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I Série - Número 88

Sábado, 17 de Junho de 1995

DIÁRIO DA Assembleia da República

VI LEGISLATURA - 4.º SESSÃO LEGISLATIVA (1994-1995)

REUNIÃO PLENÁRIA DE 16 DE JUNHO DE 1995

Presidente: Ex.mo Sr. António Moreira Barbosa de Melo

Secretários: Exmos. Srs. João Domingos Fernandes de Abreu Salgado
José de Almeida Cesário
Belarmino Henriques Correia
José Ernesto Figueira dos Reis

SUMÁRIO

O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 10 horas e 40 minutos.
Deu-se conta da entrada na Mesa do projecto de lei n.º 594/VI, dos projectos de deliberação n.ºs 109 e 110/VI e da ratificação nº 151/VI.
Foram aprovados os n.º 77 e 78 do Diário.
Foi apreciada, na generalidade, a proposta de lei n.º I30/VI - Concede ao Governo autorização legislativa para que estabeleça medidas sobre o branqueamento de capitais e de outros bens provenientes da prática de crimes. Intervieram, a diverso titulo além dos Srs. Secretários de Estado Adjunto do Ministro da Justiça (Borges-Soeiro) e dos Assuntos Parlamentares (Luís Filipe Menezes), os Srs. Deputados José Magalhães e Alberto Costa (PS), António Filipe (PCP), Costa Andrade (PSD) e Narana Coissoró (CDS-PP).
Entretanto, o Sr. Deputado Sousa Lara (PSD) congratulou-se com a atribuição da medalha comemorativa dos 50 anos dá Organização das Nações Unidas ao Sr. Deputado Adriano Moreira (CDS-PP), que também usou da palavra, ao que se associaram o Sr. Presidente e, sob a forma de aplauso, a Câmara.
Foi igualmente apreciada na generalidade, á proposta de lei n.º 131/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, tendo usado da palavra, a diverso título, além do Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, os Srs. Deputados Alberto Costa (PS), Odeie Santos (PCP), Rui Macheie (PSD) e Ferreira Ramos (CDS-PP).
Procedeu-se à discussão conjunta, na generalidade, da proposta de lei n. º 132/VI - Autoriza o Governo a alterar o Decreto-Lei n. º 448/91, de 29 de Novembro (Aprova o regime jurídico dos loteamentos urbanos) e do projecto de lei n.º 592/VI - Processo de reconversão das áreas urbanas de génese ilegal (PSD, PS e PCP). Intervieram, a diverso título, além do Sr. Ministro do lançamento e da Administração do Território (Valente de Oliveira), os Srs. Deputados Luís Sá (PCP), Correia Afonso (PSD), Leonor Coutinho (PS), Narana Coissoró (CDS-PP), Fernando Santos Pereira (PSD), António Costa (PS) e Cardoso Martins (PSD).
A proposta de lei n.º 88/VI - Lei de bases da justiça militar e das disciplina das Forcas Armadas foi debatida, na generalidade, tendo feito . intervenções, a diverso título, além do Sr. Ministro da Defesa Nacional (Figueiredo Lopes), os Srs. Deputados Narana Coissoró (CDS-PP), Miranda Calha (PS), Fernando Condessa (PSD), João Amaral (PCP) e Adriano Moreira (CDS-PP).
O projecto de lei n.º 530/VI - Protecção aos animais (PSD, PS, PCP, CDS-PP e Deputado independente Mário Tomé) foi apreciado na generalidade, tendo usado da palavra os Srs. Deputados António Maria Pereira e Reis Leite (PSD), Rosa Maria Albernaz (PS), Narana Coissoró (CDS-PP). João Amaral (PCP) e Macário Correia (PSD).
Após a apresentação do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de Camarote (Inquérito Parlamentar n.º 14/VI) pelo Sr. Deputado Pedro Roseta (PSD), foi o mesmo apreciado, assim como o projecto de resolução n.º 155/VI - Sobre o Inquérito a Camarote, da iniciativa da mesma Comissão, intervindo, a diverso título, os Srs. Deputados Lias Pais de Sousa (PSD), Oliveira e Silva (PS), António Filipe (PCP) e Narana Coissoró (CDS-PP).
A Câmara apreciou o relatório da Comissão de Inquérito Parlamentar sobre a Eventual Responsabilidade do Governo na Prestação de Serviços pelas OGMA à Força Aérea Angolana com a Ampliação do Objecto a que se Refere a Resolução N.º 15/95, de 20 de Março (Inquérito Parlamentar n.º 27/VI). Depois da sua apresentação pelo Sr. Deputado Luís Geraldes (PSD), produziram intervenções, além do relator, os Srs. Deputados José Vera Jardim (PS), João Amaral (PCP) e Narana Coissoró (CDS-PP).
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 21 horas.

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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a sessão.

Eram 10 horas e 40 minutos.

Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Adérito Manuel Soares Campos.
Adriano da Silva Pinto.
Alberto Cerqueira de Oliveira.
Alberto Monteiro de Araújo.
Álvaro José Martins Viegas.
Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto.
Américo de Sequeira.
Anabela Honório Matias.
António Costa de Albuquerque de Sousa Lara.
António da Silva Bacelar.
António Joaquim Bastos Marques Mendes.
António José Caeiro da Motta Veiga.
António Manuel Fernandes Alves.
António Moreira Barbosa de Melo.
Arménio dos Santos.
Belarmino Henriques Correia.
Carlos Alberto Lopes Pereira.
Carlos Alberto Pinto.
Carlos Filipe Pereira de Oliveira.
Carlos Manuel de Oliveira da Silva.
Carlos Manuel Marta Gonçalves.
Carlos Miguel de Valleré Pinheiro de Oliveira.
Fernando Carlos Branco Marques de Andrade.
Fernando José Antunes Gomes Pereira.
Fernando José Russo Roque Correia Afonso.
Fernando Manuel Alves Cardoso Ferreira.
Fernando Monteiro do Amaral.
Fernando Santos Pereira.
Francisco Antunes da Silva.
Francisco João Bernardino da Silva.
Guido Orlando de Freitas Rodrigues.
Hilário Torres Azevedo Marques.
João Alberto Granja dos Santos Silva.
João Álvaro Poças Santos.
João do Lago de Vasconcelos Mota.
João Domingos Fernandes de Abreu Salgado.
João Granja Rodrigues da Fonseca.
João José da Silva Maçãs.
João José Pedreira de Matos.
Joaquim Cardoso Martins.
Joaquim Eduardo Gomes.
Joaquim Fernando Nogueira.
Joaquim Maria Fernandes Marques.
Joaquim Vilela de Araújo.
Jorge Paulo de Seabra Roque da Cunha.
José de Almeida Cesário.
José Guilherme Reis Leite.
José Júlio Carvalho Ribeiro.
José Leite Machado.
José Luís Campos Vieira de Castro.
José Macário Custódio Correia.
José Manuel Borregana Meireles.
José Manuel da Silva Costa.
José Mário de Lemos Damião.
José Mendes Bota.
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa.
Manuel Albino Casimiro de Almeida.
Manuel da Costa Andrade.
Manuel de Lima. Amorim.
Manuel Joaquim Baptista Cardoso.
Manuel Maria Moreira.
Manuel Simões Rodrigues Marques.
Maria da Conceição Figueira Rodrigues.
Maria da Conceição Ulrich de Castro Pereira.
Maria Helena Falcão Ramos Ferreira.
Maria José Paulo Caixeiro Barbosa Correia.
Maria Luísa Lourenço Ferreira.
Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa.
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva.
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas.
Nuno Francisco Fernandes Delerue Alvim de Matos.
Nuno Manuel Franco Ribeiro da Silva.
Olinto Henrique da Cruz Ravara.
Pedro Augusto Cunha Pinto.
Pedro Manuel Cruz Roseta.
Rui Alberto Limpo Salvada.
Rui Carlos Alvarez Carp.
Rui Fernando da Silva Rio.
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva.
Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete.
Virgílio de Oliveira Carneiro.
Vítor Manuel da Igreja Raposo.
Vítor Pereira Crespo.

Partido Socialista (PS):

Alberto Arons Braga de Carvalho.
Alberto Bernardes Costa.
Alberto da Silva Cardoso.
Alberto de Sousa Martins.
Alberto Manuel Avelino.
Alberto Marques de Oliveira e Silva.
Ana Maria Dias Bettencourt.
Aníbal Coelho da Costa.
António Alves Marques Júnior.
António Alves Martinho.
António Fernandes da Silva Braga.
António José Borrani Crisóstomo Teixeira.
António Luís Santos da Costa.
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos.
Carlos Manuel Luís.
Carlos Manuel Natividade da Costa Candal.
Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues.
Fernando Alberto Pereira de Sousa.
Fernando Alberto Pereira Marques.
Fernando Manuel Lúcio Marques da Costa.
Guilherme Valdemar Pereira d'Oliveira Martins.
Gustavo Rodrigues Pimenta.
Jaime José Matos da Gama.
João António Gomes Proença.
João Eduardo Coelho Ferraz de Abreu.
Joaquim Américo Fialho Anastácio.
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.
Jorge Lacão Costa.
Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho.
José António Martins Goulart.
José Carlos Sena Belo Megre.
José Eduardo dos Reis.
José Ernesto Figueira dos Reis.
José Manuel Marques da Silva Lemos.
José Manuel Oliveira Gameiro dos Santos.
Júlio da Piedade Nunes Henriques.
Júlio Francisco Miranda Calha.

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Laurentino José Monteiro Castro Dias.
Leonor Coutinho Pereira dos Santos.
Luís Manuel Capoulas Santos.
Manuel António dos Santos.
Maria Julieta Ferreira Baptista Sampaio.
Raul Fernando Sousela da Costa Brito.
Rogério da Conceição Serafim Martins.
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz.
Rui António Ferreira da Cunha.
Vítor Manuel Caio Roque.

Partido Comunista Português (PCP):

António Filipe Gaião Rodrigues.
António Manuel dos Santos Murteira
João António Gonçalves do Amaral.
José Manuel Maia Nunes de Almeida.
Lino António Marques de Carvalho.
Luís Manuel da Silva Viana de Sá.
Maria Odete dos Santos.

Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):

Adriano José Alves Moreira.
Manuel José Flores Ferreira dos Ramos.
Maria Helena Sá Oliveira de Miranda Barbosa.
Narana Sinai Coissoró.

