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CAMARA DOS DIGNOS PARES

SESSÃO DE 5 DE JULHO DE 18g1

presidência 1)0 ex."10 sr. visconde de laborim vice-presidente

,-, , . ¦,. lConde de Mello

becretarios: os dignos pares|Condo dg peniche

(Presente o sr. ministro da justiça.)

Sendo duas horas e meia da tarde, achando-se reunido numero legal, declarou o sr. presidente aberta a sessão.

Lida a acta da antecedente, julgou-se approvada, na conformidade do regimento, por não haver reclamação em contrario.

Não houve correspondência.

O sr. Marquez de Vallada:—Aproveito a presença do sr. ministro da justiça, não para fazer uma pergunta, mas para mandar para a mesa um requerimento, ou para melhor dizer renovar um que apresentei achando-se, creio, no ministério da justiça o sr. Mártens Ferrão. Não tem nada este requerimento com a questão das irmãs da caridade.

Preciso do mappa da criminalidade desde o anno de 1826 para cá. O sr. ministro da justiça comprehenderá que tendo eu de oceupar-me do importante negocio das prisões, tanto mais que tenho a honra de fazer parte da commissão encarregada de propor ao governo o projecto da reforma das cadeias, preciso de documentos que me sirvam de auxilio a estes trabalhos. Não sei o motivo porque estes documentos não vieram quando os pedi no tempo em que o sr. Ferrão estava no ministério. Provavelmente foi por serem pedidos nos últimos dias da existência do ministério de que s. ex.a fazia parte, e então não pôde remet-te-los.

Sr. presidente, tenho também a requerer, que, pelo ministério do reino, sejam enviados a esta camará os documentos que o governo teve em vista para mandar fazer as pesquizas, que effectivamente se fizeram, na oílicina typo-graphica conhecida pela denominação de typographia universal. Estes documentos hão de ser provavelmente informações do governador civil interino que servia n'essaoccasião: hoje creio que se acha nomeado o effectivo. Desejo taes documentos para me habilitar a fallar com conhecimento de causa sobro o objecto em questão. Julgo também conveniente que esses documentos venham para a mesa, para que possam ser examinados devidamente com a circums-pecção que pede um negocio grave como este.

Terceiro requerimento. Este creio que também o fiz ha tempos, não durante o ministério passado, mas durante o outro, presidido também pelo sr. marquez de Loulé, e de que fazia parte o sr. Antonio José d'Avila. Desejo que sejam enviados a esta camará pelo ministério dos negócios da fazenda, os documentos ou quaesquer peças officiaes sobre o importante negocio do contrabando na alfandega do Porto.

O sr. Visconde de Fonte Arcada: — É caso novo?

O Orador: — Nada. Ha muito tempo que succedeu. Houve uma porta falsa por onde entrava o contrabando, etc. E caso muito conhecido, e a respeito do qual é necessário que se esclareça toda a verdade.

Sr. presidente, ha muitos negócios a tratar, não é só o das irmãs da^ caridade que ha de salvar o paiz, quer ellas fiquem, quer ellas saiam. Mais tarde, e em occasião que eu repute competente, pedirei explicações ao sr. ministro da justiça sobre o negocio da moeda falsa, negocio de que ha muito se não falia. Desde que saiu o outro ministério creio que acabaram os moedeiros falsos, se acabaram quero dar os parabéns a quem se devam dar. E como desejo dar,os parabéns a quem de direito.competirem, por isso em tempo opportuno pedirei sobre este assumpto explicações categóricas aos srs. ministros da justiça e do reino.

Pedirei igualmente explicações ao governo sobre a apprehensão de certos individuos, e manejos praticados por parte dos protectores d'esses individuos, a fim de que elles fossem soltos. Este negocio é tanto mais complicado, quanta ó a gravidade de que se acha revestido; desejo só enuncia-lo, e em tempo competente pedirei explicações como disse, e farei as considerações convenientes.

O sr. Visconde de Fonte Arcada:—E o deposito?

O Orador:—Lá iremos, eu não sou insofrido.

Depois de feitas estas reflexões, de passagem prevenirei o sr. ministro da justiça que tenciono oceupar-me da questão de beneficência publica. O sr. ministro é muito lido, deve estar ao facto, e sei que o está, d'esta grande questão, ainda não sujeita ao parlamento portuguez. Quando tratar de tal assumpto, oceupar-me-hei talvez simultaneamente, pois estão ligados por muito estreitas relações, da

questão da liberdade e de caridade, e de que um dos seus capitulos ou ramos comprehende de certo a questão do ensino. Estas questões têem sido tratadas juntamente, e não surprehenderei de certo o sr. ministro, nem a camará, se eu para melhor caminho da discussão e dos argumentos, os trate também juntamente.

Previno mais o sr. ministro, que terei de oceupar-me da questão da reforma das cadeias. A este respeito ha todos os annos, quando se trata da discussão do orçamento, um episodio, que se me affigura uma demanda entre partes: de um lado o governo como réu, do outro o marquez de Vallada e o sr. Ferrão, como auctor. O sr. Ferrão pede sempre a palavra e renova todos os annos as suas observações sobre o melhoramento das cadeias: o governo diz que se está no fim da sessão, e que espera tratar este negocio com aquelle ardor que é próprio dos srs. ministros. Em seguida peço eu a palavra, e faço as minhas observações no sentido das do sr. Ferrão. Fecha-sè depois a sessão, torna-se a abrir de ahi a tempo, e as prisões ficam sempre na mesma. Ainda ha pouco tempo, quando se tratou de passagem da reforma das cadeias, se mostrou o quanto convinha que o espirito religioso penetrasse aquelles umbraes.

Julgo que é já tempo de tratarmos d'estas questões, de nos oceuparmos de questões serias, e deixarmo-nos das de capricho, que não nos trazem senão mal, e que fazem tanto damno ao paiz, sem que nada d'ellas se utilise.

Deveras desejo que entremos no verdadeiro caminho da reforma, para que o povo seja felicitado, o espirito publico sc reanime, e a nação seja regenerada.'

Vou formular os requerimentos para mandar para a mesa.

O sr. Conde do Bomjim:—Pedi a palavra para rogar a v. ex.a que proponha á camará se convém no que vou requerer. Havendo negócios importantes a tratar na commissão de marinha e ultramar, e faltando alguns membros n'esta commissão, por se acharem impossibilitados, succe-dendo muitas vezes não haver numero sufficiente, eu pedia á camará que concordasse com o que muitas vezes se tem feito em idênticas circumstancias, e é pedir a v. ex.a que nomeie para a commissão o sr. marquez de Ficalho, que tem conhecimento dos negócios do ultramar, e o sr. José da Costa Pinto Basto, que não está por ora encarregado de outra commissão, e mesmo porque é formado em direito e na commissão não temos ninguém" formado n'esta faculdade.

