O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 2727

Quinta-feira, 30 de Junho de 1994 I Série - Número 85

DIÁRIO da Assembleia da República

VI LEGISLATURA 3.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1993-1994)

REUNIÃO PLENÁRIA DE 29 DE JUNHO DE 1994

Presidente: Exmo. Sr. António Moreira Barbosa de Melo

Secretários: Exmos. Srs.

João Domingos Fernandes de Abreu Salgado,
Vítor Manuel Caio Roque
José Mário Lemos Damião
José de Almeida Cesário

SUMÁRIO

O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 35 minutos.
Foram aprovados os n.ºs 73 a 78 do Diário.
A Câmara apreciou o parecer da Comissão de Agricultura e Mar relativo ao requerimento de adopção de processo de urgência do projecto de resolução n.º 114/VI - Visando a adopção de medidas de emergência para fazer face aos prejuízos causados na agricultura pelas geadas negras e chuvas tardias (PCP), que foi aprovado. Produziram intervenções os Srs. Deputados Lino de Carvalho (PCP), Sá Abreu (PSD), Alberto Avelino (PS), Manuel Queiró (CDS-PP) e André Martins (Os Verdes).
Após a síntese do relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias feita pela Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira (PSD), procedeu-se à discussão da proposta de lei n.º 92/VI - Autoriza o Governo a rever o Código Penal, que foi aprovada, na generalidade, e baixou à Comissão competente para apreciação na especialidade. Usaram da palavra, a diverso título, além do Sr. Ministro da Justiça (Laborinho Lúcio), os Srs. Deputados Narana Coissoró (CDS-PP), Alberto Costa (PS), Odete Santos (PCP), José Magalhães (PS), Raúl Castro e Mário Tomé (Indep.), André Martins (Os Verdes), Costa Andrade e Guilherme Silva (PSD).
Foram ainda aprovadas, em votação global, as propostas de resolução n.05 63/VI - Aprova, para ratificação, a Convenção entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e 69/VI - Aprova, para ratificação, o Acordo entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Francesa em Matéria de Impostos sobre as Sucessões e Doações.
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 21 horas e 10 minutos.

Página 2728

2728 I SÉRIE-NÚMERO 85

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a sessão.

Eram 15 horas e 35 minutos.

Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Adão José Fonseca Silva.
Adérito Manuel Soares Campos.
Adriano da Silva Pinto.
Alberto Cerqueira de Oliveira.
Alberto Monteiro de Araújo.
Álvaro José Martins Viegas.
Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto.
Anabela Honório Matias.
António Augusto Fidalgo.
António da Silva Bacelar.
António de Carvalho Martins.
António do Carmo Branco Malveiro.
António Esteves Morgado.
António Fernando Couto dos Santos.
António Germano Fernandes de Sá e Abreu.
António Joaquim Correia Vairinhos.
António José Barradas Leitão.
António José Caeiro da Motta Veiga.
António Manuel Fernandes Alves.
António Maria Pereira.
António Moreira Barbosa de Melo.
António Paulo Martins Pereira Coelho.
Aristides Alves do Nascimento Teixeira.
Armando de Carvalho Guerreiro da Cunha.
Arménio dos Santos.
Belarmino Henriques Correia.
Carlos Alberto Lopes Pereira.
Carlos Alberto Pinto.
Carlos de Almeida Figueiredo.
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves.
Carlos Manuel de Oliveira da Silva.
Carlos Manuel Duarte de Oliveira.
Carlos Manuel Marta Gonçalves.
Carlos Miguel de Valleré Pinheiro de Oliveira.
Cipriano Rodrigues Martins.
Delmar Ramiro Palas.
Domingos Duarte Lima.
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco.
Eduardo Alfredo de Carvalho Pereira da Silva.
Ema Maria Pereira Leite Lóia Paulista.
Fernando Carlos Branco Marques de Andrade.
Fernando dos Reis Condesso.
Fernando José Russo Roque Correia Afonso.
Fernando Manuel Alves Cardoso Ferreira.
Fernando Monteiro do Amaral.
Fernando Santos Pereira.
Filipe Manuel da Silva Abreu.
Francisco Antunes da Silva.
Guido Orlando de Freitas Rodrigues.
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva.
Hilário Torres Azevedo Marques.
Jaime Gomes Milhomens.
João Alberto Granja dos Santos Silva.
João Carlos Barreiras Duarte.
João do Lago de Vasconcelos Mota.
João Domingos Fernandes de Abreu Salgado.
João José da Silva Maçãs.
João José Pedreira de Matos.
João Maria Leitão de Oliveira Martins.
Joaquim Cardoso Martins.
Joaquim Eduardo Gomes.
Joaquim Vilela de Araújo.
Jorge Avelino Braga de Macedo.
Jorge Paulo de Seabra Roque da Cunha.
José Agostinho Ribau Esteves.
José Alberto Puig dos Santos Costa.
José Álvaro Machado Pacheco Pereira.
José Ângelo Ferreira Correia.
José Augusto Santos da Silva Marques.
José de Almeida Cesário.
José Fortunato Freitas Costa Leite.
José Guilherme Pereira Coelho dos Reis.
José Júlio Carvalho Ribeiro.
José Leite Machado.
José Luís Campos Vieira de Castro.
José Manuel Álvares da Costa e Oliveira.
José Manuel Borregana Meireles.
José Manuel da Silva Costa.
José Mário de Lemos Damião.
Luís António Carrilho da Cunha.
Luís António Martins.
Lufe Carlos David Nobre.
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa.
Manuel Albino Casimiro de Almeida.
Manuel Antero da Cunha Pinto.
Manuel da Costa Andrade.
Manuel da Silva Azevedo.
Manuel de Lima Amorim.
Manuel Filipe Correia de Jesus.
Manuel Joaquim Baptista Cardoso.
Manuel Maria Moreira.
Maria da Conceição Ulrich de Castro Pereira.
Maria José Paulo Caixeiro Barbosa Correia.
Maria Luísa Lourenço Ferreira.
Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa.
Marília Dulce Coelho Pires Morgado Raimundo.
Mário Jorge Belo Maciel.
Melchior Ribeiro Pereira Moreira.
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva.
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas.
Nuno Francisco Fernandes Delerue Alvim de Matos.
Nuno Manuel Franco Ribeiro da Silva.
Olinto Henrique da Cruz Ravara.
Pedro Domingos de Souza e Holstein Campilho.
Rui Alberto Limpo Salvada.
Rui Carlos Alvarez Carp.
Rui Fernando da Silva Rio.
Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete.
Simão José Ricon Peres.
Vasco Francisco Aguiar Miguel.
Virgílio de Oliveira Carneiro.
Vítor Pereira Crespo.

Partido Socialista (PS):

Acácio Manuel de Frias Barreiros.
Alberto Arons Braga de Carvalho.
Alberto da Silva Cardoso.
Alberto Manuel Avelino.
Alberto Marques de Oliveira e Silva.
Ana Maria Dias Bettencourt.
António Alves Marques Júnior.
António Alves Martinho.

Página 2729

30 DE JUNHO DE 1994 2729

António Carlos Ribeiro Campos.
António de Almeida Santos.
António Domingues de Azevedo.
António Fernandes da Silva Braga.
António José Borrani Crisóstomo Teixeira.
Armando António Martins Vara.
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos.
Carlos Cardoso Lage.
Carlos Manuel Luís.
Eduardo Luis Barreto Ferro Rodrigues.
Eduardo Ribeiro Pereira.
Elisa Maria Ramos Damião.
Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.
Fernando Alberto Pereira de Sousa.
Fernando Alberto Pereira Marques.
Fernando Manuel Lúcio Marques da Costa.
Guilherme Valdemar Pereira d'Oliveira Martins.
Gustavo Rodrígues Pimenta.
Helena de Melo Torres Marques.
Jaime José Matos da Gama.
João Eduardo Coelho Ferraz de Abreu.
João Maria de Lemos de Menezes Ferreira.
João Rui Gaspar de Almeida.
Joaquim Américo Fialho Anastácio.
Joaquim Dias da Silva Pinto.
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.
Jorge Lacão Costa.
Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho.
José Alberto Rebelo dos Reis Lamego.
José António Martins Goulart.
José Ernesto Figueira dos Reis.
José Manuel Lello Ribeiro de Almeida.
José Manuel Oliveira Gameiro dos Santos.
José Rodrigues Pereira dos Penedos.
Júlio da Piedade Nunes Henriques.
Júlio Francisco Miranda Calha.
Leonor Coutinho Pereira dos Santos.
Luís Filipe Marques Amado.
Luís Filipe Nascimento Madeira.
Luís Manuel Capoulas Santos.
Manuel António dos Santos.
Maria Julieta Ferreira Baptista Sampaio.
Maria Teresa Dória Santa Clara Gomes.
Raúl d'Assunção Pimenta Rêgo.
Rogério da Conceição Serafim Martins.
Rui António Ferreira da Cunha.
Rui do Nascimento Rabaça Vieira.
Vítor Manuel Caio Roque.

Partido Comunista Português (PCP):

António Filipe Gaião Rodrigues.
António Manuel dos Santos Murteira.
João António Gonçalves do Amaral.
José Manuel Maia Nunes de Almeida.
Lino António Marques de Carvalho.
Luís Manuel da Silva Viana de Sá.
Maria Odete dos Santos.
Octávio Augusto Teixeira.
Paulo Jorge de Agostinho Trindade.
Paulo Manuel da Silva Gonçalves Rodrígues.

Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):

Manuel Tomas Cortez Rodrigues Queiró.
Narana Sinai Coissoró.
Rui Manuel Pereira Marques.

Partido Ecologista Os Verdes (PEV):

André Valente Martins.

Partido da Solidariedade Nacional (PSN):

Manuel Sérgio Vieira e Cunha.

Deputados independentes:

Mário António Baptista Tomé.
Raúl Fernandes de Morais e Castro.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Sr. Secretário vai dar conta dos diplomas que deram entrada na Mesa.

O Sr. Secretário (João Salgado): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, deram entrada na Mesa, e foram admitidos, os seguintes diplomas: proposta de lei n.º 106/VI - Regula a exequibilidade em Portugal de decisões tomadas ao abrigo do artigo 110.º do Acordo Sobre o Espaço Económico Europeu, que baixou às 3.ª e 11.ª Comissões; propostas de resolução n.º 70/VI - Aprova, para adesão, as emendas ao artigo 17.º e ao artigo 18.º da convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, que baixou às 1.ª e 3.ª Comissões, e 71/VI - Aprova, para ratificação, o acordo de cooperação e de união aduaneira entre a Comunidade Económica Europeia e a República de S. Marinho, respectivos anexos e declarações, que baixou às 3.ª e 11.ª Comissões; projectos de lei n.ºs 426/VI - Elevação da vila de Alcobaça à categoria de cidade (PSD, PS, PCP e CDS-PP) e 427/VI - Suspende o aumento na portagem da Ponte 25 de Abril, tendo ambos baixado à 5.ª Comissão.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, estão em apreciação os n.ºs 73 a 78 do Diário, respeitantes às reuniões plenárias de 18, 19, 20, 25, 26 e 27 de Maio.

Pausa.

Visto não haver objecções, consideram-se aprovados.

O Sr. Ferro Rodrigues (PS): - Sr. Presidente, peço a palavra.
É para interpelar a Mesa a propósito de uma posição por esta anunciada na semana passada e da subsequente orientação dada aos trabalhos desta Assembleia.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Ferro Rodrigues (PS): - Sr. Presidente, na semana passada, quando foi anunciada a demissão do Sr. Governador do Banco de Portugal, tiveram aqui lugar várias diligências por parte do PCP, do PS e do próprio Presidente da Comissão de Economia, Finanças e Plano no sentido de podermos ouvir rapidamente na respectiva comissão o Sr. Ministro das Finanças e também os responsáveis do Banco de Portugal. Houve debate, mas em relação a essa matéria não se chegou a um consenso.
No entanto, nessa mesma sessão de quinta-feira o Sr. Presidente em exercício, Deputado Correia Afonso, disse, antes de dar a palavra a um orador inscrito na ordem do dia, que ia transmitir a resposta que tinha acabado de receber do Governo sobre as questões que tinham mere-

Página 2730

2730 I SÉRIE-NÚMERO 85

eido várias interpelações num período anterior. Leu, então, o seguinte: «Como é do vosso conhecimento, o Sr. Ministro das Finanças encontra-se na Grécia. Neste sentido, o Governo faz questão de comunicar à Câmara a sua completa disponibilidade, logo que o Sr. Ministro das Finanças regresse, para prestar todas as informações e esclarecimentos que os Srs. Deputados entendam necessários, nomeadamente em sede de Comissão de Economia, Finanças e Plano. »
Depois desta explicação tão concreta do Sr. Presidente em exercício da Assembleia da República, o PS, na reunião de ontem da Comissão de Economia, Finanças e Plano, propôs a audição urgente do Sr. Ministro das Finanças que tão rapidamente se colocou à disposição do Parlamento. Aliás, havia uma necessidade reforçada dessa presença, na medida em que as explicações que apareceram nos mais importantes órgãos de imprensa sobre o que se tinha passado efectivamente no Banco de Portugal (se tinha sido o Governador do Banco a demitir-se ou se, pelo contrário, tinha sido este, ao ter exigido e visto recusadas determinadas condições de composição do conselho de administração, a fazê-lo) eram completamento contraditórias.
A Assembleia da República, que já tem problemas de imagem, muitas vezes com razão, tinha neste caso - e continua a ter - uma boa oportunidade para mostrar ao País a forma como procura colocar-se perante os problemas nacionais mais importantes.
Sendo assim, o PS, na lógica da intervenção feita pelo Sr. Presidente em exercício da Assembleia da República anunciando a posição do Governo, apresentou uma proposta normal de agendamento da vinda do Sr. Ministro das Finanças à Comissão de Economia, Finanças e Plano. Qual não foi a nossa surpresa quando o PSD recusou essa proposta, alegando, mais uma vez, argumentos totalmente despropositados, tais como as consequências que essa vinda poderia ter para os mercados monetários e cambiais. Mal de nós, mal da nossa moeda, mal dos nossos mercados se uma vinda do Sr. Ministro das Finanças à Assembleia da República tivesse essas consequências...
Gostaria, pois, que o Sr. Presidente tomasse em devida conta o que se passou. Na passada sexta-feira a Mesa fez o que devia fazer. Quem não cumpriu o seu dever foi o Grupo Parlamentar do PSD!

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra. Sr. Deputado.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, tal como foi referido na sessão plenária de 24 de Junho, na sequência de uma carta que enviámos ao Sr. Presidente da Comissão de Economia, Finanças e Plano, pedimos à Mesa que promovesse as diligências necessárias para que o Sr. Ministro das Finanças se deslocasse à Assembleia da República, a fim de poder esclarecer os Deputados das razões da demissão inesperada de vários membros da administração do Banco de Portugal e também das eventuais repercussões desse acto sobre a política monetária e cambial do Governo.
O Sr. Deputado Ferro Rodrigues já referiu o que se passou. Efectivamente, essas diligências foram feitas e daí resultou a disponibilidade do Governo para vir à Assembleia.
Estamos, pois, surpreendidos com a recusa do PSD, manifestada ontem em sede de Comissão de Economia,
Finanças e Plano, em aceitar a própria disponibilidade do Governo para, vindo ao encontro das propostas do PCP e de outros partidos da oposição, discutir na Assembleia as questões que se colocam relativamente à política financeira e cambial em sede de alteração da administração do Banco de Portugal.
Aliás, o discurso que o Sr. Ministro das Finanças fez, ontem, no Banco de Portugal justificaria plenamente a sua vinda ao Plenário e a um debate aberto com a Comissão de Economia, Finanças e Plano.
Sr. Presidente, mais uma vez a posição do PSD veio confirmar o que dissemos aqui na passada sexta-feira à tarde, e que o Sr. Deputado Rui Carp tanto criticou. De facto, o PSD, por razões que nos são estranhas, parece ser «mais papista que o Papa ». Isto é, o PSD recusa, por alguns medos que só ele saberá quais são - talvez venham ao de cima os debates sobre os lobbies que terão influenciado as alterações do Banco de Portugal ou sobre a sua progressiva governamentalização ou sobre a instabilidade e os zigue-zagues da política monetária e cambial do Governo -, a verdade é que, por estas razões ou por outras, o PSD não aceita sequer a disponibilidade do Governo e recusa que a Assembleia cumpra o seu dever mínimo, que é o de debater com o Sr. Ministro das Finanças uma questão tão importante para o Parlamento e para o País.
Cada um tem de assumir as consequências dos seus actos. Se o PSD persistir em assumir esta posição na próxima reunião da Comissão de Economia, Finanças e Plano iremos repor a nossa proposta. Naturalmente que o PSD terá de assumir as responsabilidades de bloquear o debate sobre esta matéria!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de responder às interpelações feitas, mas apenas naquilo que concerne à Mesa.
Quem estava a exercer funções nesse momento agiu como devia e tem a minha inteira solidariedade. Lembro a VV. Ex.ªs que a Mesa não pode mandar nos membros do Governo nem nos grupos parlamentares.

O Sr. Rui Carp (PSD): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, este assunto está encerrado no que diz respeito a interpelações à Mesa. Mas, como houve referências nomeadamente ao Sr. Deputado Rui Carp, dou-lhe a palavra por três minutos no máximo, tempo que é atribuído aos pedidos de interpelação, embora não seja este o caso, pois não aceito mais pedidos de palavra para esse efeito.

Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Rui Carp (PSD): - Sr. Presidente, vou limitar-me a esclarecer a Câmara.
O PSD reafirma e confirma todas as suas declarações proferidas em Plenário na semana passada sobre esta matéria. Tenho aqui a acta dessa mesma sessão que confirma essas declarações, que não são minimamente contraditórias com a atitude que o PSD adoptou ontem na Comissão de Economia, Finanças e do Plano.
Reafirmamos que a estabilidade cambial é um valor indispensável para a conjuntura económica e financeira portuguesa. De resto, creio que a estabilidade e a política cambial constituem matéria demasiado delicada para ser discutida como os Srs. Deputados da oposição querem e isso não acontece em nenhum Parlamento.

Página 2731

30 DE JUNHO DE 1994 2731

Protestos do PS.

Reafirmamos que o Sr. Ministro das Finanças mantém a sua disponibilidade para vir ao Parlamento se esse for o desejo da Comissão de Economia, Finanças e do Plano, que entendeu, maioritariamente, não dever esta matéria ser discutida como alguns partidos da oposição queriam.

Protestos do PS.

Sr. Presidente, reafirmo e esclareço também que o Sr. Ministro das Finanças enviou ontem para a Comissão de Economia, Finanças e do Plano o texto de 17 páginas da intervenção que fez na tomada de posse do novo conselho de administração do Banco de Portugal, que refere exaustivamente, e naquilo que tem interesse para o debate político, as suas posições em matéria de política económica e financeira.
Mais: nesse mesmo texto o Sr. Ministro reafirma os elogios ao Sr. Governador, aos Vice-Governadores e Administrador do Banco de Portugal cessantes.
Aliás, nesse mesmo discurso - e estou a citar -, é realçada a «colaboração do Professor Doutor Luís Miguel Beleza, com quem manteve óptimo relacionamento pessoal e institucional».

O Sr. Ferro Rodrigues (PS): - Imaginem se fosse mau!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta matéria é bem clara, reafirmando e concluindo o PSD da necessidade de preservar a estabilidade cambial e de evitar quaisquer sinais que possam injustamente provocar especulações danosas contra a moeda nacional. Igualmente, entende o PSD que o debate político em matéria económica, a fazer-se neste Plenário - e penso que assim deverá ser -, terá a sua sede própria, na próxima semana, quando se fizer a análise do Estado da Nação.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, dou-lhe a palavra, apenas por três minutos.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, o PSD tem a vontade de confundir o PS e o PCP com a oposição, pois esteve a falar da mesma - emendou a mão no último minuto perante o manifesto mal-estar da sua própria bancada - referindo-se apenas àqueles dois partidos. Ora, quero referir que as nossas posições não se confundem com as assumidas quer pelo PS quer pelo PCP.
Nós entendemos que as nomeações do Governador e dos Vice-Governadores do Banco de Portugal não têm de ser discutidas no Parlamento antes de serem publicitadas. Efectivamente, trata-se de uma matéria sensível e o Ministro das Finanças não pode, naturalmente, dar indicações ao Parlamento - aquelas que dará no acto de posse - que têm uma manifesta repercussão na instabilidade da moeda e nos especuladores. Sabemo-lo perfeitamente, pelo que não poderemos criticar o Ministro das Finanças, pois nenhum ministro das finanças veio alguma vez a este Parlamento dizer das nomeações que iria fazer no Banco de Portugal.
No entanto, também não podemos deixar de verificar que a actual equipa dirigente do Banco de Portugal foi destituída no meio do respectivo mandato e quando o Tratado de Maastricht - que o PSD aqui tanto elogiou - manda respeitar a autonomia e quase independência desse mesmo banco. Não podemos igualmente deixar de verificar que este fenómeno se integrou dentro de um conjunto de factores que aos olhos do País indicam a grande instabilidade política que se vive: foi o problema do Secretário de Estado do Emprego, o problema da Ponte 25 de Abril, o problema do Banco de Portugal e a desmarcação, à última hora, da cimeira dos Chefes de Estado e dos Primeiro-Ministros dos países lusófonos.
Naturalmente, estamos preocupados com esta série de acontecimentos, em que avulta o facto de a equipa dirigente do Banco de Portugal ter sido substituída de maneira abrupta e de serem referidas versões diferentes pela comunicação social e pelo Governo, uma vez que este diz ter sido o próprio Governador cessante do Banco de Portugal quem pediu a exoneração, pondo o seu lugar à disposição, enquanto que a comunicação social diz que tal não aconteceu e que o Governador foi demitido contra a sua própria vontade.
Por esta razão, a Assembleia da República tem a obrigação de exigir do Governo explicações sobre este caso. Assim, queremos que o Sr. Ministro das Finanças, uma vez que foi já nomeada uma nova equipa para a administração do Banco de Portugal, se desloque à Assembleia da República, a fim de informar os Deputados de tudo quanto aconteceu, bem como de dar explicações às suas interrogações.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, como é do conhecimento de V. Ex.ª e da Câmara, na sequência de debates que se realizaram no Plenário e que conduziram à inviabilização de propostas de inquérito à forma como decorreu a privatização do Banco Totta e Açores, alguns Deputados do PS, do PCP, bem como o Sr. Deputado do PSN, formularam, nos termos regimentais, um pedido de constituição de uma Comissão de Inquérito, pedido esse que seguiu, aliás, os seus trâmites.
Essa Comissão está já instituída por despacho de V. Ex.ª, aliás nos termos propostos, e, tanto quanto sei, foi publicada a respectiva resolução no Diário da Assembleia da República. Estaríamos agora na fase de entrada em funcionamento, no entanto, tenho informações de que tal não é possível porque o PSD - e não sei se outros partidos - ainda não indicou os seus membros.
Assim, pedia a V. Ex.ª que diligenciasse no sentido de que esta situação irregular e de autêntico «veto de gaveta» seja ultrapassada, porque, como é óbvio, quando os Deputados proponentes da constituição da Comissão de Inquérito fizeram a proposta que apresentaram tinham como objectivo apurar um certo tipo de realidade e, eventualmente, extrair daí observações e juízos de natureza política sobre o comportamento do Governo em relação à matéria em causa, o que, a meu ver, não pode, de modo algum, ser invalidado por uma atitude administrativa, como parece ser até ao momento aquela que o Grupo Parlamentar do PSD está a usar.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, muito obrigado pela sua lembrança e, pelo facto de ser uma lembrança, estão já

Página 2732

2732 I SÉRIE-NÚMERO 85

recordados os partidos faltosos da necessidade de indicarem o nome dos seus representantes para esta Comissão. Suponho ser normal que tal aconteça por razões várias - acontece com muita frequência haver demoras -, não tendo necessariamente a interpretação subjectiva que lhe possa ser dada em cada circunstância. De qualquer forma, faço um apelo aos partidos faltosos no sentido de indicarem os nomes dos seus representantes nesta Comissão.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, havendo várias Comissões a constituir, o PSD está a fazer um esforço nesse sentido e indicará, hoje ou amanhã, os Deputados nomeados para a Comissão referida pelo Sr. Deputado Manuel dos Santos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, esclarecida esta questão, passamos ao segundo ponto da primeira parte do período da ordem do dia, que diz respeito à apreciação do parecer da Comissão de Agricultura e Mar relativo ao requerimento de adopção do processo de urgência do projecto de resolução n.º 114/VI- Visando a adopção de medidas de emergência para fazer face aos prejuízos causados na agricultura pelas geadas negras e chuvas tardias (PCP).
Srs. Deputados, como sabem, cada grupo parlamentar dispõe de três minutos para argumentar sobre esta matéria.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não bastava aos agricultores portugueses sofrerem as intempéries da política agrícola do PSD; periodicamente, estão confrontados com as consequências das intempéries naturais e de acidentes climatéricos extraordinários que a irregularidade das nossas condições meteorológicas transformam em situações periódicas. Foi o que sucedeu agora.
Nos meses de Abril e Maio, a queda, fora de época, de fortes geadas e chuvas intensas, destruiu, em praticamente todas as regiões do País, culturas frutícolas, hortícolas, vinha e mesmo outras produções. Os prejuízos chegam a atingir 70 % a 100 % dos valores normais da produção esperada e, consequentemente, dos rendimentos de milhares de agricultores. Calcula-se, assim, que 80 % da produção nacional de cereja tenha sido destruída. Em concelhos como Pinhel, Vila Real, Vila Nova de Foz Côa, Resende e Cova da Beira, os prejuízos atingiram vinhas, pomares e hortas. O desespero e o drama instalaram-se entre os agricultores, designadamente os pequenos agricultores.
Ao contrário do que se exigiria, continuamos a não ter no País um sistema eficiente de seguro agrícola de colheitas. O PSD, na linha da argumentação das companhias de seguros, acusa os agricultores de serem responsáveis pelos prejuízos que sofrem por não procederem ao seguro das suas colheitas. «Esquece » que a enorme desconfiança dos cidadãos em geral, e dos agricultores em particular, em relação aos sistemas de seguros radica no simples facto de que a regra é pagar e não receber.
No caso da agricultura, há muito que se sabe que o sistema existente é ineficaz e está feito à medida dos interesses das companhias seguradoras: o novo regime, em vigor há três anos, trouxe um brutal agravamento dos prémios, mais de 100 % em muitas culturas; o pagamento das indemnizações depende da verificação de um conjunto de parâmetros, para os quais não foram criadas condições de verificação, nem técnicas nem humanas; para muitas culturas, a cobertura dos riscos continua sujeita ao facto de os acidentes climatéricos se produzirem dentro de determinadas datas- houve geadas que caíram antes de 15 de Abril, mas a cobertura do seguro para culturas hortícolas, nos distritos de Vila Real, Bragança, Guarda, Viseu, entre outros, só funcionaria se as geadas tivessem caído depois daquela data.
Ora, o que se impõe é uma cobertura de todos os riscos para todas as culturas, em função do seu ciclo vegetativo. Mesmo quando a cobertura do risco depende do ciclo vegetativo, este está sujeito a graves restrições que lhe retiram eficácia. Acresce o facto de o sistema actual não considerar sequer que o volume da precipitação caída - que, simplesmente, destruiu, por exemplo, a produção de cereja - seja suficiente para poder ser coberta pelos seguros, bem como o facto de o Governo continuar a não proceder às bonificações dos prémios, de molde a diminuir os custos destes.
Impõe-se, pois, alterar com urgência o actual sistema de seguro agrícola, nos termos em que o propusemos na anterior legislatura e que o PSD rejeitou. Mas são precisas, também, medidas de emergência. Só tardiamente o Governo iniciou o levantamento dos prejuízos e a única coisa que se sabe neste momento é que o Governo está a considerar a hipótese de medidas de apoio que ajudem a minimizar alguns dos prejuízos, somente para a cereja, a maçã e a vinha. O próprio levantamento dos prejuízos, em muitos casos, não tem passado da visita de técnicos, sem qualquer quantificação dos danos verificados para além de uma visita do silencioso novo Ministro da Agricultura, que aproveitou seguramente para conhecer o que são cerejeiras e outras árvores de fruto.
Por isso, Sr. Presidente, impõe-se que a Assembleia aponte ao Governo, com urgência, a necessidade de atribuição de subsídios a fundo perdido, a abertura de uma linha de crédito fortemente bonificada, de moratórias para os créditos pendentes, para além da reestruturação do actual sistema de seguro agrícola de colheitas. O que fica dito justifica plenamente que esta Assembleia adopte o processo de urgência que estamos a debater para o projecto de resolução que apresentámos, à semelhança do que fizémos no Parlamento Europeu.
O PSD ainda tem oportunidade de rectificar o parecer negativo que votou sozinho na Comissão. O PSD não pode continuar a ter uma política autista e de indiferença em relação aos graves problemas que afectam o País e, neste caso, os agricultores - já viu, recentemente, que isso lhe sai caro. Se insistir na sua recusa, o PSD assumirá politicamente a responsabilidade de não permitir o debate em tempo útil e com urgência do nosso projecto de resolução.