Partido Ecologista Os Verdes (PEV):

Isabel Maria de Almeida e Castro.

Deputados independentes:

Mário António Baptista Tomé.
Manuel Sérgio Vieira e Cunha.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Sr. Secretário vai proceder à leitura do expediente.

O Sr. Secretário (João Salgado): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, deram entrada na Mesa, e foram admitidos, os seguintes diplomas: projecto de lei n.º 594/VI - Reforça o combate ao tráfico de influência e à promiscuidade entre actividade pública e privada (PS), que baixou à 1.ª Comissão e cujo debate está agendado para a próxima semana; projectos de deliberação n.ºs 109/VI - Autoriza a convocação das comissões especializadas (PSD, PS, PCP, CDS-PP e Os Verdes) e 110/VI - Autorização para consulta de depoimentos prestados perante a Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar ao acidente de Camarate (PSD); e a ratificação n.º 151/VI - Decreto-Lei n.º 136/95, de 12 de Junho, que cria a sociedade Águas do Barlavento Algarvio, S A. (PCP).
Hoje, durante o dia, vão reunir as Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, de petições, de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação, de Defesa Nacional e de Trabalho Segurança Social e Família e as Subcomissões de Comércio e Turismo, de Comunicação Social, da Cultura, e da Criação de Novos Municípios, Freguesias, Vilas e Cidades, de Habitação e Telecomunicações e das Obras Públicas e Transportes.

Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a primeira parte da do dia diz respeito à aprovação dos n.ºs 77 e 78 do Diário, I Série, respeitantes às reuniões plenárias dos dias 17 e 18 de Maio passado.
Não havendo objecções, consideram-se aprovados.
assamos à discussão, na generalidade, da proposta de lei n.º 130/VI - Concede ao Governo autorização legislativa para que estabeleça medidas sobre o branqueamento de capitais e de outros bens provenientes da prática de crimes.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça (Borges Soeiro): - Sr Presidente, Srs. Deputados: Nos últimos anos, temos vindo a assistir a uma evolução sistemática do tráfico ilícito de estupefacientes, quer em termos de apetrechamento e mobilidade, quer em termos de organização das suas complexas redes de dimensão internacional.
Alguns casos concretos têm demonstrado a grande facilidade de mobilidade e flexibilidade que estas poderosas Organizações detêm, levando-as a transferir de uma região para outra os seus centros operacionais, sempre que determinado país reforça as suas medidas de controlo.
A Europa de hoje, com a sua estrutura de mercado único, com a liberdade de circulação de pessoas e bens e, por via disso, a abolição das fronteiras internas, constitui um alvo atraente para a actuação dolosa dos traficantes de droga. Daí que a construção do modelo europeu não possa deixar de ser acompanhada de medidas capazes de neutralizar ou minimizar os efeitos perversos indicados, quer através da harmonização das legislações de cada um dos Estados-membros, quer por via de uma estreito cooperação entre as autoridades financeiras e policiais dos vários países.
Tais medidas, que vêm a ser progressivamente implementadas, têm sempre presente a consciência de que para um combate de sucesso e imprescindível atacar as organizações no seu ponto nevrálgico, a carteira de negócios. Estamos todos conscientes e atentos a esta realidade. Por isso, damos hoje mais um passo no processo internacional, que tem vindo a desenvolver-se, de combate ao tráfico ilícito de estupefacientes, na vertente do denominado branqueamento de capitais Processo, esse, que tem como ponto importante a Convenção de Viena de 1988 das Nações Unidas, onde se acordou no combate específico ao branqueamento de capitais e de outros bens provenientes de actividades criminosas, nomeadamente de tráfico de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores, que Portugal ratificou e à qual adaptou o seu direito interno, mediante o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
As mesmas preocupações são manifestadas na Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime, do Conselho da Europa, assinada por Portugal em 8 de Novembro de 1990 Esta Convenção vai, porém, mais longe ao alargar o combate ao branqueamento de capitais e apenas provenientes do tráfico de droga e precursores, unas de outras formas de criminalidade, como seja o tráfico de armas, o terrorismo, o tráfico de crianças e de mulheres jovens, bem como outras infracções graves de que se obtenham proventos importantes.
No domínio do direito comunitário, a Directiva n.º 91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho, transposta para o direito interno através do Decreto-Lei n.º 313/93, de 15 de Setembro, revelou a mesma orientação.
Do balanço da execução desta Directiva, a nível europeu, verificou-se que apenas França, Portugal, Luxembur-

