Esta campanha pelas Côrtes, pela autonomia do poder legislativo, não é de hontem nem de hoje, vem já desde largos annos.

Cá estou no meu posto hoje, como sempre, com a Carta Constitucional na mão.

E passo já ao 3.° Capitulo, os acontecimentos de 4 de maio ultimo.

A este respeito, Sr. Presidente, confesso que me não lembro de factos, em que tanto se fizesse valer a convenção e o artificio, e com que tanto, e tão desalmadamente, se explorasse.

Certamente que não só não defendo, mas fortemente estigimatiso, e fulmino com a mais violenta censura, as fraudes da Azambuja e do Peral. Certamente que não receberam boa acolhida, na opinião publica, esses processos eleitoraes, que não teem defeza, nem attenuantes. Certamente que os republicanos tinham sobeja razão para se queixarem e lavrarem os seus protestos contra tal modo de combate.

Estamos de accordo n'este ponto, creio que todos, conservadores e jacobinos.

Mas se o Sr. Hintze tinha á sua conta o Peral, o Sr. José Luciano tinha a Azambuja. Não podiam, um ao outro, irrogar censuras.

Todavia é certo, infelizmente certo, que a agitação republicana só, de per si só, não lograria emocionar o publico, se não fosse fortemente auxiliada pela exploração dos odios, dos despeitos, e das ambições dos monarchicos. Esta é que é a verdade. Assim, todos se uniram n'uma viva campanha, em que se punham em risco as proprias instituições monarchicas. E os republicanos animados, enthusiasmados, caminharam, avançaram, e puzeram em acção todos os meios de combate, vivo e violento, e soccorreram-se de toda a especie de meios de propaganda. Os monarchicos apoiavam-nos, umas vezes ás claras, outras por meios indirectos, mas sempre do seu lado.

Houve então um desvairamento geral. Os republicanos eram a cidade de Lisboa, e a cidade era o paiz inteiro, e confundiu-se, enredou-se, embrulhou-se, propositadamente, e com uma tenacidade ininterrupta, a causa republicana com a causa do paiz. Cumpria distinguir, e saber ver bem, onde estava a acção do publico e a acção da especulação, ou republicana, ou monarchica. Não se distinguiu nada. Manteve-se a confusão. Acceitou-se a situação, tal como a hybrida alliança a apresentava, e começou a reinar o medo.

Mau conselheiro foi, e é sempre, o medo, sobretudo para os depositarios do poder publico.

Surgiu o conflicto de 4 de maio, na realidade das cousas sem importancia, nem valor; mas a que a exploração politica deu logo vulto e relevo extraordinario, reclamando a queda do Governo, como unica satisfação condigna para a justa indignação da cidade.

Os famigerados acontecimentos de 4

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de maio tornaram-se um pendão de guerra santa; e declarou-se toda a gente possuida da mais viva indignação. Foi ahi principalmente que os monarchicos, explorando o caso, para fins mesquinhos de estreito partidarismo, se esqueceram completamente dos seus deveres de lealdade, para com os seus principios politicos, e se puzeram ao lado da especulação republicana.

Mas o que eram tão famosos acontecimentos, esses de 4 de maio, que esgotavam os melhores normandos das mais conspicuas gazetas?

Eram afinal um simples caso vulgar de policia, para manutenção da ordem, em que teria havido, porventura, algum exagero de repressão, igual, ou mesmo bem inferior a muitissimos outros, que passaram sempre sem reparo, e completamente despercebidos.

Era um caso para inquirir, para syndicar, e saber se a policia praticara alguma violencia abusiva, ou se desmandara em exageros de repressão. Nada mais.

Pois este simples caso, em que aliás não houve nenhum ferimento grave, e apenas algumas contusões, resultantes do emprego da força, pela resistencia opposta ás ordens da autoridade, foi arvorado em questão magna da cidade, da cidade, note bem a Camara, e todos os dias, em todas as gazetas das opposições monarchicas, em concorrencia com as republicanas, se explorava o caso, desvirtuando-se, exagerando-se, mystificando-se tudo e todos.

Pois bem: d'esses famosos acontecimentos nada se sabe ainda hoje, apesar da sua extrema publicidade. Ordenou-se uma syndicancia; mas os seus resultados não appareceram nunca, nem apparecerão, porque seriam um formidavel desmentido a todas as invenções, de que se lançou mão, para desvirtuarem factos simples, vulgares o sem importancia. Ou, melhor direi, toda a gente sabe que esses factos foram apenas casos communs e simples, mas que deram logar a uma especulação e a uma intriga politica.

Mas, como o fim se obteve, que era a queda do Governo, nada mais se diz já sobre os temerosos crimes da policia, que só na imaginação das opposições de então existiam.

Todavia eu entendo do meu dever renovar esse debate, para lição do futuro, e requeiro por isso que me seja enviada copia do processo d'essa syndicancia. Vae para a mesa o meu requerimento n'esse sentido.

E nada mais direi sobre este capitulo do meu discurso, se bem que util e proveitosa lição d'elle pudesse deduzir-se.

Ficará para outra vez.

Vamos agora ao decreto sobre vencimentos illegaes dos funccionarios publicos.

Estou de accordo com o pensamento do Governo n'este assumpto, e folgo bem em o declarar. Na forma, porem, de que o revestiu, aqui n'este decreto, como no outro, relativo á collocação, nos seus respectivos logares, dos empregados que andavam d'elles desviados, e que é o objecto d'outro ponto ou capitulo da minha oração, é que eu divirjo.

E porque, Sr. Presidente, as considerações a fazer são identicas para um e para outro dos dois decretos, permitta-me V. Exa., para evitar repetições fastidiosas, que funda, n'um só, estes dois assumptos.

Na verdade, restringir os vencimentos nos termos da lei, cortando impie-dosamente por abusos injustificaveis e escandalosos, e ainda fazer cumprir a lei mandando recolher aos seus logares, ao exercicio das suas funcções, os que, por actos de mero favoritismo, d'ellas estavam ausentes, são indiscutivelmente normas de boa administração, factos de bom governo, que eu applaudo viva e calorosamente.