Vozes do PCP: - Muito bem.

O Sr. Presidente: - Antes de dar a palavra ao Sr. Deputado Sá Abreu e a propósito da interpelação à Mesa do Sr. Deputado Manuel dos Santos, gostaria de dizer que, entretanto, obtive dos serviços a informação exacta de que, para a Comissão em causa, apenas o PS apontou os respectivos membros. Assim, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º, não poderei dar posse à Comissão ou constituí-la.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Sá Abreu.

O Sr. Sá Abreu (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A natureza tem destas coisas - ora passamos anos a fio com

Página 2733

30 DE JUNHO DE 1994 2733

uma valente seca, como há muito não se via, ora somos confrontados com tempo a «destempo » que nos faz perder as colheitas, ruir expectativas, em suma, desanimar. A agricultura é por isso mesmo, e como consequência de ser, como alguém dizia, uma actividade «a céu aberto », com risco difícil de calcular. Basta lembrar que em quatro dos últimos cinco anos ocorreram intempéries climatéricas -secas, chuvas, geadas -, que afectaram as produções agrícolas nacionais e, por consequência, o rendimento dos agricultores.
Tudo isto vem a propósito do assunto que hoje nos traz aqui: a discussão do processo de urgência do projecto de resolução n.º 114/VI, do PCP, visando a adopção de medidas de emergência para fazer face aos prejuízos causados na agricultura pelas geadas negras e chuvas tardias. Dado o seu conteúdo, este projecto de resolução mereceu a nossa melhor atenção. Todos sabemos o que aconteceu em Abril/Maio, um pouco por todo o País, em especial nas culturas de vinha, pomares de macieira e cerejeira: os prejuízos são de tal monta que vêm agravar ainda mais as dificuldades dos nossos agricultores.
Relativamente ao projecto de resolução, em primeiro lugar, propõe o PCP que se faça o levantamento dos prejuízos causados pelas chuvas e geadas. Devo lembrar que se o Governo não o tivesse já elaborado, hoje, dificilmente saberíamos desses prejuízos.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - O problema é que não elaborou!

O Orador: - O que aqui quero dizer é que o Governo, através do Ministério da Agricultura, mandou fazer, de imediato, esse levantamento.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Não está feito!

O Orador: - E, por consequência, estão neste momento a ser estudadas medidas para minimizar os prejuízos. Esperamos que, no decurso desta semana ou eventualmente da próxima, o Sr. Ministro da Agricultura anuncie tais medidas.
Convém recordar que nas campanhas anteriores, ern que ocorreram situações similares, sempre o PSD e o Governo procuraram equacionar e implementar medidas que atenuassem os prejuízos sofridos pela agricultura. Neste caso específico, e mesmo antes de qualquer projecto de resolução, já o Governo despoletou todos os instrumentos necessários à tomada de medidas que atendam às situações ocorridas.
Como grupo parlamentar estamos confiantes na acção do Governo.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Só os agricultores é que não estão!

O Orador: - Mas, dada a ocorrência sistemática deste tipo de situações e no sentido de proporcionar condições de garantia dos rendimentos aos agricultores, parece-nos de importância crucial a problemática dos seguros agrícolas.
Por maior vontade política que haja, nunca o Estado poderá, de forma alguma, atender à totalidade dos prejuízos ocorridos.
Somos de opinião que haja, em sede de Comissão, um aprofundamento da discussão dos seguros agrícolas, para a sua melhoria, pois só com o contributo de todos podemos melhorá-lo e torná-lo mais aliciante para a maioria dos agricultores.
Por tudo isto, e como achamos que o projecto de resolução do PCP vem a «destempo », estando por isso fora de prazo, porque as medidas por ele preconizadas têm já sido tomadas ou em vias de resolução,...

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Fora de prazo está o Governo!...

O Orador: - ... estamos de acordo com o parecer da Comissão de Agricultura e Mar, sem prejuízo, como disse anteriormente, de em sede de comissão parlamentar acompanharmos a execução das medidas que o Governo muito brevemente irá tomar assim como analisarmos toda a problemática dos seguros agrícolas.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Avelino.

O Sr. Alberto Avelino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O PS lamenta estas lágrimas de crocodilo, porque geralmente da bancada do PSD é-nos dito que não há propostas alternativas ou que não se discutem determinadas matérias.
De facto, há vários anos que o PS tem pedido que este assunto seja debatido em Comissão, mas o PSD tem feito orelhas moucas.
Portanto, não se venha aqui fazer a apologia do grande interesse do Governo, nomeadamente do Sr. Ministro da Agricultura, uma vez que a 5 de Maio, dois camaradas meus, Alberto Cardoso e António Martinho, fizeram um requerimento ao Ministério precisamente sobre esta matéria e dois meses são passados sem que nada tenha sido dito.
Os senhores, talvez por presunção e mais nada, dirão: «Bom, certamente, que o Governo irá promover as medidas necessárias » - aliás, é esta a linguagem usada no parecer. Ou seja, é uma hipótese, talvez seja possível, talvez faça...
Portanto, sinceramente, gostaríamos que fosse discutida a matéria referente aos seguros agrícolas e aos males que afectam sazonalmente a agricultura em Portugal, pois isso é um problema do clima mediterrânico com sabor, por vezes, a continental. E isto passa não só pela ladainha sazonal que, infelizmente, somos obrigados a fazer como também pela existência de um seguro agrícola, que não tem de ser clássico, na medida em que, por um lado, deve atender às especificidades próprias da nossa agricultura, dos diferentes sectores, das próprias regiões e, por outro, tem de implicar alguma obrigatoriedade no sentido de as companhias de seguros, depois de negociado com os departamentos governamentais respectivos, aceitarem esses seguros.
Na verdade, o que hoje acontece é que há seguros agrícolas, que são seguros clássicos, nada específicos e, por vezes, a maior parte das companhias de seguros recusa-se a fazê-los.
É, pois, neste sentido que aceitámos e demos o nosso parecer favorável para que o projecto de resolução fosse aprovado, por forma a colmatar não só os males que afectaram nomeadamente as cerejas, em Alfândega da Fé, em Resende, as fruteiras de Lamego e a zona das vinhas, onde, fruto da tal sazonalidade, nada foi favorável à polinização das uvas, prevendo-se um mau ano vinícola devido à quebra de produção.
Então, podemos ser insensíveis a isto? Que o Governo tenha sido insensível à agricultura, nós bem o sabemos, mas

Página 2734

2734 I SÉRIE - NÚMERO 85

que não seja minimamente insensível perante aquilo que ainda vai restando da nossa agricultura.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Queiró.

O Sr. Manuel Queiró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A bancada do CDS-PP ao pronunciar-se sobre o pedido de urgência para um projecto de resolução, apresentado pelo PCP, agora em discussão, tem uma posição favorável à urgência desse projecto de resolução, visto que a matéria é, em si própria, urgente e é isso que a Assembleia da República deve atender, não obstante a informação, dada pela bancada do PSD, de que o Governo dentro em breve anunciará medidas para obviar aos inconvenientes das geadas e das chuvas tardias.
Entendemos que a Assembleia da República não deve comandar os seus trabalhos com base neste tipo de informações. É porventura o contrário que deve suceder e, muito provavelmente, foi o que sucedeu neste caso específico: foi a urgência e a actividade da Assembleia da República que determinou a adopção mais apressada ou até a própria existência de medidas por parte do Governo para atender a esses problemas.
Portanto, sem nos pronunciarmos a «destempo » sobre o fundo da matéria e sobre as medidas de atendimento aos agricultores, tendo em consideração que o que está em causa é a adopção de uma urgência para um projecto de resolução possa ser discutido, a nossa posição é a de que não temos nada a opor, pelas razões apontadas, à urgência e pronunciamo-nos contrariamente ao parecer negativo que foi elaborado na Comissão.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado André Martins.

O Sr. André Martins (Os Verdes): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O projecto de resolução n.º 114/VI, apresentado pelo PCP, visava, como já foi dito, promover um debate de urgência para fazer face às dificuldades que uma grande parte dos agricultores portugueses têm devido às intempéries que ocorreram nos finais de Abril e princípios de Maio.
Como se sabe, a grande pane da agricultura portuguesa depende da actividade de pequenos e médios agricultores e os prejuízos que resultam desta situação de intempérie se não forem colmatados com subsídios e com condições de financiamento atempadamente põem em causa a própria garantia de continuação de actividade dos agricultores e do desenvolvimento da agricultura portuguesa.
Por isso, Sr. Presidente, Srs. Deputados, entendemos que é urgente trazer a Plenário esta questão e debatê-la para que o Governo possa encarar esta situação de forma a, como a Constituição preconiza, apoiar os agricultores, designadamente os pequenos e médios agricultores, criando condições necessárias para que não seja posto em causa o futuro da actividade agrícola de que depende grande número de famílias portuguesas.
Portanto, pensamos que este debate deve subir a Plenário com urgência para que seja ultrapassada a referida questão.
Quanto ao parecer da Comissão de Agricultura e Mar entendemos que é extremamente infeliz a forma como o Grupo Parlamentar do PSD justificou a sua posição de não
estar de acordo com o processo de urgência deste projecto de resolução.
Finalmente, gostaria de dizer que já sabíamos que nos últimos dias a credibilidade do Governo para com a generalidade dos portugueses baixou significativamente, mas não pensávamos que essa credibilidade tivesse baixado tanto e também ao nível do Grupo Parlamentar do PSD: é que o PSD argumenta, votando contra este processo de urgência, dizendo que, eventualmente, o Governo estará a tomar medidas... Isto é, nem confiança o PSD já tem naquilo que é a responsabilidade do próprio Governo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não havendo mais inscrições, dou por encerrado este debate, informando, desde já, os Srs. Deputados que este projecto de resolução irá ser votado na hora regimental.

O Sr. Manuel Queiró (CDS-PP): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Manuel Queiró (CDS-PP): - Sr. Presidente, gostaria de solicitar, nos termos regimentais, em nome da bancada do CDS-PP, a interrupção dos trabalhos por 15 minutos, para que possamos efectuar uma conferência de imprensa e justificar mais detalhadamente aos órgãos de comunicação social a nossa posição sobre o pedido de autorização para a revisão do Código Penal na sala da 1.ª Comissão.

O Sr. Presidente: - Com certeza, Sr. Deputado. Srs. Deputados, está interrompida a sessão.

Eram 16 horas e 20 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a sessão.
Eram 17 horas e 10 minutos.
Antes de continuarmos com a nossa ordem de trabalhos, quero informar a Câmara de que a Mesa recebeu duas cartas de dois Srs. Deputados. A primeira é do Sr. Deputado Marques da Silva, do PS, que apresenta a renúncia do mandato a partir do dia l de Julho, pedindo desculpas pelas imprevistas alterações quanto às posições assumidas e aproveita o ensejo para apresentar a todos os seus cumprimentos.
A outra carta é do Sr. Deputado João Oliveira Martins, do PSD, que renuncia ao mandato a partir do próximo dia 30 de Junho.
Aos dois Srs. Deputados que assim entenderam, por razões suas, deixar de exercer as funções de representantes, efeito para o qual haviam sido eleitos, apresento os meus cumprimentos pessoais e registo o trabalho que fizeram nesta Câmara em expressão do cumprimento dos seus deveres para com os eleitores que os elegeram, desejando-lhes as maiores felicidades no trabalho que irão realizar.
Srs. Deputados, passamos de seguida à apreciação da proposta de lei n.º 92/VI - Autoriza o Governo a rever o Código Penal.
Nos termos regimentais, começo por dar a palavra à relatora, Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira, que dispõe de 5 minutos para apresentar a síntese do relatório elaborado.

A Sr.ª Margarida Silva Pereira (PSD): - Muito obrigado, Sr. Presidente, tentarei desincumbir-me nos 5 minu-

Página 2735

30 DE JUNHO DE 1994 2735

tos que acaba de me atribuir, uma vez que o relatório é bastante extenso.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Coube à proposta de lei n.º 92/VI na Assembleia da República um destino que não foi pacato nem sossegado, até este momento da subida a Plenário.
Chegada à 1.ª Comissão, um grupo de trabalho que integra deputados de todos os grupos parlamentares foi especificamente encarregue do seu trânsito nesta Casa.
Por iniciativa da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias ou a solicitação externa, ocorreram audições sobre a reforma do Código Penal com as seguintes entidades: Ministro da Justiça; Comissão Revisora do Código Penal, de que será permitido realçar o seu Presidente, Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias; Ordem dos Advogados; Conselho Superior de Magistratura; Sindicato dos Magistrados do Ministério Público; Associação Sindical dos Juízes Portugueses; Associação para o Planeamento da Família; Grupo de Trabalho de Psiquiatria Forense; Sindicato dos Jornalistas; Associação Portuguesa dos Direitos do Cidadão; Forum Justiça e Liberdades.
Todas as entidades que nisso manifestaram interesse foram ouvidas pela Assembleia da República sobre a reforma do Código Penal.
O Grupo de Trabalho organizou um Colóquio Parlamentar, que ocorreu em 27 de Maio de 1994 com o patrocínio do Presidente da Assembleia da República e no qual intervieram universitários, magistrados e advogados.
Está deste modo a Assembleia da República em condições de emitir um juízo político sobre a reforma do Código Penal que beneficia destas circunstâncias.
E crê a relatora ir ao encontro da opinião dos Deputados que participaram nesta incumbência dizendo que o trânsito parlamentar da reforma do Código Penal foi técnica e politicamente gratificante e tem elevação e profundidade susceptíveis de lhe dar lugar de relevo no conjunto dos trabalhos desta sessão legislativa, contribuindo deste modo para a valorização da Assembleia da República nesta Legislatura em que ocorreu já uma Reforma do Parlamento.
O relatório procurou evidenciar os princípios mais importantes que a Reforma consagra e que passo a enunciar: o princípio de que não há crimes nem penas sem culpa e de que a medida da pena aplicável não pode nunca exorbitar a culpa do agente no seu agir criminoso; o princípio de que as medidas de segurança se aplicarão de acordo com a gravidade do facto ilícito ocorrido e com a perigosidade de quem a praticou; o princípio de que não se punem atitudes meramente reveladoras de opções sociais ou de concepções morais, mas tão-só aqueles comportamentos susceptíveis de lesar bens jurídicos e de provocar danos à comunidade; o princípio de que a determinação da pena deve ter no seu horizonte o objectivo de reintegrar o condenado na comunidade a que pertence, de que a sua execução será digna e tão pouco estigmatizante e criminógena quanto possível.
São princípios de política criminal que têm subjacente a dignidade da pessoa humana que a Constituição da República Portuguesa reconhece desde 1976 e que impregna também o Tratado da União Europeia, designadamente através dos seus artigos B e F. São princípios de política criminal ancorados num modelo de sociedade aberta e pluralista, que assume, com tranquilidade, uma atitude neutra perante tudo o que se limita a exprimir convicções, desde que essa atitude não agrida os valores da convivência.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Qualquer alteração marcante ao Direito Penal traz incita uma proposta de contrato de cidadania. Sabemo-lo na Europa, pelo menos desde 1764, ano em que um livro anónimo e sem indicação de editor veio a lume, em Livónia, para dizer que não há Direito Penal democrático que não se descomprometa de concepções religiosas e de fundamentalismos éticos; que não há Direito Penal democrático que esqueça o princípio da legalidade e ignore o princípio da reparação dos poderes.
Deste modo, afirmava o Marquês de Beccaria, longe da perseguição da sua terra natal, Milão, que as leis penais boas são as que não sejam politicamente assépticas. E dizemos nós hoje: as boas leis penais não se querem político-partidariamente comprometidas mas, sim, comprometidas com a democracia, a nacionalidade, a racionalidade e a tolerância.
É o espírito deste livro de Beccaria, o qual pretendia, modestamente, ser um texto de combate de ideias e acabou por ser muito mais do que isso, que impregna os melhores textos legais desde então.
A reforma é, seguramente, um desses textos, do qual se sabe o modelo social que preconiza e o que rejeita. Coloca o rigor científico ao serviço desse objectivo. Não terá nunca o destino daquele outro texto, excelente também, mas apenas literariamente, de que falou Jorge Luís Borges nos Teólogos, era um texto límpido e claro, que podia ter sido escrito por qualquer homem ou por todos os homens, e veio a representar afinal, num contexto, a máxima ortodoxia e, noutro diferente, a máxima heresia.
Mas a reforma penal está incólume a esse risco, principalmente porque vincou no conjunto das normas que propõe um modelo de universo social onde cabe cada vez menos protagonismo para os hereges e ortodoxos. Aliás - acrescentamos nós -, a consciência crítica dos cidadãos, na sua insondável sabedoria, como a do «Deus » de Jorge Luís Borges, se preocupará, do ponto de vista político, com coisas bem mais importantes do que os palcos em que eles, os ortodoxos e os hereges, se movem e, muito provavelmente, os distinguirá cada vez menos.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça. Informo-o de que, como autor da proposta de lei, dispõe de 5 minutos, sendo o tempo remanescente descontado no atribuído ao Governo para este debate.

O Sr. Ministro da Justiça (Laborinho Lúcio): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Um debate sobre o Código Penal interpela-nos, necessariamente, a uma reflexão mais profunda, ao encontro da nossa atitude perante o mundo e a vida, das nossas concepções sobre o homem, das nossas convicções sobre a sociedade, no seu conjunto, a sua organização e os seus modelos de funcionamento.
É por isso um debate que se não prende apenas em torno de um texto legislativo mas que nos leva à profundidade da indagação cultural, à sua ligação com as exigências antropológicas de um povo e que nos permite a possibilidade de elaborar o diagnóstico sobre o estado civilizacional desse mesmo povo.
Permita-se-me, por isso, que seja com honra que subo a esta tribuna para, em nome do Governo português, apresentar à Assembleia da República a proposta de lei cujo debate, agora, em Plenário se inicia. Mas que, ao assumir essa honra, o não faça escondendo aquilo que, neste momento e lugar, me parece, hoje, essencial como acto de justiça e que é justamente a homenagem pública devida a

Página 2736

2736 I SÉRIE-NÚMERO 85

duas personalidades, que, no tempo oportuno, contribuíram decisivamente para aquilo que é, afinal, já hoje, uma filosofia de política criminal em Portugal.
Refiro-me, em primeiro lugar, ao saudoso Professor Eduardo Correia, a um homem para quem a democracia, ò respeito pelos cidadãos e a luta permanente por um ideal permitiram que hoje não estivéssemos aqui a apresentar, de raiz, um novo Código Penal mas a sugerir apenas uma revisão do Código que saiu do seu ideal, da sua dogmática, do seu trabalho como cidadão; e, em segundo lugar, à pessoa do então Ministro da Justiça, o Juiz-Conselheiro José Meneres Pimentel, que teve, no momento oportuno, a coragem política de assumir uma viragem importante naquilo que era a filosofia legislativa do Direito Penal em Portugal. A esses nomes se juntará, com certeza, no futuro próximo, com o mesmo direito a homenagem pública, aquele que agora assumiu a liderança da responsabilidade dogmática da alteração que se vos propõe, o Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias.
E justamente por isto, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que, ao assumir esta tribuna, o faço não apenas com a honra formal de o fazer em nome do Governo, que, neste momento e neste acto, subscreve a proposta, mas de o fazer na linha do respeito por aqueles que, através do valor que todos, mas todos, lhes reconhecem, contribuiram decisivamente, no momento oportuno - repito -, para que hoje possamos falar mais tranquilamente em revisão do que estar perante a obrigação de assumir uma revolução legislativa neste domínio.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: É fácil podermos elaborar hoje um diagnóstico tão rigoroso quanto possível da situação do fenómeno da criminalidade em Portugal e, a partir desse diagnóstico, fazer estruturar, de forma segura e consolidada, as medidas de revisão que vos propomos. É, assim, em síntese, possível afirmar agora que o aumento da criminalidade, em Portugal, tem vindo a regredir nos últimos anos, de tal forma que os números conhecidos relativos ao ano de 1993 nos permitem afirmar a estabilidade na taxa da criminalidade. Um aumento de 2,9 %, em 1993, inscreve-se na taxa de tolerância de manutenção da percentagem de criminalidade, que todos consideram, hoje, oscilar numa margem de risco de (+) ou (-) 5 %.
Por outro lado, é possível afirmar ser diminuta a criminalidade violenta entre nós, sendo, ao mesmo tempo, possível constatar também que a dinâmica social, por um lado, e outro tipo de problemas conjunturais, por outro, nos fazem constatar um aumento, ainda que ligeiro, da criminalidade urbana violenta, por um lado, e da aceleração da criminalidade internacional organizada, por outro.
São estudos suficientemente rigorosos aqueles que nos permitem chegar a este diagnóstico, necessariamente grosseiro, neste momento de apresentação do diploma legislativo. Estudos que assentam nos espaços de investigação já institucionalizados entre nós, tais como os que resultam da intervenção, neste domínio, da Procuradoria-Geral da República, por um lado; das polícias, por outro; do Instituto Nacional de Polícia e Ciências Criminais da Polícia Judiciária; do Centro de Estudos Jurídico-Sociais, do Centro de Estudos Judiciários; do Gabinete de Estudos e Planeamento, do Ministério da Justiça; e dos espaços de cooperação internacional, com os quais Portugal tem relações de compromisso.
Todavia, é importante que, na apresentação pública daquilo que é o novo texto que conforma a legislação penal portuguesa, se reconheça a necessidade de levar por diante, tal como consta do Programa do Governo, a instalação definitiva do Instituto Nacional de Criminologia, que venha permitir que os passos graduais até agora dados pelos institutos que acabei de referir possam conhecer melhor consolidação em matéria de investigação dogmática, por um lado, e de investigação experimental e empírica, por outro.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - São disso exemplo os recentes inquéritos de vitimização da responsabilidade do Ministério da Justiça, eles também suporte valioso para as opções de política legislativa que aqui vos trazemos hoje.
Este diagnóstico, todavia, permite extrair já conclusões rigorosas e importantes.
A primeira delas é a de que é possível afirmar, com segurança, a conformação entre nós dos níveis de segurança entre os valores de justiça, de liberdade, de segurança e de paz social. Sendo assim, a aposta clara em termos de revisão deveria apontar, por um lado, para o domínio próprio da prevenção criminal. É aí que importa reforçar meios; é aí que importa garantir uma maior rapidez na intervenção judicial, por um lado, e policial, por outro; é aí também que importa trazer, embora superficialmente, o diagnóstico que a situação nos impõe.
É hoje claro poder afirmar-se, também com rigor, que a justiça penal, em Portugal, conheceu nos últimos anos ganhos de causa significativos. É claramente mais rápida e essa rapidez em nenhuma circunstância tem contribuído para o menor rigor da sua administração - as estatísticas falam por si objectivamente e as razões são obviamente conhecidas; a reforma ainda relativamente recente do Código de Processo Penal; a melhoria progressiva da organização judiciária; a melhoria sensível na globalidade dos departamentos da Polícia Judiciária.
Todavia, subsiste uma questão importante que, pela sua natureza e radicação legislativa, não pode deixar de interessar a este Parlamento. Constitui hoje a razão mais significativa para algum atraso encontrado ainda na administração da justiça penal os sucessivos e frequentes adiamentos de audiência de julgamento - temos aí um obstáculo constitucional certamente a superar -, que permitam uma interpretação mais larga do princípio da mediação, por forma a que possamos todos, no esforço que espero colectivo e que interesse todos os operadores judiciários, superar a situação, que em alguns casos chega hoje a ser vergonhosa, de repetidos adiamentos de audiências de julgamento, conhecendo-se mesmo situações em que o julgamento, no mesmo processo, foi já adiado 14 vezes.
Trata-se de um ponto que deve interpelar-nos a todos para que as alterações legislativas, nomeadamente no plano constitucional, ocorram sem quebra óbvia dos direitos fundamentais dos cidadãos, mas para que não deixemos que esta questão seja neste momento um entrave, por um lado, a uma maior eficácia da prevenção criminal e, por outro, a uma maior dignificação pública da imagem da justiça penal em Portugal.
Por outro lado, ainda no plano da primeira conclusão, é hoje possível, com a mesma segurança, afirmar a distinção clara que a criminologia recente nos ensinou entre criminalidade de conflito e criminalidade de consenso, permitindo esta distinção essencial, que o Código de Processo Penal recebe já no seu seio, a adopção de soluções de política criminal diversificadas para aquela criminalidade de conflito, isto é, para aquela criminalidade mais grave, impondo-se aí claramente um aumento da função repressiva do Di-

Página 2737

30 DE JUNHO DE 1994 2737

reito Criminal e aquela outra, a criminalidade de consenso, a menos grave, para a qual urge, como por toda a parte vai acontecendo, a adopção de um conjunto de medidas alternativas para que o Direito Penal assuma, na globalidade da sua intervenção, o espaço próprio de humanismo que deve sempre presidir à sua própria legitimação política mas ao mesmo tempo de capacidade de actuação preventiva, por via de intervenção mais rigorosa nos domínios da criminalidade mais violenta.
Segunda conclusão essencial, a que nos permite privilegiar na revisão três pontos essenciais: o que se refere à área de todos os crimes contra as pessoas e que aqui têm de ser analisados justamente na perspectiva que o diagnóstico inicial nos propõe, de prevenir um aumento da criminalidade urbana violenta contra as pessoas; o que privilegia a área dos novos crimes resultantes da própria dinâmica social e da consolidação de outro tipo de comportamentos que negam outro tipo de valores, reconhecidos hoje como valores definitivamente aceites nas sociedades e nas democracias modernas; e o da afoitesa na adopção de medidas alternativas à pena de prisão, como forma de garantir a resposta preventiva à referida criminalidade de consenso.
Como pano de fundo da reforma, temos a tradição jurídico-penal portuguesa. Portugal foi o primeiro país europeu a abolir a pena de morte. Todos sabemos que, nesse momento, Victor Hugo escreveu às Cortes portuguesas dizendo que Portugal havia inscrito na sua História dois momentos imorredoiros: o das Descobertas e o da abolição da pena de morte.
Portugal veio a ser, depois, o primeiro país a abolir a prisão perpétua. Daqui recebemos todos, os que nos antecederam e, certamente, também os que se nos seguirão, uma herança de um património cultural e histórico que nos compromete com o presente e com o passado, em nome de um futuro cultural que soubemos construir como povo. E não vale a pena restringir apenas a questão à temática - felizmente, creio bem que ultrapassada entre nós - da pena de morte ou da prisão perpétua mas, sim, à questão daquilo que foi sempre, como aquisição cultural de um povo inteiro, a nossa capacidade de reprimir onde há que reprimir, fazendo-o embora com o espírito reabilitador e de tolerância que permitiu que Portugal fosse simultaneamente o país que, tendo menos medidas repressivas no combate à criminalidade, soube ser, como continua a saber ser, aquele com menor taxa de criminalidade na Europa.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Este património histórico-cultural é do País, é do povo, não é deste ou daquele partido, é um património de todos nós, que todos temos o dever de respeitar e que, por isso mesmo, com certeza reunirá, nesta proposta de revisão, de alteração, também um espaço alargado de consenso. Não temos, aqui, de aplaudir a proposta, mas de nos aplaudir enquanto povo, enquanto história e enquanto cultura.
Tivemos sempre, desde que os sistemas jurídico-penais são conhecidos, no âmbito de uma dogmática jurídico-penal moderna, penas de multa. Não as inventámos agora nem elas constituem inovação recente. A pena de multa, como medida criminal, tem consagração histórica que conhece mais de um século de existência e de credibilidade do mesmo modo que sempre foi possível, também, nesta perspectiva político-filosófico-cultural, garantir, como há pouco referi, a compatibilização permanente entre justiça, liberdade, segurança e paz social.
Tudo com importantes resultados: uma taxa de criminalidade inferior à taxa média de criminalidade europeia ou inferior à taxa de outros países europeus; diminuição na qualidade da criminalidade, isto é, diminuta criminalidade violenta; garantia, dentro dos limites normais de tolerância democrática, da segurança dos cidadãos e garantia também, e, porventura, sobretudo, do princípio da liberdade individual nas relações intersubjectivas dos cidadãos entre si, destes com a sociedade e de todos com o Estado.
Todavia, Sr. Presidente e Srs. Deputados, há que reconhecer que importa corrigir alguns exageros e que outras medidas urge adoptar. É essencial, no momento em que a interpelação nos vem de fora, quanto à capacidade de afirmar a qualidade da relação dos cidadãos entre si, que acabemos, de uma vez por todas, com esta relação binária entre o Estado e o delinquente e alarguemos, como o actual Código propõe já que se faça, esta relação para o triângulo Estado-delinquente-vítima.
É essencial, custe o que sabemos custar, que sejamos capazes de afirmar que a intervenção do jus puniendi, do direito punitivo do Estado, não é feita por delegação no Estado de um direito de vingança do cidadão ofendido mas por referência a um direito mais global de intervenção na regulação social e não em nome de um qualquer direito de vingança individual.
Por isso, é essencial redignificar o estatuto da vítima. Portugal fê-lo, tradicionalmente, uma vez mais, numa posição de vanguarda, ao criar a figura do assistente em processo penal, que, como sabem, é desconhecida na restante Europa. Mas Portugal fê-lo mais recentemente, connosco, há pouco tempo ainda, relativamente ao desenvolvimento que o próprio Código Penal de 1982 já propunha: a constatação de um direito próprio de indemnização da vítima, a criação da respectiva legislação e a entrada em funcionamento da Comissão de Protecção à Vítima de Crimes Violentos, sendo possível afirmar hoje que, neste momento, foi já atribuído pelo Ministro da Justiça, sob proposta da Comissão, um conjunto de indemnizações que rondam, nesta altura, os 60 000 contos.
É justamente assim, garantindo à vítima de crimes uma protecção especial pelo facto de ser vítima e não a deixando abandonada apenas ao exercício de um ilegítimo direito de vingança, que dignificamos a relação entre os homens, o Direito Penal e, sobretudo, o direito de punir do Estado.
Como pano de fundo da reforma, temos o Código Penal actualmente em vigor.
Como linhas de força, a traço grosso, como convém a esta apresentação, direi que, no plano dos fins das penas, que tanta discussão dogmática levantou, julgo mesmo que no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, não há aqui uma opção por esta ou por aquela consideração doutrinária. É possível, através da interpretação alargada, nomeadamente, do artigo 40.º do projecto, fazer incidir sobre ele, numa perspectiva definidora, hoje, em termos modernos, dos fins das penas, várias das doutrinas que a essa matéria se candidatam.

