O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 1

REPUBLICA PORTUGUESA

DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

19.ª SESSÃO

EM 12 DE JULHO DE 1911

SUMMARIO. - Antes da ordem do dia: Chamada e abertura da sessão. - Leitura e approvação da acta. - Ao começar-se a leitura do expediente o Sr. Presidente chamou a attenção da Assembleia para o officio em que a legação da Republica do Uruguay offerecia um exemplar da obra "El Uruguay á traves de un siglo". A Assembleia deliberou que se agradecesse a offerta. - Finda a leitura do expediente, teve segunda leitura a proposta do Sr. Deputado Manuel José da Silva para que a commissão respectiva elabore uca projecto de lei aperfeiçoando a organização dos tribunaes de arbitros avindores para que desde já seja suspensa a execução do regulamento sobre greves e para que sejam amnistiados todos os cidadãos arguidos de delicio de greve. - O Sr. Ministro do Interior (Antonio José de Almeida), respondendo a alguns Deputados que se lhe dirigiram em sessões anteriores, communicou as providencias que já tomara relativamente ao administrador do concelho de Oliveira do Hospital; á demissão do administrador do concelho de Óbidos; á nomeação do Sr. Deputado Jorge Nunes para governador civil do districto de Beja; a acontecimentos que se deram no lyceu Passos Manuel em Lisboa durante um conselho escolar; a manifestações de hostilidade na rua contra determinada opinião do Sr. Deputado Jacinto Nunes; á accumulação de funcções por parte de alguns administradores de concelho; e, querendo referir-se tambem aos ultimos acontecimentos de Coimbra, diz que o não deseja fazer sem primeiro ter ouvido o Sr. Ramada Curto. - Este Sr. Deputado usa da palavra. - O Sr. Ministro do Interior menciona as informações officiaes que tem sobre o assunto e declara ao Sr. Deputado Pontinha que já mandou proceder a um rigoroso inquerito para saber quaes são os empregados publicos que faltam aos seus deveres. - A requerimento do Sr. Deputado Alvaro de Castro a Assembleia resolve que na sessão seguinte seja discutido, antes da ordem do dia, o projecto relativo ao julgamento dos conspiradores. - O Sr. Deputado Botto Machado refere-se á accumulação de menores na cadeia do Limoeiro e apresenta um projecto de lei remodelando o Diario do Governo. - O Sr. Ministro dos Negocios Estrangeiros e interino da Justiça (Bernardino Machado) informa quaes as providencias que já adoptou para obstar a que continue a accumulação de menores reclusos no Limoeiro. - O Sr. Deputado José Cordeiro refere-se áquelle mesmo assunto e pede providencias contra o jogo de azar. O Sr. Ministro do Interior responde quanto a este ultimo assunto. - Alguns Srs. Deputados requerem documentos. - O Sr. Deputado José Pereira Basto annuncia uma interpellação ao Sr. Ministro da Justiça sobre o procedimento havido com o parocho de S. Felix da Marinha, accusado de desrespeitar as leis da Republica.

Ordem do dia: - Continua a discussão do projecto n.° 3 (Constituição). - Teem successivamente a palavra os Srs. Deputados João de Menezes e Barbosa de Magalhães. - O Sr. Deputado Nunes da Mata manda para a mesa um projecto de Constituição. - O Sr. Deputado Sousa da Camara requer que se julgue discutida a materia na generalidade. A Camara, consultada, rejeita. - Tem a palavra sobre o projecto em discussão o Sr. Deputado Teixeira de Queiroz. - O Sr. Deputado Gastão Rodrigues faz algumas considerações sobre a nomeação do Sr. Deputado Jorge Nunes para governador civil de Beja. - O Sr. Presidente dá conta á Camara de um telegramma de Coimbra informando-o dos tumultos na Universidade. - O Sr. Ministro do Interior dá esclarecimentos sobre o assunto. - O Sr. Deputado Eusebio Leão explica á Camara a situação em que se encontram alguns delinquentes menores no Limoeiro e occupa-se da questão do jogo. - O Sr. Presidente marca a nova sessão para o dia seguinte e encerra os trabalhos da Assembleia.

Página 2

2 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

Presidencia do Exmo. Sr. Anselmo Braamcamp Freire

Secretarios os Exmos. Srs.

Baltasar de Almeida Teixeira
Affonso Henriques do Prado Castro e Lemos

Ás 2 horas e 20 minutos da tarde, o Sr. Presidente declara aberta a sessão.

Na sala achavam-se 184 Srs. Deputados.

São os seguintes: - Abel Accacio de Almeida Botelho Abilio Baeta das Neves Barreto, Achiles Gonçalves Fernandes, Adriano Gomes Ferreira Pimenta, Adriano Mendês de Vasconcellos, Affonso Ferreira, Affonso Henrique! do Prado Castro e Lemos, Albano Coutinho, Alberto Carlos da Silveira, Alberto de Moura Pinto, Alberto Souto Albino Pimenta de Aguiar, Alexandre José Botelho de Vasconcellos e Sá, Alfredo Balduino de Seabra Junior Alfredo Djalme Martins de Azevedo, Alfredo José Durão Alfredo Maria Ladeira, Alvaro Nunes Ribeiro, Alvaro Poppe, Alvaro Xavier de Castro, Americo Olavo de Aze vedo, Amilcar da Silva Ramada Curto, Angelo Rodrigues da Fonseca, Angelo Vaz, Annibal de Sousa Dias, An selmo Braamcamp Freire, Anselmo Augusto da Costa Xavier, Antão Fernandes de Carvalho, Antonio Affonso Garcia da Cesta, Antonio Alberto Charula Pessanha, Antonio Albino Carvalho Mourão, Antonio Amorim de Carva lho, Antonio Augusto Cerqueira Coimbra, Antonio Bar roso Pereira Victorino, Antonio Bernardino Roque, Antonio Brandão de Vasconcellos, Antonio Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, Antonio Caetano Celorico Gil, Antonio Caetano Macieira Junior, Antonio Florido da Cunha Toscano, Antonio Joaquim Ferreira da Fonseca, Antonio França Borges, Antonio Joaquim Granjo, Antonio Joaquim de Sousa Junior, Antonio José de Almeida, Antonio José Lourinho, Antonio Ladislau Parreira, Antonio Ladislau Piçarra, Antonio Maria de Azevedo Machado Santos, Antonio Maria da Cunha Marques da Costa, Antonio Maria da Silva, Antonio Maria da Silva Barreto, Antonio Padua Correia, Antonio de Paiva Gomes, Antonio Ribeiro Seixas, Antonio dos Santos Pousada, Antonio da Silva e Cunha, Antonio Xavier Correia Barreto, Artur Augusto ^a Costa, Artur Rovisco Garcia, Augusto Almeida Monjardino, Aureliano de Mira Fernandes, Baltasar de Almeida Teixeira, Bernardino Luis Machado Guimarães, Bernardo Paes de Almeida, Carlos Antonio Calixto, Carlos Amaro de Miranda e Silva, Carlos Henrique da Silva Mata Pinto, Carlos Maria Pereira, Carlos Olavo Correia de Azevedo, Carlos Richter, Casimiro Rodrigues de Sá, Celestino Germano Paes de Almeida, Christovam Moniz, Domingos Leite Pereira, Domingos Tasso de Figueiredo, Eduardo Abreu, Eduardo de Almeida, Eduardo Pinto de Queiroz Montenegro, Emidio Guilherme Garcia Mendes, Ernesto Carneiro Franco, Evaristo Luis das Neves Ferreira de Carvalho, Ezequiel de Campos, Faustino da Fonseca, Fernão Botto Machado, Francisco Correia de Lemos, Francisco Eusebio Lourenço Leão, Francisco José Pereira, Francisco Luis Tavares, Francisco Antonio Ochôa, Francisco de Salles Ramos da Costa, Francisco Teixeira de Queiroz, Francisco Xavier Esteves, Gastão Rafael Rodrigues, Gaudencio Pires de Campos, Germano Lopes Martins, Guilherme Nunes Godinho, Helder Armando dos Santos Ribeiro, Henrique José dos Santos Cardoso, Henrique d Sousa Monteiro, Inacio Magalhães Basto, Innocensio Camacho Rodrigues, João Barreira, João Carlos Nunes da Palma, João Carlos Rodrigues de Azevedo, João Duarte de Menezes, João Fiel Stockler, João Gonçalves, João José de Freitas, João José Luis Damas, João Luis Ricardo, João Machado Ferreira Brandão, João Pereira Bastos, Joaquim Antonio de Mello Castro Ribeiro, Joaquim José Cerqueira da Rocha, Joaquim José de Oliveira, Joaquim José de Sousa Fernandes, Joaquim Pedro Martins, Joaquim Ribeiro de Carvalho, Jorge Frederico Vellez Caroço, Jorge de Vasconcellos Nunes, José Affonso Palla, José Alfredo Mendes de Magalhães, José Antonio Arantes Pedroso Junior, José Barbosa, José de Barros Mendes de Abreu, José Bernardo Lopes da Silva, José Bessa de Carvalho, José Botelho de Carvalho Araujo, José Carlos da Maia, José Cordeiro Junior, José Cupertino Ribeiro Junior, José Estevam de Vasconcellos, José Francisco Coelho, José Jacinto Nunes, José Luis dos Santos Moita, José Maria Cardoso, José Maria de Moura Barata Feio Terenas, José Maria Pereira, José Mendes Cabeçadas Junior, José Miranda do Valle, José Nunes da Mata, José Pereira da Costa Basto, José Relvas, José Thomás da Fonseca, José do Valle Matos Cid, Julio do Patrocinio Martins, Leão Magno Azedo, Luis Augusto Pinto de Mesquita Carvalho, Luis Fortunato da Fonseca, Luis Innocencio Ramos Pereira, Luis Maria Rosette, Manuel de Arriaga, Manuel Pires Vaz Bravo Junior, Manuel de Brito Camacho, Manuel Goulart de Medeiros, Manuel Jorge Borges de Bessa, Manuel José Fernandes Costa, Manuel José de Oliveira, Manuel Rodrigues da Silva, Manuel de Sousa da Camara, Mariano Martins, Miguel de Abreu, Miguel Augusto Alves Ferreira, Narciso Alves da Cunha, Pedro Alfredo de Moraes Rosa, Pedro Amaral Botto Machado, Pedro Januario do Valle Sá Pereira, Philemon da Silveira Duarte de Almeida, Porfirio Coelho da Fonseca Magalhães, Ramiro Guedes, Ricardo Paes Gomes, Rodrigo Fernandes Fontinha, Sebastião Peres Rodrigues, Sebastião de Sousa Dantas Baracho, Severiano José da Silva, Sidonio Bernardino Cardoso da Silva Paes, Thomás Antonio da Guarda Cabreira, Tiago Moreira Salles, Thomé José de Barros Queiroz, Tito Augusto de Moraes, Victor José de Deus Macedo Pinto, Victorino Henrique Godinho, Victorino Maximo de Carvalho Guimarães.

Entraram durante a sessão os Srs.: - Alexandre Braga, Alfredo Botelho de Sousa, Antonio Valente de Almeida, Augusto José Vieira, Joaquim Theophilo Braga, José de Castro, José Machado de Serpa, José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, José da Silva Ramos, Manuel Alegro, Manuel José da Silva.

Não compareceram á sessão os Srs.: - Adriano Augusto Pimenta, Affonso Augusto da Costa, Alexandre Augusto de Barros, Amaro de Azevedo Gomes, Antonio Aresta Branco, Antonio Candido de Almeida Leitão, Antonio Pires de Carvalho, Antonio Pires Pereira Junior, Artur Augusto Duarte da Luz Almeida, Eiisio de Castro, Fernando Baeta Bissaia Barreto Rosa, Fernando da Cunha Macedo, Francisco Cruz, Francisco Manuel Pereira Coelho, Henrique José Caldeira Queiroz, Joaquim Brandão, José Augusto Simas Machado, José Dias da Silva, José Maria de Padua, José Montês, José Perdigão José Tristão Paes de figueiredo, Manuel Martins Cardoso, Sebastião de Magalhães Lima.

Página 3

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 3

(O Governo, ao abrir-se a sessão, estava representado pelo Sr. Ministro do Interior).

Foi lida, e approvada sem reclamação, a acta da sessão anterior.

O Sr. Presidente: - Vae ler-se o expediente e peço a attenção da Assembleia.

Leu-se na mesa um officio da Legação da Republica do Uruguay, offerecendo um exemplar da importante obra escrita em espanhol e francês El Uruguay á traves de um siglo.

O Sr. Presidente: - A Assembleia quererá decerto exprimir o seu agradecimento por esta offerta. (Apoiados geraes).

Continua-se a leitura do expediente.

Officios

Da Administração Geral da Caixa Geral da Depositos e Instituições de Previdencia, remettendo 240 exemplares do relatorio e contas da referida Caixa.

Para a Secretaria.

Da Commissão Parochial Republicana dos Olivaes, fazendo votos para que justiça seja feita a todos que bem a mereceram da Patria e da Republica.

Para a Secretaria.

Da Secretaria Geral do Ministerio das Finanças, remettendo, em satisfação ao requerimento do Sr. Deputado Amilcar da Silva Ramada Curto, nota dos vencimentos abonados ao inspector geral dos impostos João Alfredo de Faria, nos annos economicos de 1904-1005 a 1910-1911.

Para a Secretaria.

Da Secretaria Geral do Ministerio das Finanças, remettendo, em satisfação ao requerimento do Sr. Deputado Antonio França Borges, varios documentos e esclarecimentos relativos aos empregados que formam o quadro da Direcção Geral da Estatistica.

Para a Secretaria.

Telegrammas

Coimbra, 12, ás 4 horas e 30 minutos da tardo. - Por questões pessoaes entre professores e alumnos da Universidade, appareceu edital reitor declarando encerrar actos cadeiras em que houvesse desacatos, repetidos estes e encerradas cadeiras por motivos previstos e não previstos no edital são presos alguns alumnos. Hoje movimento contra edital originou ordem encerramento Universidade. Graves prejuizos com suspensão de actos. Pedimos V. Exa. apresente Constituinte resolva urgentemente. = Grupo estudantes.

Porto. - Associação Commercial Lojistas Porto interpretando a aspiração do commercio dos viveres e do povo consumidor pede á Exa. ma Camara para que approve a proposta do Deputado Manuel José da Silva facultando importação do azeite livre de impostos, approvando-a a Camara presta um grande beneficio ao commercio e á população desprotegida. = Presidente, Almeida Romulo.

A Commissão do Commercio.

O Sr. Presidente: - Vae fazer-se segunda leitura de uma proposta do Sr. Deputado Manuel José da Silva. Leu-se na mesa:

Proposta

Considerando que a experiencia tem demonstrado a inconveniencia e inefficacia do regulamento das greves;

Considerando que os conflicios collectivos, entre salariados e assalariados, são guerras sociaes que, como todas as guerras, se tornam insusceptiveis de qualquer regulamentação permanente;

Considerando que a unica regulamentação conveniente deve consistir em tornar obrigatoria a applicação do principio da arbitragem para a solução dos referidos conflictos, antes ou depois de declaradas as paralysações do trabalho;

Proponho:

1.° Que a commissão de legislação do trabalho, sem demora, estude e traga á Camara um projecto de lei, aperfeiçoando a organização dos tribunaes de arbitros avindo-res, e ampliando as suas attribuições, por forma que estes tribunaeb possam solucionar os conflictos collectivos entre a entidade operaria e a entidade patronal;

2.° Que desde já seja suspensa a execução do regulamento que rege os conflictos operarios ou greves;

3.° Que sejam amnistiados todos os cidadãos arguidos de delicto de greve.

Lisboa e Sala da Assembleia Constituinte, em 6 de julho de 1911. = O Deputado, Manuel José da Silva.

O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados, que admittem esta proposta, tenham, a bondade de levantar-se.

Pausa.

Está admittida e vae á commissão de legislação.

O Sr. Ministro do Interior (Antonio José de Almeida): - Pedi a palavra a V. Exa. para responder a considerações aqui feitas por alguns Srs. Deputados.

Serei breve nas informações que da melhor vontade vou prestar a esses Srs. Deputados e a toda a Assembleia.

Soube que na sessão de hontem o Sr. Deputado José de Abreu chamou a attenção dos meus collegas e do Governo sobre a questão de Oliveira do Hospital e que, antes de se encerrar a sessão, o Sr. Deputado Moura Pinto tambem tratou d'esse assunto; o primeiro fez as maiores e mais graves accusações ao administrador d'aquelle concelho; o segundo fez uma defesa calorosa d'essa mesma autoridade.

Ora, eu devo dizer, para tranquillidade da Assembleia, e em especial dos dois Srs. Deputados que se referiram ao assunto, qual o teor dos telegrammas trocados entre mim e o Sr. Silvestre Falcão, que é, como se sabe, o Governador Civil de Coimbra.

No primeiro telegramma que enviei ao Sr. Governador Civil de Coimbra pedi-lhe que procedesse ás diligencias precisas para se saber se o administrador do concelho de Oliveira do Hospital era um funccionario tal qual o Sr. Deputado José de Abreu aqui o descrevera.

Vou ler esse meu telegramma.

(Leu).

O Sr. Governador Civil de Coimbra respondeu me que já lhe haviam feito queixa d'aquelle funccionario, motivo por que mandara proceder a averiguações.

Vou tambem ler o telegramma do Sr. Silvestre Falcão.

(Leu).

A este telegramma respondi com outro insistindo em que se procedesse, no mais curto espaço de tempo possivel, ás necessarias investigações para se administrar justiça recta, sã e imparcial.

Leio este meu telegramma.

(Leu).

Tal é o estado da questão, segundo os documentos officiaes, que eu communico á Assembleia e, em especial, aos Srs. Deputados que trataram este assunto.

Página 4

4 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

Em segundo logar, o Sr. Deputado Affonso Ferreira referiu-se á demissão do administrador do concelho de Óbidos, o Sr. Monteiro, um honrado e velho republicano.

Recebi, é certo, um protesto de alguns individuos e de algumas collectividades no mesmo sentido das considerações aqui feitas pelo Sr. Deputado Affonso Ferreira, isto é, dizendo que o administrador demittido era um antigo e honesto republicano, digno, por todos os motivos, de continuar a exercer o cargo em que fora investido logo após a Revolução.

Ora, como Ministro do Interior, eu desde que o Sr. Governador Civil de Leiria é autoridade da minha confiança, não posso ir intervir na vida intima do districto; o mais que podia fazer, como particularmente communiquei ao Sr. Deputado Affonso Ferreira, foi telegraphar ao Sr. Governador Civil de Leiria, dizendo-lhe que attentasse na sua resolução e que visse se eram, por sua parte, attendiveis os desejos do povo e das commissões locaes.

O Sr. Affonso Ferreira, como todos os outros Srs. Deputados, sabem que eu tomo sempre o maior interesse por estes assuntos, que tenho sempre toda a attenção pelos velhos e verdadeiros republicanos, porque são esses os que melhores garantias podem dar no serviço da Republica; mas isto não quer dizer que se não faça a possivel politica de attracção, entregando-se, porem, os postos de confiança aos verdadeiros e antigos republicanos. (Apoiados).

Tem sido esta sempre a minha norma de proceder; continuará a ser emquanto eu for Ministro do Interior.

Agora passarei a referir-me a questão do Sr. Jorge Nunes, membro desta Assembleia. Parece que se levantaram aqui algumas duvidas acêrca da sua escolha para ir governar o districto de Beja.

Creio que se disse até que essa nomeação era immoral.

O Sr. Gastão Rodrigues: - Não proferi tal palavra.

O Orador: - Nesse caso as minhas considerações serão ainda mais breves.

A lei eleitoral não permitte, é certo, como disse o Sr. Deputado Gastão Rodrigues, que o Sr. Jorge Nunes possa ser nomeado governador civil, depois de estar em exercicio como Deputado.

Mas, Sr. Presidente, trata-se de um caso excepcional.

O districto de Beja está sem governador civil ha já algum tempo.