É a boa doutrina, sem duvida: é o cumprimento da lei, e eu sou um legalista apaixonado.

É a ordem e a moralidade na governação, e eu sou denodado campeão d'esses essenciaes requisitos de governo.

Mas, Sr. Presidente, a forma que se deu á execução d'esses principios é que foi espaventosa, cheia de reclamos, revestindo taes solemnidades e alargando-se em taes generalidades, que afinal deixou de ser o estricto cumprimento da lei, e passou a ser um abuso de poder, com a aggravante de originar revoltantes desigualdades e flagrantes injustiças.

Pois com que direito, com que autoridade, com que poder legal é que o Governo fixa regras para manter e para eliminar gratificações aos funccionarios do Estado?

Se essas gratificações são illegaes, o Governo não pode fazer selecções, e conservar umas e eliminar outras, á seu bel-prazer, estatuindo preceitos que são meros arbitrios, meros actos de força, sem apoio na lei.

Tão illegaes são as grandes como as pequenas gratificações, desde que são illegaes. O facto de serem dadas aos pequenos funccionarios não lhes imprime legalidade, e pode ser até que, sobre igual illegalidade, haja ainda o caso de uma injustiça relativa revoltante. Porque a questão da legalidade é sempre uma e sempre a mesma; e porque a questão da justiça não deriva de ser pequeno, ou alto funccionario, o agraciado, mas de corresponder, ou não, a gratificação a serviço util.

A mim me contaram um caso em que a injustiça flagrante, consequencia do decreto das gratificações, é posta em relevo de um bem frisante modo.

N'uma mesma repartição do Estado um amanuense, que para nada serve, que nada faz, nem é capaz de fazer, abonado de meios, e altamente protegido por grandes potencias politicas, tem uma gratificação de 20$000 réis por mez, que por mero favoritismo lhe foi arbitrada. Um primeiro official, pobre, carregado de familia, intelligente, trabalhador incansavel, que trabalha em casa, e que na repartição é sempre o primeiro a entrar e o ultimo a sair, e que é justamente tido pelos seus chefes burocraticos como o mais prestimoso de todo o pessoal da repartição, tinha uma gratificação mensal de réis 15$000.

Pois bem: pela doutrina do decreto, manteve-se a gratificação do amanuense e foi supprimida a do primeiro official!

Vê bem S. Exa., vê bem a Camara, como brada aos Ceus tal e tão revoltante desigualdade de tratamento, de que resultou uma enorme injustiça. Mas é a consequencia inevitavel da doutrina do decreto.

Não era assim que devia proceder o Governo.

Serenamente, sem reclamos, e sem ostentações, nem apparatos, cada Ministro, na sua respectiva secretaria, faria cumprir rigorosamente a lei, e cortaria direito por todos os abusos, por todos, absolutamente, sem excepção alguma.

Depois informar-se-hia do que era justo, quanto a gratificações, e pediria ás Côrtes as auctorizações precisas para as conceder.

O caminho da lei, sempre; nunca o caminho do arbitrio, nem o da desigualdade ou da injustiça.

Aqui tem V. Exa., Sr. Presidente, como, estando eu de acordo nos principios, discordo, e creio bem que com o melhor fundamento, no modo como se lhes deu applicação na pratica. E, por isso, applaudindo o pensamento do Governo, censuro a sua execução, que o prejudicou na sua essencia. Esta é que é a verdade.

Passo já ao capitulo das Eleições, que é o que se segue, na ordem dada ás minhas considerações.

Segundo as declarações do Sr. João Franco, no regimen eleitoral em vigor, só pode ser Deputado quem o Governo quizer. Ha, seguramente, exagero na phrase, mas ha n'ella um grande fundo de verdade. No regimen legal vigente, certo é que os Governos teem enormes superioridades na lucta eleitoral. O Sr. João Franco experimentou-o, quando luctava na opposição, e foi n'essa epoca que elle exprimiu a opinião que reproduzi. No Governo, porem, o Sr. Pre-

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sidente do Conselho não desdenhou usufruir todas as vantagens d'esta ignobil porcaria, como S. Exa. chamava á lei eleitoral, empregando afinal os mesmos processos de lucta, embora talvez um pouco mais attenuados. Se houve, porem, alguma differença, foi na quantidade e não na qualidade. Essencialmente as eleições foram como as anteriores, um pouco mais aqui, um pouco menos acolá; mas fundamentalmente a mesma cousa.

Uma outra declaração do Sr. Presidente do Conselho foi a de que todos os partidos, representando ideaes proprios e privativos, deviam ter representação parlamentar, proporcional ás suas forças eleitoraes, e que esta devia ser a orientação dos Governos, presidindo ao acto eleitoral.

Convem ainda recordar qua tambem o Sr. João Franco tinha a opinião de que os desdobramentos eleitoraes, para supprimir ás opposições as minorias dos circulos, eram verdadeiras fraudes eleitoraes, sophismando o espirito da lei.

Postos estes principios, Sr. Presidente, pergunto eu agora, como classificar as ultimas eleições, por este mesmo criterio do chefe do Governo. E tenho sobeja auctoridade para fazer a pergunta, porque represento aqui um partido que foi a principal victima do acto eleitoral, contra quem, não sei bem por que paradoxal espirito, o Governo parece ter-se principalmente enfurecido na sua perseguição.

O partido nacionalista é um partido essencialmente conservador e ordeiro. O seu programma é o mais completo, e o que melhor satisfaz ás justas exigencias das reclamações sensatas do paiz, a bem da ordem e do progresso social. Não é um grupo ambicioso ou odiento, com origens suspeitas ou propositos ruins.

Os seus processos são comedidos e moderados.

A sua acção é imparcial, elevada, distinctamente patriotica e tão cheia de abnegações, que se desinfluencia de paixões de caracter pessoal.

