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Acrescentarei que, se considero grave a instrumentalização de um debate desta natureza, considero tal hipótese de análise política mais favorável do que o entendimento de que, nos actuais condicionalismos da situação portuguesa, ele seria realmente a prioridade de actuação do Partido Comunista Português, caso em que seria ainda maior o erro político (também) que considero a votação maioritariamente produzida.

A crise que, de há meses a esta parte, se transformou num «motivo» permanente do discurso político oficial é, e infelizmente, bem mais que isso.

É não só uma realidade quotidianamente sofrida por muitos portugueses, como, pela sua exacta dimensão e relevância, o desafio mais sério que a Portugal e aos portugueses - e todos, sem excepção - é colocado de há muitos anos a esta parte.

Não é só o empobrecimento, a crescente diminuição do poder de compra e dos salários, a sorte dos desempregados, dos reformados, dos velhos, ou o horizonte sem esperança e futuro que para número crescente de jovens se vai desenhando.

A crise não é, apenas, económica, financeira e social. É, também, a crise de valores que «justifica» a economia paralela, a corrupção, as variadíssimas formas de «salve-se quem puder» crescentemente evidenciadas na vida colectiva portuguesa.
A dimensão da crise económico-financeira seria por si só suficiente. A medida que o tempo vai passando - e, porque os problemas são estruturais, o tempo que passa sem se resolverem problemas agrava-os -, estreitam-se ainda mais os já estreitos caminhos possíveis para uma recuperação.
Sem dramatismos mais ou menos demagógicos, deveríamos assumir o facto de estarmos a viver uma das maiores crises da História de Portugal.
Por isso, acrescentar a uma crise de profunda dimensão mais uma crise, mais divisões, não creio tenha sido o melhor serviço prestado aos portugueses.
E não o terá sido, também, à coligação e ao Governo.
2 - Nem creio que o debate tenha sido travado em nome do progresso, da esquerda ou do socialismo.
Bem, pelo contrário, o que terá falhado é o pensamento livre e criador, sem preconceitos nem dogmas.
Creio que o sentido profundo do combate histórico da esquerda é o da libertação do homem das forças que o oprimem, o pôr ao seu serviço a economia e o Estado, a garantia dos seus direitos, materiais, cívicos e morais. Sob o signo da generosidade e da tolerância.
Só que tudo isto nada tem a ver, hoje, com a problemática do aborto.
A social-democracia - como via para atingir o socialismo democrático, como no programa do então PPD se escreveu (p. 23) -, como opção pelo socialismo, não vem para impor ou para dar lições à sociedade concreta em que se insere. Nem tem essa sociedade concreta como uma espécie de matéria-prima a que
desse forma a partir dos seus próprios conceitos. Deseja, bem pelo contrário, escutar essa sociedade; apenas se propõe satisfazer-lhe aspirações.
Por isso o socialismo moderno, não é já dogmático. Percebeu que afirmar-se anti-religioso é uma forma de recusar liberdade, tão grave como a ausência de liberdade religiosa. Que a liberdade e as liberdades não se asseguram pela pretensa neutralidade do Estado, mas por assumir o Estado a garantia da liberdade como um seu encargo e, por isso, se obrigar a reanimar
iniciativas, apostar na criatividade. Que não é necessariamente progresso repetir experiências alheias sem as submeter ao nosso próprio juízo - e acontece que eu também recuso a opção nuclear, embora tantos ou mais países europeus do que aqueles que dispõem de legislação despenalizando o aborto a tenham adoptado.

O verdadeiro projecto de esquerda - porque contrário a toda a opressão- consiste na reabilitação das diferenças e no respeito pelas particularidades que restituirão às liberdades o seu significado concreto, fazendo como que o seu exercício não seja dominado por uma norma única e abstracta.

Acredito que sociabilidade e liberdade se reúnem numa síntese que constitui a originalidade da pessoa humana. Que os outros não nos são estranhos mas que a sua condição é o único testemunho válido daquilo que, como políticos, somos e valemos.
Por isso nesta perspectiva, sumária e imperfeitamente enunciada, em que nem o homem é uma individualidade fechada nem a ordem social um quadro rígido, nesta perspectiva, dizia, e precisamente por causa dela, é possível e necessário falar de limites impostos pela ordem natural e que o Estado não pode ultrapassar, condições indispensáveis para o desenvolvimento da pessoa humana.
Assim vejo os Direitos do Homem.
Assim vejo, com base nos direitos fundamentais, a impossibilidade de partilhar do esforço de muitos (que tenho por sincero e sério) para quem o projecto de lei n.º265/III é um projecto de progresso e de conquista, ligado por forma essencial ao projecto socialista.
Acrescentarei, com toda a simplicidade, mas com toda a energia, que não é possível dar espaço à liberdade, sem dar espaço ao homem; que é a partir do homem que se constrói um projecto de futuro; que não há projecto de esquerda que possa prescindir do livre contributo dos homens livres.
É por assim pensar que não considero este debate como capaz de estabelecer a fronteira do progresso, da esquerda ou do socialismo democrático.
3.1 - Quero dizer que o que para mim está em causa no projecto de lei n.º 265/III é a vida.
Que entendo como dever positivo e desafiante, não apenas como proibição de matar.
Por isso, julgar do futuro e da vida não é possível sem desrespeito dos Direitos do Homem, do mais elementar e fonte de todos os outros.
Por isso julgo que, em coerência, o projecto em questão só deveria ter sido votado não por quem exprimiu dúvidas, mas tão-somente por quantos exprimiram a sua convicção pessoal de que não é uma vida, e uma vida humana, que existe nas primeiras 12 ou 16 semanas de gravidez.
E que todos os outros argumentos invocados - sem prejuízo do mérito e da convicção com que foram usados - não resistem a uma análise fria e desapaixonada.
Com efeito, forçoso será reconhecer-se que o projecto de lei n.º 265/III não resolve o problema do aborto clandestino, a não ser em alguns casos (e ao que parece no menor número de casos), legalizando-o e, inclusivamente, continuaria, na sua lógica, a forçar a clandestinidade, já que o legaliza apenas em certo número de casos.
Nem há problemas sociais resolvidos quando se actua sobre os efeitos e não sobre as causas.