Esse districto, que tem uma fronteira enorme, não pode continuar assim. Insistindo o Sr. Dr. Aresta Branco em não continuar no cargo, o Governo viu-se em difficuldade para encontrar pessoa idónea que o fosse exercer.

O Sr. Jorge Nunes, peia sua influencia em todo o Alem-tejo, pela sua resistencia physka, pela sua temperança intellectual, e ainda por ser filho do antigo e dedicado republicano Jacinto Nunes, era o homem que eu julgava nas melhores condições para aquelle cargo.

Bem sei que S. Exa. não deseja deixar de exercer as suas funcções de Deputado.

Mas, Sr. Presidente, trata-se de um caso urgente e difficil. A Assembleia Constituinte é soberana. Tome ella qualquer deliberação sobre e assunto, que eu pela minha parte estou pronto a acatá-la.

A outro caso tenho de referir-me.

O Sr. Deputado Alvaro de Castro, falando ha dias no Parlamento, chamou a minha attenção para o que se passou no Lyceu Passos Manuel, quando ali fora proposto em sessão do conselho escolar um voto de saudação á Republica Portuguesa pelo facto da sua proclamação. S. Exa. considerou esse acto contrario, não só ás boas praxes seguidas no regime, mas até como podendo ser tomado á conta de uma insobordinação.

Mandei, immediatamente, indagar o caso e posso trazer hoje a resposta a S. Exa., lendo este documento, que é um officio do reitor d'aquelle lyceu.

Diz elle, como a Camara vae ouvir, que a proposta fora apresentada pelo professor Valente e fora retirada a pedido do professor Lopes de Oliveira, antigo republicano e membro do comité revolucionario da Beira Alta, com o fundamento de que o ensino devia libertar-se da politica.

(Leu).

Já recebi, ha dias, este documento e não o tenho lido, por S. Exa., o Sr. Deputado Alvaro de Castro, não ter estado presente.

Sei que o Sr. Deputado José Jacinto Nunes, na sessão de hontem, se referiu a um arruido que tinha havido na rua e em que se soltaram morras a S. Exa.

Perguntara S. Exa. se o Ministro do Interior tinha tido conhecimento d'essa occorrencia.

Não tive conhecimento, embora costume andar em dia com os acontecimentos da rua; mas não merece censuras por isso nem o Ministro nem a policia. E um caso vulgar o de morras e vivas, e eu aproveito esta occasião para apresentar a S. Exa. os protestos da minha mais alta consideração.

Se tivesse conhecimento d'essa manifestação, eu teria empregado todos os recursos para evitá-la.

Estou mesmo convencido de que, quaesquer que sejam as divergencias de opinião entre os manifestantes e S. Exa., o caracter de S. Exa. é tão conhecido, os seus serviços tão relevantes, que esses mesmos manifestantes lhe hão de fazer justiça.

Creio que S. Exa. se dará por satisfeito com os explicações que lhe dá quem tem a seu cargo a manutenção da ordem publica em Portugal.

O Sr. José Jacinto Nunes: - Muito obrigado.

O Orador: - Ha alguns Srs. Deputados que me teem falado em administradores de concelho que accumullam essas funcçoes com outras, citando até o caso de um que é presidente de uma camara e professor.

Essas cousas deram-se no periodo revolucionario, quando era urgente nomear pessoal para o preenchimento dos cargos.

Precisamos, é certo, entrar numa nova fase de normalidade, mas não serei eu já que o hei de fazer, por isso que dentro de quinze ou vinte dias será votada a Constituição e eu deixarei a pasta.

Vozes: - Não apoiado.

O Sr. Eduardo Abreu: - Vão-se embora, vão. (Risos).

O Orador: - Seria mesmo um acto de deslealdade que eu estivesse a regularizar serviços que já não tenho tempo de por em pratica.

Ha ainda outro assunto a que pretendo referir-me e que se relaciona com a ordem publica.

O Sr. Presidente: - Se a Assembleia autoriza V. Exa. pode continuar a falar.

Vozes: - fale, fale.

O Orador: - Eu só tenho tomado o tempo estrictamente necessario para dar satisfação a reclamações dos Srs. Deputados: em todo o caso agradeço a attenção que a Camara acaba de ter commigo.

Quero referir-me aos acontecimentos de Coimbra.

O Sr. Deputado Ramada Curto fala hoje sobre o assunto e eu pedia á Assembleia que permittisse que antes de qualquer explicação minha, falasse o Sr. Ramada Curto,

Página 5

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 5

porque, assim, poderiamos chegar mais facilmente a quaesquer conclusões. V. Exa. tem a bondade de consultar a Assembleia...

Vozes: - Fale, fale.

O Sr. Presidente: - Em vista da manifestação da Assembleia, pode usar da palavra o Sr. Ramada Curto.

O Sr. Ramada Curto: - Serei muito breve. Ha tempos, no principio da época de actos, publicou a Reitoria da Universidade um edital em que se dizia que, no caso de haver perturbação de ordem publica, se encerravam os actos.

Já esta doutrina é insustentavel. Um serviço publico não pode suspender-se com grave prejuizo de terceiros, emquanto o Estado não abdicar por completo da forca que possue e lhe compete possuir para manter a ordem nesses serviços. Succede que posteriormente a esse edital, um alumnp da faculdade de filosofia tem, fora da Universidade, um conflicto pessoal, meramente pessoal, com o Dr. Alvaro Bastos, lente da faculdade. Não houve a mais ligeira perturbação da ordem. Houve apenas uns dares e tomares, especialmente tomares da parte do lente com o que a Universidade nada tinha.

O Dr. Daniel de Matos suspendeu os actos na cadeira de chimica, por este motivo. Depois, provocado pela attitude hostil e accintosa do jury da cadeira de botanica, houve novo conflicto entre alguns estudantes e os membros d'esse jury. E por causa d'isso encerra-se tambem a cadeira de botanica.

Isto é indefensavel, é absurdo e prova que a Universidade não mudou de processos.

E a mesma intolerancia, o mesmo dogmatismo, a mesma precipitação nas resoluções inhabeis e violentas.

Em 1907 João Franco expulsou 7 alumnos; mas agora o caso é outro.

Tenho a maior consideração pelo Sr. Dr. Daniel de Matos, que é um grande professor, mas protesto contra esse procedimento, que vae lesar muitos alumnos.

São estas as considerações que tenho a fazer a V. Exa., pedindo que com os alumnos presos se não proceda com excessivo rigor, e que os que teem de fazer acto o façam.

O Sr. Ministro do Interior (Antonio José de Almeida) (continuando): - Ainda bem que pedi á Assembleia que fosse concedida a palavra ao illustre Deputado Sr. Ramada Curto.

Vou esclarecer alguns pontos para que se veja que S. Exa. está um pouco mal informado.

Um estudante aggrediu o Sr. Dr. Alvaro Bastos, maltratou-o de uma maneira violentissima pelo facto de lhe ter dado 15 valores e não 16.

Emquanto este conflicto se dava, os companheiros do estudante, que estavam em volta, fizeram uma verdadeira assoada e, se não ajudaram a maltratar o professor, applaudiram.

Este é o primeiro ponto.

Mas houve ainda outro acontecimento durante a época de exames. Foi na aula de botanica, perante o Sr. Dr. Julio Henriques. Os estudantes fizeram ali sussurro, vozearia, quasi tumulto.

O reitor não interrompeu os actos abrutarnente. Chamou primeiro os estudantes e perguntou-lhes se elles se compromettiam a não reproduzir acenas semelhantes. Então, tomado este compromisso, mandaria continuar os exames.

Repito, o Sr. Dr. Daniel de Matos a quem S. Exa. prestou homenagem, posto discordasse do seu procedimento, e que é um homem digno a todos os respeitos, pelo seu caracter, pela sua sciencia, disse aos estudantes que os attenderia se elles não tornassem afazer assuada ou qualquer outra manifestação perturbadora.

Os alumnos com a sua phalange, phalange que o illustre Deputado muito bem conhece.

O Sr. Ramada Curto: - V. Exa. é injusto, tenha a certeza.

O Orador: - Os alumnos foram para Santo Antonio dos Olivaes e logo se reuniram na redacção de um jornal anarchista. D'ahi ameaçaram repetir os tumultos de 17 de outubro. V. Exas. sabem o que isso foi? Na sala dos capellos derrubaram e partiram tudo á mocada.

O Sr. Dr. Daniel de Matos estava dentro da logica.

O Sr. Dr. Julio Henriques, que tambem fora desacatado, é um distincto professor de botanica, e um bonissimo homem, que apenas tem lançado duas ou tres reprovações em toda a sua longa vida de professor, tão longa que eu mesmo, como Ministro do Interior, tive de abrir uma excepção, não lhe applicando o limite de idade.

Uma vez, apparecendo na pauta dos exames de botanica o nome de um estudante reprovado, ninguem o quis crer e houve quem fosse a casa do professor perguntar se era verdade ter sido reprovado um estudante.

Então o Dr. Julio Henriques, muito pesaroso, disse que não pôde deixar de o reprovar.

Com um homem d'estes, já V. Exas. vêem a grande injustiça com que procederam os estudantes fazendo arruaças contra elle.

Uma voz:-Esse professor e um santo homem.

O Orador: - Pois é. Mas ia eu dizendo que os estudantes fizeram arruaças contra elle, e o Dr. Daniel de Matos mandou-me um telegramma referente ao assunto.

(Leu).

O Orador: - Suspenderam-se os actos, mas esta suspensão pouco vale, porque poderão ser feitos d'aqui a dias eu em outubro.

O Sr. Ramada Curto: - Mas isso é um prejuizo.

Uma voz: - Os culpados são os estudantes.

O Orador: - O que nem o Ministro do Interior nem o Reitor podiam permittir era que fosse impunemente perturbado o regular funccionamento dos serviços universitarios por actos irreflectidos da parte dos estudantes.

O Sr. Ramada Curto: - Mas V. Exa. não evita os conflictos com a demora.

O Orador: - De resto tenho a dizer ao Sr. Deputado que estarei constantemente em relações directas com o Reitor e seguirei attentamente os acontecimentos. Alimento a convicção de que havemos de chegar a uma solução de tal maneira honrosa e razoavel, que a todos ha de satisfazer.

Quero ainda dizer, para honra da Academia de Coimbra, que hontem tive informação dada por um juiz, presidente de jury na faculdade de direito, que nessa cadeira tem havido apenas quatro reprovações.

Para honra da Academia de Coimbra, para que ella represente as tradições de ha muitos annos, os estudantes teem empregado toda a sua intelligencia e brio por tal maneira, que o numero de reprovações é diminutissimo.

Sobre esse ponto parece-me que não é preciso dar mais esclarecimentos, e creio ter-me desempenhado cabalmente do meu encargo.

Por ultimo quero dizer á Assembleia que hontem mesmo fiz expedir a todas as repartições do Ministerio do Interior uma circular, para se proceder a inquerito a fim de

Página 6

6 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

averiguar quaes os funccionarios que, por incuria ou preguiça, não comparecem á hora regulamentar nas suas repartições.

Serão castigados todos os que o merecerem.

Estou sempre ao dispor de qualquer Sr. Deputado para lhe dar as explicações de que necessite. E a todos peço que não reparem se eu faltar aqui antes da ordem do dia, porque tenho muito trabalho, bastando dizer que só a ordem publica me leva cada dia sete a oito horas.

Mas quando algum dos Srs. Deputados quiser trocar commigo quaesquer considerações, faça-me avisar, que eu immediatamente farei o que puder, e quando quiser chamar-me, eu virei aqui immediatamente para responder pelos meus actos.

(O orador não reviu).

O Sr. Gastão Rodrigues: - Peço a palavra para responder ás considerações feitas pelo Sr. Ministro do Interior.

O Sr. Presidente: - Consultarei a Assembleia.

Muitas vozes: - Não pode ser. Não pode ser.

O Sr. José de Abreu: - Eu tambem desejava a palavra para idêntico fim. Mas, em vista da manifestação da Camara, peço a V. Exa. que me inscreva para antes de se encerrar a sessão.

O Sr. Presidente: - Communico á Camara que o Sr. Deputado Alvaro de Castro pediu a palavra para um negocio urgente, negocio que se refere ao projecto de lei relativo aos conspiradores.

A Assembleia concedeu a urgencia.

O Sr. Alvaro de Castro: - Peço a V. Exa. o favor de marcar para antes da ordena do dia de amanhã a discussão do referido projecto.

O Sr. Presidente: - Pergunto á Camara se me autoriza a marcar a discussão do projecto para antes da ordem do dia de amanhã.

Os Srs. Deputados, que approvam, queiram levantar-se.

Foi approvado.

O Sr. Presidente: - Pediu a palavra para um negocio urgente o Sr. Deputado Fernão Botto Machado, negocio que diz respeito a 54 crianças que se encontram no Limoeiro.

O Sr. Santos Moita: - O Sr. Ministro da Justiça tratou do caso, hontem, aqui. (Apoiados).

O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados, que approvam a urgencia pedida pelo Sr. Fernão Botto Machado, tenham a bondade de se levantar.

Foi approvada.

O Sr. Mariano Martins: - Peço a contraprova. (Verificou-se a contraprova).

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Fernão Botto Machado.

O Sr. Fernão Botto Machado: - Sr. Presidente. A minha sensibilidade, como decerto a de V. Exa., e a dos meus collegas nesta Camara, foi hontem á noite violentamente saccudida e perturbada, pela noticia, que li no jornal A Capital, de que no Limoeiro, a grande Universidade do crime, se encontram presas, num aprendizado corrupto e numa promiscuidade revoltante, não uma criança, como se affirmou ha dias nesta Camara, mas 54 crianças.

Tratando aqui este grave acontecimento, eu não pretendo fazer carga ás más companhias que deram a essas inditosas crianças.

Para mim, o crime é sempre uma deploravel enfermidade social, produzida por varios factores, como sejam as qualidades hereditarias, as influencias atavicas, a educação recebida, o meio circundante ou ambiente e, principalmente, a miseria. Em regra, para mim, o crime não existe.

Tenham os legisladores a coragem de atacar, bem de frente, o problema economico, e de solucionar o problema da miseria, e a grande maioria dos crimes desapparecerão, como por encanto, da face da terra, porque nenhuma razão terá o homem para roubar, para matar, ou para ser o lobo do homem, e ficarão apenas os crimes passionaes, porque esses, infelizmente, só serão evitaveis quando os homens venham a attingir uma psychologia superior e quasi ideal.

Sr. Presidente: é no momento em que de todos os cantos do orando nos sopram correntes renovadoras do direito penal repressivo; é no momento em que em todos os países se modificam as velhas theorias da pena; é no momento em que em toda a parte se rodeiam não já só as crianças, mas os adultos, de leis de protecção e de defesa, dando-lhes o svstema contraditorio desde a indiciação; é no momento em que a pena substitue a sua velha tendencia do vingar, pela da correcção, da regeneração, da emenda, e do perdão de uma primeira falta; é quando nós já temos a liberdade condicional para a primeira condemnação; é quando todos os Estados norte-americanos seguem o exemplo que em 1899 lhes deu Chicago criando os tribunaes para julgamentos de menores; é quando a Inglaterra aperfeiçoa as suas Juvenil Courts; é quando a França, que não criou ainda esses tribunaes, julga, todavia, os menores em sessões á porta fechada, furtando-os, por esse modo, a uma mise-en-scene corruptora; é quando em toda a parie, lá fora, os juizes, descendo da tribuna, vão sentar-se entre os menores, não para os julgarem, como julgam os adultos, mas, pondo-lhes paternalmente a mão nos hombros, para os aconselharem, para os acariciarem, e para os estimularem para a virtude e para o trabalho; e no momento em que esses juizes condemnam os menores, não ;i prisão, mas á sua entrada em casas de regeneração, em patronatos, em orfalinatos, ou á liberdade vigiada pelos empregados seus auxiliares; é, emfim, quando a Republica Portuguesa publicou as leis de familia, e vem de publicar a lei de tutela infantil, que se dá a pavorosa iniquidade de ter 54 crianças, em promiscuidade com assassinos e ladrões deploraveis, naquella alta escola do crime, que é o Limoeiro.

Então é tudo mentira? Como no tempo da monarchia, essas leis são só para ficarem no papel, ou para inglês ver?

Não quero insistir. Protestei a mim mesmo pautar o meu procedimento de modo a dignificar o Parlamento e a, dignificar a minha missão. Fujo já da questão, receoso de uma onda de revolta, que me obrigue a dizer o que não desejo.

Limito-me, por consequencia, interpretando, creio eu, os sentimentos de humanidade d'esta Camara, a reclamar providencias tão immediatas do Sr. Ministro da Justiça, que essas crianças saiam, sem perda do tempo, d'aquelle meio vicioso, deleterio e degradante.

Aproveitando o uso da palavra vou mandar para a mesa um projecto de lei, acêrca do qual direi pouco, porque é precedido de larga justificação de motivos no seu relatorio.

Sabe V. Exa., Sr. Presidente, que o artigo 29.° n.° 1.° do Codigo Penal diz que a ignorancia da lei não exime da responsabilidade criminal. Por outro lado, o artigo 9.° do Codigo Civil diz que ninguem pode eximir-se ás obrigações impostas por lei com o pretexto da sua ignorancia ou do seu desuso.

Página 7

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 7

Logico seria, pois, Sr. Presidente, para que todos os cidadãos conhecessem as leis, que o Diario do Governo, orgão ou instrumento de publicidade das leis, andasse na mão de todos e de cada um dos cidadãos portugueses.

Como V. Exa. vê, venho de falar de uma iniquidade, e estou tratando agora de uma anomalia legal tremenda.

Os cidadãos são condemnados porque ignoram as leis. Mas o Diario das leis custa 18$000 réis por anno, 10$000 réis por semestre, e mais de 1$000 réis, em certos dias, isto é, um preço disparatado e perfeitamente inaccessivel á bolsa da grande maioria dos cidadãos. E dá-se isto ao mesmo tempo que certas empresas particulares nos dão jornaes de muitas paginas, ao preço de 3$600 réis por anno e 10 réis por dia.

Mas, alem d'isso, o Diario do Governo é um palheirão incrivel pelo tamanho, incommodo para o trabalho de consulta, e publica muita materia inutil. E o infeliz assinante tem de encadernar, por exemplo, os annuncios judiciaes, de caracter meramente transitorio.

O Sr. Santos Moita: - Isso não é negocio urgente. A Camara votou a urgencia para V. Exa. tratar das crianças.

O Orador: - Eu julgo que é urgente, desde que se trata de uma anomalia que põe em risco a liberdade individual. Mas é o Sr. Presidente que regula os trabalhos. V. Exa. consente, Sr. Presidente, que eu continue no uso da palavra?

O Sr. Presidente: - Sim, senhor, mas peço a V. Exa. que resuma o mais possivel as suas considerações.

O Orador: - Dou-as por concluidas, e direi só mais algumas palavras. Eu sei bem, Sr. Presidente, que a Camara, ha dias, e horas depois de conceder a publicação no Diario dos projectos de Constituição apresentados por alguns dos meus collegas, negou a publicação no Diario do meu projecto. Não me queixo, nem sequer protesto, porque já estou costumado á igualdade republicana... No entanto, eu tenho o direito de requerer a publicação do projecto que vou enviar para a mesa. E como quem usa de um direito não offende ninguem, eu requeiro a sua publicação, ainda que não seja senão para proporcionar o prazer de m'a recusarem.

E tenho dito.

O Sr. Presidente:-Não tenho que consultar para esse fim a Assembleia, por que, segundo o Regimento, todos os projectos mandados para a mesa teem de ser publicados no Diario do Governo.

O texto do projecto foi publicado no Diario do Groverno no dia immediato.