Aí está afirmada de forma clara a moderna concepção de prevenção geral positiva, a ideia de que, violada uma norma do Direito Criminal, é essencial que a sua reposição imediata responda como forma óbvia de prevenção. É a garantia da validade da norma, através da sua aplicação e da punição de quem a viola, aquela que hoje, modernamente, mais se assume como verdadeiro caminho para uma prevenção eficaz.

Vozes do PSD: - Muito bem!

Página 2738

2738 I SÉRIE-NÚMERO 85

O Orador: - Mas ali está afirmada também a tese, recolhida do Código anterior, e já, no fundo, recolhida na interpretação jurisprudencial que lhe antecedia, do princípio fundamental da reinserção social ou da ressocialização do delinquente. E é fundamental que, uma vez mais, aqui, não deixemos que o mito ou a má informação torpedeiem o espírito e permitam concluir ser indiferentes as opções que o legislador adopta.
A reinserção social não existe historicamente, nem hoje, em nome de uma laxista tolerância com o delinquente, A reinserção social radica das teses da defesa social, resulta de afirmações de princípios e de valores de segurança e é nessa perspectiva que ela encontra a síntese, tão perfeita quanto desejável, entre a garantia da defesa social pela via da segurança - por sua vez, garantia da plena reposição de crimes - e a possibilidade de recondução do delinquente, nos limites da sua liberdade, a um quadro de valores que lhe permita viver de acordo com as normas estabelecidas em regime democrático.

Aplausos do PSD.

Mais do que isso, a afirmação inequívoca da punição nos limites da culpa remete, simultaneamente, para uma ideia de limite na aplicação do jus puniendi do Estado, de limite ético que não pode, pela sua própria natureza, ultrapassar-se, mas deixa simultaneamente a porta aberta para que, ainda aqui, algum sentido ético ou retributivo da pena possa ser reconduzido à interpretação do próprio Código e, assim, no que se refere à prevenção geral e à prevenção especial.
É nesta perspectiva que, hoje, no fim do século, numa sociedade moderna que pretende desafiar o futuro, não apenas exercendo legitimamente a violência mas, sobretudo, convidando à legitimidade da participação democrática com o risco mínimo que a própria liberdade comporta, se legitima eticamente uma qualquer revisão penal.
Mas com que meios? - perguntarão os Srs. Deputados.

O Sr. José Magalhães (PS): - Boa pergunta!

O Orador: - Perguntarão como já perguntaram, como vão perguntar hoje e como continuarão a perguntar nos tempos próximos.
E evidente que, para um ideal exigente, os meios são sempre relativamente escassos. Também é evidente que não deve ser a escassez dos meios que nos inibe de prosseguir um ideal exigente. Desistir de um ideal por escassez de meios é não reconhecer a sua importância e não ter legitimidade para falar publicamente em ideal.
Portugal acreditou sempre, com a escassez de meios que são atávicos ao povo português, que era possível defender bandeiras de vanguarda onde elas surgiam, como dignificação de si próprias. Uma vez mais assim acontece, é bem natural que, se queremos seriamente analisar a situação actual, possamos concluir todos que a reforma agora proposta arranca com uma imensidade de meios, melhor do que arrancou há 10 anos a revisão então de raiz do Código Penal. E isso é importante para nos dar a noção relativa da dinâmica e para compreendermos que, tendo um ideal que ilumine as revisões legislativas, temos a exigência política, que a oposição séria nos não deixa abrandar jamais, de ir prosseguindo na melhoria desses meios.
Sabemos todos das dificuldades que temos, por exemplo, no sistema prisional português, mas também sabemos, quando queremos, com seriedade, reconhecer o esforço importante que se tem feito nesse domínio, se quisermos, como queremos, colocar ao lado do muito que importa fazer aquele outro muito que vai sendo feito, que encontramos aí uma dinâmica de progresso, de melhoria e de avanço nas condições de humanização e de capacidade de resposta às exigências de reinserção que, há bem pouco tempo, causavam bastante maior preocupação do que causam hoje, sem que, todavia, ela não deixe de existir.
Uma vez mais, reitero o convite do Ministro da Justiça aos Srs. Parlamentares para que visitem as cadeias portuguesas, aquelas que ainda hoje constituem aquilo que é o bom exemplo do que não queremos que sejam as nossas prisões mas também aquelas outras, felizmente várias, que constituem também o exemplo óptimo daquilo que queremos que seja a globalidade do sistema prisional português.
Precisamos, também, de melhorar a resposta no domínio da reinserção social. Mas os Srs. Deputados sabem bem o esforço que foi necessário fazer para poder afirmar hoje que o Instituto de Reinserção Social está instalado em todos os 53 círculos judiciais do País. Significou isso um esforço enorme de investimento em recursos humanos e é agora possível como, aliás, vai sendo reconhecido por vários dos magistrados judiciais e do Ministério Público que directamente trabalham com os técnicos do Instituto, uma relação interdisciplinar e um trabalho bastante mais profundo na formação da qualidade das decisões e no acompanhamento da sua decisão. É esse o caminho que importa continuar a prosseguir.

Aplausos do PSD.

Também aí não estamos satisfeitos com a globalidade dos resultados, não estamos hoje como não estávamos ontem e não estaremos amanhã.
Porém, analisada a dinâmica introduzida e verificados os resultados pelo valor relativo dessa dinâmica, temos boas razões para conformarmos a nossa acção à política traçada e aos calendários previamente definidos, do mesmo modo que, na sequência da aprovação que esperamos deste diploma, desejamos que a revisão - finalmente - da execução das penas venha introduzir outros dados importantes na globalidade do sistema jurídico-penal português.
E sabem os Srs. Deputados com quem tive o gosto de trocar impressões na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que o facto de termos ponderado mais a decisão do conteúdo da mudança do que correr atrás de uma aparente capacidade de sucesso numa apresentação mais rápida permite-nos hoje assimilar definitivamente, como dado adquirido, a possibilidade de vir fazer intervir no Tribunal de Execução das Penas agentes da comunidade, construindo aí um verdadeiro tribunal de júri e tornando, por isso, cada vez mais consequente a afirmação que desde o princípio temos feito de que a justiça tem como essência o cidadão e de que a participação do cidadão, enquanto tal, na própria administração da justiça é um dado essencial para a afirmação de uma democracia participativa e de uma co-responsabilidade do cidadão na administração do Estado.
Quanto ao projecto concreto, Sr. Presidente e Srs. Deputados, apresenta-nos uma pena de prisão que vai do limite mínimo de um mês ao limite máximo de 25 anos. Aqui, uma vez mais, seguimos a tradição portuguesa: 28 anos o limite máximo no século passado, 20 anos em 1982 e 25 anos agora.
Também aqui oscilámos entre um número restrito que nos permite continuar a afirmar termos estabilizado, o qual está já interiorizado como dado cultural, e estes limites relativos em torno de um número fixo. Por isso, tive ocasião

Página 2739

30 DE JUNHO DE 1994 2739

de afirmar, e reafirmo com profunda convicção, que um limite de prisão superior a este ultrapassa os limites éticos do direito de punir.
Por outro lado, mantemos a prisão por dias livres e o regime de semi-detenção e introduzimos na pena de multa, não a novidade da multa, como é óbvio, mas a novidade da multa alternativa. Apraz-me registar - julgo que com a felicidade do consenso - que se ultrapassou nesta questão uma posição gratuita e demagógica que pretendeu dizer que, através do recurso à alternativa de multa, o Governo queria resolver a questão da sobrelotação das prisões. Trata-se de uma afirmação que, a meu ver, ultrapassa - e não me cabe definir os limites de intervenção política - também a conformação moral do debate político.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - É evidente que um qualquer governo que assumisse, discreta ou indiscretamente, uma solução pela via do direito penal substantivo deste tipo para resolver um problema de administração, como seja o da sobrelotação das prisões, nesse momento, tinha perdido a legitimidade ética para continuar a governar os portugueses.
Não é possível aceitar que se impute tal ao Governo, porque é um processo de intenção que, para além da crítica política legítima, comporta injúria no modo como são administrados os negócios e os interesses do Estado, muito particularmente quando essa administração se prende directamente com comportamentos de cidadãos.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Muito bem!

O Orador: - É evidente que o que está nesta alternativa é exactamente a assunção da distinção apontada há pouco entre criminalidade de consenso e criminalidade de conflito. Por esta via, em nenhuma circunstância - e é bom que, de uma vez por todas, se clarifique este ponto- o tribunal fica inibido de aplicar pena de prisão. Todo o crime pode ser punido com pena de prisão, mas pode ser punido, em alternativa, com pena de multa. E cabe ao tribunal, em cada momento, tendo em conta o conjunto das determinantes que a lei lhe confere, decidir se, para os fins das penas em concreto e para a relação entre aquele valor negado e aquele comportamento que, desconforme à lei, o negou, a pena adequada é a de prisão ou a de multa.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Por esta via, se recebe no interior deste Código Penal a possibilidade de afirmar que este é um Código com gente dentro, que não parte de uma concepção tecnocrática nem de exigências conjunturais de segurança, mas radica das exigências estruturais de segurança que existem sempre e assume-se claramente como um código à medida cultural do povo que vai servir e dos valores essenciais que nos determinam enquanto representantes, divergentes em opinião, da globalidade desse povo.

Aplausos do PSD.

Srs. Deputados, os fundamentos são claros e inquestionáveis.
Uma esmagadora maioria de reclusos é constituída, hoje, por uma camada jovem. Por isso, a questão que temos de pôr a nós próprios é justamente a de saber se não é essencial caminhar, como vos disse há pouco, no sentido de uma prevenção reforçada e, por outro lado, na possibilidade do encontro de alternativas que, junto do jovem que porventura, pela primeira vez, infringiu a lei penal, se possa dizer que a punição é mais por aquilo que ele fez e menos por aquilo que ele é; com um código penal que aponte para a reabilitação da pessoa e para a condenação do acto e não por um código penal que, para tranquilizar consciências, porventura, mortas, acaba por encontrar nessa camada jovem o bode expiatório, tantas vezes para as suas próprias frustações pessoais.
Não podemos permitir, sabendo, como sabemos, que são crimes de pequena gravidade e cometidos essencialmente por jovens, que o recurso se faça sistematicamente à pena de prisão. Não dêmos aos nossos jovens, quando as dificuldades da vida lhes batem à porta, a ideia de que a única coisa que podem fazer bem é serem criminosos.
Nesse sentido, impõe-se-nos um comportamento também ético que se reflicta claramente na política criminal concreta que trazemos ao Parlamento.

Aplausos do PSD.

Mas mais do que isso, estamos hoje diante de reformas eficazes alternativas de combate à criminalidade e a pena de multa criminal tem hoje, através do tempo e do direito comparado, essa capacidade de resposta. Aplicamo-la aos casos de menor gravidade, praticamente nunca nos crimes contra as pessoas. E quando comparamos o que se passa, hoje, noutros países que nos são próximos, rapidamente vemos como nos assiste razão.
A Alemanha aplica 92 % de penas de multa nas suas condenações criminais; a Holanda 90 %; a Áustria 91 %; a Espanha projecta uma revisão do código penal em que impõe, de forma quase imperativa, a substituição da multa sempre que a pena de prisão seja igual ou inferior a dois anos e, em Portugal, a pena de multa é aplicada em 60 a 70 % dos casos. Aí está, como, no fundo, se pretendeu fazer daquilo que era a continuidade de uma tradição cultural e de uma opção de política criminal concreta essencial, uma revolução perversa para resolver problemas de natureza meramente administrativa.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Mas é importante reter-se a noção de que esta é uma multa criminal e não puramente administrativa. É, portanto, uma multa que pune, que dói. Justamente por isso, ela deixa de ter como limite máximo os 10 000$ para passar a 100 000$, aumentando também, na duração em dias, a multa de 300 para 600 dias.
É exactamente por isso que os modelos de pagamento de multa não perdem nunca a raiz e a justificação da natureza penal da sanção. Daí que ela possa ser paga a pronto e, em situações de dificuldade de pagamento por essa forma, em prestações ou, ainda, no caso de dificuldade do pagamento em prestações, ser substituída por trabalho a favor da comunidade. Só em último caso, para não perder nunca a natureza criminal e punitiva da multa, ela poderá ser convertida em prisão.
Por outro lado, Srs. Deputados, existe uma melhoria de outro tipo de penas ou de sanções alternativas: a suspensão da pena de prisão com deveres; a suspensão com regime de provas; o trabalho a favor da comunidade, agora, com requisitos que vão tornar menos exigente a sua aplicação e, portanto, abrir mais a possibilidade desta medida alternativa à pena de prisão; a admoestação; a liberdade condicional.

Página 2740

2740 I SÉRIE-NÚMERO 85

Aqui está como a solução, no plano da liberdade condicional, é exactamente a resposta provada, por documento legislativo, de que o Governo não pretende esvaziar, irresponsavelmente, as prisões. Daí que o grau de exigência normal para a liberdade condicional suba para os 2/3 do cumprimento da pena e não para metade, que, embora continuando a ser possível, passa a sê-lo em termos bastante mais exigentes, e que, em determinado tipo de crimes punidos com pena superior a cinco anos contra as pessoas ou de perigo comum, ela aconteça sempre, pelo menos, aos 2/3 da pena.
É este tipo de opções que nos leva a poder afirmar claramente a assunção da resposta no domínio da criminalidade do consenso. Mas a criminalidade de conflito também está aí. Por isso também é importante intervir nesse domínio e, na parte especial, aquilo que de mais relevante podemos - repito a traços grossos - trazer aqui é a análise de uma nova sistemática, de novos crimes e de novas molduras penais.
Dos crimes contra as pessoas, a pena de homicídio sobe progressivamente até ao limite máximo de 25 anos, continuando a conhecer três escalões: o homicídio privilegiado; o homicídio simples e o homicídio qualificado.
Nos crimes contra a integridade física, o agravamento da pena máxima passa de cinco para 10 anos, mantendo-se ainda o crime qualificado, que não existia no Código actual.
Do mesmo modo, no domínio dos maus tratos, além de se equiparar a pessoa que vive em condições semelhantes à do cônjuge, permite-se também uma agravação para cinco anos de prisão, sendo certo que em todos estes casos não existe alternativa de multa. Isto é, o que fica como residual para a hipótese de uma pena de multa é a aplicação de uma pena tão baixa que, sendo baixa, vigora o princípio da substituição da prisão por multa, mas não há aqui uma alternativa inicial de prisão e de multa, dada a gravidade destes crimes.
Por outro lado, reforma importante ocorre no domínio dos crimes sexuais, desde logo, tornando como crime-matriz neste sector o crime de coacção sexual e, ao mesmo tempo, incorporando-os, como sempre devia ter sido, nos crimes contra as pessoas.
Ao estabelecer-se o crime de coacção sexual como crime principal resolve-se a velha e pitoresca questão da bis-sexualidade ou da unissexualidade dos crimes sexuais, mas não deixa, apesar disso, de se manter o crime de violação.
No crime de coacção sexual a pena sobe, de forma particularmente sensível, de um máximo de três para oito anos. No crime de violação, permitindo-se que seja vítima de crime de violação quer a mulher quer o homem - e, agora, de forma inequívoca e clara -, a pena sobe de oito para 10 anos, podendo chegar aos 15 anos.
Do mesmo modo que se equiparam os crimes relativos ao abuso sexual de crianças, mantém-se embora, em termos residuais, num caso ou noutro, excepcionalmente, por obediência a alguma antropologia, em algumas zonas, o crime de estupro com uma agravação global destes crimes e permite-se, diferentemente do que acontece agora, a intervenção oficiosa do Ministério Público, sempre que a vítima seja menor e, eventualmente, aquele a quem pertencia o direito de queixa possa, de alguma forma, estar implicado ou interessado na não descoberta do crime. Nessa altura, o Ministério Público, em nome do interesse público, poderá oficiosamente abrir o respectivo processo.
Outras áreas importantes seriam, com certeza, trazidas à colação, no domínio dos crimes contra a honra, no domínio dos crimes contra a propriedade e no domínio de outros novos crimes. Salientaria aqui apenas dois, um deles, por razões óbvias, de actualidade, o crime de corrupção.
Como é sabido, a proposta apresenta dois tipos de crime de corrupção. Atenuando a pena relativamente ao corruptor e agravando-a claramente quanto ao corrupto. Trata-se de uma forma de tornar razoavelmente disfuncional a diferença dos juízos de censura que preside a cada um dos comportamentos, havendo uma elevação clara em ambos os casos: oito anos para o corrupto, cinco anos para o corruptor.
Todavia, é essencial que, no combate à corrupção, não nos fiquemos apenas pela previsão trazida nesta proposta de revisão.
Daí que continuemos a aguardar - agora com a expectativa de sucesso mais próximo - a publicação da lei de combate à corrupção, para podermos ter ganhos de causa significativos no domínio da prevenção, do sigilo bancário, da figura do agente infiltrado, da suspensão provisória do processo relativamente ao corruptor e na área específica da reorganização da Polícia Judiciária.
Gostaria aqui, em sede própria, de afirmar, perante notícias conhecidas vindas a público ultimamente, que é verdade haver ainda disfunção na qualidade de resposta da Polícia Judiciária neste sector. Há ainda escassez de meios, que têm vindo a repercutir-se negativamente na eficácia de resposta da Polícia Judiciária neste domínio.
Como é sabido, das 32 páginas - e julgo não errar - do relatório do Ministério Público sobre a Polícia Judiciária, mais de 25 dizem respeito a referências à grande recuperação que esta conheceu nos últimos três anos.

O Sr. José Magalhães (PS): - Isso é dislexia!

O Orador: - É evidente que essa recuperação é um dado de um relatório objectivado que pode ser conhecido publicamente.
Não tenho qualquer dificuldade, porque a dislexia, a que o Sr. Deputado José Magalhães se referiu, resulta menos da afirmação que acabei de fazer, porque é comprovável objectivamente, e mais da posição disfuncional em que V. Ex.ª se coloca perante a afirmação do Ministro. Isto é, o Sr. Deputado antecipou o que julgava que eu ia dizer e «dislexou » no argumento.

Aplausos do PSD.

Risos.

O que ia dizer é que há uma recuperação notável que resulta, objectivamente, do relatório da inspecção do Ministério Público. Essa recuperação não deve esconder, para quem, com seriedade, assume politicamente responsabilidades, aquilo que é preocupante ainda no funcionamento da Polícia Judiciária: sectores importantes da Directoria de Lisboa, da Directoria do Porto e do departamento de combate à corrupção.
Está já concluído o regulamento, que será publicado logo após a publicação da lei de combate à corrupção, e estão também a concluir-se, como se sabe, os primeiros cursos de formação especializada para pessoal de investigação criminal no domínio do combate à corrupção e da criminalidade anti-económica.
Neste momento, estão em curso um conjunto de acções interdisciplinares que façam intervir, no domínio do combate à corrupção, vários agentes com formação especializada neste sector e, no âmbito do Conselho da Europa, está

Página 2741

30 DE JUNHO DE 1994 2741

em curso a criação de um grupo interdisciplinar para acompanhar este tipo de medidas. Aliás, é interessante sublinhar que, a despeito de alguma dificuldade de reconhecimento de mérito em Portugal, o próprio Conselho da Europa reconheceu como bem meritório aquilo que é a opção legislativa portuguesa no domínio do combate à corrupção, tendo aceite, por proposta portuguesa, que cada um dos Estados membros, logo que o grupo do Conselho da Europa esteja constituído, instituam no seu interior um grupo semelhante para ser com ele interlocutor e, ao mesmo tempo, com as autoridades nacionais, permitindo assim a continuação de um combate eficaz à corrupção.
Repito, para que não fiquem dúvidas, que é evidente que há ainda prejuízo de causa no combate a este tipo de criminalidade em Portugal. Repito, para que não fiquem dúvidas, que esse menor ganho de causa se deve ainda a uma menor capacidade de meios de intervenção da Polícia Judiciária e invoco a favor da acção política do Governo aquilo que foi uma estratégia de intervenção que permitiu a globalidade da recuperação e que nos dá, obviamente, se quisermos ser sérios, a garantia de que a breve trecho também este sector se encontra totalmente recuperado, até porque, sem negar a importância fundamental dos processos em curso, todos sabem que eles são ainda de quantidade relativamente diminuta.
Finalmente, quanto aos novos crimes - propaganda ao suicídio, coacção sexual, já referida, burla informática, abuso do cartão de garantia de crédito, tortura e outros tratamentos cruéis degradantes ou desumanos graves, omissão de denúncia, danos contra a natureza, poluição e condução perigosa de veículo rodoviário -, em todos eles se vê que há uma intervenção horizontal no sentido de receber no interior do Código aquilo que é a informação da evolução social e do próprio fenómeno da criminalidade, o que permite dizer que, também neste ponto, o diploma que propomos à vossa consideração se apresenta como moderno, actualizado e inovador.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Este é um projecto de Código que recusa uma perspectiva de violência no combate à criminalidade. É determinado nesse combate e garante a necessária segurança mas recusa, como forma de combater a criminalidade, soluções de violência, tributárias de outros Estados onde tantas vezes a necessária afirmação da filosofia do law and order resulta menos de uma opção política de intervenção e mais de um constrangimento social que não dá margem para ser diferente.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Este é um Código que, referido a valores, não nega os comportamentos e, por isso, assumindo claramente um conjunto vasto de valores essenciais, que uma vez negados têm de ser restabelecidos pela via da intervenção do sistema penal, estabelece uma simbiose de relação entre os valores abstractos que a filosofia nos propõe e os comportamentos concretos que a sociologia nos impõe que saibamos compreender. É, assim, um Código ético para as pessoas e das pessoas e não um Código ético do Estado contra as pessoas ou excessivamente constrangente no domínio daquilo que é o exercício da liberdade individual.

O Sr. Miguel Macedo (PSD): - Muito bem!

O Orador: - É um Código tributário de uma visão humanista, moderna, ela própria tributária de uma cultura e de um ideal. É um Código que garante a síntese entre segurança e liberdade, sabendo que, hoje, a segurança é um valor irrecusável de qualquer sociedade, do mesmo modo que a liberdade é um valor irrecusável por qualquer indivíduo.
Digamos que a relação a estabelecer entre segurança e liberdade é uma síntese perfeita que tem no cidadão, no indivíduo concreto, o seu verdadeiro protagonista. A segurança é imposta por razões morais e a liberdade é defendida por razões éticas e enquanto soubermos estabelecer a síntese perfeita entre a exigência moral de uma sociedade, que tem o direito claro à segurança, e a exigência ética de um indivíduo, que em circunstância alguma recusa o seu direito à liberdade, teremos conseguido, com certeza, o código perfeito.
Este não é o Código perfeito, mas é um código que, para não ser demasiado imperfeito, não recusou nenhum compromisso com os valores essenciais para o caminho da perfeição. É importante que, sendo imperfeito, possa ser aperfeiçoado e é importante por isso que, na laboração que se vai seguir no grupo de trabalho junto da Comissão, algumas das vossas propostas possam ser eventualmente acolhidas e debatidas.
Na verdade, o importante, Srs. Deputados, é que um dia mais tarde, nesta Casa, alguém que venha a introduzir correcções a este diploma se não lembre de nós mas se lembre do Prof. Eduardo Correia, do Prof. Figueiredo Dias e, sobretudo, da tradição e da cultura jurídico-penal de um povo que é o nosso.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Inscreveram-se, para pedir esclarecimentos, os Srs. Deputados Narana Coissoró, Alberto Costa, Odete Santos, José Magalhães, Raúl Castro, Mário Tomé e André Martins.
Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Justiça: Dentro do pouco tempo de que o meu partido dispõe vou fazer duas ou três considerações e algumas perguntas.
Em primeiro lugar, tenho perfeita consciência de que é mais fácil ir com a corrente do que remar contra a maré. A posição que vamos tomar, de não estar de acordo com o programa político-criminal que vem sendo desenvolvido nesta proposta de revisão, não se deve propriamente aos aperfeiçoamentos técnicos nem por esta proposta de revisão vir doutrinariamente contribuir para um aperfeiçoamento científico do Código. O que, efectivamente, nos leva a afastarmo-nos destas opções é o facto de a própria magistratura judicial encarregue de aplicar o Código de 1982, que está na base e enforma substancialmente a actual revisão, ter recusado aplicar a alternativa da multa às penas de prisão.
V. Ex.ª sabe que esta é uma das críticas que se faz à magistratura judicial, dizendo que ela é conservadora em relação ao escopo do legislador de 1982 e que exactamente para obrigar a magistratura judicial a não ser conservadora é que esta revisão é feita deste modo. Isto é, pretende-se retirar ao magistrado, sempre que a sua inclinação seja para aplicar a pena privativa da liberdade, essa possibilidade, levando-o a aplicar a pena de multa.
Ora bem, temos para nós como certo que a pena de multa, de acordo com a consciência colectiva portuguesa, ao contrário do que V. Ex.ª diz, se apresenta como uma pena frágil, uma pena suave. É corrente ouvir-se em todo o lado: «não te preocupes, pagas meia dúzia de contos e estás na rua! » Ora, se se disser ao infractor que vai para

Página 2742

2742 I SÉRIE-NÚMERO 85

a prisão 10 dias, sob o ponto de vista da dissuasão, da intimidação e de impedir a prática de novos crimes pelo mesmo indivíduo, tal aviso tem muito mais peso na consciência do próprio delinquente, ou possível delinquente, do que lhe dizer «pagas 30 ou 50 contos », tendo ainda em conta o modo como o Código admite esse pagamento, ou seja, com o pagamento de multas em prestações. Isto é como quem diz: «rouba agora, paga depois, e em prestações, suavemente; se não puderes pagar, não pagas ». É a conhecida técnica da venda de electrodomésticos aplicada ao Código Penal!...

O Sr. Presidente: - Peco-lhe para concluir, Sr. Deputado, para não pervertermos o esquema geral do debate.

