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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 32

EM 28 DE NOVEMBRO DE 1906

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Augusto José da Cunha

Secretarios - os Dignos Pares

José Vaz Correia Seabra de Lacerda
Pedro de Araujo

SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta. - Expediente. - O Digno Par Francisco José Machado envia para a mesa um regulamento da liga latino-slava, e um discurso ali proferido pelo mathematico Antonio Cabreira. - Manda tambem para a mesa varios requerimentos de officiaes do exercito pedindo augmento de vencimento. - Em seguida adduz algumas considerações tendentes a justificar um projecto, que apresentou em uma das sessões anteriores, e que se destina a regulamentar o jogo, allude á falsificação dos vinhos, e conclue mandando para a mesa um requerimento pedindo esclarecimentos ao Sr. Ministro do Reino. - O Digno Par João Arroyo, a quem é concedida a palavra, desiste de usar d'ella por não estar presente o chefe do Governo. - O Digno Par Mello e Sousa envia para a mesa o parecer da commissão de fazenda acêrca do projecto relativo á contabilidade publica. - O Digno Par Pedro de Araujo apresenta diversas reflexões acêrca da crise duriense.

Ordem do dia (continuação da discussão do projecto de resposta ao discurso da Corôa). - Conclue o seu discurso, começado na sessão anterior, o Digno Par Jacinto Candido. S. Exa., no final do seu discurso, manda para a mesa dois projectos, um que se destina a applicar multas aos eleitores que se recusarem a votar, e outro estabelecendo um subsidio aos Srs. Deputados e ajudas de custo aos membros das duas casas do Parlamento. - Foram enviados ás commissões respectivas. - Responde ao Digno Par o Sr. Ministro da Justiça. - Sobre o assumpto em ordem do dia fala o Digno Par Alpoim. - S. Exa. fica com a palavra reservada para a sessão seguinte. - O Digno Par Sr. Hintze Ribeiro allude a irregularidades no acto da posse da vereação da Covilhã, e no direito de fruição de uns terrenos em Monforte da Beira. - Responde a S. Exa. o Sr. Ministro das Obras Publicas. - O Digno Par José de Azevedo insta pelo comparecimento do Sr. Ministro da Marinha para tratar da questão das pescarias. - Encerra-se a sessão, e designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.

Pelas 2 horas e 35 minutos da tarde, verificando-se a presença de 21 Dignos Pares, o Sr. Presidente declara aberta a sessão.

Foi lida e seguidamente approvada a acta da sessão antecedente.

Mencionou se o seguinte expediente:

Officio do Ministerio da Marinha e Ultramar, remettendo 148 exemplares de cada uma das seguintes estatisticas:

Album graphico dos caminhos de ferro ultramarinos, 1903.

Estatistica do commercio e navegação da provinda de Moçambique nos annos de 1901,1902 e 1903.

Estatistica do commercio e navegação da India, Macau e Timor, de 1901, 1902 e 1903.

Officio do Digno Par Ernesto C. P. Pinto Basto, communicando á Camara que desempenhou a missão de que fôra encarregado: assistir á inauguração de um retrato do fallecido Digno Par Francisco de Castro Mattoso Côrte Real, nos Paços do Concelho da cidade de Aveiro.

Officio do Ministerio da Fazenda, satisfazendo os requerimentos do Digno Par Teixeira de Sousa.

Mensagem da Camara dos Senhores Deputados, remettendo a proposição de lei que tem por fim melhorar os vencimentos dos officiaes e praças de pret do exercito e da armada.

TELEGRAMMAS

Aveiro, 28. - Exmo. Presidente da Camara Dignos Pares. - Lisboa. - A Associação Commercial e Industrial de Aveiro vem muito respeitosamente pedir a V. Exa. o seu valioso auxilio para que seja votado em breve n'essa Camara projecto de lei para construcção do caminho de ferro Valle do Vouga. A vida e prosperidade de Aveiro estão tão intimamente ligadas á construcção d'aquelle caminho de ferro que bem merecerá d'esta terra e seu districto quem directa ou indirectamente concorrer para que se realize sem demora este importante melhoramento. = O Presidente, Domingos Leite.

Oliveira de Frades, 28. - IIImo. e Exmo. Sr. Presidente da Camara Dignos Pares do Reino. - Côrtes. - Lisboa. - A Camara Municipal de Oliveira de Frades faz por acclamação sinceros votos pela preciosa saude de V. Exa. e pede com o maior empenho a valiosissima cooperação de V. Exa. a fim de ser approvado na Camara dos Dignos Pares do Reino o projecto definitivo da linha de ferro do Valle do Vouga, o mais rapidamente possivel; assegura que V. Exa. praticará um acto de justiça fazendo tambem um beneficio immorredouro a toda a região de Lafões. = Presidente Camara, Manoel A. L. Ferreira.

Oliveira de Azemeis. - Em nome camara municipal rogo instantemente approvação caminho ferro Valle do Vouga, importantissimo para concelho Oliveira de Azemeis. = Vice-Presidente, Cunha Leitão.

Pecegueiro, 27. - Exmo. Sr. Presidente da Camara dos Dignos Pares do Reino. - Lisboa. - Camara Municipal Sever do Vouga em sessão extraordinaria de hoje deliberou pedir a V. Exa.

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discussão immediata subsequente approvação do projecto lei caminho de ferro Valle do Vouga, a fim dos povo da região que elle deve atravessar, e que tão desprotegida tem sido, gozem dos beneficios que elle lhe deve trazer. = Presidente da Camara, José Maria de Albuquerque Tavares Lobo.

O Sr. Francisco José Machado: - Sr. Presidente: o encarregado da secção portugueza da liga latino-slava pede-me que mande para a mesa d'esta camara o regulamento d'esta secção e ao mesmo tempo um discurso proferido pelo distincto mathematico Antonio Cabreira, que no estrangeiro tem sido muito apreciado pelos seus trabalhos; V. Exa., como especialista da materia, poderá avaliar se são justas as palavras que acabo de proferir.

Sr. Presidente: mando ainda para a mesa um requerimento dos officiaes do exercito ultramarino para que sejam tambem contemplados com o augmento dos vencimentos com que vão ser beneficiados os officiaes da metropole.

As petições a que me refiro comprehendem requerimentos dos seguintes officiaes:

Fernando Frederico da Costa Rebocho, capitão do quadro occidental das forças ultramarinas;

Damião Augusto da Ponte Pereira, coronel reformado da provincia de Angola;

Sebastião Casqueiro, major reformado dos quadros do ultramar;

João Ernesto Henrique e Castro, coronel reformado do quadro occidental das provincias ultramarinas;

José Antonio dos Santos, coronel reformado do quadro occidental.

Sr. Presidente: parece-me de toda a justiça que seja attendido o pedido d'estes officiaes.

Não são menos dignos que os officiaes da metropole, pelos serviços que prestam ao seu paiz, com muito mais risco de vida, e não é justo que tenham vencimentos differentes quando os seus serviços são mais relevantes. Por isso hei de advogar, com o calor das minhas convicções, o pedido d'estes officiaes.

Já que se trata de um bodo a todos, é justo que se estenda tambem a estes officiaes, para que se não diga que uns são filhos e outros enteados.

Peço a V. Exa. se digne mandar os requerimentos á commissão de guerra; e creio que, pela justiça que anima todos os membros da commissão, não regatearão o augmento pedido.

Na sessão de 20 d'este mez mandei para a mesa um projecto de lei com o fim de regulamentar o jogo de azar. N'aquella occasião não pude apresentar as razões que imperam no meu espirito para apresentar esse projecto de lei, porque não me chegou a palavra.

Mas não posso eximir-me a dizer á Camara quaes as razões que orientaram o meu modo de ver. Antes de mais nada devo dizer que nunca joguei, nem sou batoteiro.

Estou perfeitamente com a minha consciencia desafogada; e parece-me que não ha ninguem que possa julgar-me impulsionado por outros motivos que não sejam aquelles que vou dizer á Camara; ou que possa suppor-me influenciado por qualquer syndicato.

O que me leva a apresentar este projecto é o seguinte:

No consulado do Ministerio Hintze Ribeiro S. Exa. deu as ordens mais apertadas para evitar o jogo de azar; mas ou S. Exa. não foi sufficientemente energico em exigir o cumprimento d'essas ordens ou as suas auctoridades não lhe obedeceram.

O que posso afiançar a V. Exas. é que sempre se jogou da mesma maneira, e por toda a parte; e garanto a V. Exas. que, por mais rigorosas que sejam as ordens, não se deixará de jogar.

É um facto que está no espirito de todos.

Portanto, se não ha meio de evitar o jogo, que sempre se verifica com mais ou menos cautela, mais ou menos ás claras, o melhor é regulamentado, tirar d'elle algum proveito, alguma utilidade publica.

Foi isto que me levou a apresentar este projecto.

Conheço de ha longos annos este facto.

No periodo mais agudo das ordens apertadas do Digno Par Sr. Hintze Ribeiro, sabem-no todos, jogava-se.