O texto do relatorio é do teor seguinte:

Senhores Deputados á Constituinte: Uma das mais insignes personalidades da Espanha contemporanea, Joaquim Costa, jurisconsulto, homem de letras, republicano prestigioso, caracter brilhantissimo, e em tudo documento glorioso da grande evolução humana em busca da perfeição, ao publicar, ha annos, o seu esplendido livro La Ignorancia del Derecho, abriu-o com o capitulo titulado Ignorancia de las leyes, que começa assim:

"É sabido que um dos mais firmes sustentaculos das sociedades civilizadas vera sendo, desde ha mais de dois mil annos, uma presunçrio juris et de jure, que constitue um verdadeiro escarneo e a maior tyrannia que jamais se tem exercido na historia: essa base, esse cimento das sociedades humanas é o que se encerra nestes dois conhecidos aphorismos, herdados dos antigos romanistas:

1.° A ninguem é permittido ignorar as leis (nemini licet ignorara jus);

2.° Como consequencia, presume-se que todo o mundo as conhece, pelo que, ainda que se averigue que alguem as ignorava, o obrigam como se effectivamente as conhecesse (nemo jus ignorare censetur; ignorantia legis neminem excusat).

Esta presunção mantem-se, apesar de se saber que é contraria á realidade das cousas; sabendo-se que é uma ficção, sabendo-se que é uma falsidade, e sabendo-se:

1.° Que ninguem conhece todo o direito, de que só uma insignificante minoria de homens sabe uma parte, e não grande, das leis vigentes, num momento dado;

2.° Que é impossivel que a maioria, e ainda aquella mesma minoria, as conheça todas; e

3.° Que a presunção conforme a verdade dos factos, e conforme, portanto, á razão, á justiça e á lógica, seria cabalmente a inversa, isto e, que ninguem conhece as leis, desde que não se prove o contrario.

Não faltam escritores que reconhecem a falsidade e o convencionalismo d'aquella presunção, a cada passo desmentida pela realidade; pensam, porem, como Ambrosoli, e como o nosso Vicente e Caravantes, que uma tal ficção é absolutamente necessaria para a conservação da ordem social. De maneira que a ordem social nas nações modernas não pode assentar sobre a verdade: necessita de uma abstracção, necessita de um artificio gigante, monstruoso, que condemna os homens a caminharem ás cegas pelo mundo, e que os condemna a regerem a sua vida por criterios que lhes são, e fatalmente hão de ser-lhes ignorados".

Se eu não tivesse outros argumentos para o relatorio e justificação de motivos do projecto de lei que vou ter a honra de submetter á vossa lucida e esclarecida apreciação, evidentemente me bastariam os que do grande jurisconsulto e parlamentar, ha pouco fallecido ahi ficam reproduzidos.

Mas eu tenho muitos outros, e começarei a enunciá-los por meio de uma pergunta:

Qual era, na gloriosa alvorada de 5 de outubro, o numero preciso das leis vigentes em Portugal?

Não ha jurisconsulto parlamentar, ou ministro, que com exacção possa responder a esta singela pergunta.

E, todavia, por uma ficção admiravel, suppõe-se, ou faz-se suppor, que todos sabem as leis, a cuja ignorancia ninguem, em defesa, pode soccorrer se.

Alem de não haver o tempo material indispensavel para as ler, e muito menos para as profundar, tão pouco ao certo se lhes sabe o numero, tal foi a consequencia fatal e inevitavel do cahos do poder monarchico e da sua legomania - a filha dilecta de taes legiferos e fazedores de leis.

Conhecer as leis pela leitura do Diario do Governo? Santa simplicitas! O Diario do Governo é tão incommodo pelo formato e pelos volumes, mesmo semestraes; são tão grossos, tão compridos e tão largos, que eu nem desejo esse, nem maior castigo aos Srs. Deputados, que, albergados num minusculo quarto de hotel, tenham de arruma-lo... sobre o proprio leito.

Nada, pois, se perderia em reduzir esse cetáceo anti-diluviano ao formato do Diario das Sessões da Assembleia Nacional Constituinte, e em expungi-lo de muita materia, que sem proveito e sem utilidade é torna volumoso. Ficaria d'esse modo reduzido ao formato da Folha Official da Republica Francesa. De resto, seria um formato mais adequado á consulta de volume.

Página 8

8 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

As actas das sessões das Camaras legislativas teem sido demasiadamente lacónicas, e só tarde appareciam - quando appareciam - publicadas.

Quanto ao Diario das Sessões tinha o defeito contrario: - o de ser extremamente prolixo.

Difficilmente nelle se deparava o util e o importante.

Alguns discursos não eram sequer a reproducção exacta das notas tachygraphicas, sendo por vezes alterados para mais ou para menos, consoante a veleidade dos oradores.

A inserção, por extenso, no Diario das Sessões das Camaras, dos numerosos pareceres idênticos das commissões de verificação de poderes, por exemplo, com todas as assinaturas, concluindo pela validade das eleições, e logo approvados, era inteiramente inutil.

Bastaria ficarem archivados os autographos, e fazer menção d'estes, na acta, dizendo apenas o Diario da Camara: "Iderm, em relação ao circulo de tal..."

Tratando-se de economias, questão fundamental em um regime democratico, é bom começar por abolir as despesas com impressões absolutamente desnecessarias.

Os serviços apopleticos da Imprensa Nacional custaram no tempo da monarchia uma fortuna enormissima.

Cumpre pois- á Republica, para corresponder ao seu programma, ir atalhando aquelle mal com discreta prudencia.

Não havia sequer tempo para ler a Folha Official com todos os seus recheios e supplementos. E só quem dispunha de uma grande casa e fortissimas estantes podia arrumar semelhante palheirão.

Melhor fora haver junto dos tribunaes, como no Supremo Tribunal de Justiça, compilações especiaes dos seus respectivos accordãos, pelo menos nunca se repetindo na integra, mas só por extracto, arestos ou considerandos idênticos.

Acaso o Jornal Official da Republica Francesa publica os accordãos do Tribunal de Cassação, os dos Tribunaes de 2.° instancia, ou as decisões administrativas ou financeiras?

Os extractos das sessões das Camaras legislativas, assim como o Appendice e as interminaveis listas de foros, censos e pensões, poderiam supprimir-se sem inconveniente.

O mesmo pode dizer-se de uma infinidade de estatutos, escrituras e regulamentos de sociedades anonymas, de significação, e teor idênticos.

Não ha motivo algum que justifique a necessidade de os annuncios do Diario do Governo, de importancia e necessidades transitorias, serem encadernados e conservados perpetuamente. A inserirem-se na Folha Offical, como fonte de receita, é evidente que devem ter uma pagina gão separada, para que o infeliz assinante os possa excluir quando tenha de mandar fazer as encadernações.

A mesma paginação, inteiramente separada, e tambem em formato in-4.°, devia ter a parte do mesmo Diario que insere as leis, decretos e portarias, que formam, por bem dizer, a sua parte substantiva e mais importante.

A Collecção de Legislação, publicada officialmente, alem de custar muito caro, apparece sempre tarde e a más horas. O Diario do Governo deve para todos os effeitos suppri-la, e com vantagem, por só achar, como é justo perfeitamente em dia.

A legomania não contribuiu pouco para infelicitar Portugal, que não era menos respeitado e feliz quando "e legislava e imprimia com mais sóbria moderação.

Para se ver bem o que tem sido o Diario do Governo tomemos, ao acaso, um anno - por exemplo, o de-1894

Tem 3:536 paginas a tres columnas, isto é, 10:608 columnas. Cada columna tem 0m,09 de largura e 0,m40 de alto. A composição typographica dava, pois, para uma
pequena estrada, d'aquella largura, com a extensão de quatro kilometros.

Cada columna tem 106 linhas, e, por consequencia, só quelle anno, mais de um milhão de linhas, visto que são 1.124:448.

Essas linhas, estendidas umas em seguida ás outras, occupariam uma extensão de 101 kilometros, ou sejam 20 leguas.

Cada linha tem 48 lettras, em media, e, portanto, o Diario do Governo teve, em 1894, cerca de 54 milhões de lettras, ou cerca de 10 milhões por cada habitante de Portugal, o que não é nada mau para um país de analfabetos, se tomarmos á letra a frase de Junqueiro, quando escreveu que ha mais luz nas vinte e cinco letras do alfabeto do que em todas as constelações do firmamento, mas o que foi péssimo para nós, dado que a maioria dos nossos legisladores mal sabia ler e escrever o alfabeto da democracia.

Quanto ao tempo preciso para ler um tal volume, calculando um minimo de 5 minutos por columna, seriam precisas 884 horas (!), não entrando neste calculo nem os Appendices, nem os Diarios das Sessões dos pares e deputados, nem os documentos distribuidos no Parlamento, nem o volume da respectiva legislação. Numa palavra, era absolutamente impossivel, a qualquer cidadão português, ler, sequer, com reflexão, o que os governos monarchicos tão dispendiosa quão inutilmente publicavam.

Foi por este processo de esbanjamentos e inepcias systematizados, que Portugal tantas vezes se abeirou da bancarrota, levando a emigração á ameaça de o converter de todo num deserto inculto. E emquanto a Folha official for o que era - um padrão de desperdicios - nunca Portugal será um país bem administrado, porque os esbanjamentos da Imprensa Nacional eram dos que, bradando aos céus, pediam chuva... dynamitica.

Ha ainda a considerar outros lados da questão. O Jornal official da Republica Francesa custa 7$200 por anno, 3$600 por semestre, 1$800 por trimestre e 20 réis por numero. Pouco mais ou menos o que custam Le Journal, Le Matin e outros diarios franceses.

Pois bem. O Diario do Governo custa 18$000 réis por por anno e 10$000 réis por semestre!

Isto é simplesmente abominavel e repugnante, principalmente quando os codigos gritam, como o nosso Codigo Civil no seu artigo 9.°, que "ninguem pode eximir-se de cumprir as obrigações impostas por lei, com o pretexto de ignorancia d'esta, ou com o do seu desuso".

Se o cidadão português quando delinque, contravem ou transgride por ignorancia da lei, não pode defender-se com o argumento de que ignorava a lei, lógico e justo seria que o instrumento de publicidade das leis fosse accessivel á bolsa de todos os cidadãos, e andasse na mão de cada um, para poder regular os seus actos e evitar delictos, transgressões e contravenções.

O cidadão português não pode pagar 18$000 réis pelo jornal onde se publica o que elle tem obrigação de saber. De resto, não se comprehende que jornaes como O Seculo, Diario de Noticias, Mundo e A Republica, pertencendo a empresas particulares, e por vezes com muitas paginas, custem 10 réis por numero e 3^600 réis por anno, emquanto que a folha official do governo custa, em certos dias, 100 vezes mais, e por anno o quintuplo!

Não se comprehende agora, se bem que se comprehendesse á maravilha no tempo da extincta monarchia.

É que para os estadistas e legisladores da monarchia, como para os commerciantes e companhias deshonestos e fraudulentos, "o segredo é a alma do negocio", tal qual a luz da Republica é incompativel com as trevas dos morcegos do clericalismo e do reaccionarismo.

Temos uma edição dos Lusiadas, que nos custou 300 réis, e as obras completas de Shakspeare, por exemplo, custam, em certa" edições, 240 réis na Inglaterra. Ora a

Página 9

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 9

verdade é que nenhum dos volumes do Diario do Governo pode considerar-se uma obra prima do espirito humano antes pelo contrario! - para que custe aquelle preço excessivo e disparatado.

Uma vez que os cidadãos teem obrigação de conhecer as leis e obedecer-lhes, o dever dos governos é fazer-lh'as conhecer, não só por meio de uma publicação accessivel a todas as bolsas, mas até, gratuitamente, por meio de editaes. Já asaim se procedia nas republicas da Grecia, e, se isso não é possivel entre nós, mais de 2:000 annos depois, ao menos que a sua publicação official se forneça a preços modicos, em vez de custar os olhos da cara.

O Diario do Governo já custou, até 1900, metade do seu preço actual, ou fossem 9$000 réis por anno.

Um governo houve, porem, que entendendo que a publicidade lhe contrariava os immundos designios, lhe elevou o preço ao dobro, isto é, a 18$000 réis. Reduzir este preço a um terço, ou seja a 6$000 réis annuaes, 3$000 réis por semestre, 1$5000 réis por trimestre e 20 réis por numero, - o que, ainda assim, corresponde quasi ao dobro do que custam os diarios de empresas particulares,- eis o que se me afigura democratico e indispensavel, visto que aquelles que por suas necessidades profissionaes ou exigencias mentaes carecem do Diario do Governo são, em regra, criaturas pobres ou que vivem de um trabalho insano e honesto.

A sua edição incompleta deverá custar 3$000 réis por anno.

Senhores Deputados: - Já um de vós, e dos mais illustres, porque é um magistrado distinctissimo, - o Sr. Dr. José Machado de Serpa - me fez a honra de me advertir que eu devia fazer muito curtos e simples os relatorios dos projectos de lei que viesse a apresentar á Constituinte.

Embora todo o meu respeito por aquelle brilhante ornamento da judicatura portuguesa, não seguirei o seu conselho:

1.° Porque na Constituinte nem todos são jurisconsultos;

2.° Porque não obstante estar quasi convencido de que os meus projectos de lei não alcançarão êxito, desejo affirmá-los com os argumentos de autoridade que me falta e que elles fiquem com subsidios que os façam triunfar no futuro;

3.° Porque, dando-os á publicidade em opusculos e livro, tenho o pensamento de vulgarizar entre o povo as doutrinas que preconiso.

Lavra em Portugal uma ignorancia pavorosa.

Em certos casos conhecem-se direitos e ignoram-se deveres. Noutros, conhecem-se deveres e ignoram-se direitos.

Os commerciantes, mesmo dos mais illustrados, ao assinarem uma letra sabem, em regra, que teem de pagá-la. Já assim lh'o diziam o pae e o avô. Mas, se lhes perguntarem a differença de responsabilidades que contraem como acceitantes, Baccadores, indossantes, ou dadores de aval não a saberão explicar satisfatoriamente.

O consumidor da Companhia do Gaz, e das Aguas, que está em relações diarias com esses dois polvos da economia domestica, sabe que tem de pagar a agua, o gaz, e o contador, mas não conhece os seus direitos ante esses dois privilegiados colossos da funesta administração monarchica. A ignorancia é de estarrecer, e o meu intuito é combatê-la.

Por outro lado, os executores da lei são mais legalistas do que a propria lei, e mais papistas do que o papa, estando bem longe da theoria do bom juiz Magnaud, que opina deverem deixar-se cair em desuso as leis más ou deshumanas..., para que os legisladores as reformem.

Por isso mesmo, Srs. Deputados, e no intuito de documentar o pensamento dominante do presente projecto, esclarecer uma das maiores tyrannias dos codigos, qual seja a de a ignorancia das leis não servir sequer de attenuante á falta da sua observancia, relevae-me que, antes de concluir, ainda aqui reproduza a opinião do notavel jurisconsulto Horacio Bentabol sobre o assunto:

O conhecimento das leis

Diz o artigo 2.° do Codigo Civil Espanhol: "A ignorancia das leis não escusa do seu cumprimento".

O mesmo principio se estabeleceu já na lei 31.a, capitulo XIX, parte 5.a, porque se diz que "todos que residem" no reino a devem conhecer" as leis vigentes, e, todavia, nem no tempo de D. Affonso, o sabio, nem depois, nem agora, nem nunca, conhecem, nem podem conhecer as leis do reino (ou nação) todos que nelle residem, e não somente as não podem conhecer todos, mas muito poucos as conhecem em geral, e por completo, e em absoluto ninguem as conhece. Não obstante, a lei manda e a razão diz que não pode admittir-se como escusa do cumprimento das leis a ignorancia das mesmas, porque isso equivaleria a tornar illusorios os seus mandatos. Toda a gente a quem não conviesse acatar uma lei allegaria em sua defesa a ignorancia.

Como conciliar, portanto, um mandato tão terminante com uma injustiça tão intoleravel, tal como suppôr o conhecimento das leis em quem as ignora com frequencia, e ás vezes de um modo à priori evidente?

De maneira bem simples e perfeitamente logica. Fazendo chegar o conhecimento das leis aquelles a quem interessam; mas, não sendo sufficiente para isso a publicação na Gazeta ou nos Boletins Officiaes das provincias, porque para que isto fosse efficaz, em absoluta justiça e fora de conveniencionalismos, seria preciso que o toda a gente lê-se, dia a dia, esses periodicos, e que os leitores tivessem uma feliz memoria para reter tudo o que lessem na sua vida. E ainda assim não se estaria seguro do conhecimento das leis por toda a gente, porque nem todas as leis se publicam em tempo competente, para que cada qual as possa ler por si no curso diario da sua vida ordinaria.

Diz um conhecido autor, e politico espanhol, que o imperador Caligula, que armava laços á innocencia, fazia publicar editos com letra muito meuda, que expunha ao publico em sitios elevados, para que fossem lidos com difficuldade; e que Cláudio publicava num dia vinte editos distinctos, com o que toda a gente andava confusa e embaraçada, dando-lhe mais trabalho conhecê-los que observá-los. Semelhantes a isto, são, na pratica, para o vulgo, os processos actua es da publicação de leis; de modo que raras vezes chegam em seu devido tempo ao conhecimento dos que teem de as cumprir e observar.

Dizia Bentham que:

"O conhecimento das leis deve ser cada vez mais popular, mas que, por desgraça, falta muito para que assim seja, por sua complicação, sua obscuridade, modismos, e palavras antigas e improprias para a sua significação, tornando-se inintelligivel ao que só conhece a linguagem vulgar, como que para monopolizar o conhecimento das leis e dos processos judiciaes".

Qual é, pois, o meio de fazer conhecer as leis, sem exigir que todos sejam advogados e peritos nellas, e se dediquem constantemente ao seu estudo?

Um, bem simples, e que está ao alcance de todas as intelligencias.

Em primeiro logar, é necessario reconhecer que nem todas as leis teem igual importancia e generalidade, e, por

Página 10

10 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

consequencia, emquanto que umas são de imprescindivel conhecimento para toda a gente, outras se não relacionam senão com determinadas classes; e somente interessam a reduzidas agrupações sociaes as leis especiaes, que não importa conhecer a quem não tem assuntos ou negocios de indole muito particular.

Mas, em todo o caso, o completamente lógico e necessario é que cada qual conheça ou esteja em condições de poder conhecer as leis que á sua personalidade, sua classe social, seu estado e seus negocios correspondem, sem o que não é lógico, nem prudente, nem justo, suppor o conhecimento das leis que, com certeza, se desconhecem de ordinario.

Esta anomalia, que não existe senão nas leis geraes, quer dizer, naquellas em que é menos toleravel, não existe nos organismos e classes em que a sã doutrina que defendemos imperou e impera de ha muito tempo.

Por exemplo:

1.° Sendo obrigatorio para os christãos o cumprimento do Decálogo, não se lhes diz: "estaes obrigados a cumprir umas leis, que deveis conhecer", ainda que na realidade desconheceis, mas pelo contrario, "mostram-se-lhes as leis cujo cumprimento é obrigatorio para elles".

Ensinam-se-lhes os mandamentos da lei de Deus, com os primeiros rudimentos de instrucção enrista, tanto aos que sabem ler como aos que não sabem: a toda a gente. E emquanto não conhecem estes fundamentos, e outros igualmente essenciaes, não se dão os neophitos por instruidos no essencial da doutrina.

2.° Do mesmo modo aos catholicos ensina-se, alem dos dez mandamentos, os da igreja catholica, e sem lhes ter ensinado estes, a ninguem lembra exigir o seu cumprimento.

3.° A mesma cousa acontece no exercito. As leis penaes do exercito são severas e terminantes; mas para as fazer cumprir e não permittir que a sua ignorancia escuse do seu cumprimento, começa se por "ler ao recruta a parte da Ordenança que directamente o interessa e que está obrigado a cumprir tão depressa entre nas fileiras", e continua se a sua leitura todos os sabbados, emquanto está no serviço.

Ha aqui perfeita lógica. A lei é severa e não se pode illudir; mas constantemente se está ensinando e recordando os seus preceitos aos que são obrigados a cumpri-la. Da mesma forma, ao cabo, ao sargento e ao official "se lhes exige imprescindivelmente, antes de qualquer outro conhecimento, o das leis penaes que lhes interessam, segundo a sua gerarchia no exercito" 5 mas seria o maior dos absurdos o exigir responsabilidades pelo "não cumprimento das leis que estivessem obrigados a conhecer", porque se tivessem publicado de uma ou outra forma, "mas que, na realidade, desconheciam", como em geral toda a gente desconhece as leis, que a mesma lei obriga a cumprir, sem que sirva de escusa a ignorancia.