Não tem sido, não é, nem será nunca, uma acção sistematicamente opposicionista, como não pode ser governamental de carreira.

É um elemento de ponderação e de equilibrio, cuja existencia deve de ser justamente apreciada por todos os homens de governo. D'elle se pode bem dizer que se não existira, mister seria inventá-lo, taes são as conveniencias publicas, que derivam da sua acção patriotica e benemerita.

Não serei eu que faça alarde de grandes forças eleitoraes proprias; mas tambem não posso ouvir amesquinhar as que realmente possuimos, a que falta, sim, organização ainda, e sobretudo um corpo de galopins experimentados, capaz de se bater com os caciques emerito do rotativismo, mas que, seguramente, e em confronto proporcional, com os outros grupos politicos, nos dava bem direito a uma representação parlamentar mais numerosa. No districto de Braga, para não falar senão n'este caso, que é, por si só, bem frisante, no districto de Braga, ainda não deixou o meu partido de ter um Deputado, senão nas ultimas eleições. Ahi, teem-se sempre feito acordos eleitoraes, e reconhecido sempre que os nacionalistas, pela força eleitoral de que dispõem, teem direito a um Deputado. Assim o reconheceram, e reconhecem todos.

Todavia, d'esta vez, todos lá se combinaram, sim; mas para excluir o candidato nacionalista, e com a aggravante ainda de nos illudirem até á ultima hora, abusando da boa fé confiante dos nacionalistas de Braga, até ao ultimo momento.

Sei que o governador civil de Braga queria o acordo, e do Governo solicitou auctorização para elle, mas o Governo fez esperar os nacionalistas até á ultima hora, e, quando já não havia tempo para organizar a lucta eleitoral, mandou negar o acordo.

Assim se procedeu em Braga comnosco, os nacionalistas, escorraçando-nos da urna, como se foramos um elemento de desordem, hostil ás instituições, perturbador do Governo.

Ao mesmo passo, em Lisboa, o mesmo Governo, que em Braga se ligava, alliava e fundia com os regeneradores, para nos escorraçar do Parlamento, declarava que não queria allianças com os mesmos regeneradores, para não disputar as minorias dos republicanos. Em Braga, os regeneradores serviam para alliados, contra os nacionalistas. Em Lisboa, já não serviam, contra os republicanos, e era mister respeitar a força eleitoral republicana, e não lhe tirar as minorias.

Assim procedeu o Governo, com os nacionalistas em Braga, hostilizando-os, e com os republicanos em Lisboa, favorecendo-os. Porque esta differença de tratamento, tão flagrantemente desigual, e tão cruelmente injusta? Porque? O Sr. Presidente do Conselho que responda, e diga quaes os motivos da sua predilecção pelos republicanos, contra os nacionalistas.

Mas não param aqui os meus reparos, sobre o procedimento do Governo no acto eleitoral. Nem podem parar; porque eu tenho sido, e serei sempre, estrenuo defensor dos direitos e regalias parlamentares, convicto de que é ahi, precisamente ahi, que está o vicio fundamental de que enferma todo o nosso mecanismo governativo.

Sr. Presidente: o Sr. Presidente do Conselho não se contentou em apresentar candidatos retintamente governamentaes, isto é, candidatos a Deputados do Governo; mas foi elle proprio em pessoa, nos seus centros, aqui, e no Porto, galopinar politicamente, fazendo promessas de toda a ordem, e preparando a confecção, á custa do poder publico, de que estava investido, dos seus Deputados. Deputados seus, repito, Deputados do Governo. Deputados para apoiar a acção do Governo. Isto é, confeccionou o poder legislativo, de modo que elle fosse um bom serventuario do poder executivo.

Dois factos resaltam d'este procedimento: o primeiro é já este, que deixo apontado, a subalternização dos Deputados ao Governo, como elementos seus, ás suas ordens, ao seu dispor, á sua mercê. Assim, o poder legislativo continua a ser o que tem sido, uma simples chancella do executivo, unificado e centralizado com elle, obedecendo somente á vontade do chefe do Governo, e d'elle só dependente. O Sr. João Franco, chefe do poder executivo, por El-Rei, é, por si mesmo, chefe tambem do poder legislativo. Seus são os Deputados que fez eleger para, a seu modo, á sua feição, confeccionar o poder legislativo. Na mesma vontade absoluta do mesmo homem se unificou toda a acção governativa, quer no exercicio do executivo, quer no funccionamento do poder legislativo.

Nada ha de mais fundamentalmente opposto a um verdadeiro regimen de liberdade.

Aqui, n'esta parte, o Sr. João Franco, não só não innovou para melhor, mas aggravou, até, os velhos processos do rotativismo, que tanto estigmatizara, n'este pensamento centralizador e unificador, que conduz, immediata e directamente, á atrophia do systema constitucional e representativo.

Mas outro aspecto da questão, ainda, é este: não podem os regedores, os administradores, os governadores civis galopinar eleições, nem andar a pedir votos, e a lei fulmina penalidades severas contra os infractores. Entendeu-se sempre, de harmonia com os principios superiores, que regulam a materia, que a intervenção dos agentes da auctoridade viciava o suffragio. Pois bem, o chefe supremo d'essas auctoridades, aquelle de quem ellas são os delegados, pode andar, e andou, impunemente, em correrias eleitoraes, pelos seus centros politicos, fazendo o que a lei prohibia, sob penas severas, que se fizesse, a bem da garantia da liberdade da urna.

E passo adeante, ao capitulo immediato do meu discurso, isto é, ao regimen de liberdade, tão preconizado pelo Sr. Presidente do Conselho, com tão estranhas doutrinas e theorias, que eu, Sr. Presidente, me vejo obrigado a dis-

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seriar um pouco sobre este importante assumpto, dando á minha exposição uma forma talvez pretenciosamente didactica; mas forçadamente, por amor aos principios, que sinto bem ver tão desviados n'esta parte, da orientação governativa, e n'uma deploravel confusão.