O meu requerimento deve ser atlendido pela camará, portanto peço a v. ev.a que o ponha á votação.

O-sr. Presidente:—A camará ouviu o requerimento que acaba de fazer o digno par o sr. conde do Bomfim: vou po-lo á votação.

Foi approvado.

ORDEM DO DIA

continuação da discussão relativamente ao decreto sobre as irmãs da caridade

* O sr. Ferrão:—Sr. presidente, grande foi talvez o meu arrojo em haver pedido a v. ex.a a palavra para tomar parte n'esta discussão. Quando ella começou não tencionava resolver-me em similhante objecto, porque pensei se reduziria aos estreitos limites de uma interpellação; como porém tem assumido as alturas de uma importante discussão, eu, sr. presidente, como membro da commissão ecclesiastica, e na ausência de quasi todos os prelados do reino, entendo cumprir um dever especial fazendo algumas considerações.

Felizmente está hoje presente um successor de outro prelado, que nas cortes constituintes de 1822 tomou parte nas discussões da mesma matéria; s. ex.a me corrigirá, pois, ou approvará com o seu silencio as proposições que eu apresentar; os principios que eu possa adoptar, na certeza do que se eu errar não é de certo por vontade própria, nem por falta de diligencia que tenha empregado para não proferir desacertos em cousas religiosas.

Em todo o caso submetto me ao juizo de todos aquelles que receberam missão de Jesus Christo, para ensinar as verdadeiras doutrinas do Evangelho, e para ligar e desligar sobre a terra, ao juizo da igreja, e portanto sujeito-ine não só á critica do illustre prelado que se acha presente, mas especialmente ao d'aquelle a cuja jurisdicção estou immediatamente ligado, como ovelha do seu rebanho.

Sr. presidente, disse eu que tinha assumido esta interpellação as alturas de uma discussão importante. Repito a phrase, e agora acrescento que entendo não ser perdido o tempo que nella se gaitar, pois que será de grande utilidade para a futura questão das irmãs da caridade, para a mais fácil discussão e prompta adopção da proposta de lei que o governo deverá ter renovado a estas horas na outra casa do parlamento.

Ficam assim desde já consignadas as idéas expendidas n'esta occasião, e feliz me deverei considerar se as minhas poderem ser apresentadas com aquella clareza e simplicidade que tenho sempre esforçado dar ás minhas palavras.

Sr. presidente, a questão é muito importante, porque n'ella se acha envolvida uma corporação que tem por seu objecto e fim especial uma das mais sublimes virtudes, não só aos olhos da moral universal, mas aos olho3 da moral evangélica, no seu maior grau de perfeição: não é a da caridade philantropia, nem mesmo a da caridade christã, daquella que nos manda amar o próximo como a nós mesmos; é mais alguma cousa. E' a caridade pelo amor de Deus, é a perfeição na caridade, o fim'de todas as religiões; e quando eu digo religiões, a camará sabe que fallo de todas as corporações religiosas.

Disse um escriptor moderno, que a caridade se não confundia com a philantropia, que ambas formam na moral dois pólos oppostos; tendo esta os seus motivos na terra e a outra no céu.

Mas somente a caridade exercida pela dedicação resultante dos votos religiosos pôde tomar o caracter de perse-

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yerança e dedicação, que mais pareça descer do céu á terra, que elevar-se da terra ao céu!

Sr. presidente, esta questão é também muito importante, porque tem por objecto dois factos que muito infelizmente tiveram logar — um a causa, outro o effeito.

O effeito—é o deplorável decreto de 22 de junho d'este anno; digo deplorável, porque tenho como taes todos os actos de qualquer governo que se vê constituido na triste necessidade de empregar a força da auctoridade secular, para repressão de desvarios ou attentados firmados em crenças religiosas, dando assim os ministros d'estado contra si armas poderosas aos seus inimigos politicos.

É deplorável, porque- podem originar taes actos a qualificação de martyres ás pessoas que, como membros d'es-sas communidades forem affectadas; e todos sabem sr. presidente, que em matérias religiosas as crenças e os erros quanto mais se perseguem mais se arreigam.

É deplorável o decreto, porque poderão algumas pessoas ver n'elle, não o desaggravo da lei violada, uma repressão da desobediência, mas um procedimento hostil contra a communidade das irmãs da caridade do instituto de S. Vicente de Paulo, e d'ahi tirar illações á honra e credito do governo.

Se ha quem nutra taes sentimentos, e se por isso applau-dem o decreto, parece-me poder dizer-lhes que estão completamente enganados, porque sob este ponto de vista, o decreto é contraproducente, pois que augmenta a consideração e sympathias em favor das mesmas religiosas;' faz subir o numero de seus devotos; e daqui pode nascer au-gmentar-se o interesse pessoal delias, e na rasão inversa, diminuir a pratica das virtudes de caridade, que mais tran-quilla e livremente poderiam exercer na vida social, se continuassem a viver sob a immediata protecção do governo e da lei, conservando a entidade collectiva, reconhecida no estado.

É deplorável o decreto, porque dá occasião a falsas interpretações fora do paiz, entendendo-se como significativo de perseguição movida entre nós a uma instituição admirada e respeitada em toda a Europa.

É deplorável, - sr. presidente, e agora me refiro á causa —porque é motivado pelo facto de desobediência qualificada da communidade de Santa Martha.

Sr. presidente, a religião tem dogmas, tem doutrina e tem disciplina.

Os dogmas e a doutrina são immutaveis, e só o poder da igreja pôde difini-los, expurga-los de erros, e ensinar como se mantém na sua pureza: mas a disciplina, pôde variar de nação para nação, de umas para outras dioceses.

N'esta é immensa a influencia da soberania secular; anda a par com o poder da igreja.

Foi em relação a matérias disciplinares que n'um dos concílios de Paris se disse:

«Quelquefois les princes ont le premier rang dans l'e-glise.»

O que bem se concilia com o dito do imperador Constantino : « Eu não sou bispo senão fora ãa igreja, d

Quer isto dizer, sr. presidente, que os monarchas catho-licos, membros mais qualificados e mais poderosos da congregação dos que professam a religião christã, e como depositários dos meios de acção externa de que dispõem em nome e para bem commumente, têem rigoroso dever de proteger a disciplina da igreja, para que a mesma disciplina seja mantida em toda a sua regularidade e integridade.

Para se demonstrar este dever especial dos soberanos catho-cos, pôde recorrer-se a rasões politicas, aos direitos de soli-berania secular acerca de cousas ecclesiasticas jus princi-pis circa sacra, mas não é necessário, porque são os mesmos cânones que impõem aos que governam a obrigação de manterem intacta a disciplina da igreja, consignando expressamente que elles darão contas a Deus se não desempenharem zelosamente a mesma obrigação.