O Sr. Hintze Ribeiro, não tendo talvez confiança na auctoridade local, mandou o commissario de policia de Coimbra á Figueira; assim que elle lá chegava parava o jogo, mas apenas o commissario entrava no comboio, de regresso a Coimbra, começava o jogo novamente.

Toda a gente que estava n'aquella praia sabia isto.

Ninguem ignora que os administradores de concelho são mal pagos; pois as casas de jogo entendem-se com estes funccionarios, dão-lhes algum dinheiro, e elles fingem que não sabem que se joga.

De um sei que recebeu uma vez em libras.

Sr. Presidente: se isto é assim, vamos a tirar algum resultado do jogo.

O trabalho é uma virtude e é tributado, paga contribuição de industria,
paga emfim todos os encargos inherentes a esta manifestação da actividade
nacional.

Porque não ha de ser tributado o jogo, que é um vicio, porque se não ha de tirar algum producto d'esse vicio?

Sr. Presidente: durante muitos annos, como V. Exa. sabe, fui Deputado; advoguei e servi sempre os interesses dos meus eleitores com calor e sinceridade, mas nunca subi as escadas de uma secretaria para pedir um favor a um Ministro de um partido contrario, porque não sou d'aquelles que, não estando em boas relações politicas com um Ministro, lhe vão, não obstante, solicitar num dia um favor, para depois virem ao outro dia invectivar no Parlamento os seus actos.

Diziam-me os Ministros que sempre que algum Deputado batesse á porta de alguma secretaria era para pedir augmento de despesa; faço agora uma excepção, Sr. Presidente, offerecendo ao Governo uma medida, não para augmento de despesa, mas para tirar uma receita.

Sr. Presidente: o projecto que mandei para a mesa está acautelado com todas as restricções.

Não é permittido o jogo em Coimbra e nas immediações, attendendo a que ahi predominam os estudantes que vivem das mesadas que lhes mandam as familias, mesadas que iriam comprometter nas casas de jogo.

Não podem jogar os exactores da Fazenda Nacional, os thesoureiros, os cobradores, os caixeiros, emfim toda a gente que lide com dinheiro que lhe não pertença.

Qualquer individuo que queira jogar tem que se munir de uma cedula passada pelo administrador do concelho.

O producto das avenças em cada concelho será dividido em duas partes, uma é para a camara municipal e a outra fica na Caixa Geral de Depositos até ulterior resolução.

Parece-me que a Camara deveria immediatamente acceitar este projecto com as modificações que julgar necessarias.

Todos sabem que as localidades onde existem thermas não prosperam se não tiverem o jogo.

Alem d'estas ha muitas outras terras do paiz que só alcançam desenvolvimento se houver a permissão do jogo. São factos que todos conhecem.

Os estrangeiros, e principalmente os hespanhoes, só acorrem onde o jogo é permittido e fogem se sabem que esse vicio é prohibido.

Se isto é assim, Sr. Presidente, adopte-se qualquer medida da qual resultem alguns recursos, que permittam accudir a necessidades de diversa natureza. No meu projecto estão acauteladas

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nitidamente todas as restricções, como já disse.

Alem d'isto offereço ao Governo uma receita certa e segura, que creio merecerá o applauso geral.

Esta receita contribuirá para diminuir o imposto do consumo e o real de agua, que concorrem poderosamente para tornar tão caras as subsistencias.

Se se tributa o pobre operario, o trabalho, qual é a razão por que se não ha de tributar o vicio?

Diz-se que o jogo arruina fortunas. Mas, Sr. Presidente, ninguem ignora que quem quer arruinar se, não precisa do jogo para o conseguir; ha muitas outras formas de delapidar patrimonios.

Os proprietarios das casas de jogo auferem lucros fabulosos, de que o Estado não aproveita um real. Não será pois justo que se tribute essa industria, tornando-a licita em determinadas condições, e que aquelles senhores repartam um pouco dos seus ganhos avultados?

Sr. Presidente: eram estas as considerações que eu desejava fazer na sessão em que apresentei o meu projecto, mas que só agora exponho á Camara, pelos motivos que já expliquei.

O que peço a V. Exa., Sr. Presidente, é que se digne instar com a commissão, a fim de que ella se apresse a dar o seu parecer sobre o meu projecto.

Já que estou no uso da palavra seja-me, permittido alludir a considerações apresentadas na sessão de hontem pelo Digno Par Sr. Teixeira de Sousa.

S. Exa. disse que era preciso e indispensavel acudir á crise do Douro, mas que tambem era preciso e indispensavel acudir á crise do sul.

S. Exa. apresentou um alvitre tendente a attenuar a crise do sul, e é não permittir que os vinhos sejam adubados senão com aguardente de vinho.

Isto é evidentemente muito bom, mas não basta.

(Apoiado do Digno Par Sr. Teixeira de Sousa).

É preciso que seja acompanhado de outras providencias. Ha muitos annos que eu venho pugnando pela necessidade de se reprimir a falsificação, por que ella é a ruina dos viticultores, envenena aquelles que bebem o vinho, e prejudica o Thesouro, porque este deixa de receber os direitos que são naturalmente impostos ao producto genuino.

A falsificação é patente, e para se ver como ella se exerce desassombradamente basta dizer que em Lisboa se vende vinho a 70 réis o litro.

Ora vou provar a V. Exa. com documentos que não se pode vender vinho por este preço sem o falsificar.

Tenho aqui duas remessas de vinho, onde se vê o seguinte:

(Leu).

Ora veja V. Exa. Aqui está uma prova flagrante de que o vinho se falsifica.

Tenho aqui outro exemplo:

(Leu).

Veja V. Exa. quem é que vae negociar para perder dinheiro.

Mas a falsificação de vinho não se faz só em Lisboa.

Este anno creio que lá fora não haverá falsificações, pois que sairia mais caro o vinho adulterado do que o puro.

Mas em Lisboa e n'algumas outras terras é evidente que o vinho é adulterado.

Por conseguinte é preciso reprimir por todas as formas as falsificações, que, alem de roubarem a nossa bolsa, prejudicam a nossa saude.

E isto que acontece com o vinho dá-se com quasi todos os generos alimenticios.

Sr. Presidente: estas providencias parece que attenuariam em parte a crise vinicola que o paiz atravessa e que é muito grave, pois que é muito numerosa a população do paiz que vive do vinho.

E como não quero alargar-me em mais considerações, pois que não desejo tirar a palavra aos outros oradores inscriptos, termino aqui o que tinha a dizer, agradecendo a V. Exa. e á Camara a benevolencia que me teem dispensado em me ouvir.

Mando para a mesa o seguinte requerimento:

É do teor seguinte:

"Para complemento do estudo que me proponho fazer da administração do Hospital Real das Caldas da Rainha, requeiro que, pelo Ministerio do Reino, me seja enviada copia dos orçamentos, tanto ordinarios como extraordinarios ou supplementares, se os houver, dos tres ultimos annos e especialmente dos annos da administração do Sr. Conselheiro José Filipe. = F. J. Machado".

(O Digno Par não reviu).

O Sr. João Arroyo: - Como, para as considerações que tenciono fazer, necessito da presença do Sr. Presidente do Conselho, peço a V. Exa. que me reserve a palavra para quando S. Exa. estiver presente.

O Sr. Mello e Sousa: - Pedi a palavra, Sr. Presidente, para mandar para a mesa o parecer da commissão de fazenda acêrca do projecto de lei relativo á contabilidade publica.

Foi a imprimir.

O Sr. Pedro de Araujo: - Sr. Presidente: pedi a palavra na sessão de
hontem quando o Digno Par Sr. Teixeira de Sousa, a proposito do comicio ultimamente realizado no Porto, se referia ás considerações por mim feitas na sessão em que foi votado o projecto de arrolamento de vinhos generosos.

Não quiz abusar da benevolencia do Sr. Presidente, pedindo a palavra para antes de se encerrar a sessão, visto S. Exa. ter em uma das ultimas sessões manifestado o desejo de só em casos urgentes se recorrer a esse expediente, e por isso só hoje posso usar da palavra.

Faço-o, porem, um tanto constrangido, pois que até certo ponto passou a opportunidade para as considerações que tenciono fazer e que teriam talvez melhor cabimento quando se discutisse o projecto relativo á regulamentação dos vinhos generosos.

De resto, Sr. Presidente, serei o mais conciso possivel nas minhas considerações.

Começarei por accentuar que a reminiscencia do Digno Par Sr. Teixeira de Sousa lhe não foi rigorosamente fiel, pois que o que eu disse, e constando respectivo Summario da Camara, foi que, tendo S. Exa. declarado que o commercio de vinhos ou se tinha pronunciado favoravelmente, ou, pelo menos, se não tinha manifestado contra as propostas ministeriaes relativas aos vinhos generosos, nenhuma, resposta mais cabal podia ser dada a semelhante asserção, pelo menos até áquelle momento, do que a moção votada na ultima assembleia geral da Associação Com-mercial do Porto, moção da qual resulta a representação que ha dias tive a honra de mandar para a mesa.