Fala-se hoje tanto e tanto na liberdade, e invoca-se o liberalismo com tal ancia e sofreguidão, e ha tal empenho em vestir as roupagens roçagantes da velha rhetorica jacobina, que muito convem analysar, fria e serenamente, com toda a sinceridade, á luz calma dos principios, á ideia fundamental da liberdade.

A liberdade é a expansão, o exercicio da actividade do homem, sem obstaculos, sem limitações, sem restricções, ou a faculdade correlativa.

Este é o sentido mais simples, originario, primitivo, da ideia de liberdade.

Oppõem-se á liberdade, ao seu exercicio, obstaculos:

- de ordem moral;

- de ordem legal.

Não falo, aqui, dos de ordem physica ou material, e dos que são inherentes á propria natureza humana, limitada em si mesmo, quanto ao tempo, quanto ao espaço, e quanto á sua força intrinseca.

São, pois, as restricções de ordem moral e de ordem legal, que traçam o caminho da acção do homem, limitando a sua expansão, isto é, a sua liberdade.

Se considerarmos, por abstracção, um homem isolado, sem lei moral ou civil, esse homem terá, em absoluto, a liberdade, no seu sentido mais largo.

A lei moral, dentro d'elle, formando a sua consciencia moral, impondo-lhe deveres para comsigo proprio, para com os seus semelhantes, e para com Deus, é a mais forte restricção á liberdade. Porque essa lei suprema fala á intelligencia pela ideia, á sensibilidade pelo sentimento, e á vontade pelo imperio do dever.

A ideia do dever; o sentimento do dever; a força do dever; - eis o triplice aspecto da lei moral, na consciencia humana.

Não tem sancção externa. Não tem, á sua ordem, força material coercitiva. Mas ella actua mais forte e mais efficazmente do que a mais severa lei civil, sanccionada pelas penalidades mais dolorosas e crueis.

É, por isso, que no conflicto entre as duas leis, n'um caso de collisão, quando elle surge na vida, apparecem os martyres das ideias em todos os tempos, submettendo-se a todas as sancções civis, para não soffrerem a sancção moral, dentro d'elles mesmos, na voz austera da propria consciencia.

Assim se diz: moral livre á que confere area maior, á que menos limita a acção do homem.

Na vida social, collectiva, a liberdade tem a sua limitação nas leis, feitas para estabelecer a harmonia e o equilibrio, que dão, como resultante, a ordem, isto é a ausencia de conflictos e de collisões entre as actividades individuaes, componentes da collectividade, marcando o limite de acção, justa e legitima, de cada qual. A lei tem a sua sancção, necessaria, para ser efficaz.

A liberdade, pois, não pode só considerar-se, na vida social, em relação a um individuo, ou a um grupo. É preciso ter em consideração a collectividade toda, evitando o conflicto, regulando a harmonia, mantendo o equilibrio, o que tudo quer dizer - conservando a ordem. Como? De que modo? Cumprindo a lei, que é a expressão da vontade soberana do Estado, suprema reguladora da liberdade do homem, na vida social.

Pode haver, sim, leis, mais ou menos livres, quanto á liberdade individual; mas essas leis exprimirão, em todo o caso, o que a soberania do Estado julgou ser a ordem e o equilibrio social.

É natural o choque entre o interesse collectivo, geral, e o interesse individual. O bem estar geral oppõe-se á liberdade individual, limitando-a nas leis protectoras do interesse geral.

D'aqui os dois principios em lucta: - o individualismo, n'um regimen de liberdade absoluta, individual, que vae até ao anarchismo, ultimo termo natural da effectivação do principio individualista; - e o socialismo, que vae até á suppressão completa da liberdade individual, sacrificando o individuo inteiramente á collectividade.

Ha o systema medio, - o que está em realização, effectivado em todos os povos civilizados, ora pendendo, n'uns, para o individualismo, como na Inglaterra e na Suissa, ora pendendo, n'outros, para o socialismo, como na França e na Russia.

Porque, faz-se mister dizê-lo, pouco importa quem seja o depositario do poder do Estado, ou um Rei ou um Imperador, ou uma collectividade ou um Presidente de republica. Essa é outra questão bem differente.

Pode haver muito maior liberdade individual n'um imperio; e pode um imperio personalizar muito mais o principio socialista, - comparado com uma republica. Pode ser o inverso. A forma do Governo, ou monarchia ou republicana, não confere nem mais nem menos, por si somente, liberdade individual.

O problema, a pôr em equação, é a justa harmonia entre a liberdade individual e o bem estar collectivo.

Resolvê-lo,- eis a questão; eis a lucta; eis o labutar incessante do pensamento; e, em consequencia, a agitação permanente dos povos, chegando-se muitas vezes aos conflictos violentos, e ás convulsões sociaes formidaveis.

Não pode sacrificar-se a liberdade individual: não pode sacrificar-se o bem estar geral e collectivo.

Tem de harmonizar-se, achar se uma formula conciliatoria.

É claro que, n'um paiz de anjos, ou de homens absolutamente perfeitos, nada havia a fazer.

O anarchismo triumphava, com certeza.

Não seria mister cuidar do bem estar Collectivo, ou antes, não seria mister um orgão de poder publico com essa missão.

O poder publico seria a resultante, ou, melhor, a somma de todas as actividades individuaes. Não existiria.

Bastaria a consciencia dos deveres civicos de cada qual.

A lei moral seria tão intensa, tão forte, que dispensaria a lei civil. Seria a perfeição absoluta.

O conflicto não surgiria nunca, porque cada qual, por si proprio, o evitaria, respeitando, espontaneamente, em obediencia ao dever civico, á lei moral, o direito alheio.

Neste caso, o poder publico, sendo uma excrescencia inutil, inconcebivel, podia, n'um abuso, ser até perturbador da ordem.