4.° De idêntico modo, na carreira ecclesiastica, alem da parte da doutrina que todo o christão ou catholico deve conhecer, ensinam-se desde o principio, constante e preferentemente, as leis ou canones da igreja, que o ecclesiastico estará um dia obrigado a cumprir.

E escolho os anteriores exemplos do exercito e da igreja, porque estas duas organizações sociaes são as mais perfeitas para seus fins, e dignas de imitação entre as existentes; mas se descermos ás classes e organismos especiaes, encontramo-nos sempre com a mesma pratica de fazer conhecer a cada qual as leis que está obrigado a cumprir, excepto, precisamente, aquellas que são objecto da lei geral.

5.° Ao senador e ao deputado é fornecido, logo que como taes são proclamados, um livro contendo as leis e regulamentos que lhes interessem.

6.° Ao advogado que entra na sua Ordem ou Associação entrega-se-lhe immediatamente um pequeno manual

com os estatutos e extractos de leis e regulamentos que pessoalmente lhe interessa conhecer para o exercicio da sua profissão.

7.° A quem entra numa sociedade particular fornece-se-lhe immediatamente o regulamento da mesma.

8.° A quem faz uma operação num Banco diz se á margem do documento da operação os artigos do regulamento que se referem a esse negocio, ou copiam-se na integra;

9.° Igual precaução se observa nos contratos de inquilinato, e ás vezes nos recibos de aluguer;

10.° O recibo do registo de uma carta contem á margem os artigos da lei que interessam ao que a entrega;

11.° Numa apolice de seguro observam-se as mesmas condições;

12.° A concessão de uma mina faz-se citando os artigos da lei e do regulamento que o concessionario deve conhecer.

E assim em muitos outros casos. Mas declarar obrigatorio o cumprimento de uma lei, que provavelmente, ou melhor seguramente, não é conhecida de quem deve cumpri-la, é o mais original que se poude inventar!

Ha certas leis, entre as penaes, que, sem necessidade de instrucção especial, toda a gente conhece e sabe que deve respeitar.

Por exemplo: melhor ou peor, toda a gente sabe o que é matar, ferir, roubar, furtar ou espancar, sob formas diversas, e toda a gente sabe que estas acções estão prohibidas e punidas pela lei.

Mas quantas leis geraes dos Codigos Civil e Penal, que são obrigatorias, chegam ao conhecimento d'aquelles a quem interessam, a tempo e opportunamente?

Todos são filhos. E, todavia, quantos conhecem os deveres e os direitos que incumbem aos filhos com respeito aos pães? A maioridade chega a todos que não morrem prematuramente. E, todavia, quantos conhecem os direitos e deveres que traz consigo a maioridade?

Muitas pessoas se casam. E, comtudo, quantos, dos que contraem matrimonio, conhecem os deveres e os direitos dos cônjuges entre si, as prescrições legaes sobre os bens no matrimonio, e os deveres e os direitos dos pães com respeito aos filhos?

Toda a gente compra e vende; mas quantos dos que compram e vendem conhecem os preceitos legaes sobre as compras e vendas?

Como é possivel que marche, medianamente ao menos, uma sociedade em que, dizendo se civilizada, occorrem taes anomalias?

A este respeito estão mais dentro da lógica as sociedades selvagens, porque, se bem que as suas leis são arbitrarias, rudes, crueis e absurdas, por sua propria simplicidade, e por ser a arbitrariedade e a força bruta a sua propria essencia, toda a gente sabe como proceder. As leis, em tal caso, são poucas e más, mas são do dominio publico.

Objectar-nos-ha que pretendemos que toda a gente seja letrada, e, afinal, nada d'isso pretendemos. De que cada qual conheça ou tenha motivo directo e pessoal para conhecer as leis que lhe interessam, a que conheça todas as leis geraes, a que as conheça por principios, a que tenha talento e illustração para discernir em casos difficeis, duvidosos e complicados, e a que esteja em condições de prever as contingencias das suas acções ante a lei, e de estudar ou redigir um contrato, um regulamento ou entabolar uma reclamação, ou redigir um pleito, ha uma differença enorme. Para chegar ao resultado a que devemos aspirar, poderia adoptar-se como costume, que fizesse parte da educação da infancia, o conhecimento dos deveres e direitos legaes dos menores, e que até o fim da adolescencia se aprendessem os principaes preceitos do direito de familia e dos que passara da menor á maioridade assim como algumas noções do direito de propriedade e do Codigo Penal.

Página 11

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 11

Mas, independentemente d'isto, seria conveniente pôr cada qual, pelo exercicio da lei, em condições de conhecer as disposições que lhe interessam, obrigando cada individuo a munir-se de uma cartilha especial para cada classe ou estado social, e citando-lhe, concretamente, ao entrar numa nova relação de direito, ou ao ser chamado a um tribunal, as leis e artigos d'aquella que está obrigado a conhecer.

Uma ultima observação, para terminar este assunto: para que consignar no Codigo Civil que a ignorancia das leis não escusa do seu cumprimento, e não consignar isto no Codigo Penal 1, nas leis do Juizo civil ou criminal, e noutras especiaes? Acaso não se trata de um preceito geral, e que não se refere somente ás disposições do Codigo Civil? Pois em taes casos, parece mais proprio que o principio se consigne numa lei tão geral como é a Constituição, em cujos titulos I ou IX deveria estar incluido este preceito, melhor que no Codigo Civil".

Assim pensam jurisconsultos e parlamentares distinctissimos, de países onde a Folha Official não custa, como entre nós, um preço inaccessivel á bolsa dos que são obrigados a conhecer as leis que ella publica, e cuja ignorancia os não exime de responsabilidades.

Adstricto ás suas ideias, e sob a aspiração de que a Republica barateie, socialize e democratize, como deve, o orgão da sua existencia legal e espiritual, tenho a honra de propor-vos o seguinte:

Artigo 1.° O Diario do Governo, passa a denominar-se Diario da Republica Portuguesa, e não terá summario de materias.

Art. 2.° Será dividido em duas partes: official, e não official. A official inserirá, unicamente, por ordem chronologica, as leis, os decretos, as portarias, os despachos de pessoal, e bem assim os contratos que obriguem o Governo. Terá paginação separada, e vender-se-ha avulso. A parte não official conterá as actas do poder legislativo.

§ unico. Estas actas só inserirão os discursos dos representantes da nação, que falarem mais de dez minutos, e, quanto ao mais, simples referencias. Os oradores poderão, dentro de duas horas, fornecer á mesa os extractos dos seus discursos. São propriedade sua as notas tachygraphicas, devidamente interpretadas, para poderem, que rendo, fazer a expensas proprias a publicação na integra.

Art. 3.° O Diario da Republica Portuguesa terá duas edições: completa e incompleta. A completa comprehende a parte official e a não official. Custará 6$000 réis por anno, 3$000 réis por semestre, l$500 réis por trimestre, 500 réis por mês e 20 réis por numero. A incompleta só comprehenderá qualquer d'estas partes, e custará metade.

Art. 4.° Fica prohibida a inserção no Diario:

1.° De quaesquer outros documentos de caracter parlamentar;

2.° De quaesquer sentenças ou accordãos do poder judicial;

3.° De quaesquer estatutos, contratos, ou escrituras;

4.° De quaesquer annuncios judiciaes ou particulares;

5.° De listas de foros, censos, lotarias, etc.

§ unico. Os annuncios judiciaes serão adjudicados, por licitação publica, no Ministerio da Justiça, a um dos jornaes de maior tiragem, que em concurso offereça motivos de preferencia, ou a jornal que expressamente se crie para esse fim.

Art. 5.° E obrigatoria a assinatura da edição completa do Diario da Republica a todos os individuos que recebam qualquer ordenado ou emolumentos, por um cofre publico, superiores a 50$000 réis por mês, e é obrigatoria a da incompleta, parte official, para os que recebam mais de 36$000 réis por mês.

§ 1.° As camaras municipaes, e corporações que exerçam funcções publicas, inserirão obrigatoriamente nos seus orçamentos, a despesa com a assinatura do Diario da Republica.

§ 2.° A todos os individuos aos quaes se refere o artigo 5.° far-se-ha, mensalmente, o desconto do preço da assinatura no recibo dos seus vencimentos.

Art. 6.° Ficam supprimidas: a Collecção Official de Legislação, e as Ordens do Exercito e da Armada.

Art. 7.° Fica revogada toda a legislação applicavel em contrario.

O Deputado por Lisboa, Fernão Botto Machado.

O Sr. Ministro dos Negocios Estrangeiros e interino da Justiça (Bernardino Machado): - Tenho a dizer ao Sr. Deputado Fernão Botto Machado, que já fiz declarações peremptorias de que os menores que se encontram nas cadeias haviam de ser immediatamente, o mais depressa possivel, transferidos para as casas de correcção.

Comprehendo perfeitamente o sentimento que ditou a instancia do Sr. Deputado, e por isso lhe faço inteira justiça.

O assunto é realmente urgente; trata-se de crianças infelizes e é indispensavel que os poderes publicos lhes acudam de pronto, mas posso assegurar a S. Exa. que desde que me foi denunciado esse crime, embora involuntario, tenho providenciado todos os dias no sentido de o remediar, e ainda hoje mesmo assinei um despacho para serem internadas nas casas de correcção mais quatorze crianças.

Como, porem, o anno economico está a terminar, e esses estabelecimentos não teem os recursos necessarios para receberem um maior numero de internados, trarei á Camara o pedido de um credito extraordinario para esse fim, porque se os menores podem ser abandonados pelas familias, não o podem ser pelos poderes publicos (Apoiados) e, sobretudo, o que não se pode consentir é a promiscuidade d'essas crianças com os criminosos, e nisto não vae, devo dizer, a menor insinuação contra os directores das cadeias, e muito menos contra o director do Limoeiro.

(O orador não reviu).

O Sr. Eusebio Leão: - Se V. Exa. me desse licença eu desejava referir-me a este mesmo assunto.

Vozes: - Não pode ser. Isso altera a inscrição.

O Sr. Presidente: - Consulto a Assembleia.

Não foi concedida autorização para aquelle Sr. Deputado usar da palavra nesta altura da sessão.

O Sr. José Cordeiro: - Pedi a palavra para tratar de outro assunto, mas antes permitta-me V. Exa. que eu chame a attenção do Sr. Ministro interino da Justiça para aquelle de que S. Exa. se occupou.

Emquanto não forem removidas as crianças que estão no Limoeiro, e refiro-me a este ponto porque estive no Limoeiro e conheço o assunto, convinha separá-los dos outros presos.

O Sr. Eusebio Leão: - Talvez agora já não se faça o mesmo...

O Orador: - Mas deixe-me V. Exa. expor o que ia dizendo.

Quando eu estava no Limoeiro dava-se o seguinte, a que creio que ainda hoje se dá": os presos quando entravam iam para uma sala, chamada sala de entrada, por onde

1 O Codigo Penal Português diz no artigo 29.° e n.° 1:

"Artigo 29.° Não eximen de responsabilidade criminal;

1.º A ignorancia da lei, etc.

Página 12

12 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

passam todos os presos, e ali ficavam durante a noite para serem divididos no dia seguinte. Crianças de onze a dezaseis annos ficavam misturadas com toda aquella gente.

Isto succedia naquella época.

Hoje não sei se succede o mesmo.

Parecia-me, portanto, que, emquanto outras medidas não possam ser adoptadas, as crianças que se encontrassem no Limoeiro tivessem uma casa especial para esperar.

O Sr. Ministro interino da Justiça (Bernardino Machado): - Pois é assim, como V. Exa. diz, que já hoje se faz por iniciativa do Sr. Sanches de Miranda, director do Limoeiro.

O Orador: - Mas saiba V. Exa. que ainda ha pouco se fazia o contrario.

Agora dirijo-me ao Sr. Ministro do Interior para tratar do jogo de azar no concelho de Oeiras.

Uma voz: - Em Algés é uma pouca vergonha.

O Orador: - Naquelle concelho joga-se desaforada e descaradamente, e digo assim porque antigamente, no tempo da monarchia, jogava-se tambem e muito, mas hoje joga-se com mais descaro que então.

Ha ali individuos que vivem do jogo e quando se lhes vae fazer qualquer observação respondem como teem respondido sempre, isto é, com sete pedras nas mãos.

Posso dizer a V. Exa. que eu e outro correligionario do concelho de Oeiras fizemos a diligencia por evitar que ali se jogasse, mas que nunca o conseguimos.

Não se tomando providencias energicas é muito possivel que mais tarde se attribua á autoridade administrativa a responsabilidade do que possa succeder.

Tem-se pedido ás autoridades providencias neste sentido, mas respondem sempre que se joga em toda a parte e como se joga em toda a parte, parece que se não pode evitar que se jogue.

Eu já fui administrador do concelho de Oeiras e sei que então se jogava em toda a parte, tanto em Lisboa como em Cascaes, mas entendi que cumpria o dever do meu cargo combatendo o jogo de azar em Oeiras.

Não é preciso, Sr. Ministro do Interior, ter policias secretas para saber onde se joga, porque de mais se sabe onde se joga.

O que é preciso é recommendar ás autoridades que não fechem os olhos áquillo que se torna tão claro a todos, mas se não ha maneira de evitar o jogo, regulamente-se, e tire d'ahi o Estado o maior proveito possivel.

O Sr. Ministro do Interior disse ha dias nesta Camara que podia medir os seus actos pelas palavras da opposição. Pois tem S. Exa. uma excellente occasião de pôr em pratica o seu pensamento: ordene ás autoridades que cumpram o seu dever, não consentindo o jogo e não se admirem se essas ordens não forem acatadas, não se admirem, dizia, que em poucos dias o povo vá a essas casas e as faça despejar.

(O orador não reviu).

O Sr. Ministro do Interior (Antonio José de Almeida): - O Sr. José Cordeiro sabe muito bem quaes são as minhas ideias sobre este assunto. Portanto, aqui mesmo, dentro da Camara, recommendo ao Sr. Governador Civil que proceda com rigor contra os jogadores.

(O orador não reviu).

O Sr. Presidente: - Faltam apenas cinco minutos para se passar á ordem do dia, e esqueceu-me fazer a leitura de um projecto de lei.

Peço licença aos Srs. Deputados para se fazer agora.

Leu-se na mesa:

Proposta

"A Assembleia Nacional Constituinte decreta:

1.° Que desde já e até 31 de outubro de 1911, seja suspensa a cobrança de todo o imposto sobre azeite importado de procedencia estrangeira.

2.° Que os individuos denunciados como detentores de generos alimenticios sejam entregues aos tribunaes, a fim e responderem pelo crime de promotores da desgraça publica.

Lisboa e Sala da Assembleia, em 11 de julho de 1911. = Manuel José da Silva".

O Sr. Presidente: - Este projecto vae ser publicado.

(Pausa).

Os Srs. Deputados, que tiverem papeis a mandar para a mesa, podem enviá-los.

O Sr. Manuel Bravo: - Mando para a mesa o seguinte

Requerimento

Requeiro por todos os Ministerios em geral, e pelo das Finanças, em particular, que me seja enviada uma nota de todos os despachos que tenham autorizado a recepção illegal de dinheiros publicos a funccionarios do Estado ou a particulares durante as ultimos vinte e cinco annos de administração monarchica. Com essa nota requeiro tambem que me seja enviada a relação dos nomes dos Ministros que deram esses despachos, o fundamento ou titulo, se o houver, com que foram lavrados e os nomes dos receptores. Evidentemente, neste requerimento comprehende-se o adeantamento de dinheiros que illegalmente foram feitos aos membros da familia real.

Sala das sessões, em 12 de julho de 1911. = Manuel Bravo.

(Mandou-se expedir).

O Sr. Alfredo Ladeira: - Apresento o seguinte

Requerimento

Requeiro que pelo Ministerio do Interior me sejam fornecidos os seguintes documentos:

1.° Uma nota explicativa de todos os individuos que prestaram quaesquer serviços no extincto Juizo de Instrucção Criminal, desde a sua fundação, quer esses serviços fossem ou não remunerados;

2.° Qual foi a quantia gasta pelo mesmo Juizo de Instrucção Criminal, durante a sua existencia, e qual a applicação que tiveram as respectivas verbas. = O Deputado, Alfredo Maria Ladeira.

Mandou-se expedir.

O Sr. Albano Coutinho: - Envio para a mesa o seguinte

Requerimento

Requeiro que, pelo Ministerio do Interior, me seja enviada copia do processo de syndicancia ordenada pelo governador civil de Aveiro, a proposito de um contrato feito entre a Sociedade das Aguas da Curia e a Commissão Administrativa de Anadia.

Requeiro mais que, pelo Ministerio do Interior, me seja enviada copia de toda a correspondencia trocada entre o governador civil de Aveiro e o administrador do concelho de Anadia, referente ao mesmo assunto.

Sala das Sessões, em 11 de julho de 1911. = O Deputado, Albano Coutinho.

Mandou-se expedir.

O Sr. Joaquim Ribeiro: - Apresento o seguinte

Requerimento Peço que pelo Ministerio da Marinha e Colonias me

Página 13

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 13

seja fornecida copia da syndicancia feita ao Collegio das Missões, em Sernache do Bomjardim.

Sala das Sessões, em 12 de julho de 1911. = Joaquim Ribeiro, Deputado pelo circulo n.° 33.

Mandou-se expedir.

O Sr. Miguel Abreu: - Mando para a mesa os seguintes

Requerimentos

Requeiro que, pelo Ministerio dos Negocios Estrangeiros, me sejam enviadas as seguintes notas:

1.ª Dos funccionarios d'esse Ministerio que se acham fora dos seus logares e porquê;

2.ª Dos funccionarios que exercem simultaneamente logares em pontos differentes do estrangeiro e leis que regulam este facto;

3.ª Vencimentos que recebem os funccionarios a que se refere a nota 2. = Miguel Abreu, Deputado por Barcellos.

Requeiro que, pelo Ministerio da Marinha, me sejam concedidas as facilidades necessarias para eu nesse Ministerio ver o processo instaurado acêrca do caso do Arsenal. = O Deputado por Barcellos, Miguel Abreu.

Requeiro que, por iodos os Ministerios, me sejam enviadas notas claras e concisas acêrca dos funccionarios publicos, que moram em edificios do Estado, ordenados que recebem, mais despesas que lhe são abonadas, e leis que autorizam estes factos. = O Deputado por Barcellos, Miguel Abreu.

Mandaram-se expedir.

O Sr. Baltasar Teixeira: - Envio para a mesa os seguintes

Requerimento

Requeiro que, pelo Ministerio do Interior, me sejam enviados os seguintes documentos:

Nota das escolas primarias actualmente existentes, com designação das criadas depois da Proclamação da Republica, das que funccionam em edificio proprio e das que estando criadas não funccionam, dizendo-se o motivo d'este facto.

Nota dos professores interinos, provisorios ou supranumerarios em cada um dos lyceus do país, designando-se os seus nomes, data da sua primeira nomeação, dos que o foram por proposta dos respectivos conselhos escolares e outros empregos que exerçam.

Em 12 de julho de 1911 = O Deputado pelo circulo n.° 40, Baltasar Teixeira.

Requeiro que, pelo Ministerio da Guerra, me seja enviada uma nota de todos os cidadãos agraciados com qualquer grau da Torre e Espada, com a designação das épocas em que foram concedidas, pensões que por virtude d'essa graça percebam, motivos que determinaram a sua concessão e data da perceção da ultima prestação das pensões.

Em 12 de julho de 1911. = O Deputado pelo circulo n.° 40, Baltasar de Almeida Teixeira.

Mandaram-se expedir.

O Sr. Viotorino Guimarães: - Por parte da commissão de guerra, mando para a mesa o seguinte

Requerimento

Ao abrigo do artigo 86.° do regimento deseja a commissão de guerra que pela Exma. Mesa d'esta Assembleia Nacional Constituinte seja requisitada ao Ministerio da Guerra, a fim de poder estudar e documentar o projecto de lei n.° 8-B, uma relação de todos os edificios e terrenos na posse do Ministerio da Guerra e que, por não serem necessarios para o serviço do mesmo Ministerio da Guerra, possam desde já ser alienados pela forma legal de desamortização.