Ora, estabelecidos estes principios, e sendo certo que nos primeiros séculos da igreja não existiam corporações religiosas, e que portanto a introducção d'ellas é sempre uma novidade e uma alteração na disciplina da igreja, é consequente o direito correlativo que tem os monarchas ou soberanos de auctorisar ou não auctorisar a admissão de uma ordem religiosa, de a auctorisar somente com certas clausulas ou restricções, que elles tenham por indispensáveis ou convenientes assim em relação é mesma disciplina, como em relação aos interesses da sociedade civil; e de impedir, que estabelecida uma ordem religiosa, os membros d'ella deixem de cumprir os deveres a que se ligaram; e por consequência, de fazer com que os superiores de taes ordens superintendam de modo que o cumprimento d'esses deveres se realise.

Ora já vê a camará, que se os superiores d'essas ordens forem estrangeiros sujeitos a soberano estrangeiro, e residentes em outro paiz, não pôde o governo cumprir o dever que n'este ponto meramente disciplinar, lhe é imposto pelos mesmos cânones da igreja.

Eis a situação, em que o governo se achou, com relação ás irmãs da caridade, estabelecidas em Santa Martha, pretendendo estas continuar na sujeição e obediência a um superior residente na França, e entendeu n'estas circumstancias, não só em rasão da incompatibilidade dos direitos de suprema inspecção e protecção que lhe competiam, mas das leis do reino, que devia chamar á immediata e omnimoda sujeição ao prelado diocesano aquellas religiosas.

N'esta persuasão e conformidade transmittiu o governo ao em.mo cardeal patriarcha as suas ordens, ou insinuações, e este illustre prelado, que não podia obedecer e que por certo não obedeceria ao poder temporal, se porventura este tocasse no sanctuario das doutrinas do Evangelho, não hesitou em obedecer e em transmittir as ordens do governo ás

religiosas de Santa Martha. Transmittindo-as, com este seu exemplo de obediência, lhes ensinava o que deviam praticar :=exemplum enim ãedi vobis=z. A lição era-lhes dada por quem tinha para isso missão, não de direito humano, mas de direito divino; euntes docete omnes gentes.

Não podiam ter aquellas religiosas escrúpulos de consciência de qualidade nenhuma desde que o illustre prelado os não tinha. O exemplo do prelado, as suas palavras, a sua obediência ás ordens do governo deviam vencer qualquer reluctancia:=qua}cumque solveritis super terram, erunt soluta et in coelo=.

Mas, sr. presidente, foi baldada, foi formalmente desacatada esta jurisdicção especial para ensinar, este poder divino para tirar e destruir escrúpulos; para absolver, se preciso fora, toda a sorte de peccado; houve pois aqui uma força superior não só á do poder temporal, do poder do estado, do poder do governo, mas á do poder do em.™8 prelado que n'esta diocese representa Deus sobre a terra.

D'onde lhes veio esta coragem? Quem foi o preceptor, o conselheiro ? Não sei. Não quero fazer supposição, comquanto muito podesse discorrer sobre as causas moraes de tão inqualificável desobediência; limito-mela dizer, que sendo as ordens do governo sobre matéria puramente disciplinar, e sendo ensinado pelos padres da igreja, que nunca haja con-flictos por taes motivos: e que, pro bonopacis, se transija em taes circumstancias, visto que a não permanência em algum ponto disciplinar não é da essência, nem dos dogmas nem das doutrinas da religião christã; não deviam aquellas religiosas resistir, como resistiram. Não sei que possa haver outro estado no estado, outra religião na mesma religião, com o seu poder privativo, especial e independente. Eu só conheço uma espada de dois gumes; a do poder temporal e a do poder espiritual; de tres nunca m'a ensinaram nem demonstraram: e então se não estivesse no decreto de 9 de agosto de 1833, estabelecida a prohibição de todo e qualquer prelado maior, devíamos pelo menos fazer lei no mesmo sentido, para que fosse abolido, e nunca mais consentido em Portugal qualquer estabelecimento religioso que tivesse um superior geral; por uma espécie de quarto voto, capaz de produzir desobediências similhantes com offensa de todos os deveres que a religião nos ensina.

Duplicada desobediência: desobediência ao poder do estado, desobediência ao poder ecclesiastico!!

E devia o governo ficar com os braços cruzados? Era impossivel. Ou os ministros da coroa tinham de retirar-se, ou haviam de fazer alguma cousa, para desaggravar a sua própria auctoridade, e ao mesmo tempo a do prelado diocesano. Foi legal o seu procedimento? Não careço de muitos argumentos para demonstrar que foi legal; não preciso recorrer a argumentos auxiliares; não me importam os precedentes, nem as diversas interpretações que se tem dado ao decreto de 9 de agosto de 1833: ter-se-ha feito muita cousa regularmente; ter-se-ha feito muita cousa contra a lei, mas a lei sobrevive a todas as suas applicações bem ou mal feitas e é só por ella que vou aferir o procedimento do governo.

O governo firmou-se no decreto de 9 de agosto de 1833, e esse decreto prohibiu effectivamente a subsistência de quaesquer corporações religiosas que insistissem em prestar obdiencia a prelados maiores no reino, e por maioria de rasão e com mais fortes motivos aos prelados maiores de fora do reino.

Esta questão foi tratada largamente nas cortes de 1822; tomaram parte na sua discussão caracteres muito respeitáveis, sábios d'esta nação, homens profundos em conhecimentos, como Guerreiro, Ferreira Borges, Vaz Velho e o Abbade de Medrões.

Não esqueceu ao antecessor do dignissimo prelado que está presente tomar a defeza da subsistência dos prelados maiores, mas foi cabalmente respondido pelos oradores que usaram da palavra sobre a matéria.

Não quero cançar a camará, e desejo não tornar muito longo o meu discurso, e por isso lerei somente d'esta discussão os trechos seguintes:

« Acho a maior anomalia no que propõe um respeitável prelado membro d'esta assembléa, isto é, ficarem os religiosos sujeitos a um prelado superior, e ao mesmo tempo aos bispos das respectivas dioceses; isto seria o mesmo que um corpo com duas cabeças; o que certamente se não pôde defender por principio algum civil, religioso ou canónico.

« ... Que partido deveria tomar a commissão, senão aquelle de sujeitar os conventos aos seus respectivos bispos; e por consequência desliga-los dos prelados maiores?

« Esta resolução é mais util ao publico e á igreja, e ainda mais conforme ao espirito religioso dos primeiros séculos dos christãos.

