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14 DIÁRIO DA CAMARA DOS DEPUTADOS

O Sr. Presidente: - Peço a V. Exa. que se restrinja ao assunto em discussão.

O Orador: - Eu estou dentro do assunto, uma vez que estou tratando do respeito pela raça humana. A nota que apresentei para que se nomeasse uma comissão de técnicos, médicos, que fôsse averiguar se se tratasse, como se dizia, dum trabalho aproveitável das duas chinesas ou de uma mistificação, tinha por fim não só evitar acontecimentos graves, que podem dar-se, e que só não prevêem os que desconhecem a psicologia das multidões exaltadas pela fé, mas dar solução ás reclamações da multidão, que veio ao Parlamento, e delegou até mim a comissão que me formulou o seu pedido. Procurei também evitar que se dissesse que estávamos aqui a proteger médicos especialistas de doenças de olhos, e procurei, finalmente, obstar a que se realizasse a expulsão das pobres mulheres. A ordem de expulsão é imprópria da República Portuguesa. Os Governos não podem consentir que se expulse seja quem for, e muito menos duas desgraçadas mulheres, fracas, indefesas e inofensivas. É necessário que se saiba lá fora que nós, a não ser para os atropelos graves do direito internacional, ou para os atentados da guerra ou contra o Estado, banimos dos nossos dicionários a palavra "estrangeiros". Não há estrangeiros fora daqueles casos. Há a família humana, há cidadãos do mundo, há membros de espécie e da pátria universal, e todos mere cem o respeito e protecção â nossa querida República. São estas as ideias do nosso tempo, Sr. Presidente. Srs. Deputados e Srs. Ministros.

O Sr. Presidente: - Eu peço, pela segunda vez, a V. Exa., a fineza de se restringir à ordem.

O Orador: - Ordem é para mim a indicação e o desejo de V. Exa. Vou observá-los.

A moção do Deputado Abel Tomás refere-se também às greves, cujo direito quer ampliado em França. Ora nós andamos, dezenas de anos, a dizer, em comícios, em conferências e em discursos, que era infame a disposição do artigo 277.° do Código Penal contra a coligação dos trabalhadores em greve. Era uma indignidade, trovejava-mos nós. O direito á greve devia ser respeitável e sagrado. Pois, feita a República, publicou-se uma edição da lei do cadeado, feita em Espanha por Maura. Fui dos primeiros, falando em associações operárias e em comícios, a defender êsse diploma. Justifiquei-o como uma lei de circunstância, como uma lei ocasional, como uma necessidade do momento, imposta pelo rompimento de muitas greves, a um tempo abertas num período grave. Cheguei a ser maltratado de palavras, o que não quer dizer que, a pedido dos Srs. Bernardino Machado e António José de Almeida, não tivesse apaziguado quatro dêsses conflitos entre o capital e o trabalho. Mas aqui, ao ler o que o Deputado francês reclama, não a restrição, mas a ampliação do direito à greve, eu não posso deixar de pedir ao Parlamento que efectivamente reconheça êsse direito. O diploma do Govêrno Provisório e a negação dêsse direito, e, não podendo, nem sendo, como não é, acatado, apenas produz o desprestígio da lei e o desprestígio das autoridades. De resto, é na verdade absurdo que a coligação para greve tenha de ser feita com uma antecedência de doze dias. Dada a rapidez da viação acelerada, doze dias são suficientes, não para o patrão do sul mandar vir outros operários dos confins do norte, mas para os mandar vir da própria China.

Agora, trata o Deputado francês de preconizar a existência de dois partidos fortes. "Dois"! A mais de 40 anos de República, a terceira em França, entende-se que deve ali haver só dois partidos. Nós, abundantes, nós, pletóricos, parecemos dispostos a criar cada um seu partido. Ainda estamos com a República de faixas infantis, estamos no debute, mas, esquecendo que a nossa divisão é a nossa fraqueza, ao mesmo tempo que é toda a fortaleza dos nossos inimigos, cada qual de nós quer arranjar um partido seu. (Risos).

Não sei, Sr. Presidente, se V. Exa. consente que eu continuo no uso da palavra. Mas agora é que eu vou seguir a ordem de considerações do meu discurso, ontem interrompido.

Ia eu dizendo que a situação das classes produtoras era realmente horrível, que a miséria alastrava por todo o país, que os pobres morriam de fome h porta dos ricos e argentados, que a vida dos trabalhadores era um inferno de agonias sem interrupção, sem lenitivo e sem fim.

Ora, tendo eu afirmado isto, impõe-se-me, dentro da lógica e da coordenação do meu discurso, que agora procure demonstrar as causas do mal, que aflige não só os trabalhadores portugueses, mas os de todo o mundo - porque a questão social apenas entre nós reveste aspectos mais graves e mais lancinantes - e que por último tente indicar-lhe os remédios.

Quais são, em verdade, as causas de tamanho mal?

Vou ver se posso enumerá-las, dando às minhas palavras, com os factos que for analisando, uma certa ordem disciplinada e cronológica.

Não sendo necessário remontar aos tempos primitivos, nem aos do gladiador Espártaco à frente dos seus camaradas de escravidão e infortúnio, nem mesmo à noite tenebrosa dos mil anos da Idade Média; não precisando estar a descrever o que foi essa luta, a um tempo épica e trágica, dos escravos em busca da sua tão tardia libertação, eu tomarei como ponto de partida a Revolução Francesa de J 789, como a nossa realizada pelos descalços, pelos rotos, pelos famintos, pelos nus, pelos "sem nada", para em seguida demonstrar como sendo êles que a fizeram, foram também, como sempre, os eternos ludibriados, restando, como sempre, os escravos de todos os séculos, de todas as opressões, de todas as tiranias, e de todas as misérias.

Realizada a Revolução de 89, e com ela as liberdades políticas, deu-se efectivamente com o feudalismo tradicional em derrocada e em terra.

Quem era e o que era a burguesia? Não era nada! passou a ser? Tudo! Porquê? Porque miseravelmente atraiçoou a sua missão. Depois de ver que os escravos de todos os séculos derrubaram os potentados da terra e os senhores feudais, a burguesia, esquecendo também o seu passado de opressão e de miséria, tomou os lugares daqueles, e passou a ser mais tirânica, mais feros e mais revoltante, porque é mais hipócrita e menos humana. Ao feudalismo tradicional substituiu-se a burguesia como feudalismo capitalista.

Os servos de gleba não tinham liberdade?

Que se importam os escravos modernos de rebentar de liberdade, se não tem a liberdade de comer, e tem de rebentar de fome. A liberdade não é só um dever, é também um direito. A liberdade, só por si não mata a fome dos estômagos. De resto, os servos de gleba eram mais felizes. Sendo urna propriedade dos seus senhores, visto que lhes custavam urnas tantas moedas, os seus senhores não só os alimentavam bem, para que pudessem satisfazer a necessidade orgânica da sua subsistência e produzir bastante trabalho, mas, para que, podendo procriar, lhes aumentassem o número dos seus servos. Além disso, assistiam nos nas doenças, vestiam-nos, davam-lhes casa, valorizavam-nos, embora no seu próprio interesse.

Não tinham comodidades? Não sabiam ler? Também os seus senhores as não tinham. Também os seus senhores não sabiam ler, porque o não sabiam mesmo alguns dos primeiros monarcas. A igualdade de condições quási nivelava e igualava a maneira como viviam uns e outros. Hoje, o contraste é mais afrontoso. Uns tem tudo, outros não tem nada. Uns a grandeza, outros a miséria.