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3514 I SÉRIE - NÚMERO 79

A Sr.ª Marília Raimundo (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quem entrar no cemitério municipal da Guarda encontra logo à entrada, no lado esquerdo, um jazigo simples e austero, construído com o moreno granito da serra. É em arco a sua porta, e, a acompanhar o traçado do arco, estão cravados quatro versos-
E a pendida fonte ainda mais pendeu ... E a sonhar com Deus com Deus adormeceu.
Através dos vidros da porta podemos ver o interior do jazigo. Aí estão depositadas 2 umas. Nelas repousam os restos mortais do poeta Augusto Gil e sua esposa, Adelaide Patrício Gil.
O poeta morreu a 26 de Fevereiro de 1926. Fez no passado domingo 55 anos que essa já «pendida Fronte/ainda mais pendeu ...e [...] com Deus adormeceu ».
Sr. Presidente, Srs. Deputados: No mais adusto e duro campo uma dor é uma nota de beleza que adoça a paisagem e ameniza a aridez circundante. No mais pedregoso e difícil caminho é lucificador o sussurro de uma fonte e reconfortante a frescura da sua água. Como seria mais fria e menos tranquilizante a natureza sem a policromia das flores, sem o ciciar das fontes, sem os gorjeios maviosos das aves!
Assim a vida, pesada e dura, difícil e esgotante, página de prosa compacta, sem a beleza e o encanto da poesia. A poesia e a policromia da vida, é a frescura da aridez do viver quotidiano, é arrebol de uma esperança dia a dia renovada, é beleza, é encanto, é a brisa que reconforta no duro penar que faz gotejar o suor do nosso pão.
Um jardim sem flores, uma fonte sem água, um deserto sem oásis, um mar sem alvura de uma vela, um céu sem o vibrar de uma asa, eis a vida sem a beleza e a mensagem da poesia. Os poetas são mensageiros de amor, são anúncios de esperança, são farol de fé, são élan de viver para um mundo que se afunda em materialidade, que quase já não tem fé em que crer, nem esperança a que se agarrar, nem amor que possa amar.
Permitam-me, por tudo isto. Sr. Presidente e Srs. Deputados, que nesta Câmara, tão densa de problemas políticos, tão desencontrada de querelas e discussões, tão repassada de problemas e difíceis votações ... adeje a asa da poesia e eu evoque o nome de um poetei tão suave, tão bondoso, com uma mensagem tão cheia de humanidade, tão perto do povo, como é Augusto Gil, glória das letras nacionais, mas, sobretudo, glória e honra da minha terra, da Guarda, cujos frios e geadas não crestam a flor da poesia, cujo vento sibilante não rouba inspiração aos poetas. Que este seja um momento repousante nos nossos trabalhos, uma homenagem à poesia que e música e beleza que todos captamos em sincronia.
Augusto Gil não nasceu na Guarda, mas, ocasionalmente, no Porto. Mas na Guarda viveu a maior parte da sua vida, na Guarda amou o doce calvário do seu amor, na Guarda sentiu e escreveu o melhor da sua obra, na Guarda padeceu a via penosa da sua doença, na Guarda casou com quem foi todo o enlevo da sua existência, na Guarda morreu e está sepultado.
A Guarda, no dizer do poeta, é a sua «sagrada Beira», a sua terra adoptiva, que amou e cujo cenário invernal tantas vezes aflora nos seus versos.
Depois da infância e juventude passadas na Guarda, proeurou em Coimbra o curso que lhe garantisse o futuro: frequentou Direito e regressou advogado. Mas a outras aprendizagens se entregou talvez com mais entusiasmo. Licenciou-se em Direito na Universidade, mas doutorou-se em política e literatura no ambiente efervescente e convergente de tantas influências literárias do meio académico. Ele o afirma:
Em Coimbra havia a mais perturbadora barafunda no tocante a literatura. Éramos, em arte, babosamente líricos. Em política éramos, quando menos, furiosamente republicanos.
No ardor dos seus anos, no entusiasmo das suas convicções, a geração da Augusto Gil em Coimbra conciliava o irreconciliável: era iconoclasta do trono e do altar, mas cultivando um dúlcido misticismo de amor universal que abrangia a tudo e a todos; envolvia em adoração e carinho as «tricaninhas do chafariz da Feira» e declarava guerra às «brutas feras de goela hiante», que eram os lentes.
Augusto Gil, apesar de franzino ç. do visível defeito físico, não fugiu a mostrar-se conspirador republicano em todas as conjuras académicas e a inscrever-se em projectadas marchas conquistadoras avançando para o Buçaco, mas reconhecia que era mais «soldado de soneto engatilhado» do que «de espingarda à cara». Mas surge-lhe grave problema de consciência ..., grande óbice se opõe a que tome parte na projectada marcha revolucionária, a caminho da vitória: o administrador do concelho da Guarda era seu amigo. Uma condição se impunha que Basílio Teles aceita: seria poupado, no ruir da monarquia e da «carcomida estrutura da política portuguesa», o administrador do concelho da Guarda, amigo do poeta. Assim paradoxalmente, se conciliava o arreganho do implacável revolucionário com a ternura columbina de um poeta compassivo.
Mas a Academia de Coimbra, no campo literário, era ainda mais agitada: opostos e desvairados ventos se entrechocam e neles remoinhavam os futuros poetas. A velha escola romântica não perdera de todo a sua atracção e tentava influenciar ainda os espíritos: muitos jovens não lhe eram de todo indiferentes. Sentiam-se ainda restos de parnasianismo que prendia uns e encantava outros. António Nobre, do fundo da sua solidão, qual sereia tentadora, atraía e seduzia alguns. João de Deus pontificava e enriquecia a poesia nacional com a suavidade da sua inspiração enraizada na tradição. Junqueiro, com a musicalidade dos seus poemas e a opulência oriental das suas ruínas, exercia sedução. Muitos curvavam-se em recolhimento perante os sonetos de Antero, profundos e solenes. Eugénio de Castro, com a sua suprema virtuosidade, era escutado enlevadamente. E começavam a soar nomes vindos de França: simbolismo, decadentismo, neo-religiosismo .... nomes sonantes que encontravam nos jovens espíritos a maior receptividade.
Apesar de todo o entusiasmo, este fogo cruzado de influências causava certo estonteamento. Augusto Gil o declara «nós éramos, portanto, um bando de falenas atraídas por lumes vários. Nós éramos, por consequência, uma aula de aprendizes de rebeca». Mas uma coisa a história registou: dessa rapsódia, aparentemente pouco harmoniosa e sincronizada, brotaram fortes valores, poetas de puro quilate, nomes que enrique-