Mas, do mesmo modo, n'um tal paiz de sonho, n'um tal grau de perfeição social e humana, qualquer formula serviria, e ahi poderia implantar-se, e florescer, o mais radical socialismo, visto que a liberdade individual nunca poderia ser violentada, pois que o poder publico a respeitaria sempre, integralmente, com a unica limitação do bem estar collectivo; e essa não era mister impô-la pela lei civil, porque cada individuo a tinha em si, na sua lei moral propria.

Assim se chega a mostrar como os extremos se tocam, e como o anarchismo e o socialismo, partindo ambos do mesmo principio, e marchando por caminhos diversos, chegam ao mesmo fim, no paiz dos sonhos, n'um povo de anjos, n'uma sociedade de homens absolutamente perfeitos

Não esqueçamos o que é essencial.

Mas a verdade é que, para uma tal hypothese, não vale a pena discutir formulas governativas.

Desçamos, pois, á realidade triste dos homens, como elles são, sempre foram, e sempre hão de ser, melhores ou peores, mas imperfeitos, limitados sempre, na sua propria natureza.

Qual a formula que melhor concilia a liberdade individual com o interesse collectivo?

É indispensavel haver uma expressão do interesse collectivo e um orgão, que o torne efficaz e effectivo.

É a lei essa expressão; é o poder publico esse orgão.

A lei expressão da vontade geral.

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O poder publico execução da acção collectiva.

Consequentemente: ninguem pode ser compellido a fazer, ou a não fazer, qualquer cousa senão em virtude da lei; o poder publico não pode fazer senão o que a lei lhe impõe, e não pode deixar de cumprir essa mesma lei.

Chegamos aos principios fundamentaes.

Mas quem é, em que consiste, onde reside, o poder publico?

Reside na soberania geral da nação.

É conferido, por delegação, a orgãos especiaes, ou unificadamente, a uma só entidade.

A forma unitaria da concentração dos poderes é a forma patriarchal, primitiva, autocratica.

A divisão dos poderes é a formula progressiva, producto da civilização, realização da lei geral reguladora da evolução, especializando orgãos correlativos a funcções differenciadas.

A concentração gera naturalmente o despotismo, o absolutismo, a autocracia, quer seja na forma de um imperador, de um rei, de um dictador, de um protector, de uma commissão, - pouco importa ao caso, - governa a vontade de um homem, ou de um corpo collectivo, que se substitue á vontade geral e collectiva. A lei é essa vontade.

A execução geral d'essa lei, d'essa vontade está dependente.

A sua applicação a casos especiaes ainda é funcção do mesmo orgão.

Por isso a conquista da divisão dos poderes se considera a mais solida garantia publica, adquirida na evolução politica effectuada.

Comprehende-se, justifica-se; não soffre a dignidade, nem o decoro com a limitação da liberdade individual, pela acção da lei geral, a bem do interesse commum.

É a ordem, necessaria á vida da collectividade, a harmonia, o equilibrio, entre a liberdade individual e o bem estar collectivo.

A lei garante, a um tempo, a liberdade e a ordem. Sem a ordem não pode haver a liberdade.

A ordem é a condição da liberdade, que não é apanagio de privilegiados, mas que deve ser igual para todos.

A lei pode ser, sim, mais larga, ou mais restricta. Pode permittir mais ou menos.

Pode ampliar, ou restringir, mais ou menos, a esphera de acção individual.

A tendencia é, sim, para alargar; mas essa é outra questão.

O ponto em que nos achamos é este: a manutenção da ordem, e consequentemente da liberdade, deriva do cumprimento da lei.

Sem execução da lei, sem respeito á lei, nem ha ordem nem ha liberdade.

Mas pode ser a lei má? pode; e ter effeitos perturbadores? pode.

Reforme-se a lei. Alargue-se a esphera d'acção da liberdade, se mais liberdade querem; mas cumpra-se a lei; respeite-se a lei. Peor do que a execução de uma lei má, é o arbitrio, em vez da lei. É o privilegio, o odioso privilegio, dependente da vontade do poder publico.

A relação entre a liberdade e a ordem é simples. A ordem é a condição, imposta pela lei, ou melhor, é a applicação da lei, para o exercicio da liberdade. A liberdade só pode gerar a ordem n'um regimen de anarchismo, no tal paiz do sonho, no tal mundo absolutamente perfeito, a que acima se faz referencia.

A ordem, sim, essa gera a liberdade.

Definissez les termes, - é a primeira necessidade para argumentar. Definir, sim, as palavras. Sem isso, ninguem se entende. Ha rhetorica, não ha logica.

A ordem e a liberdade derivam da lei; mas a execução da lei é do poder publico.

Um poder faz a lei.

Outro poder executa a lei, de um modo geral.

Um outro poder executa a lei, de um modo particular.

Ha ainda um quarto poder, representativo da ordem, nos proprios tres poderes anteriores, para que as suas respectivas acções se não choquem, se harmonizem, e se equilibrem.

ntre os proprios poderes do Estado a ordem se faz mister.

Temos, pois:

- O poder legislativo;

- O poder executivo;

- O poder judicial;

- O poder moderador.

A cada uma d'estas superiores funcções sociaes, seu orgão proprio, privativo, autonomo, independente, com liberdade, dentro da ordem, isto é, respeitando a acção legitima dos outros, mantendo-se na sua esphera legal, tão somente.

A divisão dos poderes não foi uma criação arbitraria, um producto de convenção, um artificio.

Não provém de uma simples doutrina theorica, de uma concepção a priori. Não. Operou-se naturalmente pela evolução, em obediencia a leis naturaes do progresso, sociaes e biologicas - a lei da Defesa social e a lei da Diferenciação.

Não quero abusar da paciencia da Camara, não devo fazê-lo, e, portanto, não me alargo em quantas reflexões sobre estas duas leis sociaes me occorrem ao espirito. Mas quero, em todo o caso, accentuar bem que são duas leis geraes, abrangendo até o mundo biologico.