« Mais util ao publico e á igreja, porque os bispos ficam mais aptos e em circumstancas mais adequadas para empregarem os religiosos com fructo nos benefícios ecclesiasticos. Ao espirito religioso dos primeiros christãos, porque os primeiros instituidores e propagadores das corporações regulares, Santo. Antonio, S. Basilio, e Santo Athanasio, não escolheram a presente disciplina relativamente a prelados maiores, mas sim a de estarem sujeitos aos ordinários em conventos separados.

« Como seja uma verdade muito sabida, que a pureza dos costumes e espirito religioso dos christãos, está na rasão da maior proximidade dos tempos apostólicos, segue-se que a commissão adoptou o partido mais seguro e mais são, seguindo o costume dos primeiros séculos, de que se elegesse o que só começou em geral depois do decimo século por diante.»

Estas e outras considerações que estabelecem a maior evidencia n'esta questão, levaram o congresso de 1822 á resolução de adoptar a abolição de prelados maiores, como se vê do artigo 39.° da lei de 24 de outubro d'esse anno,

que pôde reputar-se a fonte da idêntica disposição que se encontra no decreto de 9 de agosto de 1833.

È pois para mim fora de toda a duvida, que o governo fazendo no caso occorrente uso do decreto de 9 de agosto de 1833, fez uma justa e exacta applicação da lei, e que por tanto não merece censura alguma.

Todavia contra esta applicação tem-se produzido diversos argumentos, qual o de dizer-se que o decreto não falia de um superior geral, mas de prelados maiores. Já ouvi este argumento, mas parece-me que não merece resposta, porque ó uma simples argúcia ãe palavras, que têem a mesma significação.

Diz-se mais, e n'este argumento se empregou grande cabedal, que a congregação das irmãs da caridade não constituem uma casa religiosa, e isto por dois fundamentos: 1.°, porque os votos são simples; 2.°, porque são temporários.

Ora, aqui ha dois sophismas. O primeiro é de se confundir a congregação com os individuos; tanto esta communidade é uma communidade religiosa, que a lei que a estabeleceu, e o decreto de 14 de abril de 1819 a dispensou das leis da amortisação.

O decreto de 9 de agosto de 1833 falia em geral de ordens e corporações religiosas.

A definição de corporação religiosa é a que dá o abbade André nos seguintes termos:

« Chama-se congregação ou communidade religiosa qualquer associação composta de certo numero de pessoas, ligadas por votos religiosos a viver sob o império de estatutos sanecionados pela auctoridade ecclesiastica. »

Confunde-se pois, sr. presidente, n'esta argumentação o género com a espécie, distinguindo-se na lei geral o que ella não distinguiu.

Portalis em um relatório a respeito de congregações religiosas, dizia: «Toda a ordem monástica é uma congregação religiosa, mas nem toda a congregação religiosa é uma ordem monástica; a'questão do voto, ou a de ser simples ou temporário, também não vem para o caso, porque existem communidades com o fim religioso com votos que são simples. Simples são os voto3 dos padres lazaristas, e com tudo só o summo pontifice os pôde desligar dos mesmo3 votos, como é expresso nas bulias respectivas.

Os votos das irmãs da caridade obrigam por um anno, mas é preciso que eu dê conhecimento á camará do que significa eite voto que se diz annual.

Esta prescripção do voto por um anno, foi um pio estratagema de S. Vicente de Paulo; não sou eu que o digo, é na historia da vida do próprio santo; não digo bem, é nas constituições communs da ordem de S. Vicente de Paulo, mandadas imprimir por D. João V, e prologo que as precede, que se encontra a descripção e significação d'este voto.

«Sane ex speciali pra3?idio Christi, copiose remunerantis fideles sponsas, quaí í 111 assidue serviunt in membris suis; multum quoque hic debetur ccelesti prudentise sancti fun-datoris.

«Etenim ut filiaram castitatem semper servaret perennem, jussit eas ligari continentise voto, dumtaxat pro annocurren-te; ita ut si in propósito perseverant, teneantur secundo se-meslri ejusdem anni, precibus enixis postulari licentiam iterandi votum anno próximo sequenti, et sic ãeinceps.

«Ita ut semper professai et semper novitice; ligatai semper, et semper liberoe, usque ad mortem perseverent casta?; et semper volentes nubere nunquam nubant.

«Nihil sane utilius eis hac libertate nubendi, ut luben-tius perseverent in sancta voluntate continendi.

«Nituntur enim filii Adam in vetiura, et param, aut ni-hil de licitis curant, prassertim si fuerint verecunda, cujus modi sunt nuptise, deo aliquando dicatis virginibus; et si, pro conditione fragilitatis humanse, quandoque tentantur, perfacile superant tentatorem.

«Si nubere velint, inquient, anno hoc elapso nubam, salva fama, et conscientia mea, et manente instituti mei existimatione intemerata.

«ínterim labente anno, labitur tentatio; et sic prudentes virgines, à patre sapientissimo edoetse, hac arte piíssima, de anno in ahnum suporem libidinis eludunt, sieque annos et annos, totam que vitam, in sancto propósito servanda? virginitatis perseverant, puríssimo que virginum sponjugi-ter et in perpetuum aãhaerent.»

De sorte que o voto temporário ou annual é assim pres-cripto na intenção de se converter em perpetuo, e tem assim um fim muito moral, qual o de fazer com que as religiosas nunca se reputem escravas, e pratiquem a caridade, não pela obediência do voto, mas pela espontaneidade que dá o maior realce a uma virtude tão sublime na mulher.

Abstrahindo d'estas considerações, eu não acreditaria, se o não tivesse ouvido affirmar, que podesse existir alguém que duvidasse de que as irmãs da caridade constituem uma corporação religiosa.

Ou ellas não são o que devem ser (e o que são), e não podem ser o que se espera d'ellas, ou as acções de heróica dedicação e abnegação, que se lhes attribuem, não têem outra explicação possivel senão o estimulo do vinculo religioso (apoiados).

E como eu entendo a caridade pelo amor de Deus. Só a religião é capaz de produzir estes prodigios, como diz o bem escripto relatório sobre a casa pia, feito por um nosso collega provedor d'aquelle estabelecimento.

Diz elle que só da influencia religiosa pôde vir esta sublima dedicação, que nunca se pôde comparar com a que resulta da philantropia. (O sr. Marquez ãe Vallaãa:—Muito bem.)

Também se fez objecção, sr. presidente, com os decretos de 14 e de 29 de julho de 1834,. um que extingiu as ordens militares, outro que extinguiu a do oratório, denomi-

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nada de S. Filippe Nery, que se eram corporações religiosas tornavam inúteis esses decretos, porque já estavam comprehendidas no decreto de 9 de agosto de 1833.