Pouco importa que n'aquella assembleia tivesse havido quem entendesse que o commercio de vinhos estava insufficientemente representado e quem sustentasse precisamente o contrario; o facto positivo era aquella moção e a representação que d'ella resultara.

Sr. Presidente: não se pode argumentar com a falta de tempo para os interessados estudarem aquellas propostas, pois que a verdade é que mediaram quinze dias entre a sua apresentação ao Parlamento e aquella assembleia geral.

De resto a questão não é nova.

Para não remontar a epocas mais remotas, esta questão acha-se, a bem dizer, em aberto desde que em fevereiro d'este anno reuniu em Lisboa a commissão encarregada pelo Governo de apreciar as reclamações do Douro, á frente das quaes estava a do exclusivo da barra do Douro para os vinhos licorosos d'essa região.

Na mesma ou em outra sessão eu disse tambem, Sr. Presidente, que seguramente o Porto estaria ao lado do

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Douro sempre que se tratasse de providencias realmente efficazes, pois de sobra conhecia a justiça das suas reclamações; mas não poderia prestar a sua adhesão a medidas iniquas e contraproducentes, como seria a da restricção da barra do Douro, que iria affectar valiosos interesses do Porto e Gaia, sem o menor proveito para o Douro, pois que a exportação se dividiria, saindo pelo Porto o vinho do Douro e por Lisboa o vinho do centro e sul do paiz, correndo-se ainda o risco de fazer derivar para o estrangeiro uma parte da nossa actual exportação de vinhos licorosos.

Isto disse eu, e até então tinha todos os motivos para suppor que fosse este o modo de ver da grande maioria ou da totalidade da população portuense. A situação, porem, mudou por completo após o comicio de domingo. Nada seria mais facil do que reduzir esse comicio, na parte relativa ao Porto, ás suas devidas proporções.

Entendo, porem, Sr. Presidente, não dever fazê-lo, se bem que não posso deixar sem reparo a affirmativa do Sr. Teixeira de Sousa de que só do Douro tinham vindo 6:000 pessoas, como podia demonstrar-se pelos bilhetes vendidos nas differentes estações de caminho de ferro.

Sendo assim, e tendo o jornal portuense que mais desenvolvido extracto deu do comicio, computado a assistencia precisamente n'aquella cifra, é já de boa vontade concluir-se que do Porto não assistira pessoa alguma, o que não seria exacto. A verdade é que o comicio teve importancia real, não só pelo que lá se passou, mas pelo facto de o Porto o ter consentido, o que, pelo principio de que quem cala consente, podia tomar-se como adhesão ao que ali ia resolver-se e que era de antemão conhecido pelas noticias da imprensa periodica.

Em taes circumstancias não serei eu, Sr. Presidente, que durante tantos annos, por virtude do cargo que exercia no Porto, tive de defender o melhor que soube os interesses d'aquella cidade e do seu commercio, me aproveitarei do logar que tenho a honra de occupar nesta Camara para criticar ou censurar as resoluções tomadas no comicio de domingo

Assim, desde já declaro á Camara que, salvo caso imprevisto, não tornarei a importuná-la com quaesquer considerações sobre a chamada questão duriense.

Julgo, porem, cumprir um dever de lealdade lendo á Camara varios documentos sem que os commente, em vista da attitude que resolvi assumir, a fim de que, quando a questão for apreciada no Parlamento, o que espero succeda em breve, todos os meus collegas possam ter pleno conhecimento d'elles.

Lerei em primeiro logar a ordem de serviço, expedida em janeiro d'este anno ás alfandegas inglezas, a proposito das entradas de vinhos chamados "Porto" ou "Sherry" (Xerez).

"Determina-se que ao codigo de importação seja additado no fim do § 341.°:

"Não deve ser permittido o despacho de vinhos com o nome de "Porto", provenientes de paizes differentes de Portugal e que venham desacompanhados de certificado que prove ser o vinho procedente d'este paiz, excepto quando aquella palavra "Porto" for seguida de outras que indiquem som equivoco o paiz em que o vinho for produzido, por exemplo "Porto hespanhol", "Porto francez", "Porto allemão". As expressões "Tarragona Port", "Catalonia Port", "Roussillon Port" ou "Hamburgo Port" terão de ser acompanhadas das palavras "Producto de Hespanha", "Producto de França", "Producto de Allemanha", conforme os casos".

(O Digno Par ficou com a palavra reservada).

(O Digno Par não reviu).

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do projecto de resposta ao Discurso da Corôa

O Sr. Jacinto Candido: - Sr. Presidente: nem um capricho, nem uma vaidade, me levaram a guardar a palavra, e proseguir no meu discurso. Foi a obediencia ao dever, como eu o comprehendo, na minha qualidade de representante da nação, n'esta hora grave da vida publica portugueza. Devo esta explicação a V. Exa. e á Camara, que tão benevolentes teem sido.

E passo adeante, a outro regimen, que é, tambem, outra perversão de principios, e que, tambem, ahi anda, a cada passo, na boca de toda a gente, e em particular do Governo, como um elixir maravilhoso de salvação, como criterio luminoso e como pharol brilhante, para nortear a marcha governativa.

Refiro-me ao chamado regimen da opinião publica.

O Governo diz que ha de governar com a opinião publica, e que este é o seu criterio, e a elle ha de obedecer, para execução dos seus principios, liberaes e democraticos.

Pobres principios liberaes e democraticos!...

Vejamos o que é, e em que consiste, este regimen, não menos famoso do que os dois anteriores, que venho de analysar.

Governar com a opinião publica...

Mas o que é a opinião publica? Qual é a opinião publica? Esse famoso criterio?

Esta é a primeira difficuldade.

Uma cousa é a opinião que se publica, na phrase bem expressiva de um arguto parlamentar já fallecido, outra é, e muitas vezes bem diversa até, a opinião publica, isto é, o pensar geral, o ponto de vista mais commum.

Como bem distinguir as duas, tanto mais quanto justamente a que mais se vê, a que mais apparece e mais se faz ouvir, é precisamente a opinião que se publica. Quantas vezes, na preoccupação, com a obsessão de satisfazer as reclamações da famosa opinião, se não irá atrás de uma ficção ad hoc publicada, e que, em cousa alguma, exprime o pensar e o sentir geral do paiz?! Quantas vezes!...

Governar com a opinião publica é governar com a maioria dos cidadãos, é governar com a maioria, (se não que com a totalidade do paiz. É uma convenção, ainda, esta phrase, sem valor, ou, muitas vezes, com o valor de um paradoxo, porque a maioria do paiz quasi não intervem n'essas chamadas manifestações de opinião.

Esta é que é a verdade.

Da verdade é que se anda afastado, n'essas artificiosas theorias, que servem sempre a todos, e para tudo, porque nada ha de mais facil do que suscitar, e manter, por algum tempo, um tal estado, na imprensa, nos comicios, e em outras formas de agitação, que leve ao presupposto de que ha tal ou tal corrente de opinião publica.

Sobretudo no regimen de centralismo, em que se porfia em viver, com grave damno para as conveniencias geraes do paiz, e até mesmo para a apreciação exacta da questão politica em si; n'esta viciada forma de considerar que o paiz é a capital, e que é na capital que vive a força intellectual da nação; tudo se perverte, e tudo se corrompe, para o estudo dos problemas de governo, e quando se affirma que a opinião publica reclama e impõe tal medida, ou tal providencia, cae-se em erros grosseiros de tomar por opinião publica, isto é, por opinião geral do maior numero ou de todos, o que é apenas a opinião de uma minoria infima, infima em quantidade, e infima, muitas vezes, em qualidade, até.

Mas, suppondo mesmo a certeza de obter-se um seguro criterio de discernir bem a opinião publica, verdadeira, legitima, authentica, pura e genuina, perguntarei eu, Sr. Presidente, se esse deverá ser o criterio superior do verdadeiro homem de Estado, digno d'esse nome, e d'essa alta categoria social?

Quantas vezes a opinião publica, louca e desvairada, não proclama gra-

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vissimos erros, e não lucta e esbraveja por atrocissimas iniquidades?

Quantas vezes a cegueira da multidão ignara, ou a paixão incendida dos odios, das vinganças, e de toda casta de ruins sentimentos, não faz explosão violenta, e não reclama verdadeiras barbaridades e selvajarias?

Então o homem de Estado, o depositario do poder publico, ha de ser docil instrumento e submisso servo da opinião das multidões, seja ella qual for?

É assim que se entende a alta funcção do Governo?

É este o criterio para orientar a acção dos poderes do Estado?

De modo algum eu posso assentir a uma tal doutrina, Sr. Presidente; não.

O homem de Estado affirma-se, sim, dirigindo e domando com energia calma, mas firme, as erradas correntes de opinião, orientado por um alto criterio de justiça.

Não é cedendo, não é recuando, não é transigindo, não é servindo as ruins paixões populares.

Não.

É, bem ao contrario, reagindo, resistindo, e vencendo, ou perecendo, na lucta em favor dos principios, que elle dá ajusta medida do seu valor.

Governar com a opinião publica, sim; mas quando a opinião publica for justa nas suas reclamações. Portanto o criterio é o da justiça e não o da opinião.