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e Espanha haviam restringido a criminalização do brandeamento dos capitais e outros valores provenientes dos crimes de droga.
Por outro lado, mesmo nos países em que não se seguiu pela prevenção do branqueamento relativamente a toda e qualquer actividade criminosa, cobriu-se uma larga faixa de infracções criminais, como o contrabando, o tráfico de armas, o terrorismo e o crime organizado.
Das disparidades apontadas resultam desajustamentos no funcionamento dos sistemas preventivos e repressivos dos Estados-membros, dificultando a cooperação internacional.
Por virtude de um certo gradualismo na adopção de novos mecanismos, a transposição da Directiva, no caso português, cingiu-se à matéria da cooperação do sistema financeiro na prevenção do branqueamento de capitais provenientes dos negócios ilícitos da droga, não se tendo incluído outra criminalidade, nem estendido a prevenção para além dos fluxos e operações que transitam pelas instituições de crédito, sociedades financeiras, empresas seguradoras e sociedades gestoras de pensões e fundos.
O alargamento da criminalização da actividade de branqueamento que agora se opera tem não só em vista o essencial acompanhamento do movimento europeu nesta matéria, mas também o minimizar das dificuldades da investigação relativas à identificação da origem dos capitais ilícitos
Fica, pois, claro que o combate ao branqueamento de capitais e de outros produtos provenientes de actividades criminosas se faz quer mediante a criminalização de certos comportamentos, quer através de medidas de feição mais tipicamente preventiva, ou seja, pela sua detecção junto do sistema financeiro ou de certas actividades ou profissões por onde esses bens ou produtos derivados de actividades criminosas transitam.
A este propósito, têm sido especialmente identificadas como actividades de branqueamento as ligadas ao jogo, sobretudo em casinos, mas também a ganhadores de lotaria e ao comércio de bens de elevado valor: imobiliário, especialmente em certas zonas de turismo; obras de arte; antiguidades, pedras e metais preciosos; automóveis; barcos e aviões.
A particular vulnerabilidade dos casinos justifica a aplicação de medidas comparáveis àquelas que actualmente estão fixadas para as instituições financeiras, nomeadamente a identificação dos clientes, em especial dos clientes ocasionais que usem papel moeda a partir de certo montante, a conservação de documentos relativos às transacções durante um certo período de tempo, a obrigação de diligência acrescida e a comunicação de transacções suspeitas.
No que respeita às actividades que tenham por objecto a venda de bens de elevado valor, que poderão ser utilizadas nas fases de colocação ou integração de capitais, devem ser tidas em conta as dificuldades de ordem prática, especialmente pela tradicional não sujeição de tais actividades a regras específicas ou a controlo de uma autoridade de supervisão
No entanto, tem sido igualmente considerada a possibilidade de estabelecer, nesta área, algumas regras relativas à comunicação de transacções suspeitas, à identificação de clientes que efectuem aquisições em dinheiro além de determinado montante ou mesmo à obrigatoriedade de pagamento através de meios escriturais em aquisições que ultrapassem um montante determinado.
Em termos comparados, a Alemanha e a Espanha estabelecem que as obrigações relativas à prevenção de branqueamento de capitais, enunciadas para o sistema financeiro, serão aplicáveis pelas empresas não financeiras, tais como os casinos, as agências imobiliárias ou qualquer outra profissão que venha a ser designada por diploma complementar.
É neste sentido que se dirige a proposta de lei agora em discussão, embora seja ainda prematuro que a sua extensão se faça a determinadas profissões, sendo prudente aguardar as conclusões que, nesta matéria, venham a ser alcançadas pelo comité de contacto a que se refere o artigo 13.º da Directiva.
É pois numa óptica preventiva que Portugal dá este passo, visto que ainda não e muito significativo o número de casos de branqueamento de capitais conhecidos pelas instâncias competentes, nomeadamente pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária, para efeitos de perseguição penal.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta de lei que o Governo agora apresenta vem na sequência do já citado Decreto-Lei n.º 313/93 e também da recente lei de combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira.
Não se entendeu, contudo, proceder à reformulação daqueles dispositivos, não só porque a experiência de um e de outro é ainda reduzida, mas também porque a matéria aconselha lima abordagem por aproximações sucessivas que, após experimentação, levem a soluções mais sólidas e completas.
Por outro lado, não se considera conveniente aguardar por muito tempo a emissão de legislação interna que nos permita proceder, de seguida, à ratificação da Convenção do Conselho da Europa, assinada em Estrasburgo em 1990.
O diploma a publicar na sequência desta proposta, conjugado com as declarações a anexar aquando da ratificação da Convenção, também já preparadas, constituem os pressupostos de adaptação do direito interno que viabilizam aquela ratificação por esta Assembleia.
Para que o conjunto de medidas já em vigor venha a constituir um edifício sem grandes brechas e para que possamos acompanhar o movimento de actualização dos outros Estados-membros da União Europeia, deve ser complementado, por um lado, com a extensão da punição do branqueamento de capitais e outras actividades criminosas que não apenas o tráfico de droga, e consequentes medidas de prevenção, e por outro, com a ratificação da Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime
Ora, a presente proposta de lei preenche o primeiro requisito e viabiliza o segundo.
Sr. Presidente, Srs Deputados. A democracia é um regime saudavelmente frágil. Não podemos, contudo, deixar que alguém se aproveite dessa fragilidade para a pôr em causa. Daí que lutar de maneira eficaz contra o crime organizado seja lutar também pela afirmação do direito pelo reforço da democracia

(O Orador reviu.)

Aplausos do PSD

O Sr. Presidente: - Inscreveu-se, para ao agradecimentos, o Sr. Deputado José Magalhães. Tem a palavra, o Sr. José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Secretário de Estado, aquilo a que o reveste-se de considerável gravidade pela primeira vez na história recente lamentar portuguesa, um membro de

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defender uma proposta de lei começou a ler a sua exposição de motivos na primeira linha, tal qual foi aprovada em Conselho de Ministros, e acabou na última ou na penúltima, antes do articulado. Nós, os que nos apercebemos disso, só estávamos com medo de que o Sr. Secretário de Estado não parasse onde parou e lesse o articulado até ao fim. Foi o que faltou.
Ora, o Sr. Secretário de Estado entra no guiness por duas razões. Em primeiro lugar, porque nos habituou a vir cá, quando o Sr. Ministro da Justiça foge, ou seja, o Sr. Ministro da Justiça está em situação que justifica a sua declaração de contumácia política, pois anda «a monta» e não põe os pés na Assembleia da República.