O Orador: - Para terminar, pergunto se, efectivamente, esta panóplia de multas, esta conversão da prisão em multa, com o mínimo geral de prisão a influir nas principais penas de média gravidade, em que a pena mínima é de um mês de prisão substituível sempre por multa, com as multas pagas em prestações e, quando esta não puder ser paga deste modo, substituível por outras modalidades, como, por exemplo, o trabalho a favor da comunidade, a prisão por dias livres, a obrigação de permanência no domicílio, etc., satisfazem realmente, na cultura popular de hoje, em Portugal, os fins de prevenção geral? Entendemos que não, que realmente o Código está dissociado da consciência colectiva quanto à prevenção social, crítica que ilustrarei mais detalhadamente na minha intervenção.

O Sr. Presidente: - O Sr. Ministro informa-me que responderá no fim dos pedidos de esclarecimento formulados por cada dois Srs. Deputados, pelo que tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Justiça, o meu partido irá expor em intervenção posterior a sua posição em relação a esta iniciativa. Assim, neste momento gostaria de colocar apenas duas questões a V. Ex.ª.
No início da sua intervenção, V. Ex.ª fez um balanço da situação da criminalidade em Portugal, estabelecendo uma comparação favorável ao nosso país em relação a outros países, mas creio que omitiu um aspecto de grande importância para a compreensão da posição portuguesa nessa matéria. Esse aspecto tem a ver com o facto de seguramente 3/4 dos crimes cometidos em Portugal não serem participados às autoridades.
Os resultados dos últimos inquéritos, conhecidos e publicamente apreciados pela comunidade científica - V. Ex.ª prometeu remeter outros, mas até agora não teve, certamente, oportunidade de o fazer -, dizem que, em Portugal, apenas 22 % dos crimes são, pelas respectivas vítimas, participados às autoridades, quando a média em 14 países ao tempo estudados, a maioria dos quais europeus, aponta para um valor na ordem dos 49,6 %. Isto é, temos aqui uma enorme divergência, para utilizar uma expressão que tem grande aplicação nestas comparações entre o Estado português e outros Estados, divergência que é também significativa em relação a Espanha, onde a taxa de participação é superior a 30 %, e à França, onde é superior a 60 %.
Ainda segundo os mesmos dados, as vítimas não se queixam, entre outras razões, porque não confiam no interesse ou na vontade das autoridades para investigar e perseguir os crimes, o que significa, Sr. Ministro, que para a maior parte dos crimes praticados na sociedade portuguesa nunca chega a hora do Código Penal.
Comparando os nossos números com os dos outros países, há um relevante problema de divergência e acredito que V. Ex.ª tenha, nesta matéria, à semelhança de colegas seus noutras áreas, um programa de convergência. Pergunto a V. Ex.ª quais são as metas e os instrumentos que pretende prosseguir para pôr termo a esta, repito, espantosa divergência, que faz com que alguns digam - e bem - que esta interpelação das vítimas, este silêncio das vítimas, esta abstenção de participar que atinge percentagens superiores à taxa de abstenção nas últimas eleições europeia...

O Sr. Presidente: - Atenção ao tempo, Sr. Deputado.

O Orador: - ... é, certamente, um dos grandes escândalos do sistema da resposta penal em Portugal.
A segunda questão ,(e agradeço a sua benevolência. Sr. Presidente, mas pretendia apenas que a questão ficasse colocada), refere-se ao problema da punição da corrupção e de outros crimes conexos e, nomeadamente, à situação na Polícia Judiciária.
É sabido que V. Ex.ª, no seu discurso, atribui relevo ao combate a estas áreas, mas o País fica perplexo quando sabe, por exemplo, que apenas um agente se encontra disponibilizado para participar na investigação dos crimes relacionados com as facturas falsas e quando, como se lê no relatório que V. Ex.ª mencionou, nos processos relativos às fraudes na obtenção de subsídios se verifica, nos processos sem investigação, que cinco têm mais de 6 anos, 40 mais de 5 anos e 48 mais de 4 anos. Esta é uma situação que deixa os cidadãos perplexos pela incoerência entre as prioridades constantes do discurso e as que resultam da efectiva afectação da lei.

O Sr. Presidente: - Tem de concluir. Sr. Deputado.

O Orador: - Vou directamente ao fim, Sr. Presidente.

Como o Sr. Ministro sabe, noutros países e em códigos mais recentes, o conjunto de práticas altamente danosas ligadas a estes fenómenos levou à inclusão do crime de tráfico de influências.
V. Ex.ª está disponível para acolher e apoiar a proposta do PS de inclusão do crime de tráfico de influências no Código Penal português?
Pergunto ainda se V. Ex.ª está disposto a responsabilizar-se pela oposição a esta proposta do Partido Socialista.

O Sr. Presidente: - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Narana Coissoró: Sinto-me feliz por reatarmos os nossos debates parlamentares, o que há algum tempo não vinha sucedendo, e por o fazermos no tom, sempre interessante, que normalmente V. Ex.ª imprime às suas intervenções.
V. Ex.ª começou por dizer que há os que vão com a corrente, o que é mais fácil, e os que remam contra a maré, o que é mais difícil, e eu não sabia a quem V. Ex.ª se referia...

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Referia-me a mim.

O Orador: - Verifiquei depois que se referia a si próprio, dizendo que vai com a corrente, justamente quando referiu que «rouba agora e paga depois ».
Sr. Deputado, é esta corrente da demagogia que nós queríamos que não acontecesse e, portanto, nós não vamos com ela. Sei que. é fácil dizer «rouba agora e paga

Página 2743

30 DE JUNHO DE 1994 2743

depois », mas a frase, que tem um impacto social imediato, vai estimular reacções primárias imediatas e isso é perigoso, Sr. Deputado.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - É verdade!

O Orador: - E é perigoso, sobretudo numa pessoa como V. Ex.ª, que não costuma utilizar este tipo de argumentos! E digo-o, com a estima, a consideração e o respeito que, como sabe, tenho por si.
Aliás, Sr. Deputado, quando utilizamos este tipo de argumentação num debate do Código Penal e quando somos pessoas com a formação de V. Ex.ª, é porque, realmente, no plano profundo da razão argumentativa, alguma coisa falhou.
Sr. Deputado, hoje já temos o pagamento da multa a prestações e, nesse aspecto, não estamos a introduzir nada de novo nesta revisão. V. Ex.ª falou dos Srs. Magistrados e com certeza que eles têm todo o direito de não aplicarem a pena de multa sempre que entenderem que ela não é adequada às situações concretas que estão a julgar; mas os Srs. Magistrados não têm o direito de não aplicar a pena de multa por não concordarem com o Código e só podem não a aplicar se, em cada circunstância, entenderem que ela não é adequada ao caso que estão a julgar, sob pena, então, de termos de saber o que é que estamos a discutir em termos globais de justiça penal.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Há casos em que não existe pena de prisão!

O Orador: - Não acredito que o Partido Socialista conteste o que acabei de afirmar.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - É um Código de esquerda!... Pode dizer que isto é outra demagogia mas é a verdade!

O Orador: - Já agora repetirei, se me permitem, o que tinha acabado de afirmar, para saber do que é que estamos a falar.
Srs. Deputados, acabei de afirmar que o juiz não pode deixar de aplicar uma pena apenas por não concordar com ela; o juiz só pode deixar de a aplicar se ela não for adequada, naquelas circunstâncias, ao crime que foi cometido.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - De acordo!

O Sr. José Magalhães (PS): - Até o CDS está de acordo.

O Orador: - Como vê, Sr. Deputado José Magalhães, isto é sempre assim. Quando chegamos ao fim de cada sessão legislativa, o Sr. Deputado José Magalhães aproxima-se mais das posições do Ministro da Justiça. Algum cansaço, porventura, como é evidente...

O Sr. José Magalhães (PS): - Depois, o Sr. Ministro da Justiça foge outra vez.

O Orador: - Claro, para tomar fôlego, a fim de poder voltar outra vez a rebater as posições de V. Ex.ª.
Mas isto foi apenas um ligeiro desvio não punido na lei penal. Espero que V. Ex.ª não entenda que eu devesse ir 10 anos ou 10 dias para a prisão, por ter feito este pequeno transcurso...

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Era bom que se pudesse prender pessoas por 10 dias, para não fazerem as asneiras que vimos na televisão.

O Orador: - Não tenho dúvidas que isso apetecia a V. Ex.ª, mas é exactamente por causa desses apetites que a lei não deve prever a possibilidade de tal acontecer.
Sr. Deputado, temos este tipo de previsão, mas o juiz tem sempre, na alternativa que damos aqui, a possibilidade de aplicar a pena de prisão.
Se quiséssemos, por absurdo - e por absurdo lógico apenas e não por impedimento legislativo -, toda as pessoas que cometessem um qualquer dos crimes previstos no Código seriam punido com pena de prisão. Toda a gente! Isto é, o juiz passa a ter muito mais possibilidade de aplicar a pena que entende, nomeadamente a de prisão, do que concretamente com o constrangimento que tem hoje, que lhe impõe substituições em situações que, agora, não resultam como impostas na lei.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - E a prisão nos casos de crimes patrimoniais de pequeno valor?

O Orador: - Sr. Deputado, o juiz pode aplicar essa pena se o entender. Isto é, se V. Ex.ª fosse juiz e tivesse o critério que tem, aplicava os 10 dias de prisão, pois a lei permite-o perfeitamente. Não há nenhum caso que preveja apenas pena de multa.
E o que é preocupante nisto, Sr. Deputado - e digo-o com toda a franqueza -, não é a posição de V. Ex.ª, porque quando há pouco fiz referências positivas ao seu carácter, fi-lo com a honestidade e a sinceridade em que temos de nos posicionarmos quando falamos de pessoas e dos seus sentimentos. A minha preocupação é esta: criou-se um tal caldo de cultura incorrecto à volta da solução da alternativa de multa que, hoje, até pessoas de excelente boa-fé, de excelente espírito e de excelente formação julgam ler o que não está lá escrito. Não há nenhuma situação em que a pena de prisão não seja possível.
Portanto, nestas circunstâncias, o argumento de V. Ex.ª terá mais acolhimento no Código alterado do que tem no actual.
Evidentemente, se me perguntar qual é a minha perspectiva político-criminal, dir-lhe-ei que, pessoalmente, preferiria que um jovem não fosse condenado a 10 dias de prisão. Mas é esse, justamente, o domínio da nossa diferença, o qual está, muito seriamente, previsto neste Código, na medida em que, independentemente da vontade do Ministro da Justiça, o juiz tem a possibilidade legal de fazer coisa diferente daquela que o Ministro entende que deve ser feita. E é assim que deve ser um Código Penal, pois os códigos penais não podem ser daquele Governo ou daquele Ministro, têm de ser abertos, para que os magistrados os apliquem na individualidade do comportamento...

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - E o artigo 70.º é mais uma pressão sobre os juizes.

O Orador: - Sr. Deputado, o artigo 70.º é praticamente igual ao actual, não faz qualquer pressão.

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, tem de ter em atenção o tempo de que dispõe e o Sr. Deputado Narana Coissoró também.

O Orador: - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Sr. Deputado, quando um jovem é internado num hospital, como é evidente, se ele pode ser tratado com uma aspirina é importante que se não lhe dê um antibiótico e é bom que hajam regras deontológicas que digam ao médico que assim deve ser.

Página 2744

2744 I SÉRIE-NÚMERO 85

O Sr. José Magalhães (PS): - Está a fazer plágio da metáfora de ontem do Dr. Guterres.

O Orador: - Sr. Deputado, não ouvi ontem o Dr. Guterres, mas os bons espíritos, ainda que divergentes, muitas vezes encontram-se.

O Sr. José Magalhães (PS): - Ele aludiu a essa diferença entre a aspirina e o antibiótico.

O Orador: - O importante é haver um código deontológico que diga ao médico que, se puder aplicar a aspirina, não deve aplicar o antibiótico...

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, atenção ao tempo.

O Orador: - ... e que, de acordo com a sua ciência, se tiver que aplicar o antibiótico não lhe dê a aspirina.

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, se V. Ex.ª pretende ainda responder ao Sr. Deputado Alberto Costa tem de passar, rapidamente, às perguntas que ele formulou.

O Orador: - Passaria, muito rapidamente, às questões que me foram colocadas pelo Sr. Deputado Alberto Costa, o que é difícil de uma forma breve, mas, enfim, terei muito gosto em dizer alguma coisa.
Desde logo, queria referir que, como é evidente, não há qualquer garantia de que a estatística das cifras negras, em Portugal, seja de 3/4. Se houvesse essa garantia, então estávamos numa exuberante contradição com o Partido Socialista, o qual diz termos falta de instrumentos para a obtenção de números rigorosos acerca do que acontece no domínio da criminalidade em Portugal.
Há, evidentemente, cifras negras em Portugal, como há cifras negras nos vários outros Estados, e é justamente por isso que, hoje, se pretende fazer, quando se fala de taxa de criminalidade, uma percentagem cruzada. Isto é, faz-se a projecção daquilo que se calcula ser a cifra negra e em é em função dessa projecção que se calcula a taxa de criminalidade nos vários países europeus.
É esse o caminho por onde temos de seguir e é por isso que a resposta à questão que V. Ex.ª pos no sentido de saber qual é, nesta altura, a situação entre nós resulta do que disse na minha intervenção inicial, ou seja, resulta da possibilidade de reforçar os meios de prevenção, de uma maior rapidez no domínio do processo penal e, obviamente, da criação de melhores instrumentos de investigação neste domínio.
Agora, V. Ex.ª sabe também que o aumento do número de processos entrados nos tribunais portugueses é muito mais do que proporcional ao aumento da taxa de criminalidade. Portanto, isso é já sintoma de que este domínio das cifras negras, que é comum a vários países ou a todos os países, se vai reduzindo progressivamente entre nós. aliás, o próprio inquérito de vitimação, levado a cabo pelo Ministério da Justiça, permite-lhe também concluir que assim é.
Quanto à pergunta que V. Ex.ª colocou sobre a corrupção, devo dizer, Sr. Deputado, que considero - e não tenho qualquer dúvida em fazê-lo - de grande sentido de Estado a maneira como abordou esta questão, porque é óbvio que aquilo que pudesse ser qualquer interpretação no sentido de que havia uma vontade política de não combater a corrupção ou de que não havia uma vontade política de a combater, faria, com certeza, degradar a qualidade do debate e da relação política entre o Governo e o Partido Socialista, os quais, obviamente, têm uma exigência quanto à intervenção ético-política que têm mantido na sociedade portuguesa.
Entendo ser importante reconhecer que assim é, para que tenhamos a noção de que estamos perante um problema que procuramos resolver - e estamos a tentar resolver - e, assim, escamoteia-se desta questão aquilo que poderia ser a indagação sobre o que foi feito noutros governos para se combater a corrupção. Felizmente, não precisamos de entrar nesse domínio. O que se fez até agora foi relativamente pouco face ao que é preciso fazer - agora, há cinco anos, há dez anos. Estamos a caminhar no sentido de melhorar, o que é um objectivo comum, e nesse sentido avançaremos.
Aliás, é também importante referir que a abertura à discussão na especialidade podia ter sido retirada, já que estamos a falar de uma mera autorização legislativa, mas entendemos que não deve sê-lo e o grupo de trabalhar irá debruçar-se sobre este diploma, sendo esta a minha concepção: em princípio, o modo como a lei actual proposta prevê a corrupção, envolve aquilo que entendemos ser o que tem dignidade jurídico-penal no tráfico de influências. Mas, se assim não for, há abertura para podermos caminhar nesse sentido.
Creio que o modo como está previsto é suficiente para a tutela jurídico-penal e para não criarmos um clima de «caça às bruxas», que VV. Ex.ªs também não pretendem. Mas, se assim não for, repito, há abertura da nossa parte para caminharmos nesse sentido.

O Sr. Presidente: - Permita-me, Sr. Ministro, que lembre a V. Ex.ª que dispõe já de menos tempo do que aquele que gastou para responder aos Srs. Deputados que fizeram as duas primeiras perguntas e que ainda há mais cinco Deputados que pretendem colocar-lhe perguntas.
Para pedir esclarecimentos, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo, Sr. Ministro da Justiça: Telegraficamente, porque não disponho de muito tempo para a intervenção sobre as alterações ao Código Penal, vou colocar-lhe algumas questões.
Começo por dizer-lhe que facilitou muito o nosso trabalho porque acabámos de ouvir V. Ex.ª repudiar os próprios dados estatísticos apurados no seu ministério relativamente à taxa referida pelo Sr. Deputado Alberto Costa, uma taxa baixíssima, de crimes denunciados.
Na verdade, foi o gabinete de V. Ex.ª que se encarregou deste inquérito e, portanto, a partir de agora, estamos à vontade para afirmar que todas as estatísticas que V. Ex.ª aqui traz - como as relativas às penas curtas de prisão, etc. - não têm qualquer valor.
Há já uns bons anitos que V. Ex.ª detém a pasta da Justiça, embora o PSD a detenha há mais tempo, e apesar de todos estes anos, só hoje, depois de, repetidamente e até na Comissão que acompanhou os trabalhos de alteração do Código Penal tal ter sido abordado, é que V. Ex.ª veio aqui anunciar a criação do instituto de criminologia.
Relativamente a esta promessa e também à falta de estudos que a própria comissão revisora considerou existir para realizar alterações ao Código Penal, em matéria de direito penitenciário - que é, de facto, uma preocupação para todos nós, porque sabemos que existiu uma crise gravíssima no sistema prisional, ainda há bem pouco tempo, embora V. Ex.ª o tenha «pintado» como se estivesse em «boas

Página 2745

30 DE JUNHO DE 1994 2745

águas » -, existe a seguinte preocupação: será que a pena privativa da liberdade irá servir, efectivamente, para res-socializar ou o esquema que está aqui montado, como aconteceu noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos da América, servirá para colocar de um lado, em prisões de alta segurança, aqueles a quem não se reconhece qualquer direito, nem o direito à ressocialização, e de outro aqueles que, de facto, beneficiam das penas de multa? Por que é que V. Ex.ª não fez acompanhar esta proposta de lei daquilo que, afinal, parece que já tem sido ensejado, ou seja, a revisão do sistema de execução de penas?

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - É isso!

A Oradora: - De facto, isso era fundamental para a Assembleia da República poder avaliar as repercussões futuras destas alterações ao Código Penal.
Em terceiro lugar, gostava que V. Ex.ª explicitasse melhor o que disse sobre a revisão constitucional. Será que os magistrados têm culpa dos adiamentos? É que os adiamentos são feitos dentro da lei! Por que razão é preciso mexer na revisão constitucional para acelerar a justiça?! Não percebi, de facto, muito bem, mas gostava que explicitasse.
A última pergunta que lhe faço tem a ver com o seguinte: tendo já o actual Código Penal um artigo em que se prevê a punição de infracções a regras de segurança no trabalho, mas apenas quando há violação das regras de construção - como o caso hipotético do Aeroporto -, pergunto a V. Ex.ª por que razão não se foi mais longe, prevendo-se em ilícitos penais laborais a violação de outras regras que podem atingir os trabalhadores com muita gravidade, como, por exemplo, a exposição a agentes radioactivos. Por que razão não se avançou, nestas alterações, para um capítulo de infracções laborais?

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Justiça, se V. Ex.ª aceitar algumas das benfeitorias que estão propostas e em que insistiremos particularmente durante este debate, o Código Penal sairá daqui mais republicano, mais laico, «feminista q. b. » e até mais social. Se assim for, isso quer dizer que vestirá bem no corpo do Partido Socialista mas vestirá mal na ala securitária do PSD, que tanto batalhou contra a sua proposta inicial, que tanto a fez claudicar e que tanto a fez tropeçar. Portanto, este milagre do entroncamento legislativo, a dar-se, só contará com o nosso regozijo. Mas para isso é preciso discutir e é por isso que cá estamos.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Está a ouvir, Sr. Ministro?!

O Orador: - No entanto, tenha paciência, mas V. Ex.ª tem direito a levar duas «buzinadelas », pois esta reforma vai ser feita no meio de um cafarnaum legislativo.
V. Ex.ª é o Ministro desta reforma penal, mas nem é o seu pai natural, o qual, desta vez, foi aqui devidamente anunciado. O Sr. Ministro Marques Mendes é pai da reforma penal para os jornalistas, na revisão da Lei da Imprensa; o Dr. Lencastre Bernardo é pai da reforma penal para os imigrantes de várias raças; o Dr. Pacheco Pereira é pai da reforma penal para os jornalistas que forem mexer na declaração de rendimentos e disserem mais do que os senhores entendem que deve ser dito, ou seja, há vários pais. O Dr. Ferreira do Amaral, por exemplo, é responsável pelo «código penal da ponte », que agora está suspenso mas ameaça retornar. Isto é, VV. Ex.ªs não têm uma política penal homogénea. O que é que V. Ex.ª tem a dizer desta matéria? É que o que V. Ex.ª manda, neste contexto, surge como difuso e até mesmo confuso.
A segunda questão é que V. Ex.ª é confuso em si mesmo, pois traz-nos a reforma do Código Penal mas não nos traz a reforma do Código de Processo Penal e da Lei da Organização Judiciária. Isso significa, Sr. Ministro, admitindo que vamos trabalhar danadamente até ao dia 8, que ainda assim esta lei não poderia entrar em vigor sem grande dano sem estar acoplada à reforma do Código de Processo Penal, coisa em relação à qual V. Ex.ª não diz nada, embora haja estrangulamentos gravíssimos nesse domínio.
Mais ainda: até posso dizer que se a lei entrasse em vigor sem o Código de Processo Penal, os tribunais estrangulavam automaticamente, porque n crimes passavam para tribunal colectivo e, logo, para tribunal de círculo e, logo, os tribunais empanturravam ipso facto. V. Ex.ª sabe isto! Por que não trouxe, então, simultaneamente, estas três reformas? Por que é que opera em dedilhado sucessivo? Não se percebe!
A terceira questão é a de que V. Ex.ª, à defesa, intuiu os meios. O Sr. Ministro disse uma coisa com a qual estou inteiramente de acordo: «este é um código com gente dentro ».

Risos do Deputado independente Mário Tomé.

Não podia ter dito nada de mais exacto: há superlotação prisional abundante. É um código com gente dentro! Acertou...
Mas V. Ex.ª não disse nada sobre a superlotação prisional e sobre os meios de a esconjurar. Mais ainda: V. Ex.ª mantém intactos os factores que a geram. Exemplo: por que é que há tantas prisões preventivas? Porque os sistemas do laboratório de polícia científica da PJ estão bloqueados... O laboratório «rebentou » e, portanto, as prisões preventivas mantêm-se. V. Ex.ª sabe disso! E os exames psiquiátricos? Sei que V. Ex.ª foi a Matosinhos, há poucas horas, fazer umas coisas, mas isso não responde a esta situação.
Idem aspas em relação à toxicodependência. A unidade respectiva da PJ está em crise, desarticulada, foram-se embora e parece que também levaram os dossiers. Como é que V. Ex.ª vai dar resposta à crise gerada nesse sector crucial, que para nós é uma prioridade, como sempre temos definido?
Outro aspecto de administração, quase diria de intendência, mas essencial, para nós, refere-se aos quadros do Ministério Público. Onde estão? E os funcionários necessários para levar a cabo as várias tarefas? E que os processos não podem «passear » entre o DIAP e a PJ e a PJ e o DIAP, porque, de contrário, o resultado é aquele que a inspecção da Procuradoria-Geral da República atesta, ou seja, bloqueamento e bloqueamento com suspeita de ser selectivo de determinados processos.
V. Ex.ª, de facto, não tem o direito de dizer, como disse aqui, que se se quer ser honesto há que reconhecer que a estratégia do Governo em relação à Polícia Judiciária está correcta. Não! Pela minha parte, não considero que o Sr. Procurador-Geral da República seja desonesto e do seu relatório fluem críticas e sugestões muito concretas que discordam ou dissentem em relação à estratégia que V. Ex.ª tem vindo a impor e a forçar, mas isso significa que não há, em Portugal, uma prioridade no âmbito da política criminal.

Página 2746

2746 I SÉRIE-NÚMERO 85

Por outro lado, e porque o sucesso ou insucesso da reforma penal se joga no terreno, quase diria mesquinho e muito humano da resolução de problemas concretos, gostava de lhe perguntar como vai resolver, por exemplo, as questões necessárias à entrada em vigor de um regime como o de trabalho a favor da comunidade.
O Dr. Almeida Santos escreveu, na altura própria, praticamente tudo o que deve ser escrito sobre o trabalho a favor da comunidade, só faltando fazer. Portanto, não está em causa uma questão de concepção. V. Ex.ª não tem nada a apresentar nesta matéria?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães tem de concluir, pois já excedeu largamente o seu tempo.

O Orador: - Concluo já, Sr. Presidente.

O Sr. Ministro da Justiça percebeu que as minhas perguntas se dirigem no sentido dos meios.
A minha última pergunta tem a ver com os turnos. É que V. Ex.ª aceita, calado, uma greve de funcionários, de há meses - que, de resto, não cumprem os serviços mínimos e contam para isso com a sua «vista grossa » -, aos turnos dos tribunais.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, peco-lhe para concluir. Já excedeu largamente o seu tempo.

O Orador: - Trata-se de uma situação estranha, anómala e que compromete o exercício dos direitos, liberdades e garantias. Pergunto a V. Ex.ª que reforma penal é possível com turnos que não funcionam nos tribunais?!

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, vou responder o mais telegraficamente possível, visto que, efectivamente, não disponho de muito tempo.
À Sr.ª Deputada Odete Santos disse que só hoje vim aqui falar do instituto de criminologia, mas ele consta do programa do Governo que foi eleito para uma legislatura de quatro anos.
Neste momento, está a disputar-se o Campeonato do Mundo de Futebol e V. Ex.ª vai ver que muitas equipas passam às fases seguintes com golos metidos apenas no último minuto.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - E às vezes metem golos na própria baliza!

O Orador: - Ora, o Governo ainda está dentro do «tempo de jogo » e, portanto, se foi isso que apresentámos ao País para quatro anos, ainda temos um ano e meio para concluirmos as reformas que temos vindo a introduzir.
No domínio do direito penitenciário, é evidente que ainda falta fazer muito, mas também é evidente que já muito foi feito. E se VV. Ex.ªs aceitarem um convite, que tenho imenso gosto em fazer-vos - e só não o apresento como convite, porque é um direito próprio que têm -, para visitarem os estabelecimentos prisionais, verão que há muita coisa que não pode continuar como está e há muita coisa que deixou de estar como estava, tendo melhorado bastante.
Portanto, é esse o caminho que temos de prosseguir, é exactamente por isso que há governos e é exactamente por isso que, felizmente, há pessoas sérias no Governo que não escamoteiam o que está mal mas também se sentem com legitimidade para afirmar publicamente aquilo que de qualidade vai sendo feito.
Aliás, ainda há relativamente pouco tempo isso aconteceu. As medidas que têm sido anunciadas como medidas concretas e que, no fundo, traduzem uma capacidade de resposta para os problemas da sobrelotação, não deixam enganar ninguém, mesmo que se queira. É evidente que uma situação de sobrelotação nas cadeias portuguesas, como a que apareceu há um ano, não pode ser resolvida num ápice, aparecerendo; novos pavilhões como o que foi inaugurado há dias, estando planeados mais 19 pavilhões e a ser desenvolvidas obras nas várias cadeias portuguesas. Como é evidente, isso não se faz num ano!

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - E apareceu a amnistia que baralhou tudo!

O Orador: - Portanto, está traçado um plano e há uma política que vai sendo seguida.
Srs. Deputados, exerçam o vosso direito de fiscalização e visitem os vários estabelecimentos prisionais, pois vão encontrar muita coisa mal mas também vão, com certeza, ficar surpreendidos com muita coisa boa.
Quanto à revisão constitucional, não quero deixar qualquer equívoco. Desde logo, Sr.ª Deputada, quero dizer-lhe que não assaquei qualquer responsabilidade aos Srs. Juizes pelo adiamento das audiências, nem deixei nenhuma dúvida sobre isso.
Portanto, não estou a fazer qualquer recuo relativamente às palavras que proferi. Aquilo que me limitei a dizer foi que VV. Ex.ªs sabem que a Constituição prevê o princípio da mediação e que o Tribunal Constitucional tem interpretado esse princípio como impondo obrigatoriamente e sempre a presença do arguido em julgamento. Esta circunstância tem determinado sucessivos adiamentos, pelo que deve ser resolvida, através da reapreciação do instituto da contumácia, cujo funcionamento se tem mostrado ineficaz, e, eventualmente, através de uma revisão constitucional que, sem pôr em causa o princípio da mediação, possa dar alguma abertura para que, em sede de lei ordinária, surja uma alternativa que não permita a verificação de situações deste tipo. É importante que esta questão dos adiamentos seja ultrapassada rapidamente, pois está a constranger todo o funcionamento da justiça penal entre nós.
Quanto ao problema das infracções laborais, e sem que daqui resulte qualquer minimização para este tipo de infracções, a Sr.ª Deputada sabe que o Código Penal, do mesmo modo, não prevê as infracções antieconómicas, como acontece em vários outros Estados.
Pela nossa parte, entendemos que o que está previsto no Código cobre grande parte das situações que V. Ex.ª referiu, pela via dos crimes de ofensas corporais e homicídio.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Mas existem crimes de perigo!