Na vida social a sua realização é evidente. Basta observar a evolução seguida na sua marcha, através dos tempos, pelas sociedades, desde a sua forma primitiva até ao mais perfeito grau de civilização attingido. Não me detenho com exemplificações desnecessarias para a illustração da Camara; mas ainda accentuarei tambem que a lei da differenciação de orgãos, correspondendo á especialização de funcções, não é somente empyrica, mas reveste o caracter scientifico, porque se integra em factos racionaes.

Tem por isso um caracter geral, e não deve ser só applicada aos poderes do Estado, mas a toda a vida social. Traduz-se assim, num principio geral de descentralização, correspondente á effectivação pratica da doutrina scientifica.

No Nacionalismo, a descentralização é ideia geral dominante, de accordo com os principios expostos; e d'este modo foi abertamente proclamado nas claras affirmações das conclusões, do programma, que é a nossa lei suprema. E temos:

1.° A descentralização, quanto ás organizações partidarias (conclusões 14.ª e l5.ª);

2.° Quanto á vida social e politica (conclusão 16.ª);

3.° Quanto ao governo e administração (conclusão 17.ª);

4.° Quanto ás circumscripções administrativas (conclusão 25.ª);

5.° Quanto aos diversos ramos dos serviços publicos do Estado (conclusão 25.ª);

6.° Quanto ao Ultramar, no Governo e administração colonial (conclusão
3l.ª);

7.° Quanto ao Governo geral do Estado (conclusões 17.ª, 19.ª, 20.ª, 21.ª, 22.ª 23.ª, 24.ª, 25.ª, 26.ª e 27.ª).

Chamo a attenção de V. Exa. e da Camara para todo este completo campo de doutrina. Estas conclusões do meu programma hei de eu transcrevê-las na integra no meu discurso, para que bem fique registado nos nossos Annaes a logica, a coherencia, com que procedemos, n'esta coordenação de principios superiores de governo.

Vê-se bem que, pelo que toca ao governo do Estado, o principio da divisão, da autonomia, da harmonia e equilibrio, entre todos os poderes politicos, como base, unica e verdadeira, de um sincero regimen de liberdade, constituiu uma preoccupação, constante e dominadora.

D'aqui proveio a minha natural insistencia n'este ponto, primario e fundamental, quer na minha moção de ordem, onde se invocam as claras e terminantes disposições da Carta Constitucional, que traduzem estas grandes verdades, hoje tão esquecidas, quer no decorrer do meu discurso, com uma tenacidade, talvez fastidiosa pela repe

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tição; mas que corresponde á mais profunda e intima convicção. Esta é, a meu ver, Sr. Presidente, a verdadeira campanha de modificação nos nossos costumes politicos, a que todos os bons patriotas devem metter hombros, a bem de um systema de verdadeira liberdade, na governação do Estado. O que temos hoje, o que deriva, logica, naturalmente, da triste verdade irrecusavel dos factos, que todos estamos presenceando, n'uma sophismação aberta da doutrina legal da Carta Constitucional, é um regimen de absolutismo puro, n'uma concentração inexcedivel de poderes, e n'uma unificação de forças politicas e sociaes, como nunca se vira, nem nos mais remotos tempos do despotismo mais rasgado.

Ha sim, formulas hypocritas, declinatorias de responsabilidades, e que illudem já raros ingenuos, ou a pobre gente rude; mas essas convenções deprimentes, essas ficções repugnantes, esses artificios menos dignos e honestos, aggravam ainda consideravelmente o mal.

A verdade das cousas é que o unico verdadeiro poder do Estado é o poder Real, exercido pelo primeiro Ministro, que é chefe do executivo, chefe do legislativo, chefe do judicial, chefe de tudo e chefe de toda a gente, para todos os effeitos da governação do Estado.

Nunca, em tempo algum, o mais poderoso valido dos tempos do absolutismo, puro e leal, teve o extraordinario poder politico de que hoje dispõe o Presidente do Conselho em Portugal. Gravissima é a situação para as liberdades publicas, que não são direitos dos cidadãos, conferidos pelas leis; mas graças e mercês, concedidas pelo favor dos governantes.

E fala-se em liberdades, e invocam-se principios de liberdade, sob um tal regimen, todo elle feito de arbitrios e de inteiro dominio da vontade individual de um homem! Que ironia! Que sarcasmo!

Aqui, n'esta tribuna, de longa data, venho eu apontando estes graves erros, de consequencias gravissimas. Citarei, entre outros, o meu discurso de 13 de fevereiro de 1903, pag. 11 a 15, especialmente, que publiquei em folheto sob o titulo de Questões de Governo.

Contra um tal centralismo e unitarismo das forças politicas do paiz, e dos poderes do Estado, me insurgi sempre, com toda a minha energia, e com a minha maior vehemencia.

Porque? Para que?

Porque elle confundia, e unificava, os poderes do Estado; porque circunscrevia a vida dos partidos á vontade absoluta dos chefes; porque limitava a vida politica e social do paiz á capital, e, na capital, ao Terreiro do Paço; porque unificava a politica partidaria e pessoal com a administração publica, ficando esta subordinada áquella; porque atrophiava os municipios, e toda a vida local; porque prendia e tornava dependentes da acção dos Ministros todos os ramos da administração publica, porque apertava, n'uma gargalheira de ferro, toda a administração dos nossos dominios ultramarinos.

Para que tudo isto cessasse, para que todo este feroz centralismo, que não tem inveja ao do mais absoluto autocratismo, desapparecesse, e se vivesse n'um verdadeiro regimen de sincera liberdade, encetou o Nacionalismo a sua gloriosa campanha, em que tem vindo combatendo o bom combate, em favor dos bons principios.

Ora, Sr. Presidente, sob este ponto de vista organico da vida social e politica, que é basilar, fundamental, primario, cumpre bem dizer a verdade toda; e a verdade é que o actual Governo é, apenas, a imagem fiel dos seus predecessores, se não que ainda mais radical, no centralismo e no unitarismo com que domina toda a situação o Sr. Presidente do Conselho.

Elle é hoje a expressão mais genuina da força politica e social, concentrada, unificada, toda, integra, na vontade de um homem.