Saia das sessões, 12 de julho de 1911. = O Secretario da commissão de guerra, Victorino Maximo de Carvalho Guimarães, Deputado pelo circulo n.° 8.

Mandou-se expedir.

O Sr. José Pereira Basto: - Mando para a mesa a seguinte

Nota de interpellação

Desejo interpellar o Sr. Ministro da Justiça sobre o procedimento havido para com o parocho da freguesia de S. Felix da Marinha, concelho de Gaia, accusado de desrespeitar as leis da Republica. = O Deputado, J. P. da Costa Basto.

Mandou-se expedir.

O Sr. Presidente: - Vão passar- se á ordem do dia.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do projecto de lei n.° 3 (Constituição)

O Sr. João de Menezes:-Se não fora o parecer falta de gentileza para com os oradores que o precederam, o deixar de tomar a palavra, elle, orador, não o faria, porquanto a Camara está suficientemente elucidada, pelo que já teem dito os outros membros da commissão, sobre as intenções de que todos foram animados ao redigir o projecto, que entregaram ao Parlamento, para que elle o discutisse como entendesse e o alterasse tambem como melhor lhe parecesse.

O projecto apresentado, como já todos sabem, não é um projecto instituindo a Republica representativa; bastava o facto de o Presidente não ter a mesma origem do poder legislativo; bastava o facto de não se lhe conceder o direito do veto, para que a Republica não fosse presidencial.

Ha um argumento - que elle, orador, até agora não reconhece como aconselhado - para se dizer que, em Por tugal, se deve acceitar o regime da França: é o das tradições constitucionaes e parlamentares da Nação Portuguesa.

Quaes são as tradições constitucionaes?

São as da constituição de 1822 que, por assim dizer, durou o tempo que levou a discutir; são as tradições da Constituição de 1838, que durou apenas quatro meses; ou são as tradições da carta constitucional, trazida do Brasil pelo inglês Stuart.

Quanto ás tradições parlamentares, teve o orador, o cuidado de estudá-las, desde 1826 até 1910; e encontrou que, em quarenta e uma legislaturas, desde 1826 a 1900, apenas nove Camaras de Deputados deixaram de ser dissolvidas. Encontram que no reinado de D. Luis, houve onze dissoluções, sendo duas dellas em 1870. Quanto ao reinado de D. Carlos, encontrou que se fez um adiamento sine die, estando o país durante dois annos sem Parlamento. Encontrou que houve muitas dissoluções; e para que nada deixasse de haver de original, encontrou que uma Camara, dissolvida em 1897, foi novamente dissolvida em 1898!

Conseguintemente, o regime parlamentar foi sempre uma mentira, a que a Nação jamais se pôde adaptar.

Parlamentarismo português! A sua historia, a historia da monarchia em Portugal, é a historia das revoluções em palacio, das dissoluções e da demagogia de caserna.

Se se analysar a historia de 1820, encontra-se a revolta militar do Porto, em agosto, e a de setembro em Lisboa.

Houve depois a contra revolução de 1823; em 1827 novo pronunciamento e, em 1828, a revolta constitucio-

Página 14

14 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

nal do Porto. Depois da tentativa de revolta militar, era Lisboa, surgiu a revolta de 1830, promovida pela guarda nacional de Lisboa, da qual saiu a Constituição de 1838, a qual, entretanto, não vigorou, sem que tivesse deixado de haver chacina no Rocio e em outros pontos.

Em 1842 houve a tentativa de refundir a carta de 1838; em 1844, pronunciamento em Torres Novas e Almeida. A seguir essa tremenda guerra civil, que veio a liquidar pela vergonha da intervenção estrangeira.

Posto isto, nota que a commissão não foi accusada de plagiar os Lusiadas o a Odisseia, mas o de transcrever artigos da Constituição brasileira.

Esses artigos foram approvados, depois de larga discussão, que abrangem artigo por artigo, embora alguns d'elles se encontrem em outras constituições.

Mas, por exemplo, que vergonha representaria, para os representantes da Assembleia de 1789, o terem reproduzido as declarações de voto de homens que votaram a Constituição dos Estados Unidos? Não se podem inventar redacções novas, quando os trabalhos das Constituições, que precederam a portuguesa, foram feitas, por homens que muito estudaram.

Por sua parte, elle, orador, já se não illude. A Assembleia, na sua maioria, vae adoptar a Republica parlamentar. Não tem illusões a tal respeito. Submettendo-se pórem, ao voto da Camara, não deixará de. combater, constantemente a Republica parlamentar. Com effeito, vae-se instituir a Republica parlamentar, quando ella, no unico país em que existe, está em vesperas de soffrer as mais profundas modificações.

Outro ponto, que serviu de materia de critica - que seria infantil elle orador, discutir neste momento - é o da designação das duas Assembleias parlamentares. Ouviu dizer, com espirito, que se havia proclamado uma Republica de conselheiros, porquanto havia o Conselho Nacional e Conselho de Municipios. Mais Conselhos, porem, tem a Suissa. A questão é de nomes. A elle, orador, tanto se lhe dá que se chame Conselho, ou Senado.

Dirá, talvez, uma heresia; mas preoccupa o menos uma Constituição do que uma reforma administrativa e uma lei eleitoral. O que deseja é que a Republica não seja o regime do dominio da classe dos politicos. Por isso mesmo, partidario da democracia directa, que é, a seu ver, o unico regime em que os politicos são mettidos na ordem.

O que quer é que a Republica não seja a continuação da monarchia. E se for uma Republica parlamentar, sem ter feito uma larga reforma administrativa, sem ter organizado uma honesta lei eleitoral e ter tornado independentes os funccionarios publicos, a Republica parlamentar será uma mentira, como foi a monarchia Constitucional.

Pelo que respeita aos municipios, não quer elle, orador, impor um dogma, mesmo porque as suas opiniões estão sujeitas ao voto da Assembleia. Apenas uma pergunta deseja fazer aos partidarios d'essa opinião, modernamente defendida em França, por Figuier e Dupuy. A representação é de classes ou de profissões ? Quaes são as classes, que devem ser adraittidas, para se representar no parlamento? E deve-lo-hão ser só pelo seu numero? Quaes são as profissões que devem ser representadas ou quaes as que não o devem ser?

Outra questão, que tem sido muito discutida, é a da dissolução da Camara.

Esta palavra está desacreditadissima em Portugal, devido ás honrosas tradições constitucionaes e parlamentares do país.

A tradição ainda mais desacreditada está, porque em Portugal os Parlamentos foram sempre dissolvidos, ou quasi sempre, para que os Ministros pudessem metter as mãos nos cofres publicos, em beneficio da familia real. Ato hoje, porem, ainda ninguem apresentou o unico argumento que se pode apresentar a favor da dissolução.

Vae elle, orador, apresentá-lo.

No regime republicano todos os poderes são responsaveis. É responsavel o Presidente, são responsaveis os Mininistros e deve ser responsavel o Parlamento. Perante quem? Perante a Nação.

Como é que o Parlamento procede a respeito dos Ministros e do Presidente? Fazendo a sua accusação e condemnação.

Como é que a Nação pode proceder perante o Parlamento? Retirando-lhe o mandato.

Elle, orador, votará contra a dissolução. Se, porem, se quiser cousa melhor, então prefere o seguinte: o Senado não deve servir para dar opinião ao Presidente da Republica, a favor da dissolução da Camara dos Deputados, porque, tanto a Camara como o Senado podem criar uma situação irreductivel.

Ponham-se de parte as mystificações e fale-se a verdade. Deve se dizer que não ò possivel realizar, desde já, todas as reformas democraticas. Pode dizer-se que se quer realizá-las o mais depressa possivel, mas não se devem esquecer as palavras de Ferry de que "é a Republica que ha de fazer os republicanos".

Entre os homens defensores da Republica, quer o orador contar os militares de terra e mar, que são tambem povo. Quer contar todos; não distingue classes, nem partidos, nem situações sociaes.

Mal iria a todos se quisessem debater-se, uns contra os outros, porque as armas que apresentassem iriam ferir a patria, portuguesa.

Outra questão que tem sido debatida é a dos honorarios do presidente da Republica.

E bom saber-se, a proposito, que o unico homem que, por si, sem autorização de ninguem, disse que não queria Presidente da Republica, foi elle, orador.

O programma do partido republicano não o diz; os Deputados republicanos, na monarchia, não o disseram.

Por sua parte, o orador não discute a questão dos honorarios, sob o ponto de vista de que o Presidente, recebendo 18:000$000 réis, tem de ir morar num quinto andar da Baixa.

Nada tem com a vida particular do Presidente, como elle nada tem com a vida d'elle, orador. O que diz, é que é preciso convencer os homens do nosso país de que o Presidente da Republica é o chefe de Estado de uma nação pobre, que tem hypothecadas as receitas das alfandegas e dos tabacos. É necessario mostrar ao chefe do Estado que elle é o representante de um povo que fez a Republica, para entrar num regime de sacrificios; porquanto é bom insistir em que Portugal é um país em más condições financeiras, sendo, portanto, necessario, mais do que nunca., dar o exemplo da nossa parcimonia. Somos um país em que não podemos pensar era despesas de representação para o Presidente da Republica.

A seu ver, esse incidente do ordenado do Presidente da Republica é para ser tratado depois, visto que ha um projecto especial sobre o assunto. E estimará que, nessa occasião, a commissão de finanças dê o seu parecer sobre o assunto.

(O discurso será publicado na integra, quando o orador restituir as notas tachygraphicas).

O Sr. Barbosa de Magalhães: - Sr. Presidente, em harmonia com as disposições do regimento, mando para a mesa a seguinte

Moção de ordem.

A Camara, reconhecendo a necessidade de decretar uma Constituição accentuadamente democratica e liberal, tanto quanto o permittam as condições especiaes do país, e de nella assegurar devidamente a sua perfeita e completa execução, pela independencia do poder judicial, tão absoluta quanto possivel, pela abolição do foro politico es-

Página 15

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 15

pecial e pela responsabilidade effectiva e efficaz de todos os agentes da autoridade publica, continua na ordem do dia.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional Constituinte, em 12 de julho de 1911. - O Deputado, Barbosa de Magalhães.

Sr. Presidente, antes de encetar as considerações que vou fazer sobre o projecto em discussão, permitta-me V. Exa. e a Camara que lhes peça que não vejam nas minhas palavras, nem intuitos de originalidade, de destaque, ou de radicalismo, nem tão pouco o menor desejo de ser agradavel a esta ou áquella corrente de opinião publica, a esta ou áquella parte da Camara.

Vou dizer sinceramente o que penso sobre este capitalissimo assunto, e entro na discussão livremente, e não obstante a proposta hontem aqui apresentada pelo Sr. Dr. Alexandre Braga, segundo a qual, a discussão se devia restringir aos pontos sobre que, segundo S. Exa., a Camara já se tem manifestado.

Devo começar por declarar que as considerações que vou apresentar incidem exactamente sobre esses pontos, que S. Exa. pensava estarem já assentes no espirito d'esta Assembleia; e faço-o, não só porque essa proposta não teve seguimento, mas tambem porque a esses pontos se referiram o proprio Sr. Dr. Alexandre Braga e os Srs. José Barbosa e João de Menezes, e ainda porque entendo estar no uso legitimo de um direito, e ser de toda a conveniencia e necessidade que numa questão d'esta ordem sejam aqui expostas desassombradamente todas as ideias e por aqui perpassem, ainda que ligeiramente, todas as correntes da opinião publica.

Em harmonia com a moção que mandei para a mesa, começo por referir-me aos direitos e garantias individuaes dos cidadãos e fá-lo-hei em breves palavras, porque está já assente, por uma forma evidente, palpavel, que na Constituição se devem consignar e garantir esses direitos, e tambem porque não quero cair na discussão da especialidade.

Então é que este assunto melhor pode e deve ser desenvolvidamente apreciado, pois é da mais alta importancia e gravidade.

O Sr. Dr. Manuel de Arriaga, na sua moção, declarou, e foi essa talvez a unica affirmação concreta que nella fez, que o projecto da Constituição assegura a independencia do poder judicial e as garantias e direitos individuaes.

Contesto a S. Exa. esta affirmação e devo dizer que é exactamente neste ponto que o projecto mais merece a nossa critica.

Começo por lamentar e sentir que a commissão relegasse para o fim do projecto esta materia.

E faço-o, porque a questão não é tão sem valor como á primeira vista poderá parecer: é uma questão, que não é só de methodo, mas que define a orientação geral seguida e que imprime caracter.

E tanto mais estranho o proceder da commissão, quanto é certo que ella não desconhecia decerto ás palavras que se lêem no relatorio do projecto de revisão constitucional, apresentado na Camara dos Deputados em 1871, por varios homens publicos, entre os quaes se contava o grande democrata José Elias Garcia.

Ahi se dizia o seguinte:

"Até a ordem e o lugar em que apparecem definidos os direitos dos cidadãos attestam na lei fundamental d'este país, que são elles antes uma graciosa concessão do que o flolemne reconhecimento de primitivas e naturaes immunidades.

O artigo 145.° e o ultimo da carta constitucional. Observa-se neste Codigo a precedencia dos poderes e dos elementos sociaes na antiga monarchia.

No cortejo constitucional desfilam primeiro o poder, o rei, os Ministros, ,o conselho de Estado, a força militar, a justiça, os impostos.

O povo vem no fim d'esta procissão tradiccional.

Attente-se agora em como, ao revés nas modernas constituições, mais accomodadas á liberdade que á realeza, o povo com os seus direitos e franquias occupa o logar de honra.

E não é por uma simples distincção de precedencia, senão porque são as franquezas populares o fundamento da sociedade e o alicerce da Constituição.

Veja V. Exa., Sr. Presidente, se depois d'estas palavras, ditadas por um grande amor ás liberdades publicas, não é para lamentar e sentir que o projecto da Constituição trate das garantias e franquias populares no fim, exactamente depois de ter apparecido esse cortejo: o Presidente, os altos poderes do Estado, etc.

Depois d'isto, limito-me por agora a consignar que o projecto, como já aqui se tem notado, nem é completo na enumeração dos direitos individuaes, contendo por outro lado, sobre o assunto, materia puramente regulamentar, nem assegura devidamente o completo e perfeito exercicio d'esses direitos, como é absolutamente preciso.

Sobre este ponto reservo-me para mais tarde fazer a demonstração completa do que agora affirmo.

E entro já na discussão dos tres outros fundamentaes problemas que constituem a generalidade do projecto, e que são: - a constituição e funccionamento do poder executivo, a constituição e funccionamento do poder legislativo e a constituição e funccionamento do poder judicial.

Sr. Presidente: disse o illustre Deputado, Sr. Dr. Manuel de Arriaga, que a independencia dos poderes era uma cousa assente e definida, e que podiamos passar adeante sem nos occuparmos mais do assunto. Peço licença a S. Exa. para dizer que discordo da sua opinião. Não se pode dizer de uma maneira absoluta que os poderes são independentes; é preciso fazer umas restrições e explicações.

Estudando o problema da independencia dos poderes do Estado, vemos que não são independentes, antes teem uns com os outros intimas e connexas relações, e mais ainda que essas relações de connexão não são as mesmas entre cada um dos varios poderes.

Estudando o organismo politico do Estado, vemos e reconhecemos que as funcçoes politicas são apenas tres: a funcção legislativa, a funcção executiva e a funcção judicial.

Mas ao passo que se reconhece, que tanto na theoria como na pratica, é difficil a distincção entre a funcção legislativa e a funcção executiva, que é difficil distinguir os actos que constituem a esfera de acção dos dois poderes legislativo e executivo, vemos que essa distincção se faz muito melhor e mais facilmente entre os actos de qualquer d'esses poderes e os actos do poder judicial. E a razão está em que, tanto a funcção legislativa como a funcção executiva, se occupam das condições de vida e desenvolvimento da sociedade, ao passo que a funcção judicial trata de garantir e assegurar o exercicio d'essas condições.

Como se vê, a differença é enorme. A distincção, que assim nos apparece entre cada um dos tres poderes, não é sempre igual; é muito menor entre o poder legislativo e o executivo do que entre qualquer d'estes e o judicial.

E do estudo do organismo politico do Estado e das suas funcções, concluimos mais que o poder legislativo deriva directamente, immediatamente da Nação e representa portanto a verdadeira expressão da soberania nacional.

Pelo que, é ao poder legislativo que compete a supremacia sobre os outros poderes, mesmo sobre o poder judicial.

E tanto que estamos aqui - nós, poder legislativo - para discutir e decidir a organização e funccionamento de todos os tres poderes.

Mas nessa organização e funccionamento a interpendencia das funcções e respectivos orgãos apparece, separando-se completamente da acção dos outros poderes o judi-

Página 16

16 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

cial e estabelecendo-se entre o legislativo e o executivo uma separação, que não exclue relações de connexão e de dependencia do executivo para com o legislativo, representante directo da, soberania popular.

Expostos estes principios, que mostram qual a orientação que vou seguir para a resolução dos problemas referidos, entro na apreciação d'estes.

O problema da organização do poder executivo costuma vulgarmente dividir-se em dois, apresentando-se um por uma forma que não corresponde á verdade, que é manifestamente erronea.

Esses dois problemas são: 1.° se deve haver ou não deve haver Presidente; 2.° se deve adoptar-se o regime presidencialista, o parlamentar ou o directorial, ou ainda um misto de todos ou de dois d'elles.

Quanto ao primeiro, a questão assim é mal posta, porque, em qualquer d'aquelles regimes, na doutrina como na pratica, ha, como não pode deixar de haver, um Presidente. A questão tem de ser posta de uma maneira diversa. O que se trata de saber é se o Presidente, chefe do poder executivo, o deve ser só in nomine, um Presidente irresponsavel, cujas attribuições se resumem verdadeiramente em representar o país nas solemnidades e festas officiaes, ou se deve, na realidade, ser o chefe d'esse poder, tendo a correlativa responsabilidade criminal e politica, como os Ministros, que escolhe e demitte segundo as indicações parlamentares.

Abertamente me declaro partidario d'este ultimo systema, que só tem de commum com o presidencialismo a responsabilidade do Presidente, e que é antes um misto do parlamentarismo e do directorialismo, pois eu quero, e nisso sou intransigente, que OB Ministros e, portanto, o Presidente tambem, venham á camara dar contas dos seus actos.

Eu desejo o que Naquet propôs á França em 1875: - que o poder executivo seja confiado a um Presidente do Conselho sem pasta, responsavel perante a Camara, eleito e revogavel por ella e que tome o nome de Presidente da Republica.

Num regime democratico não se comprehende nem admitte que haja alguem que seja irresponsavel, que esteja acima de todos os outros, cercado de privilegios e com funcções meramente decorativas.

Não se comprehende que o chefe do poder executivo esteja á parte, fora d'elles em condições differentes das de todos os outros membros d'esse poder e sendo apenas um chefe nominal.

Temos então, na verdade, um outro poder, como a carta constitucional estabelecia - o moderador.

As funcções orientadoras e de coordenação, que devem competir ao Presidente, melhor as pode elle exercer a dentro do Governo, tendo a responsabilidade directa do seu exercicio e estando em contacto permanente com o Parlamento, cujas indicações deve seguir.

No systema parlamentar o Presidente só tem a responsabilidade nos crimes de alta traição; pelo systema presidencial tem a responsabilidade politica e criminal dos seus actos e dos actos de todos os Ministros.

Eu não admitto, Sr. Presidente, que assim se deem a um homem as mais largas attribuições, como se dão nesse ultimo systema embora se diga que se lhe podem exigir as correspondentes responsabilidades.

E um Presidente da Republica, tal como existe em França, que é exactamente como o Chefe de Estado de uma monarchia constitucional, é um ser de excepção, e, como tal não pode admittir-se tambem.