Estes é que são os principios de bom Governo, que cumpre ter presentes; e não o erro, que vejo ahi, de animo leve, proclamado como axioma da boa lei, e contra o qual cumpre restabelecer a verdade, e a doutrina da boa orthodoxia politica. Ha uma tal ancia de lisonjear as multidões, pensa se - tão funestamente e tão erradamente - em que só do favor das multidões se pode viver, que tudo se sacrifica a esse palacianismo da praça publica, paradoxal conducta dos pseudo democratas, que sacrificam os mais puros principios aos mais desgraçados e tristes expedientes.

Protesto eu, Sr. Presidente, pela pureza dos principios, e sinto-me forte bastante, na austeridade da minha consciencia, para dizer, alto e bom som, a verdade toda, tal qual a vejo através da minha intelligencia, livre de sugges-tões apaixonadas.

E chego assim ao penultimo capitulo do meu discurso, que trata do processo do Governo de defender a ordem e as instituições monarchicas, contra os ataques da revolução.

Defender a ordem - é o problema na sua primeira parte; mas aqui, como sempre, e em tudo o mais, cumpre definir as palavras.

O que é a ordem, no sentido politico, n'este, de que trato?

Tem a palavra ordem, n'esta acepção politica, dois significados:

1.° Quando se oppõe symetricamente ao progresso;

2.° Quando se oppõe tambem symetricamente á liberdade.

Ordem e progresso se diz, como sendo os termos oppostos da evolução; a ordem conservando, o progresso accrescentando. A ordem mantem, conserva; o progresso augmenta, accrescenta, a somma dos bens publicos e sociaes.

Ordem e liberdade se diz, para significar, de um lado, as restricções da lei; do outro, as expansões da actividade individual.

Vejamos a primeira forma: - ordem e progresso. Em geral, obedecendo á ideia do progresso, levianamente, superficialmente, se considera a ordem, a conservação, como um obstaculo ao progresso. Os conservadores são os retardatarios, são os inimigos do progresso, os homens da treva, os inimigos da luz. Todos querem ser progressistas. Todos entoam hymnos ao progresso; todos desdenham da ordem, como de cousa, ou de funcção politica, impeditiva do augmento dos bens sociaes. É um erro funesto, Sr. Presidente, um lamentavel preconceito este, que anda geralmente dominando os espiritos. Nobilita-se, eleva-se, avulta-se, a funcção do progresso; e deprime-se, degenera-se, desdenha-se, a funcção da ordem.

A ordem conserva, o progresso augmenta.

Mas pergunto eu agora, - qual é a primeira condição para augmentar os bens que se possuem senão a propria conservação d'elles?

Se, com a mim em novos bens, se descurar a conservação dos existentes, e, n'um arranque de enthusiasmo, se for até á destruição de todos elles, não se realizou um accrescentamento, fez-se uma substituição. Não se realizou o progresso, fez-se a revolução, que nem sempre é progressiva, ou que, podendo sê lo sob um ponto de vista particular, pode ser, sob outros aspectos, um mal fundo e grave.

Destruir todo o existente, para o substituir por novas formulas, é a forma revolucionaria do progresso.

E esta, sim, a que, na realidade das cousas, se oppõe á ordem.

Mas a somma de bens que formam o patrimonio da civilização pode ser augmentada evolutivamente; primeiro, seleccionando, do existente, o bem, para o fortalecer e consolidar, e o mal, para o corrigir ou eliminar; e, ainda por cima d'esta dupla funcção da ordem, trazendo á vida collectiva novas conquistas de bem estar geral, por esforços pacificos e luctas incruentas, que são a acção do progresso efficaz, na sua formula não revolucionaria.

D'este modo, a ordem tem de ser progressiva, isto é, não deve limitar-se a conservar indistinctamente o bem e o mal, mas tem de fazer a respectiva selecção; e o progresso tem de ser ordeiro, isto é, não deve ir até aos exageros e excessos da revolução, que nada mantem, e ópera, não um accrescentamento de bens, mas uma substituição do modo de ser social.

Os homens de ordem, os conservadores, são progressivos tambem; como os homens do progresso, n'este sentido, são tambem ordeiros.

Ha, porem, de um e de outro lado, os extremos; - ha conservadores, que tudo querem manter, e não comprehendem a funcção indispensavel da selecção; - e ha progressistas radicaes, que só comprehendem a substituição completa, e nada querem conservar do estado existente.

Longe de nós o criterio radical. O excesso dos conservadores, n'este sentido improgressivo, gera naturalmente o excesso dos progressistas, e leva-os para o perigo da revolução.

E dá-se do mesmo modo o phenomeno inverso.

O exagero revolucionario leva ao exagero dos conservadores.

Á parte, pois, estes radicalismos oppostos, e igualmente nocivos, certo é que o bem estar social se vê resultar nitido da acção combinada da ordem e do progresso.

A defesa da ordem é, pois, uma funcção primaria, fundamental, para a realização do progresso.

Sem a ordem não ha progresso; ha, ou pode haver, sim, a revolução, que é cousa differente.

A ordem é a condição primaria da vida social; o primeiro cuidado do Governo é a sua defesa.

Defender a ordem é defender a propria vida collectiva.

O segundo sentido da palavra ordem, como oppondo-se á liberdade, pelas restricções do exercicio da actividade individual, impostas pela necessidade de manter o equilibrio e a harmonia na vida collectiva social, mostra igualmente, de um modo evidente, que a defesa da ordem se faz mister para a propria defesa social.

Manter a ordem, Sr. Presidente, quer dizer, n'este sentido, reprimir os excessos de liberdade individual, nos termos da lei, para o manutenção da vida social collectiva.

Já, a este respeito, e quando tratei do regimen da liberdade, me referi, e não me demoro mais no caso.

Mas aqui, n'um e n'outro ponto de vista, chego sempre á conclusão de que a necessidade é fazer cumprir a lei. Esse é o dever primario, capital.

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Por isso é que a lei é fundamento de todo o verdadeiro regimen de liberdade e de progresso.

Manter a lei é manter a ordem, para realizar o progresso social, e para defender a vida collectiva.

É pela lei que se realiza o progresso, e se defende a sociedade e a verdadeira liberdade, que não é o predominio do individuo sobre a collectividade; mas a justa harmonia e um equilibrio harmonioso entre a acção individual e o interesse collectivo.

A lei deve ser tudo, para o homem de governo.

Se a lei não é boa, reforme-se e modifique-se, consoante um prudente criterio; mas tem que cumprir-se emquanto é lei.

O contrario é o arbitrio.

Por isso eu me tenho sempre empenhado, e não deixarei de proseguir na minha campanha, em defender as prerogativas legitimas do poder legislativo.

Toda a concentração de poderes gera naturalmente o despotismo.

É preciso que as Côrtes só façam as leis, e que o poder executivo limite a sua acção a cumprir as leis, exacta e rigorosamente, sem arbitrios, sem excessos de poder, e sem fraquezas ou tolerancias, que elle não pode ter, que não lhe competem, que são abusivas tanto, como os excessos do poder.

Tolerar, transigir com o movimento revolucionario, é faltar ao cumprimento do primeiro dever de governar.

As mesmas instituições fundamentaes não teem só direito, teem o dever, de defender-se.

As instituições não são o rei nas monarchias, ou o presidente nas republicas; são a propria monarchia, ou a propria republica, em si mesmas, afora as pessoas que as representam.

Existem pela vontade da nação, ou expressa ou tacita.

Não podem, por isso, contrariar essa vontade; tem de acatá-la.

Tem, pois, que defender-se a si proprias, porque defendem a expressão da soberania nacional.

Pode o rei não querer ser rei; pode o presidente da republica não querer ser presidente da republica; mas, emquanto o forem, um, ou outro, teem que defender a monarchia, ou a republica.

Estes são os principios.

Quem assim não fizer, e transigir, e ceder, cede do que não é seu, abusa do seu poder, atraiçoa a sua missão, falta ao seu dever.

No momento actual, a lucta é clara e manifesta.

De um lado, está a Revolução; do outro, a Ordem. Tudo o mais é secundario.

Não teem valor as outras divisões secundarias, em que a politica se extrema.

Ou se pretende progredir, dentro da forma e do modo de ser da civilização christã, que é toda a civilização moderna, espalhada em todo o mundo actual; ou se pretende substituir todo o modo de ser social existente, por formulas e doutrinas novas.

Esta é que é a questão.

Só esta. A grande questão.

A grande lucta, que vae empenhada no mundo todo, e que preoccupa, jus-tificadamente, todos os sociologos e todos os estadistas dignos d'esse nome. Governar, para o dia de hoje, é relativamente facil, porque é comezinho, de curto alcance, de criterio estreito e egoista.

A solidariedade humana impõe mais altos deveres.

É preciso olhar para o futuro, e attender ás gerações vindouras.

A base de todo esse preparo, para a grande lucta, está na educação da mocidade.

Essa é a grande defesa social.

Como ha de ser feita essa educação?