Portanto está absolutamente incompatibilizada a situação existente, sob taes principios, com um regimen de verdadeira liberdade.

O poder não pode ser a vontade de um homem. O poder só pode ser a lei em acção. Não pode ser tyranno; não pode ser generoso; tem de ser inflexivel e sereno como a lei, na calma de sua majestade augusta.

Não nos illudamos, pois, com palavras sonorosas. Estamos sob um regimen de absolutismo completo.

Anda ahi sempre a palavra liberal na boca de toda a gente, agora, como palavra da moda; e é para despertar um sorriso de desdem comiserativo ver o afan com que cada um se ha de apregoar mais liberal, e ha de revestir a apparencia de mais avançado nos principios do liberalismo. Palavras, palavras, palavras somente. No fundo, na essencia, na verdade das cousas, a liberdade não existe, e em seu logar, está somente o arbitrio.

Eis a triste realidade, que cumpre pôr bem a claro, desfazendo-se illusões, que podem acaso, ainda, seduzir ingenuos, ou, mystificar os simples.

Passo ao chamado regimen da tolerancia, tambem agora phrase da moda, e que, a cada passo, eu ouço ahi, nos discursos do Governo, como sendo outra gloria sua, outra orientação nova, que elle trouxe aos Conselhos da Corôa. É já um logar commum, banal, este do regimen de tolerancia, de que tanto se ufana e Governo.

Regimen de tolerancia!?

Mas o que é a tolerancia? Em que consiste esse regimen?

Tolerancia de que?

De factos criminosos?

De factos licitos?

Porque, em verdade, á face da lei, ou os factos são licitos, ou não. Se o são, em que consiste a tolerancia para elles?

Pois se a lei os considera licitos, a que vem, e de que serve, a tolerancia do Governo?

Se o não são, se a lei os prohibe, como pode permitti-los o Governo?

O que é, pois, a tolerancia? Em que consiste este famoso regimen da tolerancia, de que tanto se vangloria e envaidece o Governo?

Tolerancia de que?

Quer o Governo dizer que permitte e consente o que a propria lei faculta?

Mas é esse, pura e simplesmente, o seu mais rudimentar dever. Se a elle faltasse, incorreria n'um verdadeiro crime.

Quer referir-se a factos illicitos, que elle consente?

Mas falta ao seu dever, consentindo o que a lei prohibe.

Faz então gala de faltar ao cumprimento do seu dever?

É este então o regimen de liberdade, - o arbitrio do Governo, - tolerando o que elle quer e entende, a seu bel prazer, por seu arbitrio, á sua discrição, sem o menor respeito pela lei?

este o regimen preconizado como o mais excellente, e como a maior corôa de gloria do Ministerio?

Regimen de tolerancia!

Que aberração, Sr. Presidente, quando tal doutrina se proclama do alto do poder, como merecedora das benemerencias publicas, e complementar do pseudo regimen de liberdade, de que tanto se orgulha a situação!

Que falta de criterio, que desorientação, que desnorteamento, sobre as mais simples noções das cousas, e sobre os mais rudimentares principios do direito publico, acêrca das attribuições dos poderes do Estado?

Que monstruosa aberração!

Mas foi isso mesmo afinal, n'um arranque de verdade, que se quiz dizer, para bem exprimir a realidade das cousas.

Sim: só por tolerancia do Governo se faz o que a lei permitte, porque, se o Governo não quizer, a lei será letra morta: só por tolerancia do Governo se permitte que, á vontade, se viole a lei, porque, perante a vontade do Governo, não ha lei que possa impor-se.

Vive-se, sim, n'um regimen de mera tolerancia, porque se vive fora da lei; não ha direitos nem deveres, não ha garantias nem liberdades; ha tão somente, puramente, a vontade suprema e absoluta do poder executivo.

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SESSÃO N.° 31 DE 27 DE NOVEMBRO DE 1906 409

Vive-se, pois, n'esta deprimencia e n'esta afecção, vive-se por mero favor, por graça, por mercê generosa do Governo.

Vive-se por tolerancia.

Somos tolerados pelo Governo, omnipotente senhor d'este paiz.

Eis tudo.

Eis a tolerancia; eis a generosa concessão, que nos fazem.

Que tristeza, Sr. Presidente, que desalento que tudo isto causa!

A inconsciencia, com que se fala, e com que se ouve falar, n'este regimen famoso da tolerancia!

Que tristeza!

A lei, sim, Sr. Presidente, pode ser mais ou menos tolerante, mais ou menos larga, mais ou menos liberal, - vá a palavra da moda, tão ridicula, tão supinamente ridicula, quanto adulterada e infamada; - mas a acção do poder executivo, essa ha de ser a que a lei estabelece.

Nem pode prohibir o que a lei consente, nem pode consentir o que a lei prohibe.

Não pode tolerar cousa alguma.

Ninguem, que se preze, acceita tolerancias do Governo.

Tolerancia!

Extraordinario, tudo isto, toda esta subversão de principios.

A moção foi admittida e os requerimentos expedidos.

(Advertido pelo Sr. Presidente de que poucos minutos faltam para dar a hora de se encerrar a sessão, e estando dois Dignos Pares inscriptos, o orador pede que lhe seja permittido continuar na sessão seguinte).

O Sr. Presidente: - Vae ler-se um officio vindo da Camara dos Senhores Deputados.

Leu-se o officio, que acompanhava a proposição de lei relativa á reforma da contabilidade publica.

O Sr. Presidente: - Esta proposição de lei vae ser remettida á commissão de fazenda.

O Sr. Sebastião Baracho: - Fui hoje procurado n'esta casa por uma commissão composta de seminaristas de Beja, cuja situação é indefinida n'este momento, e assaz precaria.

Queixam-se elles de maus tratos, de lhes ser fornecida má alimentação; e ainda da immoralidade dos seus dirigentes, a começar pelo vice-reitor.

N'estas condições, e não sendo attendidos nas suas queixas, sairam em grande numero do seminario, no proposito de só lá regressarem depois de lhes ser feita justiça.