O argumento porém é contraproducente porque esses decretos nada mais contêem do que a applicação formal do de 9 de agosto de 1833; são decretos, não com caracter de de lei, mas corollarios d'ella derivados, são disposições que declaram que a applicação da lei ou decreto a que se referem comprehende mais áquellas ordens, que não se deram logo por extinctas, comquanto o devessem igualmente ser, segundo o espirito, e mesmo pela letra do decreto. Não são pois mais que casos julgados pelo próprio legislador.

Algumas ordens religiosas effectivamente não tinham os votos que se estabeleciam no seu começo, quando tinham os tres votos da castidade, pobreza e obediência. Nas ditas ordens militares, por exemplo, a castidade absoluta foi trocada pela castidade conjugal, e n'este caso estão ainda hoje os mosteiros de Santos e Encarnação, cujas freiras são professas, e todavia podem casar, obtendo licença do seu superior, que lhes não será negada, se diz nos respectivos estatutos, e se lhes for recusada podem casar mesmo sem licença.

Também se argumentou com o decreto de 1851, que mandou incorporar nos estabelecimentos das misericórdias a instituição das irmãs da caridade, assim como desenvolver o seu instituto.

Mas este argumento não prova derogação do decreto de 9 de agosto, mas do decreto de 5 do mesmo mez, que pro-hibiu a admissão aos noviciados, e só está ligado com os preceitos do decreto de 9 de agosto quanto á suppressão dos conventos por falta de numero canónico de religiosas, não determinando cousa alguma quanto a prelados maiores, e nem esse era o seu objecto.

Alem de que já o sr. ministro da justiça aqui muito bem notou, que n'essa epocha, a do decreto de 1851, já as irmãs da caridade de S. Vicente de Paulo estavam sujeitas aos prelados diocesanos. Este decreto pois tomou-as na situação em que se achavam então, assim de direito como de facto.

Argumentou-se mais para se attenuar a desobediência, com dizer-se que a obediência das irmãs da caridade ao seu superior se limitta a cousas de administração interna, o que em nada prejudicam a auctoridade dos bispos diocesanos.

Ora, eu digo pelo contrario que ha n'essa obediência alguma cousa, e que assim se reconhece não só em França, d'onde nos veio esta instituição, como nos próprios estatutos ou constituições communs, porque se regem a congregação de missões e os superiores d'ella, como successores de S. Vicente de Paulo.

Não ha n'estes estatutos distincção nenhuma; é n'elles consignada a direcção superior sem esses limites, e não sei como elles se hão de fazer por parte das religiosas, como ellas as hão de distinguir. (O sr. Marquez de Vallada:— Encontrara-se nos preceitos especiaes do seu instituto.) Quero conceder que lá esteja esse capitulo; mas qual é a sua utilidade pratica, se a obediência, a que as irmãs da caridade se ligam, é cega, com abdicação do próprio juizo e vontade; e se não glosar os preceitos do superior geral, devendo ellas ser meros instrumentos de execução, como a lima nas mãos do artista?

Também se argumentou com a novíssima carta de lei de 4 de abril d'este anno, no artigo 4.°, sobre individualidade juridica nos termos da lei commum, que ahi se reconhece ás corporações existentes; concluindo-se que depois d'esta lei, não podia ser dissolvida a congregação das irmãs da caridade pelo decreto de 22 de junho. Este argumento tem a mesma resposta que teve o que se firmou no decreto de 1851; tomou a dita carta de lei como existentes as corporações religiosas que o estivessem legalmente: e nem protegeu interesses senão os legítimos dos seus institutos, quaes não podem ser os da sujeição a um prelado maior, caso em que, conforme á disposição do decreto de 9 de agosto de 1833, fica cessando ipsojure e ipso facto a entidade juridica.

Também se argumentou ad odium, tomando-se o decreto de 22 de junho como de perseguição e de oppressão contra o instituto das irmãs da caridade. Este argumento porém têm perdido muito da sua força, pois que já um digno par disse aqui na ultima sessão, que n'esta discussão muito têem ganho as irmãs da caridade, por ser geral em seu favor a manifestação de todos os lados da camará.

Pelo que me pertence, ha muitos annos que tenho predilecção por esse instituto, e a tenho manifestado, não só commentando o artigo do código penal, mas redigindo o relatório que acompanhou n'esta camará, por parte da commissão de fazenda, o projecto sobre que foi feita a referida lei de 4 de abril.

Já vê pois a camará que, longe de me oppor, desejo a consolidação e desenvolvimento do instituto das irmãs da caridade, mas não as recommendo com enthusiasmo em relação ao ensino, á educação da infância.

Quero-as não só docentes, mas hospitaleiras, e com especialidade para as destinar para o serviço das prisões penitenciarias do sexo feminino, quando as tivermos.

Vi, presenciei na França e na Bélgica, as funcções de carceragem que as irmãs da caridade desempenham em taes estabelecimentos.

Na verdade é um edificante espectáculo esse de contemplar mulheres que por virtude de seu voto religioso se clausuram, no recinto de uma prisão, servindo já de porteiras, já de guardas nos corredores, dia e noite, já de inspectoras, assim no systema do isolamento, como no do trabalho em commum.

Assim eu desejo que no nosso paiz hajam instituições d'esta natureza, que sejam escolas normaes aonde se pre-

parem e se habilitem irmãs da caridade para exercer os diversos actos do seu ministério, sem se limitarem aos da instrucção primaria nem aos da educação da infância desvalida.

É porém necessário que esta instituição seja reconhecida por lei, ou que o governo em conformidade eom a lei já existente a auctorise, porque os individuos de corporações não auctorisadas, somente podem praticar actos de vida religiosa, a titulo individual, nos termos do direito commum.

Também foi arguido o governo de haver exorbitado por que sendo duvidosa a intelligencia do decreto de 9 de agosto de 1833, o mais natural e prudente seria recorrer-se, no caso, ao poder legislativo.

Mas se as duvidas não estiveram da parte do governo, executor da lei, e por isso applicou as regras da interpretação doutrinal: não se pôde arguir o governo, de ter cumprido a lei como entendeu, usando do seu direito para desempenho da sua obrigação.

I Teria que fazer constantemente o parlamento, se só por que apparecem diversas opiniões acerca da intelligencia ou comprehensão de uma lei, fosse necessária a interpretação authentica, feita pelo poder legislativo.

Sendo pois inconcludentes todos os argumentos que se produziram contra a applicação do questionado decreto, resta-me dizer duas palavras sobre o uso especial que o governo d'elle fez no que respeita á sua sancção.

O decreto de 9 de agosto tem n'isso duas partes distin-ctas: emquanto á communidade manda dissolve-la; e como consequência d'esta dissolução determina que os seus bens sejam incorporados nos próprios nacionaes: emquanto aos individuos manda que elles sejam processados e punidos como rebeldes ás ordens da rainha.