O Orador: - No entanto, situações desse tipo merecem, com certeza, tutela à parte, nessa perspectiva de dois tipos de diplomas, ou seja, por um lado o Código Penal, com a tradição que sempre teve entre nós, e, por outro, um diploma que envolva as infracções antieconómicas em geral e as infracções laborais de outro tipo.
Quanto ao que me foi perguntado pelo Sr. Deputado José Magalhães, começaria por um ponto que não foi escolhido arbitrariamente e que me parece importante que fique claro.

Página 2747

30 DE JUNHO DE 1994 2747

O conteúdo do relatório da inspecção à Polícia Judiciária analisa 23 departamentos dessa entidade, 17 dos quais tiveram uma grande recuperação. Isto foi dito pelo Sr. Procurador-Geral da República e, portanto, não sou eu que lhe chamo desonesto quando digo que a Polícia Judiciária teve uma recuperação importante. Trata-se de uma situação objectiva, não escamoteei nada relativamente ao que o relatório refere que não está bem e gostava que V. Ex.ª também não escamotesse nada relativamente àquilo que o relatório refere estar bem.

O Sr. José Magalhães (PS): - Não escamoteei nada!

O Orador: - O Sr. Procurador-Geral da República, com certeza, é tão honesto na parte do relatório que diz mal como na parte do relatório que diz bem. Não tenho nenhuma visão de «visconde cortado ao meio » do Sr. Procurador-Geral da República e gostaria que VV. Ex.ªs não utilizassem o seu relatório como o elemento de documentação meramente política que vos permite aproveitar o que está mal e esconder o que está bem.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Mas é um documento político!

O Orador: - Nunca disse que não o era, Sr. Deputado! Os documentos, por si, são o que são; o modo como eles são aproveitados...

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Tudo o que vem à Assembleia é político!

O Orador: - Mas eu não disse o contrário!
Sr. Deputado Narana Coissoró, hoje estamos com alguma dificuldade de comunicação. É evidente que se eu próprio trouxe o relatório à Comissão foi porque entendi que ele tinha importância política. Não trago aqui um relatório e contas de despesas mínimas a não ser que possa ter repercussão política.
Efectivamente, este relatório tem repercussão política, mas está a ser utilizado politicamente no sentido negativo do termo, pois estão a pegar nele e a parti-lo ao meio, escondendo o que refere de bom e relevando o que refere de mal, dizendo que o Ministro da Justiça é desonesto, quando dizem que o Procurador-Geral da República será desonesto se diz bem. Não é verdade!

O Sr. Deputado José Magalhães sabe que...

O Sr. José Magalhães (PS): - O que digo é que o Sr. Ministro está disléxico!

O Orador: - Não é verdade, Sr. Deputado! Disléxico estava eu na tribuna; agora, ao descer para a bancada do Governo, já ganhei um pouco em defeito e em falta de virtude. Neste momento, estou a passar pelo crivo da desonestidade e, nesse ponto, Sr. Deputado, a dislexia eu aceito como debate político, mas a desonestidade repudio claramente.
V. Ex.ª fala das várias reformas do sistema penal. Com certeza que sim! As várias reformas do sistema penal obviamente que...

O Sr. José Magalhães (PS): - São confusas, divergentes!

O Orador: - Não são confusas nem divergentes. Sr. Deputado! Temos um Código Penal que é a «mãe» da reforma penal; as outras vêm a seguir, na sequência, e são convergentes.

O Sr. José Magalhães (PS): - As outras são tias ou enteadas!

O Orador: - O parentesco será V. Ex.ª quem o define!
Por outro lado, fala na sobrelotação prisional e pergunta-me o que é que se está a fazer. Evidentemente que V. Ex.ª não estará preocupado com as declarações públicas do Ministro da Justiça, mas, se estivesse, sabia que, ainda há relativamente pouco tempo, foram anunciados várias vezes números concretos - e, em acções concretas, já está a verificar-se a concretização, passe a expressão, destes números - para respondermos a problemas de sobrelotação. Aí, com as estatísticas que V. Ex.ª conhece, porventura melhor do que eu (até as minhas próprias!), saberá que, por exemplo, dos países da União Europeia, Portugal é o que, neste momento, tem menor sobrelotação nas cadeias, excluindo o Luxemburgo. Este argumento vale o que vale! Nós temos de nos preocupar com a nossa sobrelotação, mas é um facto que, de alguma maneira, este não deixará de ser um elemento importante para o conhecimento de V. Ex.ª
Quanto aos quadros do Ministério Público, Sr. Deputado, como sabe, esses quadros serão aqueles que a Procuradoria Geral, em cada ano, pede ao Centro de Estudos Judiciários, repercutindo a três anos. Há dois ou três anos para cá que a Procuradoria Geral vem pedindo sempre menos de 40 por ano - pediu 20 e poucos da última vez. Não há, com certeza, por responsabilidade do Ministro da Justiça, problemas quanto aos quadros do Ministério Público.
Relativamente ao trabalho a favor da comunidade, é evidente que, quando temos estruturas que estão instaladas e que estão em condições de responder, não andamos permanentemente a falar delas. O Instituto de Reinserção Social está instalado em todo o País, em todos os círculos judiciais, tem capacidade de resposta...

O Sr. José Magalhães (PS): - Só não há trabalho a favor da comunidade!

O Orador: - Sr. Deputado, se me quiserem pôr a fazer trabalho a favor da comunidade, que não seja este que faço agora, não me importo de me candidatar! Só que o que está previsto, inclusivamente o trabalho que V. Ex.ª referiu, é que são os tribunais que decidem quais são as situações de trabalho a favor da comunidade. Justamente por isso estamos a rever este Código para que uma amplitude maior vá permitir que haja trabalho a favor da comunidade e o Instituto já está preparado para responder a essas exigências.
Quanto aos turnos, para mim, a questão é claríssima: os tribunais são órgãos de soberania, há matéria urgente que não pode deixar de ser realizada pelo facto de não haver capacidade de resposta aos sábados, domingos e feriados...

O Sr. José Magalhães (PS): - Exacto!

O Orador: - e é essencial que direitos fundamentais sejam garantidos nessa altura. Para isso, é necessário criar dois sistemas diferentes, solução que esteve sempre no espírito do Governo: um sistema de tribunais permanentes (quando digo permanentes, digo dentro do horário de dias normais a funcionar aos fins-de-semana) e disponibilidade para acudir a situações que ocorram. Esta disponibilidade para acudir a situações que ocorram, está prevista nos ac-

Página 2748

2748 I SÉRIE-NÚMERO 85

tuais estatutos dos magistrados judiciais do Ministério Público e dos oficiais de justiça, mas não está prevista a garantia de permanência sistemática. Portanto, o decreto que foi publicado há pouco tempo diz que, quem está em permanência, tem uma remuneração acessória por essa permanência e, nos outros casos, há a disponibilidade ou a contactabilidade. Isto já existe hoje, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PS): - Mas não é cumprido!

O Orador: - O que sucede é que, se não está a acontecer isto hoje...

O Sr. José Magalhães (PS): - Não funciona!

O Orador: - Se não funciona é porque as pessoas não querem que funcione!

O Sr. José Magalhães (PS): - Neste momento, há uma greve em curso há longos meses!

O Orador: - Sr. Deputado, eu sei que, sempre que fazem uma greve, tem de dar razão à greve. Mas, às vezes, a greve não tem razão! Repare como V. Ex.ª, há pouco, se enganou quando falou dos vários «pais » da reforma penal. Esta história da variedade ainda o incomoda!

O Sr. José Magalhães (PS): - A paternidade é que me incomoda!

O Orador: - E digo isto porque, quando quis acusar o PSD, até lhe fugiu o braço para a pejorativa, no sentido físico, e apontou para o lado do PCP e não para o lado do PSD! E, logo a seguir, percebeu-se porquê, quando falou dos vários pais. Este pluralismo de autorias ainda o incomoda. A nós não incomoda, desde que haja uma convergência de intervenção global e essa convergência existe. Onde é que encontra soluções legislativas que sejam contraditórias, propostas pelo Governo? Em parte nenhuma! Não encontra em parte nenhuma! Pode encontrar, talvez, em certo discurso público. Dê-me um exemplo!

O Sr. José Magalhães (PS): - Basta comparar a legislação do Ministro Dias Loureiro ou do Ministro das Obras Públicas para ver as contradições!

O Orador: - Sr. Deputado, se não se importa, pedia-lhe para não dar exemplos de ministros mas, sim, de legislação.

O Sr. José Magalhães (PS): - Vamos para a Comissão ver isso!

O Orador: - Legislação do Ministro das Obras Públicas, por exemplo, que seja contraditória com esta. Dê-me só um exemplo, Sr. Deputado!

O Sr. José Magalhães (PS): - Olhe, a da ponte!

O Orador: - A da ponte? Mas, que eu saiba, na ponte, não era propriamente direito penal que estava em jogo!

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, faça favor de concluir.

O Orador: - Sr. Deputado, como sabe, o meu espírito incomensuravelmente tolerante permite que seja no grupo de trabalho que V. Ex.ª diz - de facto, não há legislação que seja incompatível -, mas, nessa altura, com menor repercussão; porém, não me importo.
Finalmente,... Tenho imensa pena, mas já não tenho mais questões suas. Como sabe, é sempre um prazer...

O Sr. José Magalhães (PS): - Mas tem a crise penal nos braços!

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, peco-lhe, mais uma vez, para concluir.

O Orador: - Com certeza, Sr. Presidente.
Termino, dizendo ao Sr. Deputado José Magalhães que, quanto à crise penal, não há grande problema. Se, efectivamente, há crise penal, ainda bem que sou eu quem a tem nos braços. O que seria, Sr. Deputado, se fossem outros!?...

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Raúl Castro.

O Sr. Raúl Castro (Indep.): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da justiça, a primeira questão é esta: como vai aplicar o novo Código Penal em comarcas estranguladas com processos e praticamente paralisadas, como V. Ex.ª sabe, e penso que não vale a pena estar a citar nomes de algumas destas comarcas?
Em segundo lugar, falou nos adiamentos por falta dos réus e até disse que já há casos de 14 adiamentos. Efectivamente, o adiamento por falta dos réus é um verdadeiro calvário para as testemunhas e a desmoralização da justiça. Pergunto, Sr. Ministro: por que é que o Código de Processo Penal, que, naturalmente, iria contemplar e remover esta situação, não aparece?
Ainda algumas questões pontuais.
A pena de multa é apresentada como alternativa à pena de prisão; no entanto, deixa de poder ser suspensa. Porquê? Não se entende por que razão não pode ser suspensa.
Outra questão: a punição mais severa dos crimes sexuais contra menores de 14 anos; contudo, o Ministério Público só pode promover acção penal quando a vítima for menor de 12 anos. Por que é que o Ministério Público não pode promover acção penal, quando a vítima for menor de 14 mas apenas de 12 anos?
A última questão diz respeito aos critérios de classificação do furto - valor diminuto, valor elevado e consideravelmente elevado. Abandonou o sistema antigo, que era um sistema quantitativo, e entrou-se num sistema adjectivado, que se alterou agora com outros termos, também adjectivados. Não acha, Sr. Ministro, que continua a haver aqui uma margem de indefinição que irá colocar problemas aos magistrados?

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Mário Tomé.

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Justiça, vou debruçar-me sobre duas questões fundamentais: a da liberdade de informação e a dos direitos das mulheres.
A actividade dos jornalistas está sujeita a um cerco apertado: por um lado, eliminam-se ou esvaziam-se mecanismos democráticos de garantia da liberdade de informação, como o Conselho de Imprensa ou os conselhos de redacção, e, por outro, à concentração da propriedade e vínculos de

Página 2749

30 DE JUNHO DE 1994 2749

trabalho precários, ameaça de despedimentos ou, mesmo, despedimentos efectivos, vêm agora juntar-se alterações ao Código Penal que aprovam sanções e limitam despenalizações nos crimes contra a honra e a reserva da vida privada. Parece-me razoável inferir-se uma linha de actuação do Governo, que é a de dificultar a acção de jornalistas, nomeadamente do jornalismo de investigação, quando os escândalos públicos se sucedem e a comunicação social tem um papel relevante na sua detecção e publicidade. Tornar o direito à privacidade quase absoluto, quando as personalidades públicas têm deveres para a sociedade que podem tornar interesse público e legítimo a divulgação de certos factos da sua vida privada, limita não só os direitos dos cidadãos de apreciarem e julgarem os comportamentos dos detentores dos cargos públicos como também os direitos de informar e de ser informado.
Pergunto: por que razão são as penas tornadas mais elevadas exactamente quando se trata de queixas de figuras com cargos públicos? Tratar-se-á de «públicas virtudes, vícios privados »? E ainda quando o interesse público ou a prova da verdade da imputação deixaram de excluir a punição? Pretende-se que «toda a verdade seja castigada»?
Sobre a interrupção voluntária da gravidez, sabe-se que, apesar da Lei n.º 6/84 - a do actual Código Penal -, o número legal de abortos ocupa uma parte não significativa dos abortos provocados em Portugal. Por várias razões, entre elas, porque as mulheres continuam a confrontar-se com falta de informação, falta de organização dos serviços, falta de comparticipação convencionada, incapacidade de resposta dos serviços quando surgem situações de objecção de consciência, falta de cobertura legal para situações de necessidade de IVG contempladas na maior parte dos países da Comunidade Europeia.
Perante as alterações propostas, faço a seguinte pergunta, Sr. Ministro: onde andou o Governo nestes últimos 10 anos? Não se apercebeu da realidade social? Não ligou aos estudos efectuadas, nomeadamente os coordenados pela Associação de Planeamento Familiar? A proposta de alteração do Código Penal nesta matéria surge como se não tivesse havido 10 anos de experiência, de estudos, de propostas, bem como de sofrimento e de riscos escusados para muitas mulheres.
Assim sendo, pergunto-lhe ainda: se a maioria das malformações do feto só se pode detectar, segundo estudos efectuados, em exames posteriores às 16 semanas, por que permanecem estas como limite para o IVG? Se as causas económico-psico-sociais são responsáveis por um grande número de IVG's, por que não são tidas em conta? Por que não se alarga para 22 semanas o prazo de IVG's por violação, atendendo à morosidade característica desta situação? Já agora, está o Sr. Ministro atento ao que se passou recentemente, na Espanha dos Reis Católicos, em que o IVG nas primeiras 12 semanas passará a depender da decisão soberana da grávida? Porquê, contrariando o sentido das suas palavras introdutórias, Sr. Ministro, se continua a impor a condenação ao ilícito a quem apenas precisa de medidas e de legislação à altura dos tempos que vivemos, à altura da própria Comunidade Europeia?

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado André Martins.

O Sr. André Martins (Os Verdes): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Justiça, da apreciação que fizémos da proposta de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República para revisão do Código Penal, a primeira conclusão que retiramos, no que se refere a matéria ambiental, é a de que fica revelada uma manifesta falta de vontade política para incluir como matéria penal as questões ambientais. Como alguém já disse, até parece que o Governo tem vergonha de punir em matéria ambiental! E passo a referir algumas questões sobre as quais gostaria que o Sr. Ministro nos esclarecesse.
Em primeiro lugar, consideramos que, em matéria ambiental, a proposta de lei é demasiado limitada e não considera a autonomia do Ambiente como um valor fundamental no Código Penal. Por outro lado, esta proposta de lei exclui expressamente a responsabilidade criminal das pessoas colectivas em matéria ambiental.
Passo agora às perguntas propriamente ditas.
Desde 1976, a Constituição portuguesa contempla de forma muito significativa as questões ambientais e ecológicas; existe, desde 1987, uma Lei de Bases do Ambiente que prevê claramente a figura de crime ambiental; desde 1977, o Conselho da Europa emite recomendações aos governos para que considerem matéria penal as questões de Ambiente; após a ECO 92, o Governo português declarou-se extremamente empenhado em defesa das questões ambientais. Perante tudo isto, se, em Portugal, temos legislação adequada, como é a da Lei de Bases do Ambiente, por que razão não se avança mais em termos de Código Penal para que, efectivamente, se possa criar um tipo autónomo de ilícito criminal em matéria ambiental?
Por outro lado, sabemos que a acção das empresas, designadamente a das indústrias, é a que mais contribuiu em termos de danos para o Ambiente. Assim, por que é que as entidades colectivas não são consideradas em termos de responsabilidade penal na proposta de lei do Código Penal que nos é presente?

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Raúl Castro, quanto à questão dos adiamentos, o que eu disse foi que, infelizmente, não podemos resolvê-la apenas através da alteração do Código de Processo Penal pois, neste momento, temos uma questão de constrangimento constitucional, que era importante que pudesse ser superada. Evidentemente que, nas alterações a introduzir ao Código de Processo Penal, iremos tentar conseguir alguma melhoria que possa permitir que não se mantenha esta situação que, como tive ocasião de dizer, por vezes é vergonhosa. Mas o receio que temos é o de que, sendo tão limitada a margem de constitucionalidade de que dispomos, possamos vir a encontrar um obstáculo decisivo à possibilidade de intervir nesse domínio. Todavia, fá-lo-emos em sede de revisão do Código de Processo Penal porque temos claro que, neste momento, este é o problema de maior constrangimento no processo penal actual.
Por outro lado, V. Ex.ª disse que a multa deixa de ser suspensa, mas deve haver um lapso porque não é assim: a multa pode continuar a ser suspensa.
Quanto à questão de 12 anos constituírem o limite de idade a partir do qual o Ministério Público não pode dar início ao processo oficiosamente, V. Ex.ª sabe quais são as razões que estão por trás desta limitação, as quais, até hoje, têm impedido que o Ministério Público o faça, independentemente de qualquer idade. Ora, é justamente essa tutela de interesses contraditórios que aqui surgem que nos fez optar pelo limite de 12 anos para permitir que, a partir daí, também já exista alguma vontade pessoal do jovem que

Página 2750

2750 I SÉRIE-NÚMERO 85

tenha sido vítima de um crime sexual por forma a que o próprio não fique obrigado a ver-se envolvido num processo apenas por intervenção oficiosa do Ministério Público.
O Sr. Deputado referiu-se também à margem de indefinição no furto. Como sabe, eu próprio, na altura em funções completamente diferentes, fui defensor dos conceitos indeterminados e, teoricamente, continuo a sê-lo. Ou seja, entendo que, hoje, uma legislação penal - como é o caso da generalidade das legislações mas, sobretudo, de uma legislação penal - é uma legislação que se completa totalmente no momento da sua aplicação. Ora, o momento da aplicação do Direito dá à própria lei, em cada caso concreto, aquele «mais » de que ela necessita para a sua verdadeira aplicação ao caso. Por isso, na nossa perspectiva - e estou à vontade para dizê-lo, porque o disse desde sempre -, é fundamental dar um voto de confiança à qualidade dos magistrados que, dentro deste conceito indeterminado, vão encontrar o espaço de individualização para poderem optar pela solução penal mais adequada naquela relação, entre valores e comportamentos que tive ocasião de referir.
Relativamente ao Sr. Deputado Mário Tomé, começo por dizer que, embora tenha colocado apenas duas questões, cada uma delas pressuporia mais um enorme tempo de intervenção para poder responder-lhe, como gostaria de fazê-lo.
Sr. Deputado, noutra altura, certamente terei ocasião de demonstrar-lhe a minha convicção clara de que as alterações introduzidas no Código Penal não implicam qualquer limitação ao direito de informar e já várias vezes tive ocasião de repeti-lo. A única diferença introduzida é de natureza metodológica ou de técnica legislativa: enquanto, no actual Código, é a própria justa causa que é colocada no interior do tipo legal de crime, nesta opção, remetemos uma cláusula geral que diz que este crime não se comete se for «cometido » no uso de um direito, e o direito de informar funciona neste âmbito. Repito que se trata de uma mera técnica legislativa que adequa melhor o Código àquilo que, no fundo, são as exigências de técnica legislativa e não existe qualquer limitação do direito de informar nas alterações que foram introduzidas.
Passo agora à questão da interrupção voluntária da gravidez.
V. Ex.ª sabe - e eu próprio tive ocasião de dizê-lo em várias intervenções - que estamos num domínio que é extraordinariamente melindroso em todos os sentidos, nomeadamente naqueles que acabou de referir, e que releva, sobretudo, da intimidade da vida privada. Entendo que não há suficiente conhecimento científico para poder pronunciar-se acerca do prazo de 22 semanas. Aliás, ainda há relativamente pouco tempo, a Sr.ª Deputada Odete Santos falava em 24 semanas...

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Não é verdade!

O Orador: - V. Ex.ª falava em 24 semanas!

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Ministro, ouvimos médicos, em sede de Comissão, que disseram que, até às 16 semanas, é como não estar nada!

O Orador: - Mas é ou não verdade que, ainda há relativamente pouco tempo, V. Ex." disse que deveriam ser 24 semanas?
Sr.ª Deputada, não estou a dizer que não haja conhecimentos nesse sentido, estou é a dizer que podemos ir progressivamente, de conhecimento em conhecimento, entrando num domínio que, a meu ver, já não fica entregue exclusivamente à decisão política. Já disse várias vezes que creio que a matéria da interrupção voluntária da gravidez, tal como a matéria da eutanásia, a ser feita qualquer intervenção legislativa sobre ela, deverá passar por um tipo diferente de consulta à população. Entendo que aí estamos numa margem que vai em excesso para lá daquilo que é a legitimidade política...

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - Mas quais são os contornos para se poder avançar nessa matéria?

O Orador: - Creio que...

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - São iguais aos da Europa?

O Orador: - Não, Sr. Deputado...

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - Quais são os contornos?

O Orador: - Sr. Deputado, os contornos são os que vão desde uma posição extrema, como é a de V. Ex.ª, a outra posição extrema...

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - A minha posição não é nada extrema! Está de acordo com o que existe por todo o lado: na Europa e até na Espanha dos Reis Católicos!

O Orador: - São posições relativamente às quais entendo que estamos no domínio de uma profunda intimidade individual, pelo que um outro tipo de consulta à população pode legitimar, de forma mais clara, ou a omissão de intervir ou a intervenção. Isto já foi dito várias vezes, antes da apresentação do diploma em discussão.
Quanto ao Sr. Deputado André Martins, devo dizer que - e não veja nisto qualquer boutade -, de uma maneira geral, estou de acordo com a intervenção de V. Ex.ª. Há um ponto em que não estarei de acordo, embora esteja, de uma maneira geral, mas também aqui se trata de uma questão de metodologia e de técnica de elaboração legislativa.
V. Ex.ª falou das posições mais recentes do Conselho da Europa e posso dizer que eu próprio tive ocasião de intervir numa das reuniões de Ministros da Justiça no Conselho da Europa sobre esta matéria. Assim, aquilo que, hoje, se vai defendendo é exactamente o que V. Ex.ª disse, mas com uma reserva metodológica de intervenção, isto é, não remeter para os Códigos Penais, enquanto códigos, toda a legislação penal que tutela o Ambiente. É o que acontece em vários países, por exemplo, quanto às pessoas colectivas que, como sabe, no nosso Direito, têm uma provisão no Decreto-Lei n.º 28/84, relativamente à criminalidade anti-económica e outra criminalidade conexa, na qual, impropriamente, a meu ver, ainda está ligado o Ambiente. É necessário criar aí alguma tutela de autonomia, mas que não seja a inclusão directa no âmbito do Código Penal, por razões que têm que ver com a dinâmica muito grande e acelerada que é introduzida neste domínio e que não se compadece com a estabilização desejável para um diploma como o Código Penal.
Portanto, relativamente ao que disse quanto à responsabilidade penal das pessoas colectivas, quanto à necessidade de, eventualmente, avançar mais longe na tutela criminal dos delitos que atingem o Ambiente, estamos de acordo.
Onde é que não estou de acordo? É quanto a uma outra posição sua, embora, mais uma vez, não discorde pelo fundo mas, sim, pela estratégia de intervenção. Eu sei que, através do Código Penal, era mais fácil punir a poluição

Página 2751

30 DE JUNHO DE 1994 2751

enquanto tal - e isso está na própria perspectiva do Governo - e punir directamente os danos contra a Natureza. Nós fazemo-lo, por via indirecta, através de uma intervenção administrativa que coloca a necessidade de cumprir e, se o agente não o fizer, há a punição.
Pode perguntar-me por que é que agimos da maneira que referi. Respondo-lhe que isto vem um pouco na linha daquilo que foi a minha primeira intervenção quando disse que uma das regras fundamentais do fim das penas é a da prevenção geral positiva, isto é, a da garantia da validade das normas: sempre que uma norma é violada, há a garantia de que ela é restabelecida. Ora, sabemos hoje que, infelizmente e a despeito do progresso que já foi feito nesse domínio, uma norma deste tipo certamente que não iria ser aplicada em muitas circunstâncias. Eu próprio, se é que posso dizê-lo, tive ocasião de confrontar esta questão com a Comissão, para não haver a ideia de que estava aqui com um estigma de opção política pura e simplesmente. Assim, foi reconhecido que deveríamos intervir numa perspectiva gradual de intervenção administrativa intermediária - nesta altura, não estão previstas situações de danos contra a Natureza nem de poluição, mas vão passar a estar - e, numa fase seguinte, abriremos claramente, para o crime em si não estar já condicionado por uma intervenção intermediária. Portanto, trata-se de uma estratégia de intervenção, obviamente discutível, que, na nossa perspectiva, resulta da garantia de afirmação da validade das leis. Isto é, o que está previsto, se for violado, tem punição clara e inequívoca para não cairmos em situações em que o que está previsto poderá, eventualmente, conduzir a que não seja suficientemente tutelado pela via punitiva.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Ministro, admitiu, então, um referendo sobre o aborto?

O Orador: - Admiti que essa é uma área na qual é possível uma consulta à população. A única forma que conheço de consultas desse tipo à população é o referendo. O que entendo é que se formos para uma situação desse tipo, ela deve ser definida aqui, nesta Casa, com a oposição. É importante que se viermos a fazê-lo, não façamos um referendo que seja, ele próprio, motivo de contradição.

O Sr. José Magalhães (PS): - Fá-lo-emos em sede de Código Penal?

O Orador: - Não, não! Fora do Código Penal, como é evidente.
V. Ex.ª fez um esforço para não deixar sair um sorriso, mas eu antevi-o; sei o que V. Ex.ª pretendia. Claro que é fora do Código Penal!

O Sr. Presidente: - Antes de dar a palavra ao próximo orador, lembro aos Srs. Deputados que, no final deste debate, haverá um período de votações dos diplomas já agendados e, também, a votação, na generalidade, da proposta de lei em apreço.
Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo, Sr. Ministro da Justiça: A revisão do Código Penal, que já de si não é uma tarefa fácil, processa-se num quadro que torna ainda mais difíceis as opções a consagrar no texto final.
Podemos caracterizar esse quadro da seguinte forma:
Em primeiro lugar, a Comissão Revisora não dispôs, nem a Assembleia da República dispõe, de estudos e investigações criminológicos que permitam avaliar a produtividade e efectividade do sistema sancionatório;
Em segundo lugar, a Comissão Revisora não dispôs, nem a Assembleia da República dispõe, de estatísticas fiáveis e suficientes quer sobre os resultados da aplicação do actual Código Penal, quer sobre o volume, estrutura e evolução da criminalidade denunciada e do seu tratamento nas polícias, Ministério Público, tribunais e serviços de execução de penas.
Em terceiro lugar, à desordem dos modelos de política criminal, junta-se entre nós um quadro de crise económica e social, um quadro de insegurança, adverso aos consensos sociais que toda a lei penal exige.
Em quarto lugar, o sistema penitenciário encontra-se em profundas convulsões que uma ou outra obra, televisivamente propagandeada, não consegue esconder.

Vozes do PCP: - Muito bem!