A Sr.ª Conceição Castro Pereira (PSD): - Mal educado!

O Credor: - Politicamente, por mais que isso doa à Sr.ª Deputada do PSD, é susceptível de ser julgado à revelia!,..

O Sr. Alberto Costa (PS): - Muito bem!

Amarai (PSD): - Não apoiado!

O Orador: - De facto, é lamentável que um ministro da Justiça não venha à Assembleia da República «dar a cara», sobretudo num momento em que não é fácil fazê-lo, atentos os resultados bárbaros da política do Governo e as consequências negativas da sua incúria, incompetência e irresponsabilidade no domínio do combate à criminalidade.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - E preciso que isto seja dito!
Quanto àquilo que o Sr. Secretário de Estado aqui fez, ou seja, a leitura da exposição de motivos da proposta; do Governo, pode entender-se que ela é legítima por parte de qualquer membro do Governo, mas digo-lhe o seguinte, Sr Secretário de Estado: nós sabemos ler! Tínhamos lido a proposta de lei e vamos votar a favor do alargamento das condições de combate ao branqueamento de capitais, como é evidente e dispensa abono ou explicação adicional, mas, obviamente, não o faremos sem lhe colocar algumas questões e exigir algumas clarificares.
Em primeiro lugar, Sr. Secretário de Estado, pode acontecer em relação a esta proposta o mesmo que aconteceu em relação à lei que também aqui aprovámos. Ou Seja, qual é o impacto da legislação sobre branqueamento de capitais, conexa com a do tráfico de droga que está em vigor desde há alguns meses? Qual é o juízo que o Governo faz do seu processo de aplicação? Quais foram os resultados da que está em vigor? Há algum caso que tenha desembocado em condenação, em desmantelamento? Qual e a reacção das entidades de carácter financeiro à aplicação deste tipo de instrumentos? Como é que a compatibilização entre as regras que decorrem da necessidade de combate ao branqueamento de capitais e as regras normais de funcionamento do sistema financeiro, em especial a atinente ao sigilo bancário, têm funcionado, ao abrigo do quadro legal que já se encontra em vigor?
Por outro lado, Sr. Secretário de Estado, em mataria de meios e mecanismos, o que é que o Governo se propõe assegurar para que esta lei não se limite a ser uma proclamação de intenções, genérica e desacompanhada da capacidade de efectiva aplicação e eficácia no combate aos segmentos de criminalidade que estão em causa? E digo isto, como V. Ex.ª calei-la, porque aquilo a que assistimos neste momento e a um desfasamento gritante entre as programações legais e a capacidade efectiva do sistema de assegurar punições previstas no quadro legal abstracto, por bloqueio do sistema processual penal- que, infelizmente, já aqui discutimos com V. Ex.ª e não com o Sr. Ministro - e por bloqueio da Polícia Judiciária, por causas que também discutimos com V. Ex.ª e não com o Ministro, que é contumaz.
Portanto, neste caso, também podem faltar mecanismos para a passagem à prática e é esse o nosso receio. Aliás, ainda hoje, a lei da droga está por regulamentar em muitos aspectos e, nessa medida, como V. Ex.ª sabe melhor do que poucos, em termos práticos, é impossível realizar os exames de que dependem a aplicação de vários institutos cruciais.
As perguntas que deixo são. pois. essenciais para que a Câmara possa avaliar se está a praticar um acto que merece todo o seu apoio, mas é desprovido de significado ou pede traduzir uma melhoria no combate à criminalidade.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça: - Sr. Presidente, Sr. Deputado José Magalhães, penaliza-me ter de responder ou, pelo menos, argumentar em relação a algumas questões que V. Ex.ª colocou.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - É que, e aproveitando os seus conceitos, a sua contumácia é de tal forma chocante, na violência desmedida e em alguma irresponsabilidade.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. José Magalhães(PS): - Qual irresponsabilidade?

O Orador: - que julgo que, de facto, a única coisa que posso referir é que, anteontem, quando aqui estive a defender a autorização legislativa em sede de processo civil, disse - e talvez não fosse necessário fazê-lo - que o Ministro da Justiça estava em casa, doente, com 39º de febre.

O Sr. José Magalhães(PS): - Nota-se! Está na Região Autónoma da Madeira!

O Orador: - Ora, estando já agendada há bastante tempo uma visita oficial à Região Autónoma da Madeira para o dia de hoje, na passada quarta-feira. na conferência de líderes, tentou-se que este debate fosse adiado para segunda-feira, por forma a que o Sr Ministro pudesse estar presente, mas essa tentativa de adiamento..

Vezes do PS: - Mão é verdade!

O Orador: - Perdão! São as informações que tenho!
Como estava a dizer, essa tentativa de adiamento não resultou, não sei de quem é a responsabilidade, nem me interessa, mas, de qualquer forma, não foi conseguida a diligência no sentido do adiamento do debate sobre o branqueamento de capitais.