Ora, o governo pelo decreto de 22 do mez passado, li-mitou-se a determinar a dissolução da corporação das irmãs da caridade, e procedendo assim entendo que fez bem.

O decreto não está hoje subsistente quanto á incorporação dos bens: pois que os bens das corporações religiosas existentes hão de ter sempre o destino determinado na carta de lei de 4 de abril ultimo, ou seja para estabelecimentos religiosos onalogos, ou seja para sustentação do clero.

Também o decreto não podia ser applicado em toda a sua extensão quanto á sua penalidade.É preciso entende-lo com relação á epocha em que foi promulgado.

Sr. presidente, as palavras «rebeldes á rainha» que se lêem no decreto de 9 de agosto de 1833, escreveram-se ali n'aquella occasião, como meio de guerra e de vencer qualquer resistência; mas hoje a criminalidade rege-se pelas leis vigentes (apoiados). O código penal no seu artigo 188.° pune quem falta «á devida obediência aos mandados da auctoridade publica», e o crime tem não só uma pena correccional em si mesma já muito moderada, mas são-lhe applicaveis, nem podia deixar de o serem, todas as circumstancias dirimentes ou attenuantes, em conformidade com o mesmo código. Pelas primeiras fica letra morta toda a penalidade: pelas segundas podem ser reduzidas a muito pouco.

Ora, sempre que alguem pratica um facto constrangido por uma força irresistível: quando essa pessoa estava impedida de ter perfeito conhecimento do mal que pratica desapparece no mesmo facto o elemento moral, e cessa por tanto a acção penal. Ora, que houve uma força irresistível já eu o mostrei.

Se as religiosas se acham possuídas da idéa concebida ou suggerida de que commettiam um peccado, uma transgressão especial dos seus estatutos; é isso pelo menos uma circumstancia attenuantissima. Não posso portanto combater a providencia repressiva de que o governo usou, e de que somente devia usar, nem como exorbitante, nem como diminuta ou deficiente. ^ Por esta occasião direi, sr. presidente, que ha no decreto do governo uma expressão que não approvo, é a expressão jamais.

Jamais parece significar que em tempo algum poderão as irmãs da caridade usar dos direitos civis inherentes á individualidade juridica. A morte civil acha-se hoje abolida em França e na Bélgica: a morte civil do individuo é muito similhante á morte civil da individualidade juridica: hoje tudo se reduz n'este ponto a interdicções temporárias ou indefinidas, e estas são sempre resolutorias ou condicionaes.

E um principio por todos reconhecido, que cessando a causa deve cessar o effeito; • mas a expressão jamais pôde dar a entender, certamente contra as intenções "do governo, que em tempo nenhum podem as irmãs da caridade do instituto de S. Vicente de Paulo recuperar a entidade juridica; quando não é assim, sr. presidente, porque hoje ou amanhã, ou logo que haja pessoas que queiram submetter-se ao disposto no decreto de 9 de agosto de 1833, e que obedeçam ao prelado diocesano sem reserva, o governo não lhes pôde recusar o reunirern-se em communidade. .

Não se confunda a dissolução da entiãaã* juridica que existia com a extinção da entidade religiosa legalmente auctorisada e sustentada pelas leis existentes: uma cousa é differente da outra.

Entendo por isso que emquanto o instituto de S. Vicente de Paulo não for abolido no reino, como foi o dos jesuítas, e os das corporações religiosas do sexo masculino, a todo o tempo que as religiosas do referido instituto se submette-rem sem a menor reserva ao prelado diocesano deve ficar cessando a dissolução.

Em conformidade com o código penal, o cidadão que renunciou á religião do estado, e que por isso incorre na perda dos direitos politicos, e se é um clérigo de ordens sacras é expulso do reino; remove iuteiramente a pena imposta por sentença, logo que volta ao grémio da igreja. Parece-me portanto que está pelo menos no espirito da

legislação moderna que logo que cesse a situação actual d'estas religiosas, que é uma espécie dc scisma religioso, devem ellas ser restituídas ao seu estado anterior. Não sei se ellas reconsiderarão, nem se os seus superiores ou .conselheiros n'isso consentirão, mas digo que se assim acontecesse, a conclusão seria muito regular, para fazer cessar o estado de interdicção em que se collocaram.

E cumpre também notar que ha muita differença entre a dissolução da communidade e a da individualidade juridica.

Na França ha corporações'reconhecidas e não reconhecidas, e a Bélgica está cheia d'estas corporações não reconhecidas. A corporação das irmãs da caridade no estado em que actualmente se acha, não é senão uma associação de individuos com o fim religioso.

Emquanto viverem em commum domiciliadas na mesma ou em outra casa, qualquer que seja o seu numero, podendo ainda agregar de fora com diverso domicilio um numero que não seja superior a vinte, e com tanto que não façam juramento de occultar á auctoridade publica o objectoJcactos resultantes da sua reunião é uma associação admittida sem dependência do governo; porque não está prohibida pelo código penal; porque o direito da associação é um dos direitos originários do homem (apoiados); porque as pessoas que vivem em communidade em taes circumstancias, são pi-otegidas por tres principios todos garantidos na carta constitucional, que são os da liberdade individual; da liberdade religiosa, e da inviolabilidade de domicilio, na conformidade do § 4.* do artigo 145.* da carta: «Ninguém pôde ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do estado, e não offenda a moral publica». Esta é a legislação franceza; e d'ella foram textualmente copiados os artigos do nosso código penal restrictivos ou permissivos dos direitos de associação. Eu mais teria a dizer sobre este e outros pontos em que tenho tocado, mas, sr. presidente, receio fatigar a attenção da camará sobre um objecto como este, que apesar da sua importância, é árido. (0 sr. Visconãe ãe Fonte Arcaãa:—Não tem fatigado.) Direi todavia mais que a instituição das irmãs da caridade não tem uma ligação ou relação essencial com o instituto da congregação das missões. Das regras ou constituições communs de S. Vicente de Paulo, que aqui tenho presentes, se vê a pouca importância que a congregação deve dar a esta direcção superior das irmãs da caridade. Effetivamente ellas subsistiram muito tempo antes de haver os padres lazaristas; e por muitos annos depois sem estar sujeitas ao superior da coagregação das missões em França; e isto p'or uma rasão muito simples, porque essa congregação esteve ali abolida, como outras ordens religiosas.

Admittidas as irmãs da caridade em ser collectivo, ou como entidade legal em 1809, ainda continuaram libertas de toda essa sujeição, por isso que a congregação dos lazaristas, só foi readmittida em 1816 e ali consolidada em 1823.

E note-se, por esta comparação de datas, que o nosso decreto de 1819, coincide com esta situação, e que portanto foi promulgado a favor do instituto das irmãs da caridade em tempo em que ellas não se achavam subordinadas ao superior das missões... (O oraãor interrompenão-se.) Agora conheço que eram bem fundados os meus receios... E uma lição...