N'este ponto capitalissimo, Sr. Presidente, tem o meu partido ideias e principios assentes, expressos no seu programma, por um modo claro e inil-ludivel: - diz assim (conclusão 7.ª):

"Consequentemente, o Nacionalismo affirma, por fundamento da sua doutrina e como partido catholico que é, a sua plena adhesão aos principios do catholicismo, e a necessidade da conservação do principio religioso na educação, como elemento essencial para o progresso dentro da ordem; reconhecendo a logica dependencia e correlação necessaria entre o progresso e a ordem, entre a ordem e a moral, e entre a moral e a religião; sendo a religião base da moral, a moral fundamento da ordem, e a ordem condição do progresso".

Não pode ser outro o caminho a seguir, Sr. Presidente. Em abono das doutrinas nacionalistas, tenho já aqui citado, n'esta Camara, Spencer e Garofallo, e não me dispenso de ler á Camara, mais uma vez, as proprias palavras d'este ultimo escriptor, na traducção feita pelo Sr. Julio de Mattos:

" - O ensino moral não tem sentido, "ou, pelo menos, efficacia, sem uma base religiosa, direi mais - sem as emoções provocadas pelos mysterios da religião".

Mais adeante diz o mesmo auctor:

" E os homens proprios para este a ensino importa procurá-los entra os paes de familia, ou entre os ministros do culto".

Hoje, não se fala, entre nós senão, em "laicizar o ensino", empregando, na linguagem, o mesmo ridiculo gallicismo, com que, em politica, se pretende imitar o modelo do jacobinismo francez, que se toma sempre como figurino.

Pois é n'este mesmo momento historico que Garofallo, e, como elle, tantos outros, proclamam a mesma doutrina que o partido nacionalista consignou no seu programma.

Cito eu aqui mais uma vez, Sr. Presidente, estes principios, porque bem a proposito veem n'este capitulo da defesa da ordem e das instituições, em que todos devem pôr particular cuidado, se não querem dar armas ao inimigo terrivel, que os não poupará, com toda a certeza - a revolução.

Concluindo esta parte do meu discurso, e em resumo, eu direi, mais uma vez, muito me arreceio do systema de defesa, falho de principios solidos, e que cede e transige, com fraqueza, em vez de resistir com firmeza, e que erige o arbitrio em norma de acção, em logar de ter a lei como regra inflexivel de procedimento.

Quem quer agradar aos elementos jacobinos nada consegue d'elles, e desagrada, e enfraquece os conservadores.

E passo, finalmente, Sr. Presidente, ao ultimo capitulo do meu discurso: - a questão dos adeantamentos illegaes á Casa Real, - como a denominou, ao pô-la, perante as Côrtes, e perante o paiz inteiro, o Sr. Presidente do Conselho, com uma singular e perigosissima infelicidade.

Melindroso e delicado é o assumpto em si mesmo, pelas pessoas a que se refere, e pelas responsabilidades que necessariamente traz inherentes. Não serei eu que, homem de ordem, como sou, e me prezo de ser, dê mais pasto ao escandalo, que levantou o grave erro governativo do Sr. Presidente do Conselho. Questões d'esta ordem levantam-se - quando é preciso levantarem-se - discutem-se, e decidem-se logo, sem delongas, e sem dar margem a suspeições, e a campanhas de descredito e de demolição. Direi mais: uma vez levantadas, não ha direito a sustar a sua discussão, e a sua resolução, sem grave perigo para as instituições, e sem desprestigio para o poder legislativo.

Adeantamentos illegaes, - só, por si mesma, a phrase é infeliz. Guardar-me-hei, porem, Sr. Presidente, para quando esta questão vier ao debate parlamentar, para a discutir então, e hei de fazê-lo, com inteiro desassombro, como é do meu caracter e do meu dever, até.

No entanto, eu ouvi, aqui, ao Sr. Presidente do Conselho, attribuir as res-ponsabilidades d'esses adeantamentos a

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todos nós, antigos Ministros, Pares, Deputados, e politicos militantes. E ouvi ainda a estranha razão, e o singular fundamento, d'esta pretendida responsabilidade, lançada sobre todos nós. Disse o Sr. Presidente do Conselho que nós todos ouviamos, por aqui e por alem, nos corredores das Camaras, e outros centros de palestra politica, falar d'esses adeantamentos, e que nenhum de nós levantara a questão em Côrtes.

Pela parte que me respeita, como antigo Ministro, como antigo Deputado, como Par do Reino, que sou, e como homem publico, com mais de vinte annos de vida politica, direi, Sr. Presidente, que nenhuma especie de responsabilidade me pertence n'essa questão. Nem directa, nem indirecta, nem proximo, nem remota, nem expressa nem tacita.

Nem essa responsabilidade de tacita annuencia, pelo silencio feito sobre os boatos correntes, como disse o Sr. Presidente do Conselho. Nem mesmo essa. Não.

Pode bem ser que eu tenha ouvido, em tempo, uma ou outra vez, falar, n'esse, ou n'outro ponto de reunião, ou conversação politica, sobre a hypothese de adeantamentos feitos á Casa Real. Dou de barato que seja assim. E d'ahi?

Queria o Sr. Presidente do Conselho que eu viesse levantar, em Côrtes, uma tão grave questão, apoiado em simples boatos, ou versões? Pois S. Exa. é o chefe do Governo, vem elle proprio levantar a questão, e a final declara logo seguidamente que elle só é o juiz competente da opportunidade de a discutirem Côrtes, e queria que eu, apoiado em meros dizeres de conjectura, e supposição, levantasse tão delicado e melindroso caso, podendo assim dar margem, e ser causa de perturbações graves, e de complicações perigosas?

Não, Sr. Presidente, eu tenho outra comprehensão das minhas responsabilidades de homem publico.

Assim como, fundadamente, eu sei ir direito onde é meu dever ir, sem receios, nem contemplações; assim tambem sou incapaz de levantar casos de escandalo, com leviandades e precipitações, ou com segundos sentidos. Não, Sr. Presidente.

Aguardo, pois, serenamente, as providencias, que o Governo tem promettido, sobre o assumpto, e acêrca d'estas, como de todas as outras que estão annunciadas, eu direi de minha justiça, firme sempre no meu inflexivel proposito de fazer a mais alta e imparcial critica, censurando, com todo o desassombro, o que, em meu entender, for mau, e applaudindo, e apoiando sem reservas, o que, em minha consciencia, julgar bom. (Vozes: - Muito bem, muito bem).

Concluo, Sr. Presidente, mandando para a mesa os seguintes projectos de lei, que não fundamento agora, porque longo foi o meu discurso, e ainda porque, francamente, me parece que elles estão no animo de nós todos. A elles me referirei mais tarde, no decorrer dos nossos trabalhos parlamentares.

E tenho dito.

PROJECTO DE LEI

Artigo 1.° Todo o cidadão eleitor, que não votar em qualquer eleição, sem motivo justificado, incorrerá na pena de 10 por cento dos seus rendimentos collectaveis de qualquer natureza, imposta em processos de policia correccional.

§ unico. São somente motivos justificados para os effeitos d'este artigo:

1.° A doença, devidamente comprovada.

2.° O fallecimento dos ascendentes, descendentes, ou irmãos e affins dos mesmos graus, occorrido dentro dos oito dias immediatamente anteriores á eleição.

3.° A ausencia do domicilio legal por tempo não inferior a oito dias antes da eleição.

Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario. = O Par do Reino, Jacinto Candido.

Á commissão de legislação.

PROJECTO DE LEI

Artigo 1.° Aos Deputados da Nação e aos Pares do Reino, que não tiverem, uns e outros, os seus domicilios em Lisboa, será abonado o subsidio de 4$000 réis por dia, durante o tempo em que as Côrtes funccionarem.

§ unico. Este subsidio será pago integralmente no fim de cada mez, sem descontos, deducções ou qualquer outro encargo.

Art. 2.° Aos Deputados e Pares, mencionados no artigo 1.°, serão pagos os transportes de ida e volta entre Lisboa e os seus domicilios.

Art. 3.° Fica revogada a legislação em contrario. = O Par do Reino, Jacinto Candido.

Á commissão de fazenda e administração publica.

PROJECTO DE LEI

Artigo 1.° Os Ministros e Secretarios de Estado effectivos terão o ordenado de 4:000$000 réis por anno, livres de descontos, deducções, ou qualquer outro encargo.

Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario = O Par do Reino, Jacinto Candido.

Á commissão de fazenda.

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes): Sr. Presidente: ouvi com a devida attenção o discurso do Digno Par o Sr. Jacinto Candido; attenção que era devida, não só por consideração para com o logar que S. Exa. occupa como Par do Reino, mas muito especialmente porque S. Exa. é um velho amigo e antigo companheiro nas luctas parlamentares, por quem tenho a maior estima.

Não acompanharei S. Exa. no seu largo discurso de tres dias; porque grande parte das questões que S. Exa. tratou, já aqui tiveram resposta, e as outras são de si perfeitamente doutrinarias e S. Exa., como chefe de um partido que aqui representa, é que julgou conveniente apresentá-las. Não tenho pois que responder a estes pontos.