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O Sr. Alberto Cosia (PS): - Isto é incrível!

O Orador: - Portanto, Srs. Deputados, o Ministro da Justiça não anda a monte, está na Região Autónoma da Madeira, está, inclusive, a inaugurar um grande estabelecimento prisional e um tribunal judicial, por forma a que se consiga que a justiça chegue efectivamente a todos os pontos do País.
Relativamente às questões que me colocou, julgo que, cabendo ao Governo, como cabe, nas exposições de motivos que faz dos seus normativos, dos seus diplomas legais, explicar ou tentar explicar o porquê da legislação que vai apresentar, é mais do que legítimo que siga muito de perto essa nota justificativa quando vem à Assembleia da República. É óbvio que, muitas vezes, isso não sucede, mas, outras vezes, particularmente nesta, até pelo trabalho excessivo que se vem registando, tem de haver uma aproximação relativamente fiel à exposição de motivos.
No entanto, lembro, por exemplo, aos Srs. Deputados que, na passada quarta-feira - e, com certeza, ninguém deu conta, porque estavam cá dois ou três Srs. Deputados do Partido Socialista e a reforma do processo civil, que estava em discussão, até era um tema importante -, fiz uma intervenção de 30 páginas e julgo que me afastei completamente da exposição de motivos. Isso não foi salientado, porque, com certeza, nem deram conta de que foi aqui apreciado, na Assembleia da República, o pedido de autorização legislativa para a reforma do processo civil.

A Sr.ª Conceição Castro Pereira (PSD): - Claro!

O Orador: - Julgo que pelo menos os Srs. Deputados arguentes desta sessão não estiveram presentes.

Vozes do PSD: - Muito bem!

Vozes do PS: - Do PSD estavam mais!...

O Orador: - No que diz respeito à questão dos meios, como tive ocasião de dizer na intervenção inicial, a legislação do branqueamento é extremamente recente e, portanto, os ilícitos que, de alguma forma, podem estar a coberto dessa legislação foram praticados ou cometidos durante o ano de 1994.
Ora, ainda não temos as estatísticas da Justiça de 1994 - devemos estar a tê-las, pois costumam surgir em Junho ou Julho -, pelo que não posso dizer ao Sr. Deputado José Magalhães, com rigor, qual o número de processos a que esta legislação faz referência ou a que se aplica.
No domínio dos meios, julgo que é um dado público e tem sido referido várias vezes que houve um reforço, e um reforço muito notório, por parte da Polícia Judiciária, no que se refere ao departamento de combate aos crimes económicos e à corrupção. Houve um grande investimento e uma prioridade muito claramente estabelecida nestes dois departamentos e também no departamento de combate à droga onde também o branqueamento tem a sua sede. Portanto, no tocante a meios, julgo que foram dados importantes passos no que refere ao apetrechamento da Polícia Judiciária.

(O Orador reviu.)

Aplausos do PSD.

O Sr. Alberto Cosia (PS): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Alberto Cesta (PS): - Sr Presidente, o Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça acaba de mencionar o que se terá passado na última Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares de maneira errónea, inverídica e susceptível de induzir em erro a Assembleia. Essa Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares foi presidida por V. Ex.ª e eu, que representei nela o Partido Socialista, estou bem recordado de todas as questões e posições nela sustentadas, nomeadamente pelo líder parlamentar do PSD sobre a matéria invocada pelo Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça.
Portanto, penso que a Câmara tem o direito de ouvir da parte de V. Ex.ª e, se for necessário, da parte do membro do Governo, uma informação exacta sobre o que se passou nessa Conferência, nomeadamente, para esclarecimento do Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, que se encontra mal esclarecido acerca das posições da maioria e do Governo nessa Conferência.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, antes de dar a palavra ao Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, gostaria de reportar à Câmara aquilo de que me recordo.
Do que ouvi do Sr. Secretário de Estado, nada está em contradição com o que ocorreu na Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares.

Protestos do Deputado do PS Alberto Costa.

Na Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares, o Partido Socialista foi activo na proposta de passar a ordem de trabalhos de hoje para a próxima segunda-feira O Partido Social Democrata, mas julgo que não só, opôs-se a isso e, durante a discussão, ouvi o Sr. Secretário de Estado falar-me do interesse que teria de esta matéria passar para segunda-feira.

Protestos do Deputado do PS Alberto Costa

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Alberto Costa, se me quiser contraditar, faça favor de usar da palavra.

O Sr. Alberto Costa (PS)- - Sr. Presidente, há um manifesto lapso em tudo aquilo que V. Ex.ª diz recordar-se. Digo isto porque fui a única pessoa que falou em nome do Partido Socialista e não propus qualquer alteração à ordem de trabalhos; pelo contrário, ouvi o Sr. Deputado Silva Marques dizer que o Partido Socialista queria mudar, mas repudiei imediatamente essa posição.

Portanto, Sr. Presidente, não compreendo aquilo que V. Ex.ª diz!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, então, sou eu que estou enganado e, nesse caso, assumo o meu engano. Fiquei com esta impressão, mas se V. Ex.ª me diz que estou enganado, reconheço o meu erro e não discutimos mais.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, deixe-me acrescentar que nunca.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado. A Câmara está esclarecida e faz fé a sua palavra. Não discutimos mais.