Sr. presidente, eu dou por concluído o meu discurso. - Vozes: — Deu a hora. O sr. Presiãente: — Ainda não deu, e tem a palavra o sr. visconde de Fonte Arcada sobre a ordem. (Entrou o srs. ministro ãa guerra.)

O sr. Visconãe ãe Fonte Arcaãa:—Sr. presidente, eu tenho attendido ao importante debate, que nos tem occupado por estes dias, com toda aquella attenção que me é possivel; e parecia-me que seria bom, que d'esta discussão importantíssima, como tenho visto reconhecer pelos dignos oradores que têem fallado sobre a matéria, se tirasse algum proveito d'ella, e que a camará, fazendo o seu juizo sobre o que se tem passado, quizesse manifestar o seu modo de sentir sobre este objecto. É por isso, sr. presidente, que me lembrei de fazer esta proposta, que vae para a mesa, e que a camará avaliará na sua sabedoria, sem que eu queira fechar a discussão, por quanto ainda ha alguns dignos pares que querem fallar sobre este assumpto. Entendia eu, sr. presidente, que, como disse, seria bom que a camará se manifestasse sobre o que se tem tratado, e é este o modo como me parece que ella podia manifestar a sua opinião sobre este objecto; e portanto mandarei para a mesa esta proposta:

«Ouvidas as explicações dadas pelos srs. ministros, e os dignos pares, que tomaram parte n'esta discussão, a camará resolve, que se recommende ao governo, que, quanto antes, obtenha de sua santidade a auctorisação necessária, para que em Portugal e seus domínios se possa estabelecer a congregação das irmãs da caridade, segundo a regra de S. Vicente de Paulo, mas independente de qualquer superior que não resida em Portugal, e que não esteja sujeito ás auctoridades diecosanas.=Ft'sconáe ãe Fonte Arcaãa.» O sr. Marquez ãe Vallada:—Eu peço a palavra. O sr. Presiãente:—Peço attenção á camará para se ouvir ler a moção do digno par. (Leu-se).

O sr, Presiãente:—O primeiro passo que tenho a dar é consultar a camará se admitte esta proposta do sr. visconde de Fonte Arcada, e os dignos pares que a admittem queiram levantar-se. Não foi venciãa.

O sr. Presiãente:—Não está admittida. Continua a discussão, e tem o sr, marquez de Ficalho a palavra.

O sr. Marquez de Ficalho:—Se não fosse a necessidade de dar uma explicação, de certo cedia da palavra; mas pa-

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receu-me que o pequeno discurso que proferi n'esta camará, porque não tinha idéa de que se tratava esta matéria, excitou,a susceptibilidade dos meus collegas, e portanto tenho que, dar agora uma explicação. Não tive nem o minimo pensamento de fazer aceusações a ninguém, nem alludir a uma pessoa para mim tão respeitável. Não direi agora, senão* que, entre as verdades que disse o sr. Costa Lobo, ha uma' que devo confirmar, e vem, a, ser—a, sinceridade da minha, palavra, e não menos o muito respeito que tenho pelas., idéas do digno,par; porque, alem, de outras ligações,, ha,a de eu.ter sido,seu companheiro, quando aprendi com s. ex.a a exercer a.caridade,, a respeito da qual nada ensinei a s. ex.a, pelo contrario, aprendi.

Ao sr. Joaquim Filippe de Soure escuso de dizer que sou seu amigo sincero, porque o sabe, mas s. ex.a fez-me o convite — para que eu tratasse d'este objecto, não pelo lado sentimental; convite que não posso aceitar, pois s. ex.a bem sabe que eu não sou jurisconsulto, e tive a sinceridade de declarar á camará que as minhas habilitações somente chegam para ser um consciencioso jurado.

O meu costume n'estes assumptos é ouvir a discussão attentamente, e consultar depois as pessoas que me parecem competentes. Foi exactamente o que fiz; e'na consulta achei que uns me diziam sim, e outros não; e os que achava mais prudentes diziam = fortes motivos de duvida podem haver =. Reduzido assim unicamente á minha rasão, perguntei a mim mesmo o que faria eu n'este caso? Pedir ao governo uma resolução prudente e franca.

Ora como eu, não n'esta casa, mas na camará dos srs. deputados, ouvi a um dos srs. ministros dizer =que muitas vezes se lhes indicava o que não deviam fazer, mas nem uma o que deviam = eu peço licença para lhe dizer aqui 0 que eu faria sendo governo. Chegaria ás camarás e diria =honrados deputados e dignos pares do reino; eu, governo, tenho duvidas sobre a possibilidade da existência d'esta. instituição em Portugal, preciso lei; e no meu entender convém a conservação do instituto, porque eu, como governo, desejo dar a mais lai'ga concessão ao espirito de caridade; porque eu, governo,- desejo ver melhorada a educação do povo, desejo ver moralisados os criminosos que povoam as cadeias, desejo ver os hospitaes servidos por gente que só cuida dos doentes por espirito de caridade; porque eu, governo, desejo dedicar-me aos hospitaes quanto possivel, e não quero pôr condições á caridade particular, que hoje n'esta capital tem já estabelecido um hospital, e tem outro annunciado, que é o de Sua Magestade a Imperatriz na ilha da Madeira; por consequência eu, governo, não tendo meios no orçamento, e precisando armar-me para esta questão social, apresentava-me ao parlamento e dizia —eu não posso aceitar senão os meios em que acredito, porque esta é uma questão social que só se resolve tendo estes meios ao meu alcance. = Dizia-me o parlamento =não vo-los concedo.= Eu respondia pois = resigno o meu logar. =