A Oradora: - Foram, assim, péssimas as condições em que trabalhou a Comissão Revisora, e não foram melhores aquelas que se depararam à Assembleia da República.
Apenas de uma certeza se parte: a de que é necessário introduzir remédios naquelas distorções reveladas na aplicação do actual Código Penal e que dizem respeito à supervalorização dos crimes patrimoniais relativamente aos crimes contra as pessoas.
Mas, para que as alterações não corressem o risco de ser fruto da intuição e tivessem a garantia de acerto e credibilidade, teria sido necessário contar com o trabalho de um instituto de criminologia - escandalosamente inexistente, como referiu o Professor Figueiredo Dias -, instituto esse dotado de meios minimamente capazes para o estudo e investigação criminológicos.
Contudo, não só tais estudos são inexistentes, como as estatísticas que se fornecem sobre as penas de prisão aplicadas não correspondem à realidade, como pudemos constatar no debate havido com a Comissão Revisora.
A magistratura portuguesa tem sido injustificadamente acusada de optar, de uma forma excessiva, por penas curtas de prisão, voltando as costas às penas não privativas de liberdade.
Por um lado, é certo e está adquirido que as estatísticas sobre aquelas penas estão falseadas e que, por outro lado, durante os 12 anos de existência do Código não foram criados os mecanismos necessários para aplicação de penas, como o trabalho a favor da comunidade, a semi-detenção e o regime de prova, que agora se abandona por manifesta falência.
Ainda no que respeita a estatísticas, verifica-se a dificuldade em consegui-las sobre a ocorrência de crimes, uma vez que muitos não se conseguem detectar por não serem objecto de queixa, aspecto já aqui denunciado. E tudo isto acontece quando se vem assistindo, nos últimos anos, a uma progressão na criminalidade, com particular destaque para o aumento dos crimes violentos contra as pessoas.
A crise do sistema prisional, a sobrelotação das prisões, as violações sistemáticas dos direitos dos reclusos põem em causa o objectivo ressocializador da pena de prisão. De tal forma que aparece, com todo o sentido, a frase desesperada de Martinson: «What works? Nothing works ».
A verdade é que, relativamente ao direito penitenciário, nada se fez e nada se faz!
Nos estudos a que procedemos na preparação do debate sobre a proposta de lei, tomámos contacto com a ex-

Página 2752

2752 I SÉRIE-NÚMERO 85

periência holandesa: memorandos sucessivos são apresentados ao Parlamento sobre a situação prisional; dos debates sobre os mesmos, apresentados em 1964, 1976 e 1982, saíram novas regras para o sistema prisional. A política penitenciária foi-se, assim, adaptando à evolução da realidade e não se limitou - como se faz entre nós - a um encolher de ombros perante a falência do ideal de reabilitação.
Entre nós, porém, o descrédito na capacidade redentora da prisões aumenta por inércia do próprio Governo, que constata apenas a incapacidade de resolver o problema e procura passar as culpas, suspirando, ainda que silenciosamente - para não haver escândalos! -, por uma salvadora amnistia que alivie as prisões da sobrecarga. Por uns tempos apenas! Porque não se procedendo à humanização da prisão, não se reduz os efeitos nocivos desta, não se ganha o recluso para a sua ressocialização e não se prepara o seu regresso à Comunidade.
E vivendo nós numa situação de crise, por desgraça da política anti-social do Governo, artigos da proposta, como o 40.º sobre a finalidade das penas e o 41.º sobre a execução da pena de prisão, nos quais se aponta - e bem! - como finalidade a reinserção social do delinquente, poderão não passar de artigos emblemáticos, enquanto perdurar esta politica, pois, como já o disse a Professora Doutora Teresa Beleza, a propósito do actual Código Penal e daquilo a que chama o «Mito da Recuperação do Delinquente », recupera-se este para o desemprego, devolve-se o delinquente contra a propriedade a uma sociedade baseada na desigualdade económica, devolve-se o violento a uma sociedade geradora e cúmplice de toda a espécie de violências, de violações de direitos humanos.
Assim, a prosseguir-se a feroz política anti-social em que mergulha o povo português, estas alterações ao Código Penal falharão o objectivo a que, honestamente, se dedicou a Comissão Revisora.
O Código reformulado poderá transformar-se, como qualquer outro produzido em idênticas circunstâncias, num «subtil mecanismo » utilizado não para tutelar os valores pessoais e comunitários para a convivência, mas para fomentar ou a confiança do cidadão a respeito do sistema e das instituições, ou a submissão do cidadão a esse mesmo sistema.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sr. Ministro da Justiça, Srs. Membros do Governo: No sentido de que as penas privativas da liberdade fossem usadas como a última ratio da política criminal, as propostas de alteração à parte geral do Código vêm abrir a possibilidade de aplicação da pena de multa alternativa ou sucedânea da pena de prisão.
Em termos teóricos, as opções parecem-nos correctas, pese embora uma ou outra melhoria, nomeadamente no sentido de impedir que o delinquente economicamente carenciado, normalmente mal esclarecido quanto às saídas legais, se possa ver preso - como acontece hoje - porque não teve a iniciativa de provar ao tribunal que não podia pagar a multa.
No entanto, há que impedir, nomeadamente analisando com detalhe as molduras penais da parte especial do Código, que as alterações sejam um convite ao uso da pena de multa como forma de obter a contenção das despesas públicas com o sistema prisional, como forma de conter os custos desse mesmo sistema, quer no que toca às condições que são dadas aos condenados, quer no que toca à assistência social às suas famílias.
O alargamento dás possibilidades de aplicação das penas não privativas da liberdade não pode conduzir ao abandono da reinserção social, não pode significar, como aconteceu nos Estados Unidos da América, a construção de prisões de segurança máxima, instrumento de puro terror penal.
Devo dizer que a manifesta inércia do Governo, no que toca ao sistema prisional é às necessárias alterações no direito penitenciário, faz recear, seriamente, que o uso da pena de multa passe a cumprir, primordialmente, objectivos perversos que não estão na sua índole: a morte da ideologia da recuperação, com todas as funestas consequências sobre a segurança dos cidadãos.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sr. Ministro da Justiça: Batemo-nos, desde o início, para que nas alterações ao Código Penal fosse introduzido uni capítulo relativo aos ilícitos penais laborais.
Se nos socorremos do direito comparado, vemos que em França se criminalizaram, no Código Penal, infracções contra os direitos dos trabalhadores, e o mesmo aconteceu no projecto de código penal espanhol.
Na proposta que nos é presente, não só não se avançou devidamente na tipificação do crime de exploração do trabalho infantil - estamos a referir-nos ao crime de maus tratos a menor - como, para além do crime de perigo resultante da inobservância de regras de construção, nada mais temos no que toca à protecção penal dos direitos dos trabalhadores.
Há, no entanto, nesta matéria - para usar uma expressão do Prof. Doutor Figueiredo Dias, não em relação ao direito penal laboral, como é óbvio, mas em relação ao direito penal em geral - «lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem ».
Há novos fenómenos sociais, como o não pagamento doloso de salários aos trabalhadores, que desencadeiam consequências comunitariamente insuportáveis. É o próprio direito à vida dos trabalhadores e das suas famílias que está em causa. É inequívoco que merece a tutela penal.
Há, também, fenómenos já antigos, mas que adquirem um novo significado, como a discriminação no trabalho em razão da actividade sindical, da ideologia e do sexo, que merecem a tutela penal.
Existem ainda infracções às regras de saúde, higiene e segurança no trabalho que colocam em perigo, por vezes muito grave, os trabalhadores, constituindo autênticos crimes de perigo, a merecer a tutela penal.
Vamos, por isso, na especialidade, propor, na parte dos crimes contras as pessoas, um novo capítulo concernente aos ilícitos penais laborais.
Algumas considerações merecem, ainda, nesta breve passagem pela parte especial do Código, os crimes contra a honra e a reserva da vida privada, os crimes sexuais, bem como os crimes patrimoniais.
No que toca a estes últimos, manifestamo-nos, desde já, contra a qualificação dos mesmos em função de unidades de conta processuais. O actual sistema, deixando ao critério do julgador a qualificação dos mesmos, permite uma maior justiça.
É ainda nos crimes patrimoniais que encontramos o que maior estupefacção nos causou. É aqui, enquanto a orientação geral do Código é a de estabelecer pena de multa alternativa para as penas de prisão até 3 anos, na burla grave e no abuso de confiança de certa gravidade que se prevê que uma pena de prisão até 5 anos possa ter uma pena de multa em alternativa. Ainda nenhuma justificação nos foi dada para tal desacerto.
Constatando-se que nos crimes contra as pessoas houve uma agravação das molduras penais, surge como irrazoável que se tenha abrandado a punição no rapto e na ajuda e incitamento ao suicídio de menores.

Página 2753

30 DE JUNHO DE 1994 2753

Por outro lado, o Governo manteve-se surdo à proposta da Comissão Revisora quanto à exclusão da ilicitude do aborto engénico, quando praticado nas 22 semanas. Está demonstrado que a previsão do actual Código é, de todo em todo, ineficaz. A ciência médica refere-o.
Esta é também uma das matérias em que apresentaremos propostas, aliás no seguimento de outras que, outrora, já apresentámos nesta Assembleia.
Os crimes contra a honra e a reserva da vida privada foram objecto de grande debate na Comissão. É nesta sede que algumas das propostas de alteração, vindas umas do Governo e outras da Comissão Revisora, entram em conflito com o direito a informar. A marca dos tempos e da ofensiva a que vem sendo submetida a comunicação social, com certeza, levou o Governo a determinadas opções, muitas delas até para além das propostas apresentadas pela Comissão Revisora.
Assim se tem de entender que essa marca dos tempos está presente no n.º 3 proposto para o artigo 180.º; na manutenção - apenas de responsabilidade do Governo - do actual n.º 4 do artigo 164.º; no alargamento de uma classe de «intocáveis », protegidos por uma moldura penal agravada, relativamente a crimes cometidos contra o comum dos mortais; na previsão de um novo tipo de crime - da responsabilidade governamental -, vazado no artigo 187.º; e ainda nas alterações a que se procedeu relativamente a alguns tipos de crimes, como acontece com as gravações e fotografias ilícitas.
Relativamente a todos estes artigos, vamos apresentar propostas de alteração. Entendemos, de facto, que neste capítulo se reflecte um comportamento reactivo da classe política perante a actuação da comunicação social.
É difícil não concluir que o Governo pretende a opacidade dos serviços do Estado, atemorizando a comunicação social com o artigo 187.º.

Vozes do PCP e do Deputado independente Mário Tomé: - Muito bem!

A Oradora: - E é difícil escamotear que, na base de tal artigo, estão as denúncias de ilegalidades cometidas, por exemplo, no DAFSE e no SIS.

Vozes do PCP: - Muito bem!

A Oradora: - Também, só um comportamento reactivo da classe política justificará - e mal - que se proíba a prova da verdade dos factos quanto a imputações relativas à vida privada e familiar.
A parte geral do Código já protege a esfera íntima da vida dos cidadãos. Aquela que nenhuma relevância tem para a opinião pública.
Assim, o n.º 3 do artigo 180.º pode querer inculcar - para nós, contudo, sem sucesso- que há uma esfera da vida privada igual para todos os cidadãos. E sabemos que assim não é. O círculo da vida privada das figuras públicas é consideravelmente mais reduzido do que o do comum dos cidadãos. Neste aspecto, a formulação do projecto de Código Penal espanhol é bem mais cautelosa.
Na avaliação das alterações que se introduziram a alguns tipos de crimes, eliminando a expressão «sem justa causa », que para uns constitui uma menção redundante da ilicitude, e para outros integra a própria factualidade do tipo, quanto ao crime das gravações e fotografias ilícitas, registamos que, a propósito da expressão «sem justa causa », alguma doutrina conclui que há uma «extensão acrescida da incriminação ».
Ponderados os interesses em conflito - o das vítimas e os daqueles que exercem o direito de informar -, parece-nos que, apesar de a parte geral do Código poder resolver o problema, se deve entender como útil, como diz a doutrina alemã, que as normas incriminatórias advirtam que ocorrem muitas vezes situações de conflito que reclamam a justificação da conduta, apesar do preenchimento do tipo.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Muito bem!

A Oradora: - Num momento em que está pendente, nesta Assembleia, uma proposta de lei de alteração da Lei de Imprensa, configurando reais ameaças contra os jornalistas, a Assembleia da República não lhe deverá juntar, em sede de Código Penal, propostas que constituam um verdadeiro pacote anti-informação.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não obstante os avanços introduzidos no capítulo sobre crimes sexuais, entendemos que não se erradicaram, desse capítulo, todos os ideais tabu que não assentam em qualquer defesa da dignidade da pessoa humana, mas em ancestrais ideias de protecção do património familiar por via sucessória.
Explicitaremos o que afirmamos agora nas propostas que iremos apresentar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Destacado o quadro negativo que condicionou as propostas de alteração ao Código Penal, há, no entanto, que assinalar as preocupações debatidas na Comissão Revisora no sentido de não se enveredar, por força de momentâneas conjunturas, num sentido punitivo aproximado do law and order. A que, no entanto, não fugiu o Governo, como vimos, no capítulo dos crimes contra a honra e contra a reserva da vida privada.
Deve, no entanto, assinalar-se que é precisamente do texto governamental, que não do da Comissão Revisora, que o princípio vitimológico, já aqui referido pelo Sr. Ministro da Justiça, também necessariamente director de um programa político-criminal, sai enfraquecido.
Na verdade, o Governo abandona definitivamente a criação de um seguro social, previsto no actual artigo 129.º, para assegurar as indemnizações ao lesado.
Aliás, o triângulo lesado, Estado, vítima e a avaliação da efectivação do princípio vitimológico só poderá ser feita depois de conhecidas as alterações ao Código do Processo Penal. Os seus trabalhos preparatórios são desconhecidos pela Assembleia.
Assim, Sr. Presidente e Srs. Deputados, concluímos que a Assembleia da República teve e tem sobre os seus ombros um trabalho difícil, desmuniciada como está dos elementos fundamentais para que a sua avaliação se não transforme em decisionismo.
Onde, aqui ou além, surgem as iras da lei, a exemplaridade do castigo, situação a que se não conseguiu fugir, como vimos, nos crimes contra a honra e a reserva da vida privada.
Contávamos com o precioso labor da Comissão Revisora, que se suplantou, tentando colmatar a inexistência de um consenso social prévio sobre as alterações e a indefinição do Governo relativamente aos objectivos e metas da política criminal.
No Governo, como resultou da crispação em torno da proposta da Comissão Revisora, há quem considere o Código Penal o instrumento da política criminal por excelência. Mas todos, dentro do Governo, estão de acordo numa política anti-social, geradora de mais delinquência.
Esse é o perigo principal que ameaça o labor daqueles que continuam a acreditar que é possível que o Estado não

Página 2754

2754 I SÉRIE-NÚMERO 85

produza maior delinquência do que a que combate na lei penal.

Aplausos do PCP, de Os Verdes e do Deputado independente Mário Tomé.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Ferraz de Abreu.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: 1. Propõe-se o Governo, com a aprovação da proposta de lei n.º 92/VI, obter a indispensável legitimidade constitucional para proceder a uma reforma do Código Penal. Uma reforma que, à vista do texto junto - correspondente ao articulado do futuro Código -, se adivinha profunda e significativa. E que se projecta numa pletora, quase incontável, de alterações da codificação vigente. Pelo seu número, não é, naturalmente, possível recensear, referenciar, enquadrar e valorar criticamente todas essas propostas.
Nada também menos adequado, neste espaço e neste processo, do que a tentativa de fazer valer aqui construções teóricas capazes de emprestar racionalidade dogmática ao universo das propostas em exame.
Tal tarefa, por certo mais consentânea com uma academia de direito do que com um fórum político, já foi, de resto, em boa medida, empreendida e lograda nos aturados e profícuos debates que ocorreram em sede de colóquios organizados nesta Casa, bem como nas numerosas e sucessivas reuniões operadas no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Julgo não andar errado se acreditar que o que aqui se nos pede, - coram senatum, reunido em Plenário, que o mesmo é dizer coram populum, onde poucos, por certo, serão especialistas de direito criminal, mas todos são, seguramente, representantes e intérpretes credenciados das aspirações, das valorações e das reivindicações do povo português em matéria de luta contra o crime -, o que aqui se nos pede, dizia eu, é, seguramente, coisa diferente: é o discurso de enquadramento e de legitimação política do Código Penal em revisão. Uma legitimação que há-de sindicar-se a partir de uma série complexa e integrada de perspectivas e exigências, das quais devem destacar-se quatro.
Em primeiro lugar, há que questionar-se a fidelidade do Código à tradição e às representações culturais do povo português, em matéria de direito criminal. Nada, naturalmente, mais adquirido e mais pacífico de que o direito é um produto cultural e, portanto, uma segregação cultural dos povos. Tudo está em saber se, com este diploma, os representantes do povo se afastam ou não das mundivisões do povo português. Uma consideração que é tanto mais oportuna quanto é certo que, a meu ver, infundada e erradamente, se vem falando de uma revolução copernicana no sentido do referente nacional.
Em segundo lugar, há-de questionar-se o respeito pelos procedimentos constitucionalmente previstos para elaborar a legislação em matéria criminal.
Em terceiro lugar, há-de sindicar-se a consonância das soluções previstas com a constelação de valores jurídico-constitucionais da nossa lei fundamental.
Por último, há-de averiguar-se a idoneidade da bateria de soluções, do ponto de vista das metas e dos programas que nos propomos, em sede de política criminal, isto é, de prevenção do crime.
2. Ora, vistas as coisas com o rigor e a ponderação necessários, é nossa convicção, Deputados do PSD, que o texto em exame passa praticamente incólume o mais rigoroso exame à luz destes critérios. E responde afirmativamente a todas as exigências de política criminal emergentes destes mesmos critérios. É o que nos propomos demonstrar, de forma necessariamente apressada e sincopada.
Em primeiro lugar e significativamente, a proposta de revisão deixa intactos os primeiros 40 artigos do Código em vigor. Isto é, não altera a construção dogmática da infracção criminal, aquilo a que, com propriedade, se vai já chamando a gramática dogmática, intersubjectivamente estabilizada pelas últimas gerações de juristas portugueses. Aqueles que, na diversidade das suas funções, como magistrados, agentes das polícias criminais, advogados, etc., têm sobre os seus ombros o ónus e a honra de protagonizar o sistema de justiça penal portuguesa. Todos eles, de uma forma ou de outra, alunos das duas grandes escolas de direito penal portuguesas, sob o magistério de Cavaleiro Ferreira e Eduardo Correia, fizeram sua e interiorizaram esta gramática dogmática da construção da infracção criminal. Por isso, nada mais aconselhável do que deixá-la intocada. Até porque os desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais, entretanto ocorridos, tanto entre nós como no estrangeiro, não puseram em causa a pertinência, o rigor e o acerto dessas soluções.
Trata-se de uma dogmática, importa reconhecê-lo, com decisivos e manifestos momentos de comunicabilidade com a elaboração doutrinal de outros países, designadamente com a alemã, da qual recebeu o modelo fundamental de compreensão e sistematização categorial. O que não é o mesmo que afirmar a tal revolução copernicana, no sentido de que, já com o Código Penal de 1982, já com a reforma em curso, se assistiria a uma como que colonização do direito penal português pelo direito penal germânico.
E isto, por duas importantes ordens de razões.
Em primeiro lugar, por ser verdade que já o Código Penal de 1852-1886 era, a seu modo, uma cópia relativamente fiel do Code penal francês, de 1810, o conhecido Código Napoleónico. Não era, de resto, por acaso, que, nos escritórios dos mais qualificados advogados portugueses e mesmo nas bibliotecas dos nossos tribunais, avultavam, como instrumentos de trabalho privilegiados, os grandes tratadistas e comentadores franceses. Não há jurista formado e que tenha trabalhado com o velho Código Penal que não conheça Chauveau e Hélie, Garçon, Garraud, etc. Portanto, o decantado abandono do paradigma português é, de certo modo, o abandono do paradigma francês.
Por outro lado e sobretudo, nada mais apressado do que considerar que a relativa comunicabilidade categorial e sistemática entre o Código Penal português e o Código Penal alemão resulta em mimetismo, no sentido de que o Código Penal português tenha absorvido o mesmo conteúdo das soluções e dos conceitos, que, sob o mesmo nome, correm na experiência jurisprudencial e doutrinária alemãs. Temas tão importantes como o erro, a comparticipação, as causas de justificação, o concurso, a reincidência, etc., embora com os mesmos nomes, têm conteúdos significativamente diferentes dos que esses mesmos conceitos têm na literatura e na experiência jurisprudencial alemãs. Não será arriscado acreditar que no nosso Código Penal, apesar da aproximação categorial, a seiva que verdadeiramente corre é a que vem de Pascoal de Melo Freire, Levy Maria Jordão, Afonso Costa, Henriques da Silva, Beleza dos Santos, Eduardo Correia e Cavaleiro Ferreira. E se dúvidas subsistissem a este propósito, vejam-se os últimos tra-

Página 2755

30 DE JUNHO DE 1994 2755

tadistas alemães e suíços a apontar para o carácter inovador de muitas das propostas da gramática dogmática do Código penal português. Cito, a título puramente exemplificativo, trabalhos de Tiedmann, na Alemanha, e de Schultz, na Suíça, que indicam a construção dogmática do Código Penal português como modelo a seguir pela Europa.
Apesar de tudo, há aqui uma certa ambivalência de mesmidade e diferença, algo que é comum e algo que é diferente. E esta ambivalência é particularmente fecunda nos tempos que vivemos, os decantados tempos da construção europeia. É que, na medida da mesmidade, os penalistas portugueses, mercê do esforço dos seus doutrinadores, estão, de há várias gerações a esta parte, preparados para a construção europeia, sem grandes solavancos e sem grandes angústias. Os juristas portugueses falam, hoje, segundo a mesma gramática penal seguida na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Áustria e na generalidade dos países do ex-bloco de Leste. Na medida do que é diferente, este nosso património deve ser reivindicado como um contributo de Portugal para a mesma construção europeia. Não resisto à tentação de citar aqui a voz de um poeta, Torga, que, talvez no seu único texto sobre direito penal e reivindicando que também «os clarins da emoção » dos poetas devem pronunciar-se sobre o Código Penal, escrevia, a propósito da abolição da pena de morte por Portugal: «O civismo liberal de um pequeno povo, sem esperar por outros exemplos, adiantou-se corajosamente na senda do espírito e pôs termo à negra tarefa das balas, do baraço e do cutelo. Pos termo ao único gesto absoluto que o homem pode fazer, e não deve fazer. Ao gesto que o transforma num grotesco Deus de arremedo, que, quando fulmina, se fulmina.»

Aplausos do PSD.

Esta exigência é tanto mais pertinente quanto é certo que, mesmo na Europa democrática, desvanecidos os medos e esconjurados os fantasmas do totalitarismo, não emudeceram inteiramente as vozes das Erínias. Que, em nome da reivindicação de law and order, reclamam um endurecimento desmesurado e desproporcionado da punição dos delinquentes. Um endurecimento para além do qual entramos já no domínio do - e cito, de novo, Torga - «crime legal», o crime cometido em nome e a coberto da lei, «que compromete toda a sociedade, que, nessa maciça, fria e desmedida resposta ao agravo dum só, se exautora e condena».
Por isso, repito, na medida do diferente, este diferente deve ser assumido: como bandeira de humanismo, de antropologia optimista na crença da capacidade de ressocialização, de melhoria e de corrigibilidade do Homem. Como bandeira de tolerância e de ressocialização oferecida ao condenado.
3. A reforma começa a afirmar-se e a ganhar fôlego e profundidade a partir do artigo 40.º - do novo e marcante artigo 40.º, só ele a valer por um programa de política criminal - e projecta-se, sobretudo, no regime das penas e das medidas de segurança, por um lado, e na parte especial, por outro.
Cabe indagar, agora, se estas alterações se adequam, ou não, ao paradigma de um direito penal moderno, um direito penal próprio de uma sociedade democrática, de uma sociedade secularizada e plural, não vergada ao peso de representações moralistas monolíticas e ideológicas, e se adaptam às exigências de um Estado de Direito democrático.
O direito penal paradigmático destas exigências pauta-se, sobretudo, por três axiomas fundamentais.
O primeiro é que o direito penal só pode intervir para assegurar a protecção necessária e eficaz de bens jurídicos fundamentais, indispensáveis ao livre desenvolvimento ético da pessoa e à subsistência e funcionamento de uma sociedade democraticamente organizada. Ou seja, o direito penal só tem legitimidade para servir fins imanentes ao próprio sistema social e não fins transcendentes. Isto, de resto, na linha de uma reivindicação, velha de séculos, que os penalistas do iluminismo lançaram sob a ideia de que o Direito Penal deve limitar-se apenas a proteger as condições de vigência e de funcionalidade do contrato social, e que hoje é aceite por todos, mesmo pelos representantes mais credenciados da teleologia tradicional. Teólogos católicos, como Kung, Metz ou Karl Rahner, vêm acentuando que o Direito Penal deve permanecer imanente à própria terra, isto é, não ascender à tutela de coisas transcendentes, atendendo ao funcionamento normal de uma determinada sociedade. Para o Direito Penal dos tempos modernos vale o que diz a canção de uma telenovela: «quanto mais longe da terra, tanto mais longe do céu ».
De acordo com o segundo axioma, a ameaça, aplicação e execução das penas só pode ter como finalidade a reafirmação e estabilização da validade das normas violadas, o restabelecimento da paz jurídica e da confiança nas próprias normas e a ressocialização do delinquente.
Vale isto por dizer que o Direito Penal de um estado moderno, de uma sociedade secularizada e plural, não pode estar ao serviço de valores absolutos, do tipo das kantianas expiação e retribuição. Isto tanto por força de todas as aporias epistemológicas que põem em causa a ideia de retribuição, como por força das próprias aporias de legitimação que denegam ao Estado a legitimidade para, em nome do Direito Penal, servir valores absolutos, como a expiação da culpa.
Por outro lado, a ressocialização há-de ser oferecida ao delinquente e não imposta coactivamente; a ressocialização é um direito do condenado e não um direito da sociedade. A ressocialização como direito da sociedade faria agigantar de novo as temíveis ameaças de um therapeutic state, de um Estado terapêutico, em que o poder absoluto das «batas brancas » se substituísse ao poder controlado das «togas negras » dos magistrados. E pusesse, perante nós, a angústia daquela personagem do bem conhecido filme «Voando sobre um ninho de cucos », ern que um internado pergunta à assistente social: «Mas o meu tempo de prisão não acabou já? ». E assistente social responde: «Tempo de prisão, tempo contado, só há nas prisões aplicadas pela justiça, aqui estamos em tratamento, estamos em ressocialização, aqui não há tempo ». Para evitar estas aporias e estas ameaças é que a ressocialização tem de ser oferecida ao condenado, não lhe podendo ser imposta.
Compreende-se, assim, uma proposta da reforma, que causou algum escândalo, designadamente a exigência de consentimento do condenado para algumas medidas que apontam e que estão pré-ordenadas à ressocialização. A lógica é esta: a ressocialização não pode ser imposta ao delinquente, tem de ser oferecida pela sociedade, sobrando sempre ao delinquente o direito à diferença se e na medida em que o queira exercer.
Esta ideia de ressocialização é também, manifestamente, uma das pedras de toque da nossa cultura e da nossa tradição jurídico-penal. Mergulha as suas raízes mais visíveis e mais expostas na teoria de Levy Maria Jordão; foi assumida com particular ênfase pelo primeiro Ministro da Justiça da República, Afonso Costa; e foi assumida com particular empenho pelo último grande legislador penal português, Eduardo Correia, que foi também o último dos grandes kantianos, mas que aceitava que a ideia de retribuição cedesse em nome da ideia de ressocialização, acreditando

Página 2756

2756 I SÉRIE-NÚMERO 85

que pode diluir-se a ideia de retribuição desde que se salve um homem.
Era ainda o mesmo Eduardo Correia que escrevia: «Um puro idealismo que impusesse a aplicação de sanções como fim em si mesmas, desprendidas da sua significação funcional, esqueceria que o Direito Penal é também institucionalmente forma de realização da vida em comum, na medida em que protege certos bens jurídicos (...). A punição baseada na culpa não tem, porém, um fim em si mesma, mas serve a protecção dos bens jurídicos. E se esta protecção se deve traduzir eminentemente na ressocialização do delinquente, a pena não há-de ter um sentido estático de mera retribuição de um mal com um mal, mas o de reparação das tendências do deliquente para o crime, através da sua recuperação e regeneração ».
Por último, o terceiro axioma diz-nos que a culpa deve persistir como pressuposto irrenunciável e como limite intransponível da pena. A culpa não deve dar a medida da pena. A pena pode ficar aquém da culpa, o que não pode é ultrapassá-la, até porque esta, como em outra sede escreveu o ilustre Presidente desta nossa Casa, constitui um «axioma antropológico » da ordem jurídico-constitucional portuguesa. Tem de valer como limite, como barreira à instrumentalização do homem, em nome de fins próprios da sociedade. Como garantia de que a racionalidade instrumental, de que falava Max Weber, não vai dominar, absorver e sacrificar inteiramente a racionalidade de valores de uma sociedade democrática.
Por respeito à exigência da culpa, o Código e o legislador penal português faz eco daquela sábia advertência de Schiller, que já dizia ao príncipe: «Desconfiai, nobre senhor, nem tudo aquilo que é útil ao Estado é necessariamente justo ». É o limite da culpa que garante que a prossecução de tarefas e de metas legítimas, através do instrumento de conformação social que é o Direito Penal, se faça com respeito pelas exigências inultrapassáveis da justiça.
4. Não cabe no curto espaço que nos foi dado, e que nos é, sobretudo, tributado pela paciência de VV. Ex.ªs, uma referência detalhada a todas as propostas ou às mais significativas propostas da parte especial. Permito-me, abreviando o teor da minha fala, deixar, apesar de tudo, um tópico, que é o do reforço da tutela penal das pessoas. Bem podendo dizer-se que esta é uma reforma penal feita sobretudo em nome da pessoa e para a pessoa.
No novo texto do Código Penal, o número de crimes contra as pessoas, não obstante a redução significativa do número de crimes da parte especial, passa de 55 para 71. Ou seja, há muitos mais valores pessoais, quase todos recondutíveis a formas concretizadas de liberdade pessoal, que aparecem agora com a categoria de bens jurídicos, a gozar de tutela penal, bem podendo dizer-se que, se este é o Código da pessoa, é também o Código da liberdade, o Código Penal das liberdades.