O systema, que adopto, é um systema misto; mas não é tambem o systema usado na Suissa. Eu quero que o Chefe do Estado seja o Chefe do Poder Executivo, mas que o seja de facto e tenha toda a responsabilidade.

Eu sei que se diz que esse systema é mau e grave, porque provoca a instabilidade do Gabinete e tambem a instabilidade do proprio Chefe da Nação.

Mas desde que nos compenetremos de que a responsabilidade dos Ministros só pode ser solidaria nas questões de ordem publica, ou de grande magnitude, que representem uma determinada orientação politica, economica ou financeira, desde que se estabeleça que um cheque parlamentar a um dos Ministros não importa sempre necessariamente a queda do Gabinete, e muito menos do seu Presidente, e pode até ás vezes, tratando-se de questões de secundaria importancia e quando não importe falta de confiança, não occasionar a queda do proprio ministro, o primeiro inconveniente notado não se dá.

O segundo tambem não se deve dar desde que o Presidente seja homem de altas qualidades como deverá ser, saiba interpretar bem a orientação e o sentir da Camara, e de harmonia com ellas faça sempre seguir a acção governamental.

Desde que proceda bem, nenhum receio pode ter de vir ao Parlamento, e não é por vir até elle dar contas dos seus actos, que mais atacado pode ser.

Nunca em Portugal politico algum foi mais atacado em qualquer das Casas do Parlamento, tão duramente, como o foram no regime constitucional, a minha D. Maria II e o rei D. Carlos. Contra um e outro, apesar de não virem ao Parlamento, se dirigiram as maiores e mais atrozes accusações; mas não foi por isso, por virtude d'esses ataques, mas dos actos que praticaram, que perderam o seu prestigio e autoridade.

Sr. Presidente: o que eu desejo é que o Chefe da Nação seja ao mesmo tempo o Chefe do Poder Executivo, que possa tomar perante a Camara, perante o país a completa responsabilidade dos seus actos.

Eu quero que esse Presidente se imponha, não por ser Presidente, mas pelo que faça; que seja de facto Chefe do Poder Executivo e venha tambem com os seus Ministros ao Parlamento.

Quero para o meu país, como já disse, um systema misto de parlamentarismo e directorialismo, mas absolutamente arredado do regime presidencial, que é o caminho, especialmente num país como o nosso, para o despotismo, para a ditadura.

Aproveita-se assim de cada um d'aquelles systemas o que melhor se pode adaptar ao nosso meio, ás nossas tradições, aos nossos usos e costumes, ás nossas condições sociaes.

Devo, porem, dizer agora, Sr. Presidente, antes de passar adeante, que sou absolutamente contrario ao direito de dissolução.

Entendo que elle nem theorica, nem praticamente, se pode acceitar. (Apoiados).

Não theoricamente, porque representa, sem a menor duvida, a supremacia do poder executivo sobre o legislativo. (Apoiados).

Quando ha pouco tratei da divisão dos poderes, eu fiz ver que é o poder legislativo quem deve ter a supremacia sobre o poder executivo, e não este sobre aquelle.

Não praticamente porque, quando se estabelece o direito de dissolução, ou d'elle se não usa, como em França, ou d'elle se abusa, como em Portugal.

Uma voz: - Se abusou.

O Orador: - De que se abusou, perfeitamente de acordo.

Não quero a dissolução, nem vejo argumentos que a possam justificar.

Ouvi dizer que a dissolução se torna precisa, quando se dê um conflicto entre os dois poderes, o legislativo e o executivo.

Mas, dado esse conflicto, a maneira por que se entende

Página 17

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 17

poder elle ser resolvido, é exactamente no sentido de dar supremacia ao poder executivo, o que eu não admitto.

A dissolução, tal como existe estabelecida em França, só pode dar-se com o voto affirmativo do Senado, isto é, vae buscar-se a uma parte do poder legislativo o correctivo a applicar á parte restante, o que é inadmissivel, mesmo porque vae criar-se um conflicto maior, entre a Camara dos Deputados, por um lado, e o Senado e o poder executivo, por outro, ou entre este e todo o poder legislativo.

Affirma-se que, não adoptando a Republica os processos condemnaveis da monarchia, certo é que se não abusará da dissolução.

Mas é esta uma affirmação que se não pode admittir em absoluto; e, em todo o caso, não se deve dar logar, sequer, a que os mesmos antigos abusos se possam repetir.

Diz-se ainda que esses abusos do tempo da monarchia, se não darão na vigencia da Republica, visto que existirá a genuidade do suffragio e as eleições serão livres.

Mas, Sr. Presidente, o suffragio não tem absolutamente nada com esta questão.

Suppondo mesmo que depois de dissolvida uma Camara venha outra que devidamente represente a vontade nacional, a verdade é que o Presidente fica, ou deve logicamente ficar, com o direito de a dissolver tambem quando um novo conflicto se venha a dar, e, pelo menos, emquanto a nova Camara não funccione, o Governo e o Presidente ficam absolutamente á vontade para fazerem o que quiserem.

Diz se ainda que, não querer a dissolução, representa medo do poder legislativo, na consulta ao país.

Não é assim; então para não mostrar tal medo, devia estabelecer-se que o Presidente poderia dissolver a camara sempre que que o quisesse.

O caso está em que, emquanto o país não é consultado e os seus novos representantes não entram no exercicio das suas funcções, temos o poder executivo á vontade, demorando por seu livre alvedrio quaesquer medidas importantes, fazendo o que lhe approuver, e até pondo-se em ditadura.

O Sr. Jacinto Nunes: - Mas se o país manda a mesma Camara, o cheque cae em cheio na Presidencia.

O Orador: - De acordo.

O Sr. Dr. Egas Moniz veio trazer uma ideia nova ao debate.

Lembra a S. Exa. que o Presidente possa dissolver a Camara dos Deputados, mas só quando as duas Camaras reunidas deem o seu voto affirmativo.

Mas isto não é o direito da dissolução que se tem discutido; isto é antes uma auto-dissolução.

O Sr. Antonio Macieira: - Suicidio parlamentar.

O Orador: - Sim senhor. Um suicidio parlamentar; mas é uma formula que nada resolve.

Se ha um conflicto entre o poder legislativo e o poder executivo, não é de esperar que aquelle logo se submetia, indo-se embora, e portanto votará contra a dissolução, mantendo-se e aggravando-se o conflicto.

E se votasse a favor, renunciaria o mandato que recebeu da Nação.

É isso admissivel?

E só o poderia fazer a convite?

Não poderia espontaneamente fazê-lo?

Mas, Sr. Presidente, se na proposta- do Sr. Egas Moniz, alem do absurdo, ha o caso estranho de ir levantar um conflicto maior do que o que já existe, no direito de dissolução ha uma cousa mais grave, que é contrariar-se o proprio direito civil, porque o que se não pode comprehender, é que o poder legislativo, que é quem escolhe o Chefe do poder executivo, que é quem lhe dá todos os poderes que elle tem, quem lhe confere o mandato, seja depois dissolvido por esse seu mandatario, e que o mandato seja assim revogado por elle, e não pelo mandante.

O Sr. Jacinto Nunes: - Retirando-se o mandante, tambem se deve retirar o mandatario.

O Orador: - Não ha duvida. Não se comprehende que, saindo o mandante, o mandatario continue.

Dissolvida a Camara ou uma das Camaras, o Presidente deveria então sair tambem e consequentemente o Governo que elle nomeou.

O Sr. João José de Freitas: - V. Exa. não admitte que o poder legislativo pode, num dado momento, estar em desacordo com a Nação?

O Orador: - Admitto, mas então a Nação que se manifeste, e que não seja o Presidente ou o poder executivo o arbitro d'esse conflicto, que não seja esse poder, eleito por nós, que possa amanhã, com os poderes que nós lhe demos, atirar-nos para o meio da rua.

O Sr. Egas Moniz: - Mas com o voto da Camara.

O Orador: - Mas, repito, isso seria então a renuncia do mandato. Se se dá um conflicto entre o poder executivo e o legislativo, não se comprehende que seja o poder legislativo que tenha de ceder, de recuar, de por sua propria vontade se ir embora. O natural e o que deve ser é que o poder legislativo se mantenha no seu posto.

O Sr. João José de Freitas: - E quem pode garantir a V. Exa. que a Nação não estará muitas vezes ao lado do poder legislativo?

O Orador: - Ella então que se manifeste revogando o mandato que conferiu, e em outro caso que recorra á revolução, porque é esse um direito que não pode deixar de ser considerado e reconhecido por nós.

Ou, melhor ainda, estabeleça-se nesse caso o referendum, como lembra o Sr. Dr. João de Menezes, e que me parece acceitavel.

O Sr. Ladislau Piçarra: - Mas haverá inconveniente em que o poder executivo seja por eleição do poder legislativo?

O Orador: - Eu digo a V. Exa.

Eu não me opponho e antes desejo essa eleição para o chefe do poder executivo; mas não quero transportar para Portugal, de um jacto, o regime da Suissa, o que poderia produzir maus resultados.

Nem quero mesmo ficar com a responsabilidade de defender uma tal doutrina, visto dizer-se que a importação de certos costumes estrangeiros, poderá ser nociva e prejudicial á Republica Portuguesa.

O que eu desejo é que se estabeleça um regime misto. Desejo que o Presidente seja eleito pela Gamara" mas que seja elle que, de accordo com as indicações d'ella, escolha os Ministros.

Expostas assim as minhas ideias sobre o poder executivo e sobre a dissolução, eu vou agora, Sr. Presidente, entrar no estudo da organização do poder legislativo.

A eate respeito eu declaro-me absolutamente contrario a todos aquelles que teem vindo a esta tribuna discutir o assunto.

Eu defendo a doutrina de uma só Camara.

E para o fazer, Sr. Presidente, eu não preciso desenvolver o famoso argumento de Sièyes, de que: sendo a lei a vontade do povo e não podendo o povo ter duas vontades differentes sobre um mesmo assunto, o corpo legislativo, que representa o povo deve ser essencialmente um.

Página 18

18 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

Tambem não preciso desenvolver o argumento fundamental e irrespondivel de Mathieu de Montmorency, que dizia que, se as duas Camaras são constituidas da mesma forma, uma d'ellas é inutil, e, se o não são, constitue-se um corpo aristocratico.

Não preciso, finalmente, de dissertar sobre o outro não menos fundamental argumento, que Armand Marrast concretizou no relatorio do projecto da constituição francesa de 1848, nestas palavras: - a soberania é una; a nação é una; a vontade nacional é una. Como, pois, se quer que a delegação da soberania não seja unica, que a representação nacional seja dividida em duas, que a lei, emanando da vontade geral, seja obrigada a ter duas expressões para um mesmo pensamento?

O Sr. João de Freitas: - Vejo que V. Exa. quer uma só Camara.

O Orador: - Sim, senhor; já o disse; entendo que o corpo legislativo deve ser uno e que nenhuma razão ha para o scindir em duas secções.

O Sr. João de Freitas: - Veja V. Exa. o exemplo da republica de Espanha em 1873.

O Orador: - Era uma assembleia constituinte, como esta em que estamos e não foi por ter só uma Camara, como nós temos agora, que a Republica Espanhola caiu.

Devo, porem, dizer a V. Exa. que, principalmente em direito constitucional, eu attendo mais ao meu criterio, ao meu raciocinio, do que aos argumentos de ordem historica.

E digo a V. Exa. porquê: é que os factos historicos, especialmente quando se trata de epocas proximas ou contemporaneas, não só são quasi sempre desvirtuados, como tambem diversamente interpretados ao sabor de cada um que os invoca.

Os mesmos factos, as mesmas circunstancias, teem servido para justificar doutrinas contrarias.

E tambem o que acontece com as estatisticas. Com os mesmos numeros, os mesmos mappas, os mesmos dados, tem-se chegado a conclusões diversas, se não diametralmente oppostas.

Vou dizer a V. Exa. e á Camara qual é o meu modo de ver em relação a este ponto do projecto, e, já agora, começarei mesmo por argumentos de ordem historica, estudando a origem e a evolução das duas Camaras legislativas, para em seguida ir aos argumentos mais de ordem pratica, mais terra a terra, pois, como já disse, não preciso desenvolver os argumentos de ordem theorica, a que aliás só se pode responder com sophismas transparentes.

A constituição e organização de uma só Camara tem sido sempre desejada e decretada no dia seguinte ao das revoluções.

Sempre que a vontade popular se pode pronunciar abertamente e que as ideias liberaes podem expandir-se e vingar, apparece uma só Camara como orgão do poder legislativo. Assim, em França, numa das vezes em que se votou o poder legislativo com uma só Camara, a opinião publica manifestou-se por tal forma e essa ideia estava tão radicada no espirito radical de então, que a questão foi resolvida por 500 votos sobre 100, pouco mais ou menos.

Sr. Presidente, depois de decorridos os momentos que se seguem ás revoluções, depois de começar a dominar o conservantismo, é que começa a apparecer a ideia que cada vez mais se vae accentuando de se constituir uma segunda Camara, que modere, diz-se, os impetos da primeira.

Sr. Presidente: se nós formos á origem d'esta segunda Camara, vê-se que ella foi criada, para como dizia Royer Collard, auxiliar o rei contra as correntes democraticas, ou então para se constituir um centro de acção conservadora de opposição democratica e liberal.

Assim, vemos que nasceu a segunda Camara para dar logar aos representantes da aristocracia, da alta propriedade e do alto capitalismo, e que ainda se quer que ella seja o que Guizot dizia e era a reunião dos que se diz terem mais autoridade do que os outros, pela riqueza, pelo explendor do nascimento, pelos merecimentos, pela reputação e pela idade.

Depois, Sr. Presidente, a evolução d'esta segunda Camara, que se encontra, é certo, em quasi todos os países, tem sido feita no sentido de lhe diminuir as prerogativas e de a collocar, como deve ser, num grau de inferioridade relativamente á primeira Camara.

Ora eu não comprehendo que, sendo essa a Camara em que se deseja e se presume que haja mais ponderação, mais commedimento, onde teem assento os mais idosos, os mais notaveis, os que representam as forças vivas da Nação, seja afinal dependente da outra que, embora represente as boas, generosas e altas ideias, se presume ser mais irreflectida, mais leviana, mais ardente e impulsiva. Não comprehendo, Sr. Presidente, que seja inferior em direitos e prerogativas a Camara que tem por fim, diz-se, corrigir os excessos da outra, mas tambem menos comprehendia que essa segunda Camara fosse collocada superiormente á primeira, ou de alguma forma coarctasse os direitos d'essa, que é a lidima e directa representante da soberania da Nação, da vontade popular.

Sociologicamente não se comprehende que haja dois orgãos para desempenhar uma mesma funcção; e, se se diz que as duas Camaras constituem um só orgão, embora dividido e complexo, esquece-se que entre as duas Camaras se podem dar tantos ou mais e maiores conflictos, do que entre os proprios poderes politicos entre si.

Diz-se mais, Sr. Presidente, para sustentar a doutrina da segunda Camara, que, sob o ponto de vista politico, ella é necessaria para ali se estabelecer um centro de acção conservadora e para dar logar á correcção indispensavel aos trabalhos da Camara Baixa, e, sob o ponto de vista legislativo, que é preciso tambem fazer convergir sobre as leis a maior discussão, que convem que da segunda Camara reveja a obra da primeira, para lhe tirar as arestas vivas, para as adaptar ao meio a que ellas são destinadas, e para dar tempo a que o assunto seja meditado e estudado.

Mas, se por um lado não admitto e acho até inconveniente a constituição d'esse centro de acção conservadora, que em breve se pode tornar reaccionaria, tambem me repugna que se crie uma especie de Casa de Correcção para a obra d'aquelles que são os representantes da Nação.

E mesmo sob o ponto de vista da feitura das leis bem se podem conseguir aquelles objectivos, a que me referi, com disposições regulamentares, de forma que as leis saiam tanto quanto possivel perfeitas, depois de um estudo demorado e de sobre ellas a opinião publica e os diversos interesses em jogo se terem podido pronunciar, sem necessidade de uma segunda Camara.

É corrente o argumento de que antes haja poucas, mas boas leis, do que muitas e más.

Mas é preciso dizer que não é fazendo-as passar por mais do que uma assembleia legislativa, e submettendo-aa á discussão e votação de muitas pessoas e de muitas commissões que ellas saem mais perfeitas. Ao contrario, saem mais incoherentes e contraditorias.

E como é, Sr. Presidente, que se ha de constituir a segunda Camara?

Aqui divergem as opiniões, aqui se veem as ideias mais diversas e heterogeneas, aqui apparecem continuamente a indecisão, a duvida, a discussão.

E em regra não ha opiniões definidas, como vemos nos projectos de Constituição apresentados, ou não se querem

Página 19

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 19

já expor, deixando o assunto para lei especial - o que constituiria um gravissimo perigo.

Um d'esses projectos, o do Sr. Dr. Cunha e Costa, que é um jurisconsulto distinctissimo, partidario de uma segunda Camara, não diz como ella ha de ser constituida; limita-se a esta indicação vaga: "o Senado compõe-se (lê representantes da Nação e dos interesses permanentes e collectivos de todas as grandes funcçoes da vida social, maiores de 35 annos e eleitos por eleição indirecta".

Ha quem deseje que a segunda Camara se constitua como a primeira, por eleição directa. É essa, a meu ver, a melhor forma e a mais democratica; mas ahi temos nós o argumento irrespondivel da sua desnecessidade.

Ha de ser constituida por representantes dos municipios, como se estabelece no projecto? Mas que vantagem ha em chamar para a politica geral os corpos administrativos?

Se elles já são eleitos do povo, como os Deputados, porque hão de elles, e não estes, que tenham o direito de escolher os Senadores?

E que elemento novo se traz assim para a constituição da segunda Camara, com taes representantes indirectos?

Que interesses ou que ideias representam elles, differentes dos que possam representar os Deputados?

Havemos de constituir essa segunda Camara com representantes dos institutos scientificos e artisticos e das diversas classes sociaes?

Caimos assim no voto plural, que é regeitado por todos, com a aggravante de se dar, não só, mais votos, mas ainda o direito á escolha de representantes especiaes.

Às difficuldades e as injustiças que resultam do voto plural, dar-se-hão nesta forma de constituição do Senado.

Se quisermos admittir na segunda Camara a representação de classes, o que não é ideia nova, temos que dar esse direito de representação a todas ellas, sem excepção.

Não se ha de dar á classe dos advogados, excluindo a dos solicitadores, á dos medicos, excluindo os barbeiros, etc., deve dar-se a todas, mesmo á dos moços de esquina, porque todas ellas teem iguaes direitos, todas trabalham util e productivamente, todas concorrem, embora em diverso grau, para a vida e o desenvolvimento social.

Esta dificuldade na constituição da segunda camara é um dos maiores argumentos que se pode oppor á doutrina bicamaral.

E seja qual for a constituição do Senado, criar-se-hão distincções, privilegios, castas politicas, o que é absolutamente inadmissivel numa democracia.

O Sr. Jacinto Nunes: - Não queremos castas, nem classes.

Nisso é que estamos de acordo.

O Orador: - Quero ainda dizer á Assembleia, sobre o funccionamento do poder legislativo, que entendo que se deve consignar na Constituição que a ella propria compete o direito de eleger o seu Presidente, ou Presidentes.

Deve isto ficar na Constituição, para que nunca possa haver a veleidade de tirar ao legislativo esse direito, que é tambem uma garantia.

O Presidente da Camara não deve ser nomeado pelo poder executivo, como se pode dizer que era d'antes, mas deve ser eleito pelo proprio corpo legislativo.

Quero tambem que a legislatura não seja só por tres meses, mas por seis, pelo menos, porque deve ser tão grande quanto possivel a collaboração e cooperação de dois poderes e a acção fiscalizadora do poder legislativo.

Sr. Presidente: passo agora á Constituição do poder judicial; e é aqui que eu tenho de dirigir as mais vivas criticas á commissão, na qual vejo, pelo menos, tres distinctinssiinos jurisconsultos, dois advogados e um magistrado, o Sr. Dr. Correia de Lemos. Estranho, pois, que o projecto da Constituição tratasse com tão pouco carinho e cuidado este fundamental problema da nossa organização politica e social.