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O Orador: - Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (Luís Filipe Menezes): - Sr. Presidente, peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Secretário de Estado.

O Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares: - Sr. Presidente, se me permite, gostaria da dar um esclarecimento suplementar porque o Sr. Deputado Alberto Costa disse só meia verdade.
Na manhã do dia em que se realizou a Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares, eu próprio tive uma primeira iniciativa junto da bancada do CDS-PP, que demonstrou também interesse no adiamento destes debates para segunda-feira, por razões que tinham Bi ver não só com o facto de poderem estar presentes no debate membros do Governo em maior quantidade e qualidade mas também por uma questão de lógica de arrumação dos debates.
Assim, tomei a iniciativa, em função dessa conversa com o líder do CDS-PP, de solicitar ao Sr. Deputado João Salgado que fizesse contactos informais com todas as bancadas, dado que a alteração da ordem do dia pressupõe um consenso generalizado, e fui informado por aquele Sr. Deputado, no início da Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares, de que haveria partidos - sublinho, partidos - que estariam em desacordo.
Posteriormente, constatei que um desses partidos era o que suporta o Governo e não vejo que daí venha mal ao mundo, pois tem todo o direito de estar de acordo com iniciativas do Governo mas também tem o direito de não estar. Só que não era o único partido!...
Todavia, quando digo que o Sr. Deputado Alberto Costa está a dizer meia verdade é porque, apesar de ser verdade que o PSD foi um dos partidos que não deu consenso para a alteração da ordem do dia, também não é verdade que o Governo não tenha querido alterá-la. Só que em função da falta de consenso não insistiu, na Conferência, nessa proposta.
Porém, parece-me que esta é uma discussão completamente irrelevante, pois a questão de fundo é a dê que todos (Governo e partidos, incluindo os da oposição) estamos em fim de sessão legislativa e fizemos um grande esforço para compactar um conjunto de agendamentos num período curto de tempo. Ora, isso leva, necessariamente, a que um conjunto de membros do Governo, que têm viagens ao estrangeiro, que têm viagens oficiais, não possam estar presente, assim como muitos dirigentes dos próprios partidos da oposição que também estão numa fase de preparação da sua campanha eleitoral, da sua actividade partidária.
No entanto, não fazemos disso drama nenhum. Aliás, na última interpelação ao Governo, o Sr. Deputado António Guterres, líder da oposição, líder do Partido Socialista, não esteve presente e nós não fizemos qualquer tipo de chicane nem tirámos daí ilações políticas. Para nós, estas são questões perfeitamente naturais. O que é importante é que nos debrucemos sobre estes assuntos com seriedade aproveitando os dias que ainda faltam para discutir tudo o que está agendado de uma forma digna. Por isso, .não devemos perder tempo com chicanes laterais, que ,não prestigiam o Parlamento.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Suponho que tudo o que importa esclarecer está esclarecido.

O Sr. Alberto Costa (PS). - Peço a palavra, Sr Presidente. O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, só um pequeníssimo esclarecimento porque houve um aspecto que não foi evidenciado e que e necessário esclarecer, em virtude da alegação inicial do Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça.
É que nunca ao Partido Socialista foi colocada a questão de poder haver conveniência no adiamento deste debate para nele estar presente o Sr. Ministro da Justiça. Este argumento nunca foi suscitado, pois, se o tivesse sido, asseguro que teríamos apoiado o adiamento desta discussão, bem como o da discussão seguinte, porque também consideramos insustentável que o Sr. Ministro não esteja nela. Este aspecto também precisa ser dito.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: O Grupo Parlamentar do PS votará favoravelmente a alteração do quadro legal no sentido de se fazer agora o que não foi feito na altura, que provavelmente teria sido a altura própria.
Como bem reconhece o Governo na exposição de motivos aqui lida pelo Sr. Secretário de Estado, só um número muito pequeno de Estados membros da União Europeia seguiu a via que o Governo decidiu seguir em Portugal. Prevendo a directiva europeia, de cuja transposição no fundo se trata, o combate ao branqueamento de capitais conexionado com várias actividades ilícitas e todas elas significativamente graves, a via seguida pelo Governo traduziu-se em transpor a directiva em prestações. Ou seja, não abranger todas as actividades susceptíveis de serem abrangidas mas tomar uma delas - o tráfico de droga e as actividades financeiras com ele relacionadas - para contemplar as operações de carácter financeiro com ele relacionadas.
Esta transposição às prestações é, obviamente, susceptível de ser considerada polémica e criticável, como metodologia, mas o Sr. Secretário de Estado acaba de confirmar que ao legislador neste momento não são fornecidos instrumentos que lhe permitam medir qual foi sequer o impacto dessa transposição mutilada ou parcial que o Governo decidiu fazer.
Acresce quê o Governo seguiu uma metodologia ainda mais bizarra do que a que decorreria da descrição que fiz. É que, no Ínterim, foi aprovado um instrumento legislativo sobre o qual o Sr. Secretário de Estado também não entendeu oferecer qualquer mérito informativo, a Lei, dita, de Combate à Corrupção, essa que várias vezes teve que ser analisada sob o ângulo da constitucionalidade e essa que acabou por ser aprovada e publicada nas páginas do Diário da República, e não sabemos em bom rigor qual o nexo articulativo entre todo o instrumentário legal que neste momento está publicado nas páginas do Diário da República.
Sabemos, isso sim, de fonte certa, que a Polícia Judiciária está bloqueada. E sabemos que está bloqueada a ponto de haver funcionários seus que dão conferências de imprensa com carácter público nas quais descrevem,