Principiou o Digno Par por affirmar que era necessario manter integra a autonomia e a independencia dos corpos administrativos. Assim o entende o Governo tambem; e comprehendeu o não só para o dizer, mas para tornar exequivel essa autonomia e independencia.

O Governo vae em breve apresentar á Camara uma lei eleitoral, que contém todas as garantias para que, desde o principio ao fim do acto eleitoral, o direito dos eleitores seja respeitado, e o candidato que merecer os suffragios da urna seja um verdadeiro representante da soberania popular, livremente escolhido pelos seus talentos e merecimentos.

Mas ainda, tanto assim pensa o Governo que, na lei de responsabilidade ministerial, já em discussão na Camara dos Senhores Deputados, especificando a proposta quaes as pessoas que teem competencia para fazer accusações aos Ministros, a todos os cidadãos confere o direito de requererem processo criminal contra as infracções da Constituição.

Portanto, já o Digno Par vê que o Governo quer tambem o prestigio e a autonomia do poder legislativo.

Como já disse, não posso acompanhar o Digno Par em todas as suas considerações, porque isso seria prolongar por mais tempo este debate, que já dura ha tres semanas.

O Digno Par podia bem fazê-lo, e n'isto não vae censura a S. Exa., que como chefe de um partido precisa de enunciar o seu programma de Governo; mas o Governo é que não podia protelar uma discussão, quando ha sobre a mesa projectos importantes e de interesse para o paiz.

Pergunta se porque caiu o Governo transacto, fala-se nos acontecimentos de 4 de maio, no estado em que se encontra o espirito publico, avoluma-se tudo isto, dizendo se que a conjunctura é grave e parecendo não se querer encontrar a razão.

A razão, Sr. Presidente, teem sido os nossos erros, nossos, de nós todos, dos

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que teem governado e dos que teem apoiado os que governam.

Desde 1802, ha quatorze annos, a nação portugueza teve um aviso que foi angustiossisimo para as suas tradições e para o seu nome. N'essa occasião tivemos de dizer a credores internos e externos que não podiamos pagar, aos funccionarios publicos tivemos de lhes pedir sacrificios e ao paiz prometteu-se uma vida nova.

Sr. Presidente: todos nós sabemos o que foi essa vida nova.

Eu não accuso ninguem, sou o primeiro a penitenciar-me, não porque então governasse, mas porque apoiava os que governavam.

O que foi essa vida nova?

Foi o pouco respeito pela lei, a continuação dos erros passados, a anarchia nos serviços e os homens publicos honestos dominados por clientelas que lhes estendiam a mão e pediam pão.

Sr. Presidente: quem fosse pelo paiz fora, como eu muitas vezes fui, porque desde 1901 principiei dentro do meu partido a fazer propaganda, e se algum merito tive, foi o de ser um propagandista indefesso, quem fosse pelo paiz, ouvia e sabia o que se dizia e qual era a opinião publica, a verdadeira opinião publica.

O paiz queria ser bem governado, o paiz queria que a lei fosse respeitada, que se fizesse um orçamento claro, de modo que se pudesse saber quanto se pagava e a quem se pagava.

Era isto que eu ouvia pelo paiz fora e é esta a verdadeira opinião publica em que o Governo se quer estribar para merecer o seu apoio.

Eu sei, Sr. Presidente, que no paiz ha quem não queira isso, mas esses são os que constituem a falsa opinião publica.

Quando nessa propaganda de principios eu andava, algumas vezes nos encontrámos, o Digno Par e eu, talvez orientados no mesmo sentido, e S. Exa. sabe que era isto o que nos diziam.

Uns não acreditavam no que se affirmava e promettia; outros diziam que nunca eramos chamados ao poder, e, se o fossemos, estariamos lá muito pouco tempo.

Pois foi preciso provar que isso não era assim.

Quem tinha direito para livremente nos chamar, chamou-nos e nós queremos cumprir os compromissos que com o paiz tomámos.

O paiz parece apoiar a nossa marcha; essa adhesão manifesta se pela opinião publica, pela verdadeira opinião publica.

Mal iria ao homem publico se não soubesse qual é a verdadeira opinião, se não soubesse o que ella quer. Era preciso que o paiz se não convencesse de que nós, com os principios que professavamos, nunca seriamos chamados ao poder e se o fossemos não estariamos aqui muitos mezes.

Esta impressão é que era necessario desfazer na opinião publica.

O paiz quer a ordem, quer a verdade em tudo, quer o seu desenvolvimento economico e financeiro, e o Governo está hoje empenhado n'aquillo que lhe é necessario, que é estabelecer a verdade.

O que o paiz não quer é a desordem, seja ella na rua, seja dentro do proprio Parlamento.

O paiz vê que dentro da monarchia se podem abrigar todas as suas aspirações, por consequencia ha de ir caminhando á sombra d'ella, até alcançar a situação e o prestigio a que tem direito.

Em nome do Governo envio ao Digno Par um agradecimento pelo apoio que S. Exa. tão patrioticamente tratou de accentuar em questões que interessem á ordem e á sua manutenção.

É sincera a declaração de S. Exa.; são estes os principios de Governo e é por isso sincero tambem o meu agradecimento, acredite-o V. Exa.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. José de Alpoim: - Chega ao debate tarde e cedo. Cedo, porque permittiu que falasse o illustre chefe do partido regenerador, e que usassem da palavra outros oradores distinctos; tarde, porque a sua palavra pallida, decerto não era ouvida com agrado depois de uma tão porfiada lucta.

As considerações que tem a submetter á consideração da Camara não cabem no limitadissimo espaço de tres quartos de hora, que tanto é o tempo que resta até o acabamento da sessão. Terá de ficar com a palavra reservada para a sessão de amanhã, tanto mais que não está presente o Sr. Presidente do Conselho.

Não recorrerá ao conhecido truc de prevenir o chefe do Governo de que deseja o seu comparecimento n'esta sala, porque, se S. Exa. não vier, isso não obstará a que deixe de apresentar as considerações que o assumpto lhe suggere.

Estranha que o Sr. Ministro da Justiça só dispusesse de poucos minutos para responder ao discurso, por tantos motivos notavel, do Digno Par Sr. Jacinto Candido.

Este illustre membro da Camara dos Pares falou na ausencia do Sr. Presidente do Conselho.

Não pode deixar de protestar contra a ausencia do chefe do Governo, e de apreciar o facto estranho e singularissimo de ser o Sr. Conselheiro João Franco quem na outra Camara está assumindo a responsabilidade de uma providencia emanada do Ministerio da Justiça e ser o titular d'esta pasta quem n'esta Camara está assistindo á discussão do projecto de resposta ao Discurso da Corôa.

Um facto vae apontar, que caracteriza a feição predominante dos tempos que vão correndo.

O Sr. Ministro da Justiça, respondendo ha dias a uma interrogação do Digno Par o Sr. Hintze Ribeiro, disse que o Sr. Presidente do Conselho lhe ordenara o envio de um determinado telegramma. O Sr. Ministro usou de uma nova formula, dizendo: S. Exa., o Presidente do Conselho, mandou-me telegraphar...»

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes) (interrompendo): - Se o Digno Par lhe dá licença, dirá que S. Exa. está equivocado.

Lembra se ter dito que o. Sr. Presidente do Conselho lhe mandara um telegramma que havia recebido acêrca do facto a que se referira o Sr. Hintze Ribeiro; mas não que ordenara a elle, orador, qualquer transmissão de despacho telegraphico.

O Orador: - Fica feita a devida rectificação; mas não só elle, orador, como outros seus collegas entenderam que o Sr. Ministro recorrera á formula a que ha pouco se referiu, e que era bastantemente significativa nos tempos que vão correndo.

O Digno Par Sr. Jacinto Candido reivindicou para nós aquella antiga liberdade com que se falava aos reis.

Passou a noite ultima deliciado, lendo um trabalho de Gil Vicente, prefaciado pelo Sr. Conde de Sabugosa, um dos poucos fidalgos da velha aristocracia que honram o nome dos seus avós, grandes na guerra e grandes nas letras, trabalhando em obras literarias de innegavel valor historico e incontestavel belleza de forma, e em que se vê como antigamente se falava deante dos soberanos, embora se não saiba bem se foi deante de um rei, D. João III, se deante de um fidalgo. Diz uma passagem do Auto da Festa:

Todo aquelle que fala a verdade
É logo botado da graça d'El-Rei.

Narra tambem o orador uma anecdota com D. João III, quando El-Rei, ouvindo o relogio do paço dar horas erradas, dissera: «Muito mente este relogio». Alguem, solto de lingua, replicara: «Retire o Vossa Majestade do paço, logo falará verdade».

Já n'esse tempo, accentua o Sr. Alpoim, no paço se não falava a verdade.

O Digno Par Sr. Jacinto Candido falou ao povo e ao Rei, mas o povo é quem faz a lei, a lei é quem faz o Rei; portanto, o povo é superior ao Rei. Esta é tambem a divisa ingleza, d'esse paiz

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onde ha a formula seguinte: «o Rei não pode fazer mal».