Ora, sr. presidente, eu não estava instruído na questão juridica, e por isso, como já disse, informei-me, consultei, e a final fiquei muito mais confuso do que antes. Mas ha uma parte que me faz maiè impressão. O primeiro ataque a esta instituição não foi pelo lado da legalidade, foi pelo lado da capacidade dos individuos que compunham esta corporação. Não repetirei nem o que se disse nem o que se fez n'essa occasião, porque, como eu já tive a honra de expor, não é minha intenção offender ninguém, e não faço senão defender-me; assim como também já disse que preferia antes, em questões d'estas, ser victima do que algoz. Sr. presidente, não está no meu programma dizer como foi feita esta manobra, ella foi publica. Houve a segunda epocha: então foi a questão do ensino, do gravíssimo transtorno que podia vir a esta sociedade, dando-lhe o ensino religioso simultaneamente. Esta questão tratou-se largamente por os homens competentes, mas não progrediu. Veio a terceira epocha, e esta é a da legalidade. N'esta épocha, sr. presidente, appareceu uma representação, que uns dizem que ¦é do povo, outros que não (não me pertence agora fazer apreciações dos representantes); n'esta representação se diz = quando a letra não seja clara, o espirito de certo que é=. Ora todos estes acontecimentos, a certeza de que as irmãs da caridade portuguezas, em uma grande parte da sua existência, -tinham obedecido ao seu geral em Paris, sem que por isso tivessem passado por nenhum incommodo, sem que ihes tivessem imposto nenhuma condição, não se perguntando nunca o que ellas eram, a quem estavam sujeitas, a certeza, digo, de que obedeciam ao seu geral em,Paris, tanto que ouvi dizer a uma d'ellas, e das mais respeitáveis (creio que era a irmã Joaquina) «até 1838 fui irmã da caridade, de 1838 para cá pôde ser que tenha tido caridade, mas não tenho pertencido á congregação, seguindo a regra de S. Vicente de Paulo.» Isto, sr. presidente, para um homem leigo como eu, todos esses documentos, o decreto de 1819 e o de 1851, a certeza de que estas pessoas estavam obedecendo, os homens de estado deixando sempre passar, os homens competentes pedindo o que?... O que elles deviam saber, porque não é permittido pedir sem saber o que; todos estes acontecimentos, digo, fizeram em mim uma gravissima impressão; por consequência-eu pediria ao governo que viesse á estação competente apresentar a questão para ser tratada como ó conveniente que ella o seja; venha, venham v. ex;as com' os seus amigos, inimigos do instituto; venham todos a quem compete entrar n'este julgamento, e eu não tenho receio de que triumphè uma má causa. Eu mesmo imagino que tenho milhares de.argumentos a.produzir, porque n'essa occasião não hei de só'dizer o que < se precisa, mas hei de dizer também o. que. falta ao meu paiz: hei. de fazer: mais, hei de pedir á camará que não resolva sem nomear, uma commissão de inquérito, que não só,veja.o estado da„educação dos filhos do povo, mas veja,como se dá.na instituição das irmãs da. caridade.

Sinto que não esteja presente o sr. ministro da marinha, que me pareceu que no outro dia tinha feito uma allusão a outros tempos, dizendo: também foste já victima da calumnia !

Oh, sr. presidente! Calumnias todos nós temos passado por ellas, aqui mesmo n'esta camará; mas eu respondo a isto, dentro do programma que fiz n'esta questão. Direi simplesmente: se esse homem que foi meu general se levantasse, e com aquella voz de trovão com que nos mandava á victoria, perguntasse: «que tendes feito?» Eu diria: sr., ainda hoje vive intacto no meu peito o amor que tenho por Vossa Magestade! Senhor, os objectos que vos eram mais caros, têem sido constantemente o objecto das minhas homenagens, e do meu respeito; as suas virtudes sublimes que fizeram a felicidade da vossa vida, são hoje a consolação dos afflictos! Senhor, lembra-me com prazer os exemplos religiosos que me destes, segui-os, cumpri com verdade e constância todos os preceitos que manda a santa igreja; a liberdade porque eu combati, quando vos fui servir, fostes vós quem m'a inspirou!.. Quem me guiou ao combate, foi esse amor frenético que ainda hoje tenho á liberdade, que é boa, quando ella é para todos, mas qnando é para um só grupo, ou para uma só idéa, então não presta, não serve para nada!

Leram-se na mesa os requerimentos do sr. marquez de Vallada, que são ão teor seguinte:

«Requeiro que sejam pedidos pela secretaria d'esta camará ; ao ministério da justiça:

O mappa da criminalidade desde o anno de 1826 inclusive, até o anno de 1860 inclusive, no qual se declare quaes e quantos foram julgados, qual a pena que soffreram, quantos e quaes foram perdoados, quantos absolvidos, e quaes os crimes, os auctores dos quaes não foram presos nem julgados.

Para o ministério do reino:

Os documentos que teve em vista para ordenar a pesquiza feita na typographia universal. Para o ministero da fazenda:

Os documentos que têem relação com o crime de contrabando perpetrado na alfandega do Porto, na remessa destes documentos comprehendo-se as informações das auctoridades, as ordens do governo e quaesquer outras que possam illustrar a questão.

Camara das pares do reino, em 5 de julho de 1961. = O par do reino, Marquez ãe Vallaãa. »

Postos á votação estes requerimentos foram approvaãos e manãaram-se expeãir.

O sr. Marquez ãe Vallaãa: — Sr. presidente, sendo a questão que se tem ventilado bastante grave, e tendo nós tido sessão todos os dias, eu pedia a v. ex.a quizesse determinar que a seguinte sessão tenha logar na segunda-feirâ, porque todos os dias é impossivel, mesmo pela necessidade que ha de estudar a matéria. Pedia isto a v. ex.a não havendo inconveniente.

O sr. Presiãente: — Eu não posso decidir simplesmente por mim; portanto consultarei a camará.

Vozes:—Nào é preciso: isso compete ao sr. presidente. O sr. Presidente: — Os dignos prres têem ouvido a indicação do sr. marquez de Vallada; s. ex.* pede que amanhã não haja sessão, porque assenta que a matéria ainda necessita de estudo.

O sr. Ministro ãa Justiça (Moraes Carvalho): — Parece-me que a indicação do digno par seria muito aceitável, e talvez fosse mais conveniente que não ficasse a sessão para segunda-feira, mas para a terça, porque está em discussão na camará dos srs. deputados a resposta ao discurso da coroa, e talvez os ministros não possam vir aqui não só amanhã, mas mesmo na segunda-feira, entretanto v. ex.a determinará o que julgar conveniente.

O sr. Presiãente: — Bem: n'estas circumstancias ficará a sessão para terça-felra, e será a ordem do dia a continuação da mesma. Está levantada a sessão. Eram quasi cinco horas e meia ãa tarde

Relação dos dignos pares que estiveram presentes na sessão

do dia 5 de julho de 1861 Os srs. Visconde de Laborim: Marquezes de Ficalho, das Minas, de Niza, de Vallada; Condes das Alcáçovas, do Bomfim, de Mello, de Penamacor, de Peniche, da Ponte, do Rio Maior, do Sobral; Bispo de Beja; Viscondes de Algés, de Balsemão, de Castellões, de Castro, de Fonte Arcada, de Fornos de Algodres, de Sá da Bandeira; Barões das La-rangeiras, de Pernes, da Vargem da Ordem, de Foscoa; Mello e Carvalho, Mello e Saldanha, Sequeira Pinto, Ferrão, Costa Lobo, Margiochi, Moraes Pessanha, Aguiar, Soure, Larcher, Braamcamp, Pinto Bastos, Silva Costa, Reis e Vasconcellos, José Lourenço da Luz, Baldy, Silva Sanches, Castello Branco, Franzini, Brito do Rio.

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