As disposições do projecto sobre o poder judicial são absolutamente insuficientes. Reservo-me o direito de, quando se discutir a especialidade, concretizar as minhas ideias sobre o assunto em propostas que mandarei para a mesa.

Mas, Sr. Presidente, devo já fazer a minha critica ás disposições do projecto e expor as minhas ideias sobre as bases, que na Constituição devem ficar expressas, e sobre que deve assentar a organização e o funccionamento do poder judicial.

Essas disposições, que se encontram dispersas-vejam-se os artigos 18.° e 54.°, n.° 2.°, 27.°, 28.° e 40.° - são poucas e não boas.

O Sr. José de Castro: - Mas complete-as e emende-as V. Exa.

O Orador: - Isso farei. Mas bem quisera que da commissão, onde estão tres distinctissimos jurisconsultos, tivessem vindo já ideias concretizadas em disposições que contivessem as bases da organização e funccionamento do poder judicial, por forma a assegurar devidamente a sua independencia.

A confusão dos poderes é, nas disposições do projecto, manifesta.

No artigo 18.° faz-se a confusão do poder judicial com o poder legislativo quando se determina a forma da nomeação dos juizes que hão de constituir o Supremo Tribunal de Justiça, attentado que, tenho a certeza, não será commettido por esta Camara.

E igual confusão se faz quando se estabelece nos artigos 16.° e 51.° o foro politico especial, que não pode nem deve subsistir.

O foro politico especial não é admissivel, quer em face dos principios juridicos, quer em face dos principios democraticos.

Com a organização do poder judicial liga-se um problema que eu reputo importantissimo: é o que diz respeito ao estudo das chamadas garantias constitucionaes, isto é, das medidas destinadas a assegurar o cumprimento exacto e integro da Constituição, estudo esse que a commissão descurou tambem.

Sr. Presidente, é preciso que a execução da Constituição esteja efficazmente garantida. É preciso manter certas e determinadas disposições que assegurem por completo essa execução.

É preciso determinar expressamente a não obrigação do pagamento de impostos, do serviço militar e do exercicio de funcções publicas quando por qualquer forma seja impedido o exercicio do poder legislativo, ou invadida a esfera de acção d'esse poder.

Mas todas estas garantias, assim como a da reunião das Cortes por direito proprio, dependem absolutamente da independencia, tão absoluta quanto possivel, do poder judicial.

Na organização d'este poder, por forma a evitar a menor intervenção do poder executivo e legislativo, é que está a suprema garantia.

E para isso entendo necessario consignar na Constituição que as nomeações, promoções, transferencias, suspensões e demissões dos membros da magistratura regular serão feitas por ella propria, segundo bases certas e definidas pelo poder legislativo, e que a magistratura dos juizes de paz, quando a haja, seja de eleição popular.

O Sr. João de Freitas: - Isso seria uma calamidade.

O Orador: - Não ha de que temer por isso, desde que se estabeleça devidamente o seu recenseamento de eleitores e elegiveis, nos termos e com as formalidades que fo-

Página 20

20 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

rem exigidas para o recenseamento politico, sendo sempre preferivel a sua eleição pelo povo á nomeação pelo poder executivo, como agora.

E preciso dar ao poder judicial, mas com mais largueza de que o faz o projecto da commissão, que deixa o seu exercicio dependente da impugnação de uma das partes, a attribuirão de apreciar a constitucionalidade das leis e a legalidade de todos os diplomas emanados do poder executivo.

Só assim, com este conjunto de disposições, poderiamos estar certos de que jamais se fará ditadura em Portugal, e de que este diploma será rigorosamente observado. Para inim o^ principal, portanto, é constituir como deve ser o poder judicial.

Neste ponto, repito, as disposições do projecto são insufficientissimas, pois no artigo 45.° não se faz, como era mister, a distincção das duas instancias; não se diz em additamento ao artigo 46.°, ou noutro artigo, que nenhuma sentença pode ser annullada ou modificada pela autoridade legislativa ou por uma autoridade administrativa, como diz a Constituição de Berne, e que, como estabelece o artigo 73.° da Constituição italiana, a interpretação das leis, por forma obrigatoria para todos, pertence exclusivamente ao poder legislativo.

Diz o projecto, Sr. Presidente, que será mantida a instituição do jury, mas dizer isto ou não dizer nada é o mesmo, porque amanhã uma lei, sem infringir esse preceito constitucional, pode reduzir a intervenção do jury ás causas eiveis, e facultativamente, como é agora.

Torna-se necessario dizer expressamente que o jury será facultativo em materia civil e commercial e obrigatorio em materia criminal, quando ao crime caiba pena mais grave do que prisão correccional e quando os delictos forem de natureza politica.

Eu queria tambem que se dissesse que nenhum juiz poderá accceitar do Governo funcções remuneradas senão em certos termos e casos concretos e definidos, e que, não só se consignasse que as autoridades e funccionarios são responsaveis pelos actos que pratiquem no exercicio das suas funcções, mas ainda se determine mais que as respectivas acções poderão ser intentadas directamente contra o Estado, provando que não teve seguimento dentro de um certo prazo a sua reclamação perante a autoridade executiva superior.

Nada d'isto, que eu julgo indispensavel para garantir a independencia do poder judicial e a Constituição, o projecto contem; - o que ali está e nada é a mesma cousa.

E se nada se acrescentar ao que está no projecto, nós ficaremos nas mãos, não só do legislativo, como do executivo.

O Sr. José Barbosa: - Mas porque é que V. Exa. não apresenta emendas?

O Orador: - Fálo-o-hei quando se tratar da especialidade.

Por agora limito-me a lançar estas ideias de uma forma geral, para que sobre ellas possa recair a attenção e o estudo da Camara.

E aproveito a occasião para prestar a minha homenagem de respeito e reconhecimento á commissão, pelo trabalho que apresentou, homenagem esta que aliás me não inhibe de criticar o projecto.

Reservo-me, pois, para na especialidade apresentar as respectivas propostas de additamentos, substituições e emendas.

Não as apresento já, por não ser a occasião propria, mas não pude deixar de enunciar aquellas ideias, porque, se não as fizesse, atraiçoaria o meu pensar, e não cumpriria, penso eu, o meu dever, porque não posso suppô-las que essas ideias, sobre este assunto restricto, relativo ao pó der judicial, e3tejam na cabeça de todos.

O Sr. José Barbosa: - V. Exa. sabe que nas diversas Constituições o assunto não vem tratado com maior desenvolvimento do que no projecto.

O Orador: - As ideias que expendi não são minhas, não quero ter o merito da originalidade, nem da invenção.

Tudo aquillo que disse é tirado de outras Constituições, que tive o cuidado de rever.

Em todas procurei e d'ellas tirei aquillo que julguei absolutamente necessario, porque, fazendo nós hoje uma Constituição, entendi devermos aproveitar de todas aquillo que é bom e util.

Uma voz: - Isso é que é o melhor.

O Orador: - Eu preferiria que a commissão fizesse isso, a trazer para cá só aquillo que achou numa unica Constituição.

Devo dizer a V. Exas. que não fui só consultar Constituicões de outros países, vi todos os projectos de Constituições apresentados agora a esta Assembleia.

O Sr. José de Castro: - Teve tempo.

O Orador: - V. Exa. sabe que eu tenho muito que fazer, mas não viria para este logar se não tivesse podido estudar o assunto.

Não vinha para aqui expor as minhas ideias se não tivesse estudado a fundo o projecto; estudei o problema como jurisconsulto, que me preso de ser, e da mesma forma que estudo qualquer outro problema juridico, e vim aqui expor as minhas ideias com a sinceridade e lealdade que sempre costumo usar.

Todas as indicações que dei com respeito ao poder judicial foram tiradas da Constituição de Berne, da italiana, etc., e tambem do projecto de Constituição apresentado pelo grupo Montanha.

Ali se expressa tambem um principio, que desejava ver na Constituição e que consiste na separação das magistraturas do ministerio publico e judicial.

Esse projecto. Sr. Presidente, merece as minhas sympathias, porque contem muitas disposições com que estou de acordo e é eminentemente democratico.

Por ultimo, Sr. Presidente, para terminar as minhas considerações, direi que desejaria tambem que no projecto, alem de se consignar, embora de uma maneira geral, o principio da autonomia local, se consignasse já tambem, ainda que restrictamente, o referendum administrativo, e que de uma maneira completa se assegurasse a responsabilidade effectiva e efficaz de todos os agentes da autoridade publica, especialmente no que respeita aos direitos individuaes do cidadão.

Sr. Presidente: eu sou por tradição de familia e por temperamento, profundamente democrata, mas não posso deixar de reconhecer quanta verdade conteem as palavras de um distincto e recente escritor francês quando diz: "que a forma democratica só vale pelo uso que d'ella se faz".

É, em parte, verdade isto, e como o é, eu quero terminar expressando á Camara o meu maior desejo de que na nossa lei fundamental faça uma obra de boa e sã democracia. Só assim, Sr. Presidente, prestará uma verdadeira e condigna homenagem a todos aquelles que combateram pela implatação do novo regime, e só assina, Sr. Presidente, conseguirá a consolidação das instituições, dando fortes e inabalaveis alicerces á Republica Portuguesa.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Nunes da Mata: - Envio para a mesa um projecto de Constituição.

Página 21

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 21

O Sr. Sousa da Camara: - Requeiro a V. Exa. que se dê por discutido na generalidade o projecto da Constituição.

Mando para a mesa o meu requerimento.

Requerimento

Requeiro que se dê como discutido na generalidade o projecto de Constituição e que se passe immediatamente á discussão d'este na especialidade.

Lisboa, 12 de julho de 1911. = M. S. da Camara.

Não posso justificar o meu requerimento porque o Regimento a isso se oppõe. Se não fosse isso, defendê-lo-hia...

O Sr. Presidente: - Vae ler-se o requerimento do Sr. Sousa da Camara.

Chamo a attenção dos Srs. Deputados. Lido na mesa é rejeitado.

O Sr. Teixeira de Queiroz: - Sr. Presidente e meus senhores: nos termos do Regimento vou ler a moção que será a substancia d'aquillo que tenho a dizer a esta assembleia.

O que disser, Sr. Presidente e meus senhores, será apenas, para demonstrar esta these, e, por consequencia, para discutir a generalidade do projecto de que se trata.

Procurarei não me afastar do assunto. E como ou sou bastante surdo, desejava muito não ser interrompido; porque não poderei ouvir e responder aos apartes, e mesmo porque isso faz com que a discussão derive em sentidos tão differentes que, ás vezes, não se pode seguir facilmente o raciocinio que se pretende.

Vae alta já a discussão d'esta materia.

Teem sido sustentadas com elevação e grandeza, por parte dos oradores, que me precederam, varias opiniões.

Bem anda a Camara em continuar o exame do projecto da sua Constituição; porque, na realidade, esta lei é a mais importante de uma Assembleia Constituinte: - é a sua lei substanciai, sobre a qual devem recair todas as attenções. Merece ser assim largamente discutida e mal nos iria, se se não desse logar a versar todas as ideias e opiniões, na maxima latitude.

Não sou orador de muita corda, nem relogio de repetição; e por isso farei por dizer no menor numero de palavras, o que penso.

O País é soberano: por uma revolução feliz ergueu bem alta a sua soberania, e essa soberania tem de ser pela ordem natural das cousas, delegada em alguem, para ter effectividade.

Essa delegação nunca é perfeita, porque nunca pode ser completa. E as razões são obvias.

Logo que uma eleição não seja representada pela vontade de todos, a delegação dos poderes, que ella transfere, é incompleta. No caso presente, que é o de todo o mundo, os eleitores são em numero muito restricto em relação aos habitantes do país, logo, falta aqui a representação dos que não votarem e são em grande numero - mulheres, crianças, etc.

A segunda causa de delegação ser limitada está em que os mesmos eleitores que concorrem á uma não podem transferir toda a soberania; pois ha em cada individuo alguma cousa que não se pode transmittir a outrem, como é o direito á propria vida que cada um não tem, em boa moral e em boa philosophia.

Ha mesmo unaa somma de direitos, a que vulgarmente se chamam individuaes, ou essenciaes á existencia do individuo em sociedade, que não podem ser passados a lima assembleia; é o que nas constituições de todo o mundo é sempre apresentado sob a rubrica, direitas wdividnaes, que não fazem parte da soberania delegada.
Porem o restante, que ainda é muito, o povo pode-o entregar ao cuidado d'uma assembleia capaz de formular as leis sob égide das quaes a sociedade terá de viver. Por isso essa Assembleia se denomina legislativa.

Porem assim como a nação teve de delegar em alguns cidadãos o poder de organizar as leis que regerão os seus actos publicos e particulares; assim esta Assembleia por numerosa, se julga incapaz de ordenar certos actos de uma natureza particularmente determinada, que precisem de uma realização immediata e pronta. E ella por si pode, pela forma que a Constituinte entenda, escolher alguns cidadãos, para esse fim e esses cidadãos formam o que se chama o poder executivo.

Temos já a primeira escolha de cidadãos. Essa assembleia, um tanto numerosa, formará a Assembleia Legislativa, ou poder legislativo; a segunda selecção ou escolha de um certo numero de individuos investidos no poder de executar as leis, chama-se poder executivo, ou governo, como geralmente se diz.

Temos pois dois poderes, o poder legislativo e o poder executivo. Estes dois poderes que dispõem do país de uma maneira absoluta, não podem no entretanto dispor, a meu ver, de uma maneira completa, de tudo quanto diz respeito ao cidadão.

Elles concorrem para realizar as funcções do Estado, e para o exercicio d'essas funcções limitadamente.

Aqui um dos poderes é superior ao outro; porque tem de o fiscalizar; mas tambem por elle tem de ser fiscalizado por sua vez.

É a celebre theoria dos freios, em que cada poder tem por fim evitar que o outro poder exorbite. Tambem se lhe tem chamado, por suavidade, theoria da balança politica, e ha uma entidade que é responsavel pelo fiel da balança. Pensamos que assim não pode haver exorbitancia.

E o equilibrio dos poderes, que dá muitas vezes o desequilibrio. A entidade que tem a balança tem toda a responsabilidade para que o fiel esteja no seu logar.

Ora temos nós aqui os dois poderes, o poder legislativo e o poder executivo.

Como dissemos ha os direitos individuaes que, no pensamento de Loke, padre-mestre em direitos politicos, limitam os dois poderes já criados.

O capitulo dos direitos individuaes existe em todas as constituições: e a meu ver é a parte mais importante de uma tal lei.

O poder judicial criado artificialmente é a garantia da manutenção d'esses direitos individuaes.

Da estabilidade e independencia do poder judicial, resultara grandes beneficios para a sociedade e até o legislativo, e o executivo com isso lucram, pois concorre para a tranquillidade publica.

De quem o legislativo mais receia é do executivo, do Governo, que é seu derivado, seu filho.

O legislativo deu-lhe o ser, criou-o e deu-lhe uma espada para cortar pelo que fosse justo e bom.

Porem, não lhe deu a espada para que elle lhe corte a cabeça; por isso eu sou contra a dissolução do legislativo pelo executivo; porque um filho não pode matar seu pae.

Um tal crime repugna á natureza.

Tambem me parece que o poder legislativo conservando-se nesta attitude não faz mais que attender á sua origem, quer dizer, ao fim para que veio intervir na administração do Estado.

Ora todos estes poderes fundam o que se chama o Estado.

O Estado não é mais do que a reunião dos poderes, é por assim dizer o responsavel pelo bem-estargeral; representa o progresso, representa os direitos, garante o exercicio completo das faculdades dos individuos.

O Estado tem sido até hoje e continuará a ser um pouco tyranico. Todos nós nos queixamos do Estado quando nos acontece alguma cousa má.

O Estado tem tido feições differentes em epocas diver-

Página 22

22 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

sãs em relação á sua funcção. Por exemplo, temos tido o Estado-gendarme, e assim se lhe chama quando só attende á segurança publica, á ordem material; temos tambem tido o Estado-providencia, o que dá tudo, aquelle de quem tudo se espera, pois cada individuo julga ver nelle o patrono, o pae. É o estado gerador de perguiça e esta noção facilmente acceite no nosso clima e na nossa raça tem sido perniciosa.

Nenhuma d'estas formas de Estado corresponde ao fim para que foi criada; porque o dever do Estado é ser simplesmente Estado-previdencia. O Estado como regulador de todas as funcções deve conhecer as circunstancias em que deve intervir e fazer melhor uso das forças que tem na sua mão, para corresponder ao fim de justiça e verdade para que foi organizado. Ora, tendo o Estado o direito de fazer triumphar a justiça, é ao Estado que compete regular todas as relações entre os individuos e os diversos elementos da Nação.

Applicando esta doutrina ao projecto em discussão, vou mostrar que elle não corresponde ao que se poderia esperar quanto á independencia e correlação dos poderes politicos.

Este projecto, que tem sido accusado de presidencial, parece-me antes muito convencional; porque arma desmesuradamente o poder legislativo contra todos os outros poderes, e fa-lo em diversos capitulos. Tem primeiro artigos em que dá faculdades ao poder legislativo, sob a rubrica Poder Legislativo; tem-nos sob a rubrica o Conselho Nacional, tem-nos sob a rubrica o Conselho dos Municipios; tem o artigo 19.° com os seus trinta e um numeros e varios paragraphos em que dá as mais amplas faculdades, algumas até de natureza bem pouco constitucional, sob a rubrica Congresso da Republica, tem a iniciativa das leis em partilha com o poder executivo, e tem o maior poder sobre a eleição d'este, elegendo o Presidente da Republica, que em si reune todo o Governo. Vê-se que é ao poder legislativo que elle trata de fortalecer mais que aos outros. E nesse ponto que acho defeituoso o projecto, e que não satisfaz aos bons preceitos de uma constituição que attenda ao bom e racional equilibrio dos poderes. Eu não posso concordar com ò projecto, ainda que o vote na sua generalidade, porque sou perfeitamente um parlamentarista, e nesse sentido apresentei a minha moção.

E preciso, porem, entender-se o que é ser parlamentarista, ou melhor, partidario de uma Constituição nos moldes classicos do parlamentarismo, á inglesa. Eu por mim tenho do parlamentarismo a noção que se tem em Inglaterra.

Como todos sabem, não ha o que se poderia chamar uma Constituição Inglesa; o que ha em Inglaterra é uma serie de documentos politicos que definem as relações entre os cidadãos: não é um documento unico, como acontece nas outras nações, que tenha em si, em conjunto, o que se chamam principios constitucionaes; mas na pratica, em Inglaterra, - e aqui é que está a belleza do funcciona-mento do seu parlamentarismo, - em vez da desconfiança entre o legislativo e o executivo, como resalta no projecto em discussão, e em quasi todas as Constituições da Europa, pratica-se nesta grande nação, modelo de tino politico e onde tanto se respeitam as liberdades e garantias iiidividuaes, a mutua confiança e intima amizade entre esses mesmos poderes. Em Inglaterra, a pratica demonstra que é pela confiança, pela amizade e pelo reciproco auxilio, que jogam bem os poderes do Estado naquelle país. O poder executivo é sempre amigo do poder legislativo. Tem realmente criado nos ultimos tempos uma grande importancia o executivo; mas sempre de accordo com os habitos e praticas que dizem respeito ao representativo, o que faz com que não esteja em desaccordo nunca com o poder legislativo. Os direitos individuaes em Inglaterra, como todos sabem, teem uma accentuada significação na sua legislação, no seu conjunto de leis, que formam o que se chamam lá leis constitucionaes. Como sabem não está bem definido o que sejam principios constitucionaes. Materia constitucional, já aqui se disse, e é verdade, e até um dos oradores que me precedeu accrescentou, e muito bem, que materia constitucional era o que estava na Constituição; quer dizer, pode não ser materia constitucional o que está na Constituição, mas torna-se constitucional logo que ali tenha entrado. Isto differe de umas Constituições para outras. Isto corresponde a necessidades sociaes, corresponde a pontos de vista diversos e a temperamentos e feitios de raça. Ora o parlamentarismo tem defeitos como tudo nesta vida. Eu primeiro do que tudo, tenho de definir o que seja parlamentarismo: é a perfeita correlação entre o legislativo e o executivo, e o poder judicial como fiador das garantias individuaes. Tem defeitos, porque, como sabem, em todas as causas humanas pode haver abusos, pode o legislativo deixar-se corromper pelo executivo que derivou d'elle; isso é frequente e a nossa historia demonstra-o sufficientemente. Pode ser o executivo quem queira tomar o predominio em detrimento do verdadeiro poder, que é o legislativo. Para se chegar ao equilibrio depende menos do que está escrito nas leis, do que dos habitos sociaes, do que da moral publica, do que da boa pratica constitucional e dos habitos politicos. Em Inglaterra, por exemplo, e bom era que em outros países se desse o mesmo, ha a opinião publica, a opinião da imprensa e a liberdade de reunião. São tres grandes elementos que podem corrigir os desmandos do poder. Isso é que era preciso criar, e nunca pode funccionar bem uma constituição, sem que na opinião haja os elementos para lhe dar força, para a guiar, para a applaudir ou para a vituperar. E isto que tem faltado em Portugal e muito para desejar seria que se conseguisse que tivéssemos uma opinião publica, uma imprensa esclarecida e uma liberdade de reunião, que em vez de dar tumultos desse conselhos e elementos para que o poder pudesse ajuizar do sentir geral e das suas justas reclamações para se guiar na direcção dos negocios do Estado.