Hoje os Ministros, de habituados a entrarem no paço, nem já falam verdade ao Rei, nem falam verdade ao povo.

Passando de novo a referir-se ao discurso do Sr. Ministro da Justiça, acha extraordinario que S. Exa. invocasse a necessidade de se ventilarem assumptos importantes que estão sobre a mesa, quando o Sr. Presidente da Camara, interrogado ha dias pelo Digno Par Sebastião Baracho, affirmou que, alem do projecto que estamos discutindo, nenhum outro havia que pudesse ser dado para ordem do dia.

Afigura-se-lhe que o Sr. Conselheiro José Novaes, na concisão da resposta que oppoz ás considerações do Digno Par Jacinto Candido, teve apenas em vista esquivar-se a quaesquer referencias ao ponto do discurso em que este Digno Par notou a contradicção que existia entre a redacção do projecto e o discurso do respectivo relator, o Digno Par Veiga Beirão. Comprehende a reluctancia do Sr. Ministro da Justiça, pois o discurso do Digno Par Beirão importa a mais severa condemnação dos actos do Governo.

Quando é que se viu que o relator de um diploma emanado do Governo não estivesse identificado com o pensar e sentir do mesmo Governo?

O orador refere-se á demora na apresentação da resposta ao Discurso da Corôa, que o Sr. Presidente do Conselho explicou pela ausencia do Digno Par Sr. Beirão no estrangeiro, por lhe querer confiar a missão de relator. Toda a Camara, por deferencia ao Sr. Beirão, cujo elogio fez, concordou com o aguardar a chegada do illustre parlamentar. Chega o Sr. Beirão. Acceita. É relator, isto é, uma pessoa tão identificada com o pensar e sentir do Governo que acceita essa missão da maior confiança. Os relatores são mais papistas do que o Papa, mais governamen-taes do que o Governo. Pois o Sr. Beirão divergiu, discordou, aconselhou, censurou! Se falasse em seu nome individual comprehende-se. Mas falou em nome da concentração liberal! Falou como o parlamentar de maior confiança do Governo — o seu relator. Elle, orador, pertencia ao Parlamento ha vinte annos. Era a primeira vez que assistia a semelhante acontecimento.

Crê que o Digno Par o Sr. Beirão não solicitou a honra de relatar o projecto que está em ordem do dia, mas desde que acceitou essa missão, não devia divergir do Governo em pontos fundamentaes.

Aponta esta circumstancia para patentear que a pessoa que representa n'esta Camara um dos ramos da concentração liberal condemna e censura
as providencias que o Governo tem na conta de importantes.

S. Exmos. mostrou ao Governo a inconveniencia de augmentar as despesas, e o Governo por seu lado não cessa de apresentar medidas que aggravam e muito a situação do Thesouro Publico.

O Sr. Presidente do Conselho quer entrar rasgadamente no caminho das reformas sociaes, e o Digno Par Sr. Beirão recommenda-lhe prudencia e cautela em relação ao assumpto.

Quanto ao descanso semanal, elle, orador, discorda da opinião do Digno Par Sr. Beirão, e está portanto ao lado do Governo.

É certo que em Hespanha e França a lei do descanso hebdomadario encontrou resistencias. Em Hespanha deu-se a essa lei um caracter religioso, que os espiritos liberaes não acceitaram, e em França essas resistencias estão quasi vencidas.

Vê que o Sr. Ministro da Justiça se ausentou da Camara.

O Sr. Ministro das Obras Publicas (Malheiro Reymão) (interrompendo): — O Sr. Ministro da Justiça teve de ir para a outra Camara, onde se discute a lei de responsabilidade ministerial, e encarregou-o de responder ao Digno Par.

O Orador: — Agradece a interrupção do Sr. Ministro; mas nota que ha dias, quando o Digno Par Baracho se referia aos adeantamentos á Casa Real, ausentou se da sala o Sr. Presidente do Conselho, e hoje sae o Sr. Ministro da Justiça quando elle, orador, se dirigia a S. Exa.

O Sr. Presidente: — O Digno Par dá-lhe licença?

O Orador: — Advinha o que o Sr. Presidente vae dizer-lhe. Que está proximo a hora do encerramento e que ainda estão inscriptos alguns Dignos Pares antes de terminarem os nossos trabalhos. Agradece a advertencia de S. Exa., tanto mais quanto é certo que não quiz entrar propriamente no seu discurso. Pede por isso que lhe seja reservada a palavra para a sessão seguinte.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Digno Par Sr. José de Azevedo Castello Branco, que a pediu para antes de encerrar a sessão.

O Sr. José de Azevedo Castello Branco: — Como o Sr. Hintze Ribeiro pediu a palavra para antes de se encerrar a sessão, por um dever de cortezia para com S. Exa., cedo a palavra a S. Exa., e peço que me seja reservada para depois de S. Exa.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: — Sinto não ver presente o Sr. Presidente do Conselho, é a elle que tenho de me referir, mas a natureza dos factos de que tenho de occupar-me, aliás em breves considerações, é de tal importancia, que tenho de me dirigir a qualquer membro do Governo que esteja presente, a fim de S. Exa. transmittir ao Sr. Presidente do Conselho o que vou dizer.

Sr. Presidente: ha dias, o Digno Par Sr. Campos Henriques chamava a attenção do Governo para um acto prepotente, que era o de conservar preso e incommunicavel, sem culpa formada, sem auto levantado, o parocho de Fornellos, concelho de Sinfães, e só ao cabo de alguns dias é que o Sr. Presidente do Conselho se resolveu a ser energico e firme para fazer respeitar a lei e a mandar pôr em liberdade este sacerdote.

Hoje tenho, Sr. Presidente, de chamar a attenção do Governo para dois assumptos que mostram bem como a administração publica vae correndo, n'este momento em que o programma do Governo, liberal é lançado aos quatro ventos da nação.

Procedeu-se á primeira eleição camararia na Covilhã, houve um recurso para o auditor e a eleição foi annullada. Depois recorreu-se para o Supremo Tribunal Administrativo.

Procedeu-se á segunda eleição. Havendo protestos houve novo recurso, e nova appellação para o Supremo Tribunal Administrativo.

Procedeu-se á terceira eleição e, decorridas as ferias judiciaes, o Supremo Tribunal Administrativo, por unanimidade, julgou valida a primeira eleição que se tinha feito.

Hoje recebi um telegramma, no qual se diz que a vereação eleita em 20 de maio ultimo não pôde tomar posse porque isso lhe foi negado pela auctoridade administrativa.

Este telegramma é o seguinte:

Covilhã, 28. — A vereação eleita em 20 de maio ultimo apresentou-se hoje na Camara Municipal solicitando posse e juramento em virtude do accordão publicado em 26 do corrente. Foi-lhe negada. Administrador recusou-se igualmente. Protestamos perante Presidente do Conselho, Governador Civil, Presidentes Camaras, Hintze Ribeiro, contra esta arbitrariedade. Pedimos sua interferencia immediata junto Governo interpellando-o. Allegam fundamentos analogos requerimento aclaração com o fim manifesto de protelar a posse. Amigos excitados. Não respondemos pelas consequencias.

Alberto Rato, Presidente da Camara, eleito.

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Como V. Exa. está vendo, Sr. Presidente, não ha mais flagrante illegalidade, (Apoiados).

Pois ao cabo de tres eleições, e julgada uma pelo Supremo Tribunal Administrativo, a primeira é validada, todas as outras ficaram prejudicadas.

Repito, foi julgada valida a primeira eleição por unanimidade de votos, o que quer dizer que nem sombra de duvidas houve acerca da justiça da revalidação d'aquelle acto eleitoral.

Publicou se no Diario do Governo a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, a que se tem de dar immediato cumprimento.

N'esta conformidade a eleição foi approvada por quem a podia approvar, que era o Supremo Tribunal Administrativo; apresentaram-se depois os vereadores a tomar posse, e as auctoridades administrativas, que deviam estar prevenidas desde que o assumpto fora resolvido, porque immediatamente se fizeram as communicações ás auctoridades, não deram cumprimento ao accordão do tribunal, porque, tendo-se apresentado a nova vereação a tomar posse, esta não lhe foi dada.

Perguntarei: isto é proprio de um Governo que apregoa principios de liberdade e de tolerancia e de respeito pela lei?

Este é o facto. Como o Sr. Presidente do Conselho não está presente, não ac-crescento mais nada e peço ao Sr. Ministro das Obras Publicas, unico membro do Governo que vejo presente, a fineza de transmittir precisamente a S. Exa. as considerações que acabo de fazer e, dizer mais ao Sr. Presidente do Conselho que eu espero que elle dê ordem immediata, para decoro seu, brio e pundonor do Governo, para que semelhante abuso e tão flagrante violação da lei não continue.

Passo a referir me a outro assumpto.

O Sr. Presidente do Conselho certamente ignora que ha muitos annos os povos do concelho de Monforte da Beira estão na posse de uns terrenos chamados Chaparraes, em conformidade com uma resolução do Supremo Tribunal de Justiça, que reconheceu o direito d'esses povos á posse dos mesmos terrenos.