Aplausos do PSD.

Nunca um código penal português, como nunca um código penal da Europa, teceu tantas normas penais directamente pré-ordenadas à tutela de formas concretas e no-minadas de liberdade. Na certeza de que o evoluir dos tempos fará acrescer esse universo de liberdades a gozar de tutela penal.
Temos a consciência muito clara de que não é possível a tutela de uma liberdade de forma absoluta porque as liberdades vivem e desenvolvem-se ern conflito e polaridade dialéctica, em tensão recíproca. É, pois, indispensável que a garantia de umas liberdades limite ás outras e que haja aquele comércio saudável de liberdades de que falam os juristas. Ou, como dizia Kant, «a ordem jurídica tem de limitar a expressão da liberdade de cada um às condições da convivência com a liberdade dos outros ». Ou ainda, seguindo Fichte, «a grande tarefa do direito está em tomar possível o convívio das liberdades de todos segundo uma regra ».
Isto vale para uma preocupação que tem tido por si o eco e a projecção na ribalta contemporânea, designadamente no que toca à liberdade de imprensa. Nos colóquios realizados e nas numerosas reuniões da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que tiveram lugar, tentámos demonstrar - e não foi feita demonstração em contrário - que as propostas protagonizadas pelo texto da reforma não reduzem, antes ampliam, o campo da liberdade de expressão do ponto de vista penal. Isto é, se algum sentido efectivo têm as propostas do Código Penal é o da redução significativa da mancha do punível a título de abuso de liberdade de imprensa.

Aplausos do PSD.

Fizemo-lo a propósito do já aqui citado n.º 3 do artigo 180.º, demonstrando que a sua eliminação redundaria em agravação das condições jurídico-penais dos profissionais do direito da palavra. Que são, para além dos jornalistas, todos aqueles que fazem da liberdade de expressão a sua forma de actuação e de realização de funções essenciais ao exercício da democracia. E que, pelo recurso à violência, por vezes necessária, da palavra, podem colidir com direitos como a honra ou a privacidade dos outros. Temos, por exemplo, em vista os críticos literários, os advogados no debate forense, etc., todos aqueles que usam esta instituição, que é a palavra escrita ou falada e que, no seu exercício e ao serviço dela, podem entrar em conflito com a honra ou com a privacidade dos outros.
5. Na impossibilidade de levar mais longe esta nossa análise, termino, Sr. Presidente e Srs. Deputados, com a consciência assumida da modéstia da nossa tarefa. Ninguém está aqui a escrever direito para a eternidade. O tempo do direito intemporal acabou quando, no século passado, se desfizeram as últimas ilusões de jusnaturalismo. Só quando se pensava que o Direito Penal podia ser lido na vontade dos deuses ou escrito na natureza é que se podia pensar que o Direito e o Direito Penal, proclamado uma vez, o era para todos os tempos.
As tarefas que nos incumbem - e esta foi a grande descoberta do direito positivo - são muito mais modestas mas também muito mais gloriosas. Somos agentes e participantes numa estafeta interminável, em que nos limitamos a passar o testemunho. Deixamos um padrão com a marca do nosso próprio tempo e das nossas angústias e esperanças na certeza e na convicção de que aqueles que hão-de vir farão diferente de nós. Oxalá que assim aconteça! Os seus contributos são desde já bem-vindos!

(O Orador reviu.)

Aplausos do PSD.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Barbosa de Melo.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: O debate político da

Página 2757

30 DE JUNHO DE 1994 2757

revisão de um código penal requer que à perspectiva do «direito nos livros» se sobreponha a perspectiva do «direito em acção». O ponto de partida, em sede política, não pode estar no livro que se revê, mas no mundo em que o livro actua - ou não actua.
O Código Penal de 1982 é um código penal da democracia, cujos fundamentos dogmáticos e político-criminais não foram postos em crise. Em questão esteve e está, para utilizar as palavras do próprio Presidente da Comissão de Revisão, a aproximação desses fundamentos à «realidade da administração da justiça » que deles se admite estar inaceitavelmente distanciada. Neste quadro, uma avaliação da oportunidade, justificação e alcance desta iniciativa supõe um juízo sobre os limites e obstáculos presentes no funcionamento do dispositivo de resposta penal. Destaco quatro pontos cruciais que dão a dimensão da distância existente entre o mundo e o livro.
Em primeiro lugar, em Portugal, são denunciados às autoridades menos de um quarto dos crimes cometidos - as vítimas não confiam na capacidade e no interesse das autoridades e mais de metade, quando se queixam, têm um juízo claramente negativo sobre a sua intervenção. Segundo os resultados do último inquérito de vitimação conhecido e publicamente apreciado pela comunidade científica, os números nacionais deixam-nos, neste domínio, a grande distância da média europeia e muito claramente abaixo da média espanhola. O funcionamento do sistema penal e a imagem que projecta na sociedade faz com que, para a maior parte dos crimes e das vítimas, não chegue nunca a hora do Código Penal.
Em segundo lugar, o esclarecimento daquela limitada percentagem de crimes de que se ocupam as autoridades é excessivamente moroso e, para o caso dos crimes mais praticados e participados, escasso. Os procedimentos de classificação e a deficiência das estatísticas deformam a realidade. Sabe-se que há processos que são mantidos de fora das cifras estatísticas e que a elas só regressam se acaso são recuperados para a investigação.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Isso é grave!

O Orador: - Mas em relação a certas categorias de crimes, e justamente os que ocupam o primeiro lugar no ranking penal, é seguro que a taxa de esclarecimento não atinge os 50 %. E há departamentos onde se acumulam prescrições, onde a investigação de certas categorias de crimes só começa, em média, um ano depois de apresentadas as queixas, outros onde há dezenas de processos que, desde há seis e sete anos, não conhecem investigação - há crimes praticados há oito anos que ainda não começaram a ser investigados. Por causa das decisões tomadas ou omitidas em matéria de recursos humanos, logísticos e periciais, para muitos dos processos e crimes de que se ocupam os departamentos de investigação também não chega - ou chega demasiado tarde - a hora do Código Penal.
Em terceiro lugar, observando os processos que transitam para os tribunais, verifica-se que, já na fase de julgamento, o número dos que terminam por desistência ou amnistia é superior ao dos que terminam por condenação. A morosidade e inadequação da resposta penal, o decurso de anos e anos entre a data dos crimes e o seu julgamento, constitui um dos factores fundamentais desta economia anómala da actividade judicial. Acompanhando a história de certas categorias de processos, constata-se que cada ano que passa sobre o cometimento de um crime antes que seja julgado milita a favor da desistência e da amnistia, quando não da prescrição. Isto significa que uma parte do tempo que é empregue na nossa justiça criminal se revela desproporcionado à natureza dos resultados, com óbvio sacrifício da disponibilidade para aqueles crimes que é fundamental julgar e julgar prontamente. E não se pense que são as infracções previstas no Código Penal que estão em causa na maioria dos processos-crime julgados: cerca de metade das condenações proferidas pelos tribunais dizem respeito a infracções não previstas no Código Penal.
Em quarto lugar, não obstante a baixa taxa de participação, a baixa taxa de esclarecimento, o nível das desistências em julgamento e a intervenção periódica de amnistias e perdões - descarregando processos, afastando condenações e libertando reclusos -, o sistema prisional não está dimensionado nem dotado de condições para que as penas de prisão decretadas pelos tribunais sejam cumpridas com observância das finalidades consagradas pelo Código Penal. As finalidades de recuperação social do delinquente assinaladas pelo Código Penal não encontram expressão prática - encontram antes negação prática - nas condições de superlotação crónica que se atingiram e noutras condições de degradação da vida prisional que potenciam o efeito criminógeno e impossibilitam o pretendido efeito recuperador. Quando os reclusos, para além do cumprimento da pena de prisão a que tenham sido condenados pelos tribunais, o são também às penas, não previstas no Código Penal, de sevícias sexuais e de contracção de sida, a distância entre o discurso do livro e o mundo das prisões atinge uma dimensão inquietante.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Estes quatro elementos de um diagnóstico necessário são suficientes para se concluir que a nossa justiça criminal está carecida de mudanças sérias, profundas e urgentes, que actuem nas fases de investigação, de julgamento e de execução das penas, para que a sociedade, e em particular as vítimas de crimes, possa aumentar a sua confiança no sistema, acreditar na eficácia da sua intervenção, dar-lhe notícia, em proporções mais aceitáveis, dos crimes cometidos e reforçar o sentimento de confiança no direito.
É que, se os cidadãos vítimas de crimes, em cerca de 4/5 dos casos, concluem que não vale a pena participar às autoridades, é preciso dizer que, correlativamente, são altas as expectativas de impunidade em Portugal. Os autores de crimes têm podido contar com as baixas probabilidades de queixa, investigações morosas com baixas taxas de êxito, julgamentos suficientemente distanciados para tornar elevadas as probabilidades de amnistias, perdões e desistências e, por fim, em caso de condenação a pena de prisão, a expectativa de libertação condicional a meio da pena. Com as altas expectativas de impunidade com que se tem vivido, há o risco - que urge afastar- de minarmos as próprias bases da filosofia liberal e humanista em que se inspira o nosso Código Penal. É que essa filosofia postula, e bem, a concepção de que, mais do que a gravidade das penas, é a expectativa de uma investigação rápida e eficaz e de um julgamento pronto que conta para a prevenção dos crimes.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Não há dúvida, pois, que o ponto em que estamos torna imperativa uma acção decidida de recuperação da resposta penal. Mas constituir-nos-íamos em co-responsáveis de uma fraude política se transmitíssemos ao país a imagem de que um aperfeiçoamento do texto do Código

Página 2758

2758 I SÉRIE-NÚMERO 85

Penal é, isoladamente, a iniciativa prioritária, a medida fundamental e, menos ainda, a medida suficiente para enfrentar o problema do crime e da segurança na sociedade portuguesa.
Estamos naturalmente identificados com uma lógica de aperfeiçoamento e modernização do que é, sem dúvida, um código fundamental da democracia portuguesa. Mas a nossa tese fundamental é a de que, mais do que uma simples acção sobre o texto, se requer hoje uma acção articulada a favor da qualidade da resposta e da justiça criminal. Uma acção que atinja, de forma consistente, as expectativas excessivas de impunidade que hoje existem na sociedade portuguesa, aumentando a confiança da generalidade dos cidadãos e reduzindo as perspectivas de impunidade dos autores de crimes.
Para obter resultados efectivos nesta direcção é necessário, com carácter prioritário, pôr em prática um outro programa.
Em primeiro lugar, terão de se reforçar significativamente os meios humanos, logísticos e periciais disponíveis para a investigação, de forma coerente e com uma definição precisa de prioridades de política criminal, de modo a obter respostas mais rápidas e eficazes e taxas mais elevadas de esclarecimento dos crimes.
Não é tolerável a exiguidade dos meios que têm sido proporcionados ao Ministério Público; não é tolerável que, durante três anos, o reforço dos meios humanos da Polícia Judiciária, indispensável para a investigação de crimes como as fraudes na obtenção a aplicação de subsídios, se tenha praticamente limitado a um concurso externo aprovado em 1991 e que ainda não produziu frutos; não é tolerável que haja apenas um agente disponibilizado para a investigação dos crimes relacionados com as facturas falsas; não é tolerável que se espere seis meses por uma análise do Laboratório Nacional de Polícia Científica.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Em segundo lugar, dever-se-á actuar em simultâneo sobre a lei processual penal, a lei penal substantiva, nomeadamente a constante de legislação avulsa, e a orgânica judiciária para agilizar a resposta dos tribunais.
Não é admissível que, em 1991, tenha sido nomeada uma Comissão para a Revisão do Código de Processo Penal e não se possa discutir e apreciar aqui, em simultâneo, as indispensáveis propostas de revisão nesse domínio. Não é admissível que uma grande parte da actividade dos tribunais criminais se concentre em torno do crime de emissão de cheques sem provisão - têm razão a Ordem dos Advogados e o Prof. Figueiredo Dias quando reclamam soluções inovadoras neste domínio. Não podem manter-se soluções que conduzem à multiplicação dos adiamentos. Parecem encorajantes os dados estatísticos - sempre invocados pelo Sr. Ministro e que hoje, mais uma vez, aqui o foram - sobre a evolução da duração média dos processos na fase de julgamento. Mas, se se pensar no peso que nesse conjunto têm os que terminam por desistência e por amnistia e no tempo decorrido até à fase de julgamento, que é o elemento que, como vimos, importa para o efeito preventivo, o entusiasmo tem de esfriar. Não podem manter-se soluções substantivas, processuais e orgânicas que, no âmbito da justiça criminal, fazem concentrar o tempo dos magistrados em infracções que consentem outro tipo de processamento e alternativas de sancionamento, nomeadamente no domínio do direito contra-ordenacional.
Em terceiro lugar, haverá que regulamentar e criar condições para a aplicação prática de alternativa à pena clássica de prisão.
Por mais que se aperfeiçoe o Código Penal, não é possível tirar partido de penas como a prestação de trabalho a favor da comunidade sem que, em complemento à lei penal, se edite regulamentação que viabilize e promova a sua aplicação - como reconheceu e defendeu o Presidente da Comissão de Revisão -, o que até agora tem faltado e nem sequer se anuncia. Não é possível valorizar, como se pretende, a pena de multa, sem que o respectivo regime de execução passe a dar garantias de eficácia, para começar aos próprios aplicadores, o que até agora não tem acontecido. É que, ficando as soluções punitivas inovadoras do Código Penal desamparadas e sem condições práticas de aplicação, o direito será apenas melhor nos livros.
Em quarto lugar, o panorama legal e prático da execução das penas deverá ser revisto.
Não pode mais ser diferida a reforma do direito penitenciário, a prometida revisão dos tribunais de execução de penas, a reestruturação e o adequado dimensionamento do sistema prisional e dos mecanismos de acompanhamento da reinserção social, na base de uma avaliação rigorosa da situação existente.
É preciso, a propósito, que chegue rapidamente ao Parlamento informação exaustiva e qualificada - e não dados estatísticos de emergência deficientes, equivocados e geradores de juízos falsos, como ainda recentemente aconteceu - sobre o mundo que se abre a jusante das condenações judiciais a penas de prisão. Não é admissível que sobre a ignorância ou a ausência de dados fiáveis a magistratura seja convertida em bode expiatório da situação vivida nas prisões.
É no quadro desta agenda incontornável no âmbito da justiça criminal que há também um lugar para o aperfeiçoamento e actualização do Código Penal vigente - um código cujas linhas fundamentais, repete-se, não aparecem questionadas e cujas virtualidades têm sido, sobretudo, tolhidas pela inadequação e falta de instrumentos complementares e pela ausência de condições práticas apropriadas para a concretização do seu programa.
Quando se tornou conhecida a proposta da Comissão revisora, presidida pelo Professor Figueiredo Dias, concluída já em 1991, desenvolvendo linhas fundamentais do código vigente e aperfeiçoando e actualizando algumas das suas implicações, o Partido Socialista tornou pública a sua identificação com algumas das principais preocupações presentes no trabalho da Comissão, em especial as que orientavam para uma maior congruência com os valores constitucionais, a saber: a perspectiva de um direito penal orientado para a defesa de bens jurídicos e não para a tutela de concepções moralizantes; a correcção das assimetrias punitivas entre os crimes contra o património e os crimes contra as pessoas; a valorização das penas alternativas às penas clássicas de prisão; a modernização da concepção dos crimes sexuais, como crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual; a abertura à tutela de novos bens jurídicos.
Esta postura não implicava nem implica conformidade ou satisfação com as prioridades adoptadas, a metodologia seguida, os recursos disponibilizados para a preparação da reforma, os critérios de participação, e com os próprios resultados ponto a ponto atingidos pela Comissão. Não haja qualquer equívoco a este respeito.
À partida, o facto de na Comissão não ter estado, incompreensivelmente, representada a advocacia acarretou um empobrecimento de horizontes.
As soluções propostas não podem deixar de surgir precarizadas pela ausência de estudos criminológicos - fruto da circunstância inaceitável de não haver entre nós nenhum

Página 2759

30 DE JUNHO DE 1994 2759

Instituto de Criminologia em funcionamento - e pela própria falta de estatísticas fiáveis em domínios fundamentais.
O Presidente da Comissão reconheceu abertamente ter-se trabalhado sem números dignos de confiança. Nos debates ocorridos pairou a ideia de que eram às vezes simples juízos de impressão que suportavam avaliações severas - como essa, não provada, de que a magistratura não teria interiorizado suficientemente o Código de 1982.
Nesta perspectiva, o processo de revisão foi uma oportunidade perdida para um diagnóstico fundamentado e apoiado pluridisciplinarmente do desempenho do nosso sistema penal e para uma mais rigorosa avaliação do desempenho, no âmbito desse sistema, de muitas das normas sob revisão.
Não obstante estas limitações, que, aliás, lhe não são imputáveis, a Comissão de Revisão, presidida pelo Professor Figueiredo Dias, efectuou um trabalho a cujo valor prestamos homenagem e a que o Parlamento deve uma palavra de reconhecimento, em que queremos expressamente envolver todos os membros da Comissão na sua composição plural.
O confronto entre o texto da Comissão e a proposta do Governo permite identificar diferentes sentidos.
Nalguns casos há afastamentos de sentido positivo, como, por exemplo, acontece com as melhorias, ainda que insuficientes, introduzidas no domínio dos crimes sexuais, na previsão do crime de danos contra a natureza, nas alterações - se bem que também carecidas de benfeitorias - no regime da liberdade condicional.
Outros são de sentido negativo, como acontece na disciplina da difamação e do aborto. É que nem a circunstância do partido do Governo se integrar - ainda, ao que parece- na mesma família europeia a que pertence a Sr.ª Simone Weil, que nos idos de 1975 dotou a França de uma lei moderna sobre a interrupção voluntária de gravidez, estimulou o Governo a acompanhar a tímida melhoria que a Comissão chegou a avançar, para já não falar nas próprias concepções do seu Presidente sobre a matéria.
E, infelizmente, pontos há em que são injustificadas e negativas as coincidências entre um e outro texto. Quando se pretende absolutizar a tutela da reserva de «vida privada e familiar» face ao direito de informar, sacralizando-a frente a outros interesses legítimos, propõe-se uma inovação perigosa, que o exame da prática da comunicação social portuguesa, no confronto com a de outros países democráticos, não justifica. E isto é feito ao mesmo tempo que se despreza outra proposta criteriosa da Comissão neste domínio, que o exame dessa prática, essa sim, justifica-o que empresta às inovações nesta área a lógica de uma opção inaceitável em detrimento do espaço da liberdade de informação.
É um ponto, e para nós da maior importância, em que seria indispensável que a maioria reveja as suas opções, honrando compromissos assumidos na Comissão e concretizando espírito de abertura do Governo que aqui foi manifestado neste debate e que abriu expectativas que não gostaríamos de ver frustradas.
Independentemente de múltiplas questões e objecções de especialidade, a abordar na sede própria, a proposta governamental, desde logo na importante medida em que traduz o acolhimento de um património jurídico-penal actualizado de que a Comissão de Revisão se constituiu promotora, não justifica uma postura de distanciamento ou de criticismo artificial. O balanço da discussão na especialidade e o acolhimento de propostas de alteração indispensáveis constituirão um elemento de grande importância para uma avaliação final. Mas desejamos sinceramente que se reunam as condições para podermos dar o nosso voto favorável na votação final global porque entendemos que é valioso que a revisão de um Código Penal traduza um consenso alargado.
Há, contudo, alternativas mais consistentes a algumas das orientações que são propostas, e são essas que aqui queremos enunciar e preconizar.
À cabeça, uma valorização e uma maior diversificação das reacções penais alternativas à pena de prisão clássica, que não assente na centralidade no apelo à multa e na relativa timidez no recurso à prestação de trabalho a favor da comunidade, na admoestação, na prisão por dias livres, na semi-detenção e outras penas de carácter não detentivo.
Os limites demasiado apertados em que estas últimas são contidas na proposta contrastam com a concentração de expectativas na multa quando esta, enquanto sanção especificamente criminal, suscita problemas sérios que não podem deixar de ser equilibradamente equacionados: problemas de igualdade prática entre os justiciados; problemas de congruência com o panorama das coimas no direito das contra-ordenações; problemas de inequivalência material e de diferença qualitativa em relação à pena de prisão; problemas práticos no plano do regime execução que podem agravar todos os anteriores. Que fique clara a advertência e a consciência de que é necessário um acompanhamento rigoroso da inovação nas suas consequências práticas.
Justifica-se, hoje, um leque de reacções penais mais alargado, que não só valorize mais aquelas penas e estenda o seu âmbito de aplicação, como reformule algumas das existentes e inclua outras reacções que fazem já a sua entrada noutras ordens jurídicas, como, por exemplo, a proibição de contratar com o Estado e outras entidades públicas, a proibição de constituir empresas, de assumir determinadas profissões - que parecem particularmente apropriadas para a punição de determinados tipos de crimes.
Preconizamos uma linha de «neo-criminalização » convictamente dirigida para a defesa de novos bens jurídicos que vão adquirindo relevância decisiva para a actual sociedade democrática e aberta, desperta para os valores do livre desenvolvimento pessoal, da igualdade e não discriminação, da integridade das decisões públicas e da defesa do ambiente.
Defendemos uma orientação de reforma coerentemente virada para a penalização de comportamentos que envolvam abuso intolerável de posições de autoridade, de influência e de superioridade e para a protecção acrescida de vítimas como as crianças, os deficientes, as pessoas idosas, as grávidas, e outras pessoas em posição de especial vulnerabilidade.
Nesta linha, propomos que o tráfico de influência não continue impune na sociedade portuguesa e seja expressamente criminalizado no Código Penal. No âmago de um fenómeno grassante na nossa e noutras sociedades contemporâneas, estão em desenvolvimento comportamentos ameaçadores e lesivos da autonomia e integridade de decisões públicas e da igualdade dos cidadãos que não são recondutíveis ao tipo clássico da corrupção.
Um programa criminal à altura dos problemas das sociedades democráticas de hoje não pode deixar de identificar e penalizar o abuso de posições fácticas de influência, enfrentando formas de venalização que ameaçam, a vários níveis, a autonomia intencional do Estado e da Administração Pública.
Acolhemos com satisfação a posição de abertura aqui revelada neste domínio pelo Sr. Ministro e ficamos à espera que se converta em resultados na convicção de que ficaria a ganhar a defesa de bens jurídicos relevantes para as sociedades democráticas na actualidade.
Defendemos que seja criminalizada toda a discriminação que se traduza na recusa de fornecimento de um bem ou

Página 2760

2760 I SÉRIE-NÚMERO 85

serviço, no entrave ao exercício de uma actividade, na recusa de emprego, na aplicação de sanções ou no despedimento, na subordinação de um fornecimento ou de uma oferta de emprego a uma condição que se baseie numa distinção em função do sexo, origem, situação familiar, opiniões políticas, actividades sindicais, pertença ou não, real ou suposta a uma etnia, a uma raça ou a uma religião determinada.
Propomos também, na linha de códigos europeus recentes, que seja criminalizado o comportamento de quem, abusando de autoridade que as suas funções lhe confiram, assedie sexualmente outrem, usando ordens, ameaças, chantagem, constrangimento.
A modernização do nosso direito penal requer ainda vários outros aperfeiçoamentos na proposta governamental, mas ficará incompleta se não incluir o assédio sexual.
Um país que conhece, em medida significativa, o trabalho e a imigração clandestinas e regista a subsistência de comportamentos altamente danosos no domínio das condições de segurança no trabalho não pode, por outro lado, fechar a porta à protecção de valores essenciais para os que trabalham.
Propomos, por isso, que entre os novos crimes se inclua também a submissão a condições de trabalho ofensivas da dignidade humana através do abuso de situações de vulnerabilidade e dependência e a exposição de trabalhadores a condições de perigo para sua vida e integridade física com violação grosseira das regras de segurança.
O valor fundamental da continuidade da vida assegurado com a incriminação de lesões ambientais não se compadece com a estruturação do crime de poluição como um autêntico crime de desobediência, cuja ocorrência ficasse condicionada por uma prévia e contingente intervenção da administração, como o Governo propõe. A imediata relevância ética das condutas visadas, numa sociedade que, parafraseando um autor, é sabido poder sobreviver a certa percentagem de homicídios,...

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - ... mas não é seguro poder subsistir com as actuais lesões ambientais, e impõe que o crime de poluição tenha uma estrutura típica e idêntica à dos crimes clássicos contra a vida e a integridade física e abandone o paradigma redutor da desobediência. É essa, aliás, a solução congruente com a proeminência dos valores ecológicos na nossa Constituição.
Na linha da orientação anunciada sustentamos um agravamento coerente da resposta penal nos crimes praticados com violência contra pessoas, incluindo homicídio, ofensas corporais, roubo e os mais graves atentados contra a liberdade, quando as vítimas sejam crianças, idosos, deficientes e grávidas. Defendemos idêntica orientação de agravamento da responsabilidade do agente, quando o crime seja cometido por funcionários públicos com grave abuso das suas funções.
Um Direito Penal orientado, como o concebemos, para a garantia da liberdade legitima-se tanto mais quanto proteja os mais fracos e vulneráveis e limite os abusos dos que dispõem de posições de poder, de força, de supremacia, de autoridade e de influência. Fazer do Direito Penal um instrumento de limitação do abuso de poder, seja ele físico ou psicológico, familiar ou profissional, mas também político ou social é, em suma, a diferença que realçamos e propomos como pedra angular para um programa criminal à altura da ambição de uma sociedade mais democrática.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: O debate sobre a revisão do Código Penal ocorre numa altura em que há todas as razões para esta Assembleia interrogar-se a si mesma e o Governo sobre se este tempo é o mais indicado para aprovar um corpo de normas que, pela sua transcendente dignidade jurídico-constitucional, social e moral - e estou a utilizar a palavra moral de caso pensado -, vai enformar o programa político-criminal do nosso país, para um período que se pretende de, pelo menos, média duração, pois a revisão de códigos penais não se pode fazer com as mudanças das maiorias parlamentares ou por meras razões do progresso de ciências criminais.
A presente revisão do Código Penal de 1982, que votámos a favor, seria considerada prematura, pois ainda não decorreu o tempo suficiente para os magistrados judiciais e do Ministério Público, os advogados e a sociedade em geral entrarem na «velocidade de cruzeiro» quanto à sua aplicação.
Sucede, porém, que a necessidade da revisão nasce exactamente do facto de, no último decénio, se ter verificado uma dessintonia, segundo alguns, entre o escopo do legislador e a aplicação do Código, na prática dos tribunais, que muitos consideram «conservadora».
Parece-me também que o dia de hoje não é particularmente recomendável para debater a revisão do Código Penal, com a tranquilidade que o Sr. Ministro da Justiça referiu no início da sua intervenção. Com efeito, nas últimas semanas, multiplicam-se, desde as freguesias mais recônditas até às portas da capital, os sinais inequívocos de um divórcio entre o Governo e a sociedade, que já não pode ser negado nem camuflado e que se reflectiu sobretudo na forte abstenção do eleitorado no último acto eleitoral e nos boicotes em diversas assembleias de voto, originados por incumprimento das promessas quanto à melhoria da qualidade de vida e do mínimo de condições sanitárias que as populações não dispensam, depois de tanta propaganda da democracia de sucesso, que mobilizou o seu voto.
As notícias de situações de fome e de desespero no Alentejo profundo são preocupantes e os actos de desobediência civil, um pouco por todo o lado, que culminaram com a chamada «revolta da ponte », numa irrupção ainda não pacificada totalmente, além de demonstrarem a falência do serviço de informação (SIS) obrigam o Governo e o Ministério da Justiça a recorrer ao uso da força para restabelecer a tal law and order » a todo o preço.