Após a sua saida, foi mandado encerrar o seminario.

Desejo saber se este acto foi praticado pelo metropolita, arcebispo de Evora, ou por quem; e se com, ou sem, autorização do Governo.

O assumpto, no meu entender, deve ser tratado no seu tom geral com prudencia e circumspecção, e tambem com a devida benevolencia para com os reclamantes, os quaes desejam que, no inquerito, a que tenha de se proceder, se apure a verdade das suas asseverações.

Aguardo a resposta do Sr. Ministro da Justiça, e usarei depois da palavra, se o julgar conveniente.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes): - Sr. Presidente: pedi a palavra para dizer ao Digno Par Sr. Baracho que na sexta feira recebi um telegrama dos seminaristas de Beja, em que me diziam que, por motivo de haver sido mal tratado um collega, quinze d'elles tinham abandonado o Seminario.

Telegraphei ao governador civil substituto, que estava em exercicio, e ao Vigario Pro-Capitular, pedindo-lhe informações, e ambos elles me disseram por telegramma, recebido no sabbado, que os seminaristas sairam por duas vezes do Seminario e se juntaram com outros estudantes.

Depois, por conselho do governador civil substituto, voltaram para o Seminario, mas á noite tornaram a sair. Então o governador civil julgou conveniente que se mandasse encerrar aquelle estabelecimento, a fim de, entretanto, se averiguarem as causas do conflicto.

Seguidamente recebi outro telegramma do Vigario Pro-Capitular, pedindo auctorização para encerrar o Seminario e assim melhor poder averiguar dos factos.

Mandei essa auctorização, visto que coincidia com a affirmação do governador civil substituto.

Como o governador civil effectivo estava em Lisboa, pedi-lhe que immediatamente regressasse ao seu districto e procedesse á devida investigação.

É isto o que se tem passado até hoje; nada mais sei.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Sebastião Baracho: - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Eu vou consultar a Camara sobre se permitte que V. Exa. use outra vez da palavra.

Os Dignos Pares que permittem que novamente use da palavra o Sr. Baracho tenham a bondade de levantar se.

Foi approvado.

O Sr. Sebastião Baracho: - Agradeço a V. Exa. e á Camara a sua benevolencia, consentindo que eu fale de novo, o que farei por poucos momentos.

Pela resposta do Sr. Ministro, fico informado de que o governador civil e o commissario geral se achavam de acordo em pedir o encerramento do seminario.

Como explicação necessaria, devo especificar que dos 61 alumnos que havia no seminario, 43 optaram pela saida até serem attendidos nas suas reivindicações, antes mesmo de ser determinado o encerramento official.

A este respeito, insisto em chamar a attenção do Sr. Ministro da Justiça, para que o inquerito a que haja de se proceder a todos abranja. De cima para baixo é que se faz justiça, que tal nome mereça.

A par d'isso, persisto na necessidade de haver muita benevolencia para quem em idade juvenil affirma, porventura apaixonadamente, aspirações que, no conceito de espiritos generosos, não podem inutilizar a carreira dos manifestantes. Pelo contrario.

Tudo o indica.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Teixeira de Sousa: - Sr. Presidente, foram distribuidos alguns pareceres da commissão de negocios externos sobre convenções de Portugal com paizes estrangeiros.

É costume estes pareceres serem acompanhados do Livro Branco, mas eu ainda o não recebi e creio que tambem o não receberam ainda outros Dignos Pares.

Por isso peço a V. Exa. a fineza de mandar distribuir o Livro Branco, se já o houver n'esta Camara.

O Sr. João Arroyo: - O relatorio que precede um d'esses projectos refere-se até ao Livro Branco, o que torna mais urgente a sua consulta.

O Orador: - Peço portanto a V. Exa. que não dê para ordem do dia os projectos de que se trata emquanto não sejam presentes os Livros Brancos, que conteem os documentos relativos ás negociações de que os mesmos projectos resultaram.

O Sr. Presidente: - Serão satisfeitos os desejos do Digno Par.

A primeira sessão é ámanhã. Ordem do dia a continuação da que vinha para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e meia da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 27 de novembro de 1906

Exmos. Srs.: Augusto José da Cunha; Sebastião Custodio de Sousa Telles; Marquez- Barão de Alvito; Mar-

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quezes: de Avila e de Bolama, de Pombal; Arcebispo-Bispo da Guarda; Condes: de Arnoso, do Bomfim, do Cartaxo, de Sabugosa, de Villar Secco; Viscondes: de Asseca, de Monte São, de Tinalhas; Moraes Carvalho, Pereira de Miranda, Antonio de Azevedo, Costa e Silva, Santos Viegas, Teixeira de Sousa, Telles de Vasconcellos, Campos Henriques, Arthur Hintze Ribeiro, Carlos Palmeirim, Carlos Maria Eugenio de Almeida, Eduardo José Coelho, Serpa Pimentel, Ernesto Hintze Ribeiro, Veiga Beirão, Coelho de Campos, Dias Costa, Francisco Machado, Francisco de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Almeida Garrett, Baptista de Andrade, Jacinto Candido, D. João de Alarcão, João Arrojo, Teixeira de Vasconcellos, Vasconcellos Gusmão, Mello e Sousa, Avellar Machado, José de Azevedo, José Dias Ferreira, José Lobo do Amaral, José Luiz Freire, José de Alpoim, José Maria dos Santos, José Vaz de Lacerda, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pimentel Pinto, Pessoa de Amorim, Poças Falcão, Affonso Espregueira, Pedro de Araujo, Sebastião Dantas Baracho, Deslandes Correia Caldeira e Wenceslau de Lima.

O Redactor,

ALBERTO PIMENTEL.

Rectificação

Na sessão n.° 22 de 13 de novembro de 1906, pag. 301, col. 3.ª, lin. 62, onde se lê: Mas voltemos á Constituição de 23 de setembro de 1823, deve ler-se: Mas voltemos á Constituição de 1822.

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