Mas ha mais.

Ha um officio do Ministerio do Reino, do meu tempo, pois tem a data de 29 de setembro de 1903, reconhecendo, como não podia deixar de reconhecer, que, em quanto o pretendido proprietario não provasse em juizo a sua directa fruição e posse d'aquelles terrenos, elles pertenceriam a Monforte da Beira.

Está effectivamente a acção pendente em juizo, intentada por qualquer pessoa que se julga com direito a esses terrenos, mas está pendente e ainda muito longe de ser julgada; foi por isso que este officio do Ministro do Reino se publicou, isto é, para que não houvesse duvidas com respeito á posse d'esses terrenos por parte d'aquelle concelho.

Mas não fui eu só que o fiz. Depois de mim, em 1905, perante um Ministerio bom contrario ao meu, o governador civil do districto, que era evidentemente uma autoridade administrativa bem differente d'aquella que exercera as suas attribuições sob a minha direcção politica e administrativa, declarou exactamente o mesmo.

Pois sabe V. Exa. o que, ao cabo de tantos annos, sem embargo dos accordãos dos tribunaes, sem embargo da resolução camararia e da tomada pelo Ministerio do Reino durante o meu tempo de gerencia, sem embargo da opinião da autoridade administrativa do districto, feita quando um outro Ministro estava a gerir a respectiva pasta, sabe V. Exa. o que este Governo de tolerancia e de liberdade e de cumprimento da lei se lembrou de fazer n'esta occasião?

Saltou por cima de tudo e mandou uma força de policia e outra de infantaria 21 expulsar á baioneta d'aquelle chaparral o povo que lá ia fazer a colheita, como em todos os annos, d'onde resultou que 34 prisões estão feitas.

Isto é de mais.

Eu exponho os factos e peço ao Sr. Ministro das Obras Publicas que, como o Sr. Presidente do Conselho não está presente, lhe diga que eu aguardo que S. Exa. venha dizer-nos que a lei ha de ser cumprida.

É o que eu espero.

(O Digno Par não reviu.)

O Sr. Ministro das Obras Publicas (Malheiro Reymão): — Com a merecida consideração e devido respeito pelo Digno Par vou responder a algumas das allusões que S. Exa. fez.

A primeira d'ellas não me é desconhecida, porque hoje mesmo se referiu ao assumpto um Sr. Deputado da Nação, com ligeiras modificações, mas aquelle Sr. Deputado não levou a sua acrimonia ao ponto de accusar o Governo pelos actos praticados, antes affirmou que estava convencido, não obstante ser um Deputado da opposição, que o Governo não estaria absoluta e completamente a par dos acontecimentos, e era decerto estranho a essas violencias.

Quanto ao outro assumpto, como é do meu dever, transmittirei, precisa e absolutamente, as considerações do Digno Par ao Sr. Presidente do Conselho, e devo affirmar a V. Exa. que é um principio de ordem e de Governo, que nunca se pode preterir, o respeito não só de todos os direitos individuaes, mas muito especialmente do direito de propriedade.

Sendo o Sr. governador civil de Castello Branco um homem ponderado e incapaz de, por uma forma tão singular e extraordinaria, praticar actos que não fossem de justiça e contrarios a todas as decisões dos tribunaes, alguma razão muito especial houve para a força publica intervir; o que se fez provavelmente no intento de evitar conflictos mais sangrentos, mais deploraveis e mais lastimaveis do que simples prisões de alguns individuos.

V. Exa. sabe muito bem, porque é um distincto estadista e um notavel homem de governo, até que ponto podem levar as paixões populares.

Mas sabe tambem que em questões de propriedade, como essa, nenhum magistrado administrativo iria intervir, sem que um motivo muito singular o determinasse.

Fique o Digno Par certo que transmittirei fielmente ao Sr. Presidente do Conselho as considerações que acaba de fazer, e estou certo de que hão de ser respeitados os direitos de cada um.

(S. Exa. não reviu}.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: — Sr. Presidente: duas palavras apenas para agradecer ao Sr. Ministro das Obras Publicas a attenção das suas palavras e as expressões amaveis que me dirigiu. Mas, Sr. Presidente, os factos são os factos. E foram factos que eu expuz ao Sr. Ministro das Obras Publicas, que me respondeu que não conhecia o assumpto, e que, se a autoridade do districto de Castello Branco assim procedeu, foi porque houve razões que a isso o levaram.

O que se está passando são factos abusivos que estão em contradicção com os preceitos legaes por um lado, e por outro lado tambem em absoluta contradicção com as decisões de um tribunal superior.

O Sr. Ministro das Obras Publicas sabe bem que estas questões são das mais melindrosas.

Entendo que o Governo não tem senão uma de duas respostas; ou mostrar que os factos não são exactos, ou proceder de maneira que se cumpra a lei. É isso que eu espero, e peço ao Sr. Ministro das Obras Publicas que transmitta as minhas considerações ao Sr. Presidente do Conselho, e o meu desejo de que S. Exa. venha a esta Camara na proximo sessão, para explicar estes factos, e dar conta do pro-cedimento que adoptou em face das minhas reclamações.

(S. Exa. não reviu).

(Foi lido na mesa um telegramma da Covilhã, identico ao que foi enviado ao Digno Par Sr. Hintze Ribeiro).

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SESSÃO N.° 32 DE 28 DE NOVEMBRO DE 1906 421

O Sr. José de Azevedo: — Pedi a palavra para reclamar a presença, aqui, do Sr. Ministro da Marinha, quando lhe seja possivel.

Eu sei que o Governo tem um sincero empenho em decretar a fome. Para isso emprega todos os meios ao seu alcance protegendo os velhos processos e inventando novos. Não tinha esquecido o pão, a carne, etc. Como parecia que o peixe representava um tal ou qual beneficio compativel com a vida, o Governo, no seu patriotico empenho de decretar a fome, entendeu tambem enveredar pelo caminho de encarecer o peixe.

Sr. Presidente: desejava que S. Exa. o Sr. Ministro da Marinha, para versar com elle este assumpto, viesse a esta Camara.

É das tradições d'este casa que exista sempre um Par do Reino que tenha o seu «dá-dá».

Houve um Digno Par que teve sempre a tineta de pugnar pelas incompatibilidades. Infelizmente morreu, sem ver realizado o seu empenho.

Eu começo a ter as minhas tinitas, mas receio não poder viver tanto tempo como o Digno Par a que me referi, porque, sendo a fome tão patrocinada pelo Governo, receio que a morte me attinja, antes de haver alguma medida do Governo a tal respeito. (Riso}.

Alvitrei nomear-se uma commissão para o estudo d'este momentoso problema, mas este alvitre podia tirar a responsabilidade ao Governo, e o actual Governo tem esta novidade: é corajoso, ainda mesmo que pareça disparatado o que vae fazer.

Em Hespanha realizou-se um inquerito sobre a questão das subsistencias.

Pronunciou-se a tal respeito a Camara do Commercio.

Aqui a Associação Commercial não teve essa patriotica iniciativa, e, apenas, lembrou ao Governo que patrocinasse com a sua auctoridade uma commissão que estudasse esse assumpto.

O Governo entendeu porem, pela voz do Sr. Presidente do Conselho, e com a opinião do Sr. Paula Nogueira, que effectivamente o melhor é que se não faça nada.

Desejo pois que o Sr. Ministro aqui venha explicar á Camara a razão determinante do seu proceder, e foi para isto que eu pedi a palavra, isto é, para exigir o comparecimento de S. Exa. n'esta Camara.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Presidente: — A seguinte sessão será amanhã, e a ordem do dia a continuação da que vinha para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e 35 minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 28 de novembro de 1906

Augusto José da Cunha, Sebastião Custodio de Sousa Telles; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Penafiel e de Pombal; Arcebispo-Bispo da Guarda; Condes: de Arnoso, de Paraty, de Sabugosa; Viscondes: de Asseca, de Monte-São, de Tinalhas; Moraes Carvalho, Pereira de Miranda, Santos Viegas, Costa Lobo; Teixeira de Sousa, Telles de Vasconcellos, Campos Henriques, Arthur Hintze Ribeiro, Palmeirim, Eduardo José Coelho, Serpa Pimentel, Ernesto Hintze Ribeiro, Veiga Beirão, Coelho de Campos, Dias Costa, Francisco José Machado, Francisco de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Ressano Garcia, Gama Barros, Jacinto Candido, D. João de Alarcão, João Arrojo, Teixeira de Vasconcellos, Vasconcellos Gusmão, Mello e Sousa, Avellar Machado, José de Azevedo, José Dias Ferreira, José E. de Moraes Sarmento, José Lobo do Amaral, José Luiz Freire, José de Alpoim, José Maria dos Santos, José Vaz de Lacerda, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pimentel Pinto, Pessoa de Amorim, Poças Falcão, Pedro de Araujo, Sebastião Dantas Baracho, Deslandes Correia Caldeira e Wenceslau de Lima.

O Redactor,

F. ALVES PEREIRA.

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