Risos do PSD.

Não se riam, Srs. Deputados, porque - e lembro - antes de o corpo de intervenção se lançar contra os manifestantes disse: «Dou-vos 2 minutos para dispersarem! » E depois disse: «Em nome do Código Penal, a desobediência civil...» e citou um artigo, que fui ver e que, para grande admiração minha, tinha a ver com a violência contra «mulher inconsciente »...

O Sr Odete Santos (PCP): - É o artigo 202.º - Violação de mulher inconsciente!

Risos.

O Orador: - Mas, continuando a falar do Código Penal, devo dizer que a juntar a esta instabilidade política e social, o Parlamento, na sua 1.ª Comissão, teve o ensejo de assistir a mais um episódio de guerrilha institucional entre a Polícia Judiciária, a Procuradoria-Geral da República e o Ministro da Justiça, quanto às recíprocas competências e

Página 2761

30 DE JUNHO DE 1994 2761

actuações na perseguição dos crimes, especialmente os de corrupção e facturas falsas, que mina a credibilidade do Governo e se projecta negativamente na imagem do Estado, que nos cumpre preservar e dignificar, já que a maioria e o Executivo estão atolados na confusão e evidenciam o desnorte na sua actuação quotidiana, com assomos de firmeza seguidos de aviltamento dos recuos e cedências, que destruíram em poucos dias a imagem do Governo como garante da estabilidade e da segurança nacionais.
São razões mais do que suficientes para vermos à nova luz a iniciativa governamental, apesar deste clima nada propício para debater tão importante matéria. O debate da proposta, neste momento, é mais uma demonstração de como a maioria quer arrumar o dossier da revisão do Código Penal, de modo expedito e apressado, e é mais uma prova da fuga para a frente com que o Governo julga responder aos seus desaires políticos recentes.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: É comummente aceite que o Código Penal deve consubstanciar um amplo consenso nacional sobre o que se chama o programa políticocriminal, que se reflecte, nessa revisão, principalmente nos artigos 40.º e 70.º propostos e de que o Código assim revisto passará a ser o seu principal protagonista.
Sabemos quais os nucleares princípios do referido programa, cuja essência arranca do princípio da conformidade da matéria penal com o Estado de Direito plasmado na Constituição da República, e com assento na matéria das fontes - só a lei da República, aprovada pela Assembleia da República ou por ela consentida, pode definir os crimes e as suas consequências jurídicas: a proibição de recurso à analogia, à rectroactividade, à defesa do regime mais favorável ao arguido.
Outro princípio norteador é aquele que o Prof. Figueiredo Dias designa por «princípio de congruência ou de analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos », retirando daí todas as consequências para a determinação da criminalização e das escalas de punibilidade, com a aceitação do critério estrito da necessidade e da subsidariedade da intervenção penal, erigida em ultimo ratío da política social, para utilização da expressão do mesmo penalista de Coimbra.
Queremos crer que a prevenção geral, mesmo definida como quer o Prof. Figueiredo Dias, estruturada «no seu sentido positivo» - de integração ou reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança no Direito», não postula necessariamente todas as opções que, em nome do progresso da ciência e de um princípio de humanidade, são consagradas no articulado da proposta revisão.
É um lugar comum a afirmação de que o Código Penal deve ser o espelho da cultura real da sociedade e mal andariam os juristas e os políticos se, em nome do progresso da ciência ou da evolução do direito criminal, quisessem consagrar nos códigos de aplicação directa e diária, como é o caso do Código Penal, as últimas aquisições dos jurisconsultores e as modernas formulações da política criminal dos países ditos mais avançados. Não quero com isto dizer que o Código Penal de 1982 seja, como alguém chamou, um «código estrangeirado ». Mas a proposta de revisão, a nosso ver, está divorciada da idoneidade jurídico-cultural do nosso povo.
O que o CDS-PP aponta é a desadequação das principais soluções avançadas nesta revisão à configuração ética e positiva da nossa sociedade actual e das respostas que ela pede para combater as diversas formas de criminalidade, principalmente nos meios urbanos, onde se verificam, comparativamente, as taxas mais altas da criminalidade, seja ela de grande, média ou pequena gravidade.
É um facto notório que ó povo não está treinado para conhecer as subtilezas de imputabilidade e que lhe é difícil interiorizar que a pena de prisão tenha deixado de ser, como no pensamento dos ilustres cultores de Direito Penal, uma sanção retributiva ou compensatória da culpa do agente, na maior parte de crimes; que o interesse da vítima dos crimes não esteja visivelmente na grande área das preocupações do legislador; que o delinquente, sem subestimar o esforço para a sua ressocialização, possa ser punido com multa, com grande frequência, retirando o poder de dissuasão, de intimidação ou de potencial ameaça de nova delinquência; e que o respeito pela eminente dignidade humana do condenado acarrete as várias formas de redução administrativa das penas em concreto aplicadas pelo julgador depois de avaliados todas as coordenadas e balizas fixadas para a fixação do quantum e da modalidade da pena em cada caso trazido à sua valoração.
Somos de opinião de que não é ainda chegado o tempo de o nosso programa político-criminal consagrar, de uma forma tão abrupta, direi mesmo radical, a máxima de que a «história do Código Penal é de constante e rápida abolição das penas », no caso português de pena de prisão.
Se, de um lado, o Sr. Ministro da Justiça aceitou as nossas críticas à pré-proposta por ele apresentada ao Conselho de Ministros, em que o legislador quase que pedia desculpa ao arguido para o punir com uma pena privativa de liberdade - reduzida ao extremo conjugada com a multiplicação de penas de multa e que transformariam o Código Penal em código de multas e as mil e uma maneiras de a não pagar ou de pagá-la em prestações mensais suaves, que se poderia caricaturar num conhecido anúncio, que tanto indignou o Sr. Ministro da Justiça, «roube hoje, pague quando puder », ou substituí-la por trabalho à comunidade, ou da aceitação de um plano individual de readaptação social, ou a liberdade condicional - tudo formas que, embora teoricamente muito defensáveis, na prática contribuem, aos olhos da população em geral, para não castigar, sublinho, o delinquente.
A actual proposta da revisão, com alguns aperfeiçoamentos, mantém o essencial do programa político-criminal inicial, com algumas recuos, repito, designadamente nos crimes contra as pessoas, cujo tratamento ficou melhor sistematizado em que o mínimo e o máximo da pena são agora agravados ern relação ao Código Penal de 1982.
Não somos a favor da ideia erigida em princípio geral, de que quase todas as penas correspondentes aos crimes de média gravidade possam ser substituídas por multas, mesmo com a actualização a que se procedeu, e que se retire do Código o princípio da acumulação da pena de prisão com a multa; somos contra a generosidade de preferir, como regra, a multa à pena de prisão e diminuir a duração desta no limite mínimo ao mínimo geral - isto é, um mês de prisão, como, por exemplo, sucede no caso do aborto consentido -, com variadas formas de concessão de liberdade, prisão por dias livres, a permanência no domicílio, o regime de prova, o trabalho na comunidade, etc., que podem, teoricamente, satisfazer o chamado princípio da humanidade e da liberdade do delinquente, mas, na prática, não surtem o efeito da prevenção geral. Tudo isto significa, em concreto, a descriminalização velada de muitas condutas, ou a tanto monta, que consideramos merecedoras de sanções mais exigentes e de cumprimento integral.
Não aceitamos a punição da reincidência tal como vem proposta nem a forma, quase imperativa, de redução das

Página 2762

2762 I SÉRIE-NÚMERO 85

penas fixadas ou o cumprimento parcial das penas mais graves, mesmo no caso do genocídio, com recurso ao expediente administrativo da liberdade condicional após o decurso de certo lapso de tempo de prisão cumprida.
Somos naturalmente defensores do respeito pela personalidade e dignidade de cada ser humano e contra as prisões encharcadas de drogas e de toxicodependentes, que são verdadeiras escolas de delinquência, como actualmente sucede. Repudiamos tratamentos arbitrários e desumanos aos reclusos durante o cumprimento da pena. Nunca fomos contra a recuperação do delinquente como obra individual e de acompanhamento de cada condenado, mas não aceitamos as formas artificiais de despejar as prisões de reclusos excedentários.
Somos, numa palavra, por um código de penas compatível com a nossa identidade cultural e a nossa particular maneira de estar no mundo e na vida, que exige um programa político-criminal mais severo do que o delineado na proposta e mais chegado às concepções que a nossa magistratura tem sabido defender.
Tudo considerações que passam ao lado desta proposta de revisão, que preza mais as conquistas da ciência penalística e volta as costas para o concreto homem português. Por isso, recusamos a sua aprovação!

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra a Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira.

A Sr.ª Margarida Silva Pereira (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Narana Coissoró, a última coisa que pretendo fazer nesta altura dos acontecimentos é escangalhar o tom simpático e algo divertido que V. Ex.ª imprimiu a esta fase final do debate. Mas também não creio que tenha grandes hipóteses de o fazer porquanto não me pareceu que tenha resultado das suas palavras propriamente uma crítica ao Código Penal mas, antes, qualquer coisa mais parecida com uma caricatura de crítica ao referido diploma.
Passo a referir dois pontos que me parecem importantes: em primeiro lugar, sinto algum desalento por verificar que o Sr. Deputado vem aqui hoje - após um trabalho intenso em sede de Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e, designadamente, do grupo de trabalho constituído no seu âmbito, que envolveu várias entidades e muitíssimas audições parlamentares - dizer que, o Código Penal passa pela Assembleia da República um pouco em jeito de passagem «de cão por vinha vindimada».
Não me parece justo que o diga, até porque realizámos, designadamente entre outras iniciativas, um colóquio parlamentar e tivemos a preocupação de que todo este trabalho fosse aberto ao exterior, ou seja, que se dirigisse também para fora da Assembleia da República.
Mas trabalhou-se sobretudo intensamente no Parlamento e poucas vezes um diploma legislativo terá tido nesta sede esta oportunidade de discussão. E embora não creia que ela corresponda propriamente à sétima maravilha do céu, suponho que foi, com certeza, um começo que poderá constituir um precedente para que outros códigos, no futuro, prestigiem de igual forma, em termos de realização parlamentar e de trânsito, a Assembleia da República.
De facto, parece-me manifestamente injusto para com toda a Assembleia da República que seja hoje aqui dito que o Código Penal passou rapidamente por ela. Eu diria que, seguramente, passou de uma forma intensa por esta Casa!

Vozes do PSD: - Muito bem!

A Oradora: - Por outro lado, não consigo perceber o hiato que o Sr. Deputado detecta entre o ideário de 1982 e aquele outro que aparece agora na proposta de revisão e que o leva, em termos partidários, a mudar o sentido do seu voto. Percebo essa mudança de sentido em nome de outras quaisquer razões, mas não do pobre, bom e rico do Código Penal.

Vozes do PSD: - Muito bem!

A Oradora: - E não percebo porque se alguma coisa marcou o Código Penal de 1982 foi esse crivo democrático, essa seiva de alteração em termos de concepção do homem e das penas, não propriamente no que diz respeito ao Código que estava em vigor, mas a uma aplicação do Código em vigor que vinha acontecendo ao tempo da ditadura. Esse marco ideológico de prática forense está exarado, de facto, no Código Penal de 1982 e aparece hoje...

O Sr. Presidente: - Queira terminar, Sr.ª Deputada.

A Oradora: - Termino de seguida, Sr. Presidente.
Como estava a dizer, esse marco ideológico de prática forense está exarado, de facto, no Código Penal de 1982 e aparece hoje crivado na proposta de reforma em termos de coerência. E se alguma coisa significa continuidade ideológica e cultural na nossa política penal é seguramente a continuidade no sentido da tolerância, da liberdade e do humanismo que encontramos nas novas dosimetrias penais e nas razões de prevenção que perpassam esta legislação.
Como disse o Sr. Deputado Costa Andrade há relativamente pouco tempo nesta Sala, são o ideário de Levy-Maria Jordão de Beleza dos Santos, de Afonso Costa,...

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - De Eduardo Correia.

A Oradora: - ... de Eduardo Correia - agradeço-lhe a referência que acaba, afinal de contas, por corroborar a afirmação que fazemos -, os nomes de ilustres Srs. Deputados e também, seguramente, a prática forense que nos tem caracterizado enquanto identidade e povo. E não me parece que fosse possível manter essa identidade se ultrapassássemos esta política e caminhássemos no sentido de uma tolerância perfeitamente inaceitável.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para responder, em tempo cedido pelo PSD, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira, com certeza quê não ouviu bem o que disse. Eu não referi que a proposta de revisão tinha sido atabalhoada ou que tinha tido pouco tempo.

A Sr.ª Margarida Silva Pereira (PSD): - Não foi só isso que eu disse!

O Orador: - O que eu disse é que o debate, hoje, sucede numa semana negra para o Governo. Tem sido uma semana de tanta intranquilidade para o Governo que não reflecte a tranquilidade que o Sr. Ministro da Justiça, no início da sua intervenção, referiu: «vamos tranquilamente discutir » esta proposta de revisão.
De facto, fiz parte de um grupo de trabalho, estive presente em todas as audições, e dei algum contributo no que me foi possível, pois não sou especialista nem penalista, sou um jurista geral, um merceeiro, digamos assim...

Página 2763

30 DE JUNHO DE 1994 2763

Risos.

..., de Direito e, por isso, não tenho uma «boutique » especializada para o Direito Penal, para absorver toda a minha inteligência, trabalho e tempo.
Aliás, julgo que fui capaz de contribuir naquilo que sei da prática forense e de Direito, sugestões que foram aceites também pelo Dr. Figueiredo Dias.
Sr.ª Deputada, nós votámos a favor do Código Penal de 1982 e também somos testemunhas da sua aplicação, que, de facto, não resultou na prática. Foi culpa dos juízes? Não foi! Quem está à frente do réu, quem está à frente da assistência, quem tem de fazer a valoração e aplicar as leis são os juízes, que são treinados num centro criado para o efeito. Portanto, o defeito não é deles. Eles sentem a vida social, sentem a vida portuguesa, muito melhor do que os penalistas alemães. Por isso, não se pode dizer que os nossos juízes são conservadores. O que aconteceu é que o Código foi muito além do que eles podem fazer na prática, isto é, pôr em acto a teoria do Direito.
Portanto, se temos a prova de que esta revisão se fez, exactamente, para, na maior parte dos casos, incentivar o juiz - e eu não me referi às penas dos crimes contra pessoas, que foram agravadas - falei nos crimes patrimoniais, nos crimes de média gravidade e, principalmente, nos crimes de pequena gravidade, a aplicar e a preferir a multa e outras formas de penalização em vez da detenção ou da privação de liberdade, é porque há uma pressão do legislador, há uma pressão nesta revisão para que isto suceda.
Se, dentro de 10 anos - que não é comum - é preciso fazer esta revisão para influenciar o juiz é porque, real' mente, há uma crítica velada aos tribunais por não terem aplicado o Direito. Mas isso não é verdade.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, queira concluir!

O Orador: - Esta sociedade rejeita certas concepções porque não as interiorizou devidamente. A culpa é da sociedade? Talvez! Mas estamos aqui, precisamente, para representar a sociedade e não os penalistas alemães.
Em terceiro lugar, tem de se dar tempo ao Código Penal, não se trata de influir sobre os julgadores. Esta é uma revisão pedagógica sobre os juízes. O que esta revisão demonstra é que pode criar um fosso ainda maior, porque os nossos juízes não serão capazes de aplicar muitos dos institutos que aqui estão. Penso que a nossa sociedade não aceitará muito bem uma multa paga a prestações, nem quando o deliquente diz que não tem dinheiro que se diga simplesmente que paga quando o arranjar.
Efectivamente, estes institutos podem diminuir a dissuasão, a intimidação ou o valor da prevenção geral.
Era isto que queríamos dizer, e era, aqui, no Plenário, porque representamos grande parte das preocupações dos julgadores e população que os senhores consideram conservadores. Somos conservadores e temos de fazer eco das verdadeiras concepções que os senhores criticam e que estão na base da aplicação, ou daquilo que os senhores chamam má aplicação, do actual Código nos últimos 10 anos.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Justiça, Srs. Secretários de Estado, Srs. Deputados: Num debate com a importância que tem o da revisão do Código Penal e na minha qualidade de Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, não me sentiria bem comigo próprio se não interviesse nesta ocasião.
A primeira palavra é de homenagem ao Sr. Presidente da Assembleia da República pela circunstância de, pela sua sensibilidade, não ter levado o Regimento inteiramente à letra a propósito desta proposta de lei. Trata-se de uma proposta de autorização legislativa, que normalmente não baixaria à Comissão para ser objecto de parecer e de trabalho prévio ao debate na generalidade, mas o Sr. Presidente, tendo a perfeita noção da importância deste diploma, determinou a sua baixa à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias para que o trabalhassem e debatessem com profundidade, ainda antes de o Plenário o apreciar.
E devo dizer que não ficou por aqui o empenhamento do Sr. Presidente da Assembleia da República relativamente a esta matéria. Foi acompanhando, a par e passo, os nossos trabalhos e, designadamente, esteve presente aquando da realização do Colóquio a que, há pouco, a Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira aludiu.
A segunda palavra de apreço é para o Sr. Ministro da Justiça e para o Governo por uma circunstância também particular. De facto, tratando-se de uma proposta de autorização legislativa, ela veio muito pormenorizada, com o objectivo de a Assembleia conhecer e aprovar, com muita extensão, o sentido que a lei, na sua versão final, vai ter. E não bastando essa formulação já muito pormenorizada, o Governo mandou-nos também, não sendo obrigado a tal, o próprio projecto de decreto-lei.
Quero, pois, salientar a circunstância de termos ouvido muitas entidades e até associações da sociedade civil, desde associações sindicais dos magistrados ao Sindicato dos Jornalistas, a associações cívicas que se preocupam com a problemática da justiça e das liberdades. E sublinho o facto de a mancha geral da posição de todas estas entidades ter sido de adesão e aprovação deste diploma.
Haverá num ponto ou outro divergências, houve num ponto ou outro reparos, e ainda bem que assim foi porque enriqueceram o nosso trabalho. A Assembleia não só internamente aprofundou a sua reflexão sobre esta matéria como abriu as suas portas e ouviu aqui a sociedade civil através das suas representações mais ligadas a este sector. Tivemos o cuidado de elencar o conjunto de sugestões que foram aqui trazidas e que vai guiar o nosso trabalho na especialidade, uma vez que também, ao contrário do que igualmente habitual a propósito das autorizações legislativas, requeremos, e com o consenso geral de todos os grupos parlamentares, a baixa à Comissão para, ainda nesta sessão legislativa, conforme ficou já assente em Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares, fazermos o trabalho de debate na especialidade e, depois, no encerramento da sessão, a votação final global.
Quero também referir nesta intervenção o grupo de trabalho que foi constituído no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e que mais de perto acompanhou esta matéria, dando igualmente o seu apoio à realização do colóquio, que contou com a presença de penalistas e académicos ilustres que se pronunciaram de uma forma que, penso, nos honra a todos: de uma forma inequívoca no sentido de dizerem de forma clara que, independentemente de uma divergência aqui e acolá relativa às soluções adoptadas, esta revisão do Código Penal não fica nada a dever aos códigos mais avançados da área penal, seja da Europa, seja mesmo do

Página 2764

2764 I SÉRIE-NÚMERO 85

mundo. Portanto, este trabalho que aqui temos feito é um património da nossa colectividade, que está a enriquecer o nosso mundo jurídico e a nossa sociedade.
Não vale a pena repetir aqui as linhas gerais que preocupam e que inspiram a filosofia deste Código, já bebidas em grandes mestres que estiveram na base do Código de 1982 e que me permito recordar, seja o saudoso Professor Eduardo Correia, seja o Professor Figueiredo Dias.
Desejo também referir-me à Comissão Revisora. Sabemos o que é legislar, o que é essa tarefa difícil e nem sempre compreendida, e que é uma das tarefas fundamentais desta Assembleia, mas temos de compreender que só era possível fazer uma proposta de lei desta qualidade com a cooperação da inteligência dos académicos e dos práticos da área penal. Daí que a Comissão Revisora tenha, efectivamente, feito o trabalho fundamental, que apenas nos limitamos a aperfeiçoar e a corrigir aqui ou ali, ou a adoptar aqui ou acolá, com a liberdade que a Assembleia naturalmente tem, esta ou aquela solução.
Não esquecendo que a Comissão de Revisão também esteve presente nas audições da Comissão, quero lembrar a figura do Conselheiro Manso Preto que, infelizmente, não pôde estar na Comissão porque faleceu antes de o diploma ter dado entrada na Assembleia.
Sr. Presidente, quero pedir-lhe uma coisa, embora saiba que não precisava de o fazer porque sei que é essa a sua preocupação e a da própria Assembleia. Os debates que fizemos na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias foram gravados, e foram-no para que o seu registo fique como elemento de trabalho, como elemento de apoio à aplicação do Código Penal. Gravámos todas as audiências que concedemos e sei que V. Ex.ª patrocinará a publicação destes trabalhos. Estou certo que será mais uma forma de dignificar a Assembleia e de dar ao País um contributo que ficará registado, permitindo a análise deste Código, não apenas do texto que sairá no Diário da República, como de tudo aquilo que ó antecedeu e que são os seus trabalhos preparatórios.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não há mais inscrições, pelo que vou declarar encerrado o debate.
Em todo o caso não o farei sem, previamente, dizer que me congratulo com todos aqueles que intervieram no processo de preparação desta importante reforma legislativa e agradecer, em nome da Assembleia, a todos os especialistas e cidadãos que se empenharam numa boa elaboração desta lei.
Quero também congratular-me com todos vós pela qualidade das intervenções que aqui segui, atentamente, a par e passo, ao longo da tarde, quer as feitas pelos Deputados de todas as bancadas, quer as feitas pelo Governo.
A Assembleia, permitam-me que o diga, está hoje de parabéns pela qualidade do debate que aqui soube produzir.
Srs. Deputados, vamos passar às votações, começando pela do parecer da Comissão de Agricultura e Mar relativo ao requerimento de adopção do processo de urgência do projecto de resolução n.º 114/VI - Visando a adopção de medidas de emergência para fazer face aos prejuízos causados na agricultura pelas geadas negras e chuvas tardias (PCP).

Submetido à votação, foi aprovado, com votos a favor do PSD e votos contra do PS, do PCP, do CDS-PP e dos Deputados independentes Mário Tomé e Raúl Castro.

Srs. Deputados, passamos à votação global da proposta de resolução n.º 63/VI - Aprova, para ratificação, a Convenção entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento.

Submetida à votação, foi aprovada, com votos a favor do PSD, do PS, do PCP e dos Deputados independentes Mário Tomé e Raúl Castro, e votos contra do CDS-PP.

Srs. Deputados, vamos votar, também em votação global, a proposta de resolução n.º 69/VI - Aprova, para ratificação, o Acordo entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Francesa em Matéria de Impostos sobre as Sucessões e Doações.

Submetida à votação, foi aprovada por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes e do PSN.

Srs. Deputados, vamos votar, na generalidade, a proposta de lei n.º 92/VI - Autoriza o Governo a rever o Código Penal.

Submetida à votação, foi aprovada, com votos a favor do PSD, votos contra do CDS e abstenções do PS, do PCP e dos Deputados independentes Mário Tomé e Raúl Castro.

Srs. Deputados, deu entrada na Mesa um requerimento que já foi distribuído, através do qual um conjunto de Deputados de vários grupos parlamentares requerem, nos termos do artigo 89.º do Regimento, a baixa à 1.ª Comissão da proposta de lei n.º 92/VI, para discussão e votação na especialidade, pelo prazo de 5 dias.
Vamos votá-lo.

Submetido à votação, foi aprovado por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes e do PSN.

Sr. Deputado Narana Coissoró, pede a palavra para que efeito.

Q Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, é para anunciar que vamos enviar para a Mesa a nossa declaração de voto por escrito, relativamente à proposta de resolução n.º 63/VI.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Plenário volta a reunir amanhã, às 15 horas. Haverá um período antes da ordem do dia e no período da ordem do dia uma marcação do CDS-PP, para debate do projecto de lei n.º 4227 VI - Medidas para a moralização e racionalização da cobrança de impostos, para além de se proceder também a votações.
Srs. Deputados, está encerrada a sessão.

Eram 21 horas e 10 minutos.

Declaração de voto, enviada à Mesa para publicação, sobre a proposta de resolução n.º 63/VI

O CDS-PP votou contra, porque a Convenção inclui uma disposição respeitante à tributação de rendimentos de capitais que implica a possibilidade de aplicação retroactiva de tal tributação.

O Deputado do CDS-PP, Narana Coissoró.

Entraram durante a sessão os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

António Costa de Albuquerque de Sousa Lara.
Fernando José Antunes Gomes Pereira.
Francisco João Bernardino da Silva.

Página 2765

30 DE JUNHO DE 1994 2765

João Granja Rodrigues da Fonseca.
José Pereira Lopes.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho.

Partido Socialista (PS):

Alberto Bernardes Costa.
António Manuel de Oliveira Guterres.
Carlos Manuel Natividade da Costa Candal.
José Manuel Santos de Magalhães.
José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
Laurentino José Monteiro Castro Dias.

Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):

Adriano José Alves Moreira.
José Luis Nogueira de Brito.

Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Alípio Barrosa Pereira Dias.
Américo de Sequeira.
Arlindo Marques da Cunha.
Cecília Pita Catarino.
Fernando dos Santos Antunes.
João Álvaro Poças Santos.
Joaquim Maria Fernandes Marques.
José Albino da Silva Peneda.
José Guilherme Reis Leite.
José Macário Custódio Correia.
José Manuel Nunes Liberato.
Luís Manuel Costa Geraldes.
Maria da Conceição Figueira Rodrigues.
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira.
Pedro Augusto Cunha Pinto.
Pedro Manuel Cruz Roseta.
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva.

Partido Socialista (PS):

Alberto de Sousa Martins.
António José Martins Seguro.
António Luís Santos da Costa.
António Poppe Lopes Cardoso.
João António Gomes Proença.
José Eduardo dos Reis.
José Eduardo Vera Cruz Jardim.
Manuel Alegre de Melo Duarte.
Raúl Fernando Sousela da Costa Brito.
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz.

Partido Comunista Português (PCP):

Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas.
Luis Carlos Martins Peixoto.
Miguel Urbano Tavares Rodrigues.

Partido Ecologista Os Verdes (PEV):

Isabel Maria de Almeida e Castro.

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.

Página 2766

DIÁRIO da Assembleia da República

Depósito legal n.º 8818/85

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, E. P.

PORTE PAGO

1 -Preço de página para venda avulso, 7$00+IVA.

2 - Para os novos assinantes do Diário da Assembleia da República, o período da assinatura será compreendido de Janeiro a Dezembro de cada ano. Os números publicados em Outubro, Novembro e Dezembro do ano anterior que completam a legislatura serão adquiridos ao preço de capa.

3 - O texto final impresso deste Diário é da responsabilidade da Assembleia da República.

PREÇO DESTE NÚMERO 294$00 (IVA INCLUÍDO 5%)

Toda a correspondência, quer oficial, quer relativa a anúncios e a assinaturas do «Diário da República» e do «Diário da Assembleia da República» deve ser dirigida à administração da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, E., P., Rua de D. Francisco Manuel de Melo, 5-1092 Lisboa Codex

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×