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30 DE JUNHO DE 1994 2757

revisão de um código penal requer que à perspectiva do «direito nos livros» se sobreponha a perspectiva do «direito em acção». O ponto de partida, em sede política, não pode estar no livro que se revê, mas no mundo em que o livro actua - ou não actua.
O Código Penal de 1982 é um código penal da democracia, cujos fundamentos dogmáticos e político-criminais não foram postos em crise. Em questão esteve e está, para utilizar as palavras do próprio Presidente da Comissão de Revisão, a aproximação desses fundamentos à «realidade da administração da justiça » que deles se admite estar inaceitavelmente distanciada. Neste quadro, uma avaliação da oportunidade, justificação e alcance desta iniciativa supõe um juízo sobre os limites e obstáculos presentes no funcionamento do dispositivo de resposta penal. Destaco quatro pontos cruciais que dão a dimensão da distância existente entre o mundo e o livro.
Em primeiro lugar, em Portugal, são denunciados às autoridades menos de um quarto dos crimes cometidos - as vítimas não confiam na capacidade e no interesse das autoridades e mais de metade, quando se queixam, têm um juízo claramente negativo sobre a sua intervenção. Segundo os resultados do último inquérito de vitimação conhecido e publicamente apreciado pela comunidade científica, os números nacionais deixam-nos, neste domínio, a grande distância da média europeia e muito claramente abaixo da média espanhola. O funcionamento do sistema penal e a imagem que projecta na sociedade faz com que, para a maior parte dos crimes e das vítimas, não chegue nunca a hora do Código Penal.
Em segundo lugar, o esclarecimento daquela limitada percentagem de crimes de que se ocupam as autoridades é excessivamente moroso e, para o caso dos crimes mais praticados e participados, escasso. Os procedimentos de classificação e a deficiência das estatísticas deformam a realidade. Sabe-se que há processos que são mantidos de fora das cifras estatísticas e que a elas só regressam se acaso são recuperados para a investigação.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Isso é grave!

O Orador: - Mas em relação a certas categorias de crimes, e justamente os que ocupam o primeiro lugar no ranking penal, é seguro que a taxa de esclarecimento não atinge os 50 %. E há departamentos onde se acumulam prescrições, onde a investigação de certas categorias de crimes só começa, em média, um ano depois de apresentadas as queixas, outros onde há dezenas de processos que, desde há seis e sete anos, não conhecem investigação - há crimes praticados há oito anos que ainda não começaram a ser investigados. Por causa das decisões tomadas ou omitidas em matéria de recursos humanos, logísticos e periciais, para muitos dos processos e crimes de que se ocupam os departamentos de investigação também não chega - ou chega demasiado tarde - a hora do Código Penal.
Em terceiro lugar, observando os processos que transitam para os tribunais, verifica-se que, já na fase de julgamento, o número dos que terminam por desistência ou amnistia é superior ao dos que terminam por condenação. A morosidade e inadequação da resposta penal, o decurso de anos e anos entre a data dos crimes e o seu julgamento, constitui um dos factores fundamentais desta economia anómala da actividade judicial. Acompanhando a história de certas categorias de processos, constata-se que cada ano que passa sobre o cometimento de um crime antes que seja julgado milita a favor da desistência e da amnistia, quando não da prescrição. Isto significa que uma parte do tempo que é empregue na nossa justiça criminal se revela desproporcionado à natureza dos resultados, com óbvio sacrifício da disponibilidade para aqueles crimes que é fundamental julgar e julgar prontamente. E não se pense que são as infracções previstas no Código Penal que estão em causa na maioria dos processos-crime julgados: cerca de metade das condenações proferidas pelos tribunais dizem respeito a infracções não previstas no Código Penal.
Em quarto lugar, não obstante a baixa taxa de participação, a baixa taxa de esclarecimento, o nível das desistências em julgamento e a intervenção periódica de amnistias e perdões - descarregando processos, afastando condenações e libertando reclusos -, o sistema prisional não está dimensionado nem dotado de condições para que as penas de prisão decretadas pelos tribunais sejam cumpridas com observância das finalidades consagradas pelo Código Penal. As finalidades de recuperação social do delinquente assinaladas pelo Código Penal não encontram expressão prática - encontram antes negação prática - nas condições de superlotação crónica que se atingiram e noutras condições de degradação da vida prisional que potenciam o efeito criminógeno e impossibilitam o pretendido efeito recuperador. Quando os reclusos, para além do cumprimento da pena de prisão a que tenham sido condenados pelos tribunais, o são também às penas, não previstas no Código Penal, de sevícias sexuais e de contracção de sida, a distância entre o discurso do livro e o mundo das prisões atinge uma dimensão inquietante.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Estes quatro elementos de um diagnóstico necessário são suficientes para se concluir que a nossa justiça criminal está carecida de mudanças sérias, profundas e urgentes, que actuem nas fases de investigação, de julgamento e de execução das penas, para que a sociedade, e em particular as vítimas de crimes, possa aumentar a sua confiança no sistema, acreditar na eficácia da sua intervenção, dar-lhe notícia, em proporções mais aceitáveis, dos crimes cometidos e reforçar o sentimento de confiança no direito.
É que, se os cidadãos vítimas de crimes, em cerca de 4/5 dos casos, concluem que não vale a pena participar às autoridades, é preciso dizer que, correlativamente, são altas as expectativas de impunidade em Portugal. Os autores de crimes têm podido contar com as baixas probabilidades de queixa, investigações morosas com baixas taxas de êxito, julgamentos suficientemente distanciados para tornar elevadas as probabilidades de amnistias, perdões e desistências e, por fim, em caso de condenação a pena de prisão, a expectativa de libertação condicional a meio da pena. Com as altas expectativas de impunidade com que se tem vivido, há o risco - que urge afastar- de minarmos as próprias bases da filosofia liberal e humanista em que se inspira o nosso Código Penal. É que essa filosofia postula, e bem, a concepção de que, mais do que a gravidade das penas, é a expectativa de uma investigação rápida e eficaz e de um julgamento pronto que conta para a prevenção dos crimes.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Não há dúvida, pois, que o ponto em que estamos torna imperativa uma acção decidida de recuperação da resposta penal. Mas constituir-nos-íamos em co-responsáveis de uma fraude política se transmitíssemos ao país a imagem de que um aperfeiçoamento do texto do Código

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