Sou parlamentarista e tenho visto que nesta casa tambem ha muitos parlamentaristas; é talvez a corrente mais dominante.

Tem-se dito muito mal do systema parlamentar em Portugal, mas o que ninguem está autorizado a dizer é que esse regime, que foi mau na monarchia, não seja bom na Republica.

Eu sou um conservador, mas um conservador da Republica.

Eu não hesitarei no applauso a qualquer projecto ou a qualquer providencia governativa, logo que entenda que é para boa pratica da Republica, para a sua estabilidade, ainda que esse projecto seja o mais avançado: assim como tambem acredito que aquelles que se dizem radicaes, que são mais novos, que teem mais, como vulgarmente se diz, o sangue na guelra, não hesitarão, dadas as mesmas circunstancias, em adoptar qualquer providencia mesmo de caracter conservador, logo que tenda ao mesmo fim da conservação da Republica.

Condemnar o parlamentarismo só porque em Portugal o systema parlamentar deu maus resultados, não é sensato, pois elle tem dado muito bons resultados em outros países, como por exemplo na Belgica...

Ha países que, como a Inglaterra e a Belgica, com o seu parlamentarismo puro, tem funccionado admiravelmente.

Na Belgica é de tal maneira respeitada a organização partidaria que, se um individuo falseia o seu mandato, entrando no Parlamento com uma marca partidaria, e muda de rumo sem se justificar perante os seus eleitores, o seu procedimento é sempre censurado acremente por todos e até mal recebido por aquelles que politicamente poderiam lucrar com a sua deserção.

O que tem que fazer um homem que se encontre nes-

Página 23

SESSÃO N.' 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 23

sas condições, é ir ter com os seus eleitores e depor o seu mandato. É o que lá se exige, e muito bem, porque na politica são sempre bem apreciados, ou pelo menos devem-no ser, os primores de caracter individual.

Ha países onde o parlamentarismo funcciona bem na pratica, como na Inglaterra e na Belgica, e ha outros onde funcciona regularmente.

Por exemplo, na França não ha um funccionamento perfeitamente claro e nitido; porque os agrupamentos politicos são numerosos, e nem muitas vezes politica e socialmente bem caracterizados nos seus intuitos, o que não succede na Bélgica e na Inglaterra, onde taes agrupamentos são poucos, teem programmas, o mais claros que pode haver em assuntos tão embrulhados, como os da politica.

Na Italia, apesar de não haver tambem a divisão perfeita de partidos politicos como existem em Inglaterra e na Belgica, não tem o parlamentarismo dado maus resultados, e o progresso social e economico d'esta nação assim o attesta. Na Italia os grupos politicos são numerosos e é preciso grande diplomacia e uma grande subtileza para se organizar um gabinete que possa satisfazer á opinião publica, e apesar de haver crises politicas muito frequentes, e por motivos futeis, ellas resolvem-se com facilidade, e a politica é sempre dirigida com a finura propria d'aquella bella raça.

O que é certo é que nesse país o progresso é manifesto e ainda ninguem se lembrou de, por causa das multiplas crises de gabinete, condemnar o parlamentarismo, como tambem ainda ninguem se lembrou de o condemnar em França, de uma maneira absoluta, como aqui se tem affirmado. Ahi só o querem modificar, principalmente quanto aos poderes do Senado, que alcunham de impeditivo.

A Grecia é um país de exame para este assunto e muito se parece com Portugal pelo mau funccionamento do Parlamento. As crises politicas frequentes naquelle país teem dado logar a criar-se opinião contra o parlamentarismo, mas nem por isso tem pensado em o supprimir, pelo contrario estão a ver se o melhoram no seu funccionamento, e se organizam uma opinião nacional, como é urgente lá e em Portugal.

Portanto eu penso que o bom funccionamento de uma constituição, de um governo e do parlamentarismo, depende mais dos costumes, da moral publica e do juiz o de todos, que propriamente da lei.

E tanto isto assim é, tanto a boa politica depende mais dos bons costumes, do juizo dos povos, que a Inglaterra, país clássico do parlamentarismo, onde por assim dizer este systema nasceu, cresceu e se revigorou num longo periodo historico, sempre com os olhos na defesa das liberdades individuaes, verdadeira origem da fecunda iniciativa dos individuos, que sendo um país geographicamente talhado para um governo federal, como o são a Suissa e os Estados Unidos da America do Norte, é uma nação unitaria e governa-se pelo systema que mais convem ás nações unitarias. Alludo á circunstancia de a velha Inglaterra se unir á Escossia em 1707, conservando-se unitaria sob a denominação de Gran-Bretanha e a de se unir depois em 1800, com a Irlanda, adoptando a denominação de Reino-Unido, expressão que por si bem designa o intento e proposito de formarem uma nação una. E isto realizou-se apenas com dois tratados ou convenções, que formam hoje parte do direito politico inglês.

E, comtudo, um povo mais leviano, de menor consistencia politica, e de menor presa cerebral, poderia tirar distes factos politicos, uma federação, pois nem lhes faltava a razão geralmente evocada para explicar a fundamento da Constituição Suissa, qual é o ser a Inglaterra de hoje, formada de raças differentes, pois ali ha pela addição da Escossia e Irlanda, um agglomerado de celtas, com saxo-nios e normandos, os quaes formaram o antigo substractum da raça propriamente inglesa.

Estas cousas são difficeis de discernir; não é o logar proprio para isso, mesmo porque o antigo nome de ingleses não significa uma raça unica e pura como acabo de dizer.

Porem, aquelles que formam o substractum da velha Inglaterra é que viram com o seu notavel senso pratico e politico, que para se obter a somma de liberdade individual, de onde dimana o espirito de iniciativa d'aquelle grande povo, o melhor era conservar, apesar das novas juncções com outros povos, a formula politica de parlamentarismo puro e não se transformarem em federalismo imperialista ou não. Reconheceram o principio para mim claro, de que uma constituição, como até as demais leis, é boa ou má, conforme o bom ou mau uso que d'ella fizerem. E o parlamentarismo puro e bem praticado, ainda é a formula que mais convem aos povos unos, como Portugal, e aos povos que teem uma historia seguida como a nossa, que era muitas epocas demonstrou a forte vontade popular, a vontade dos que trabalham e produzem, a impor se aos governantes. Deu-se com a elevação ao throno do Mestre de A vis, em que o povo de Lisboa mostrando então a mesma energia, que em 5 de outubro ultimo desenvolveu para criar um governo novo, assignalou o facto constante na nossa vida nacional, qual é o d'uma energica acção municipal, isto em collaboração com os antigos réis na administração e na defesa da patria.

Ora, tendo sido notados muitos defeitos, na critica ao projecto de constituição que neste momento discutimos, devo dizer que tudo isso representa um grande e sincero trabalho, tanto da parte da douta commissão que o elaborou como da parte dos oradores, que o teem discutido com grande lealdade e proficiencia. Pela minha parte, desejaria que se introduzissem no projecto todas as modificações conducentes a melhorá-lo quanto possivel no sentido parlamentarista, com o que, em parte, a commissão está de acordo, como tem affirmado.

Uma das coisas que appareceu neste projecto e que se apresenta como razão justificativa do modo como elle quer organizar o poder executivo, é o libertar o Governo de todas as peias e difificuldades que adveem do funccionamento das camaras.

E certo que os ministros, entidades principalmente encarregadas do poder executivo, não teem muito tempo para attender aos diversissimos negocios que lhes estão confiados, e do mesmo passo aturar conversas de pretendentes e supportar a acção das camaras, que lhes estão constantemente a pedir explicações sobre toda a especie de negocios. Isto quer dizer simplesmente que os ministros estão muito sobrecarregados de trabalho e convem deixar-lhes maior desafogo para tratarem a serio dos interesses do Estado.

Porem, eu entendo que isto se pode conseguir por um modo indirecto, livrando-os de importunos aqui e lá fora: este meio é o de uma descentralização de serviços publicos, diminuindo assim o trabalho e do mesmo passo a importancia dos ministros. Talvez elles não gostem, mas é assim que se deve fazer.

Logo que se possa legislar uma descentralização larga e fecunda em todos os ramos dos serviços publicos, quer no que respeita á administração propriamente dita, quer em serviços de instrucção; de impostos, judiciaes, e até de criação de forças militares (sem destruir nestas a indispensavel unidade de direcção e commando), logo que se possam atribuir ás provincias estes serviços, o governo ficará desobrigado de attender a esses interesses das localidades e portanto mais á vontade. É isto o que me parece que se podia e devia fazer, methodicamente, sem precipitações inconvenientes e com leis adaptaveis. Mais tarde, a criação de parlamentos provinciaes poderiam até formular as leis que deviam reger esses serviços. Levará algum tempo a criar o pessoal necessario; mas muitos dos senhores Deputados presentes já são elementos

Página 24

24 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

admiraveis para serem esses legisladores locaes. São hoje legisladores aqui, amanhã são-no em suas terras e quem serve para o mais, serve para o menos.

Era França, já no tempo do Imperio lembraram-se de fazer alguma cousa para subtrahir os ministros á acção parlamentar, e inventaram um systema, que consistia em haver um ministro parlamentar; creio que foi oprimeiro e talvez unico, Emilio Olivier ou Rouher; ministro que não tinha pasta e que era o encarregado de conferenciar com os titulares d'ellas e ir depois responder á camara a todas as perguntas e interpellações annunciadas. Não deixa de ser engenhoso o meio; porem, foi abandonado, ignorando eu a razão.

De maneira que esta ideia de subtrahir os ministros á acção impeditiva do parlamento, tem preoccupado não só a opinião publica em Portugal, mas a de lá de fora.

O que é verdade é que se o parlamentarismo em Portugal foi esteril, se a governação publica se tornou infecunda e perniciosa, não foi isso devido á fadiga parlamentar dos homens do governo; porque elles estavam quasi sempre em ditadura e as camaras tinham largos periodos em que se não reuniam. Bem sei que nem por isso os politicos deixavam de assediar os ministros nas secretarias com os seus pedidos; as camaras estavam então reunidas permanentemente no Terreiro do Paço. Porem isto melhor demonstra a minha asserção de que o que havia era uma má pratica do parlamentarismo. Invertiam-se os papeis, em vez de ser o parlamento quem mandasse nas secretarias do Estado, eram estas que opprimiam o parlamento.

Foi por estes motivos, foi por não haver boa fé, nem opinião esclarecida, nem honradez politica na pratica do systema politico, que o parlamentarismo fracassou em Portugal, arrastando comsigo as instituições monarchicas.

Os governos que no poder se succediam vertiginosamente, procuravam sempre fortalecer-se com ditaduras que cada vez eram mais infecundas e revelavam mais fraqueza no poder.

O parlamentarismo, com os adiamentos frequentes, com as dissoluções frequentes e com as ditaduras frequentissimas, viveu sempre vida ficticia e sem dignidade politica.

Vou terminar as minhas considerações, porque me parece que já são demasiado longas e mais que sufficientes para a minha demonstração.

Por mais democratas que sejamos não podemos contestar que ha sempre em todos os países uma elite de homens, que são aquelles que o governam em nome da Nação. Muitos dizem que esta elite é uma aristocracia, mas não é pela sua origem; porque antigamente a elite vinha do nascimento e hoje vem do talento. Hoje, um homem que pertença á elite, tanto pode ser filho de um antigo fidalgo, como o pode ser de um humilde operario.

Não escolhemos por nascimento aquelles que hão de mandar a sociedade; ella ha de ser dirigida por homens que pensem bem, tenham talento e honestidade. Sem isto não se poderá governar com proveito para a Nação.

Nestes termos eu entendo que ainda podemos, com o systema parlamentar, vir a governar bem o país, e espero confiado em que com um parlamentarismo puro, poderes politicos independentes e harmónicos, honra e probidade material e intellectual como normas do Governo, a Republica Portuguesa terá dias gloriosos para a felicidade da Patria.

Dizia, creio que Montesquieu, que a virtude deve ser a base da Republica. Pois bem: sejamos virtuosos... ainda que seja somente na politica.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

O Sr. José de Abreu: - Sr. Presidente: quando ha dias tratei da politica de Oliveira do Hospital, eu não disse que o administrador do concelho era um homem immoral e indigno, não o podia dizer. Como então affirmei no meu discurso, tive sempre relações pessoaes com essa pessoa, e se, evidentemente o considerasse como homem immoral e indigno, não mantinha essas relações.

Quis-me referir ao ex-recebedor de Oliveira do Hospital.

No Ministerio das Finanças existe um processo, instaurado ainda nos tempos da monarchia, de onde constam accusações gravissimas para esse funccionario.

Proclamada a Republica, em face das accusações que lhe eram feitas, esse funccionario não podia continuar a desempenhar as suas funcções e foi primeiramente transferido e depois demittido.

É necessario que isto fique bem assente: que quem eu disse que era immoral e indigno era o recebedor do concelho e como tal tinha sido demittido.

Tambem não disse terminantemente a V. Exa. que o administrador do concelho de Oliveira do Hospital era conspirador, mas sim, que pelas informações que tinha recebido elle estava ao lado dos conspiradores.

O Sr. Gastão Rodrigues: - Diz que, em virtude do disposto no artigo 106.° da lei eleitoral, não pode concordar com a nomeação do Sr. Deputado Jorge Nunes para governador civil de Beja, e que se a Assembleia concordasse nessa nomeação estabelecia um mau precedente.

E o S. Ministro do Interior, que assinou essa lei, não devia nunca vir pedir á Assembleia que a alterasse, a não ser que encontrasse irreductiveis difficuldades para arranjar outra pessoa para governador civil de Beja.

Tem o maximo respeito pelos caracteres dos Srs. Jorge Nunes e Ministro do Interior, mas entende que seria estabelecer um mau precedente para o futuro.

(O discurso de S. Exa. A será publicado na integra quando restituir as notas tachygraphicas).

O Sr. Presidente: - Tenho a communicar á Assembleia que recebi um telegramma de Coimbra em que se dá conta dos acontecimentos que determinaram o encerramento da Universidade.

O telegramma é o seguinte:

Telegramma

Coimbra, 12, ás 4 horas e 30 minutos da tarde. - Por questões pessoaes entre professores e aluamos da Universidade, appareceu edital reitor declarando encerrar actos cadeiras em que houvesse desacatos, repetidos estes e encerradas cadeiras por motivos previstos e não previstos no edital são presos alguns alumnos. Hoje movimento contra edital originou ordem encerramento Universidade. Graves prejuizos com suspensão de actos. Pedimos V. Exa. apresente Constituintes resolva urgentemente. = Grupo estudantes.

O Sr. Ministro do Interior (Antonio José de Almeida): - Não tem ainda communicação official dos acontecimentos de Coimbra, mas pelas informações que ha pouco lhe deu o Sr. governador civil, com quem acaba de estar, sabe que a tensão dos espiritos dos rapazes era de molde a esperar-se o que diz no telegramma, pois tinham praticado actos hostis por occasião dos actos de chimica organica e de botanica.

Acaba de dar toda a força ao Sr. governador civil para manter a ordem publica e evitar aggressões, como aquellas a que se refere o telegramma.

O que se está passando em Coimbra deixa-lhe a suspeita de que no caso ande manobrando alguem estranho á academia e que tenha interesse em que a ordem publica seja alterada.

Certamente que dentro em pouco receberá communicação do reitor da Universidade sobre os acontecimentos, que não considera de importancia pelo lado material, mas que revestem gravidade pelo significado moral que teem,

Página 25

SESSÃO N.° 19 DE 12 DE JULHO DE 1911 25

pois demonstram a falta de disciplina e ordem que é necessario existir em todas as sociedades civilizadas.

(O discurso será publicado na integra quando o orador restituir as notas tachygraphicas).

O Sr. Eusebio Leão: - Sr. Presidente: pedi a palavra para dar á Assembleia uma explicação a proposito da criança que está presa no Limoeiro e em que tanto se tem falado.

A criança que está no Limoeiro praticou um assassinato em Aldeia Gallega. As autoridades mandaram-na para cá a fim de ser internada, e eu mandei-a para o hospicio de S. Patricio, que está sob a dependencia da "Commissão de Protecção á Infancia", a que tenho a honra de presidir.

O padre Oliveira, que dirige aquelle estabelecimento com a competencia e carinho que ninguem pode negar-lhe, reconheceu em pouco tempo que essa criança não deveria permanecer ali.

Combinou-se então com o Sr. Director do Limoeiro, de cuja competencia tambem ninguem pode duvidar, fazer uma troca: foi este pequeno para o Limoeiro, e veiu um do Limoeiro para S. Patricio.

Sem duvida alguma é para lamentar que as crianças estejam no Limoeiro, mas a culpa não e nossa; a lei não permitte que as crianças sejam enviadas para as casas de correcção sem primeiro serem condemnadas pelo poder judicial, e depois é preciso que haja logares nessas casas.

Essa criança a que se referem tem nove annos e não pode ser condemnada pelo poder judicial.

Mas o Tribunal Infantil, que consta da lei organizada pela Commissão de Protecção á Infancia, e referendada pelo Sr. Ministro da Justiça, funccionará dentro de poucos dias e procurar-se-ha então remover o mal de que com tanta razão se queixam todos.

Uma outra questão é a que respeita ao jogo. Devo garantir á Camara que tenho dado as instrucções mais precisas a todos os administradores de concelho para que de forma alguma, nem mesmo sofismadamente, consintam o jogo.

Em Lisboa temos feito toda a deligencia para evitá-lo; todavia sei que se joga e por este motivo fundamentai que não podemos impedir por completo.

É por isso que se á Camara for apresentado qualquar projecto de lei com respeito á regulamentação do jogo, eu desde logo mostrar-me-hei favoravel a elle.

V. Exas. vão á Suissa, a esse povo que se está aqui a citar sempre como um modelo de civismo e de moralidade, pois lá joga-se em toda a parte.

Não se pode evitar que se jogue, sobretudo com a nossa legislação actual, porque não só os jogadores teem trinta modos de sofismar a maneira de jogar, mas ainda porque a legislação não permitte que seja efficazmente reprimido o jogo...

O Sr. Presidente: - Deu a hora.

Vozes: - Fale, fale.

O Sr. Presidente: - Estão inscritos dez Srs. Deputados para antes de se encerrar a sessão.

Amanha ha sessão ás duas horas da tarde. Antes da ordem do dia, discute-se o projecto de lei n.° 7, e na ordem do dia, continua a discussão do projecto de lei n.° 3, Constituição.

Está encerrada a sessão.

Eram 6 horas e 20 minutos da tarde.

Os REDACTORES:

(Antes da ordem do dia) = Alberto Pimentel.

(Na ordem do dia) = João Saraiva.

Página 26

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×