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ponto a ponto, o bloqueio e dirigem ao Governo perguntas sobre irresolução de questões de carácter organizativo, às quais o Governo não dá resposta. E isto no momento, Sr. Presidente, Srs. Deputados, em que a criminalidade sobe mais 16 % só na Área Metropolitana de Lisboa, 19 % na Área Metropolitana do Porto e nestes anos todos duplica ou triplica em relação a parâmetros anteriores. Sr. Secretário de Estado, é alguma coisa que não podemos aceitar e sobre a qual não aceitaremos nenhum pacto de silêncio, mesmo que o Sr. Ministro, não comparecendo com as mais rebuscadas razões inventadas e produzidas, queira, com essa ausência, diminuir a possibilidade de aprofundar o debate.
Que vai acontecer, pois, neste domínio? Receamos, Sr. Secretário de Estado, que, com o bloqueio da Polícia Judiciária, com o esquisito sistema que o Governo inventou para desbloquear meios para investigações, bem patente no facto de só recentemente terem sido desbloqueados 15 000 contos para as perícias necessárias no caso de Camarate. Veja-se ao ponto a que se chegou: há perícias necessárias e o accionamento ou não de diligências necessárias num processo depende de um placet do Ministro da Justiça, depende de uma resposta que diz: «Há verba». Os magistrados e os juizes dizem: «E preciso», e é o Ministro da Justiça quem diz: «Faça-se, porque há verba»! O problema é naturalmente os casos em que o Ministro da Justiça não diz: «Faça-se», e, como não há verba, a obra não nasce'... É isso que nos inquieta e justifica preocupação.
Também não há escoamento de investigações, como V. Ex.ª sabe, talvez para evitar o afogamento dos tribunais de círculo, e as acções, digamos, dadas há dois anos chegam agora apenas. E é neste contexto, em que a própria mecânica de aplicação da primeira lei do branqueamento de capitais não tem ainda dados para medirmos a sua eficácia, que V. Ex.ª nos traz a proposta do Governo para que se cumpra a directiva por inteiro.
A nossa resposta, Sr. Secretário de Estado, é: «Cumpra-se a directiva por inteiro», o nosso voto não será recusado nessa matéria. Bem gostaríamos que a recíproca fosse verdade também e que a maioria parlamentar não nos recusasse o voto para algumas iniciativas que poderiam melhorar a eficácia do nosso sistema e que temos pendentes, a última das quais diz respeito, por exemplo, ao tráfico de influências, questão seguramente não menos importante do que esta do branqueamento de capitais e, quiçá, algumas vezes a ele associada.

O Sr. Alberto Cosia (PS): - Muito bem!

O Orador: - V. Ex.ª diz-nos - e é a última consideração que de momento gostaria de fazer: «Estamos conscientes e estamos atentos», referindo-se ao Governo de que faz parte.
Essa é uma declaração que, no dia de hoje, Sr. Secretário de Estado, não nos inspira particular confiança e gostaríamos de ser tranquilizados ou, pelo menos, informados quanto a esse ponto. É que este foi o dia em que, entre outras coisas, veio ao domínio público que VV. Ex.ªs eram detentores, há tempo significativo, de informações circunstanciadas sobre casos que, no domínio da criminalidade, não são menos escandalosos - refiro-me ao caso dos skin-heads e da sua organização delituosa em território nacional.

Vozes do P§: - Muito bem!

O Orador: - VV. Ex.ªs, nessa matéria, dispunham, e dispõem, de dados informativos, confluindo de diversas fontes (da Polícia Judiciária, do SIS, de informadores vários e, suponho eu, do próprio facto decorrente de estarem acordados e lerem os jornais), para saberem, para verem e para ouvirem muitos sinais de alarme nesta matéria, sem que dêem qualquer sinal não só de atenção como de acção.
Portanto, quando V. Ex.ª diz aqui «estamos conscientes e atentos», a pergunta que lhe fazemos é muito simples: onde estão os sinais da vossa atenção e da vossa consciência em matéria de branqueamento de capitais? Devo dizer, Sr Secretário de Estado, que em tudo aquilo que disse não encontrei nenhum! Porque a lei, entre outras coisas, prevê obrigações paru as instituições financeiras e V. Ex.ª não revelou nenhum conhecimento sobre as dificuldades e preocupações das entidades financeiras; porque a lei prevê obrigações para o Ministério Público e V. Ex.ª não deu aqui nenhum sinal de ter percebido a maneira como o Ministério Público está a ter dificuldades na aplicação desta lei.
Esta lei é difícil de aplicar, Sr. Secretário de Estado! O branqueamento de capitais tem muitas teias, em muitos casos há operações que são, pura e simplesmente, de lesão de concorrência. Na verdade, quando há certas denúncias, do tipo «Tem um tráfico de capital», «É um agente de dinheiro sujo», isso pode lesar a concorrência e gerar a paralisação de milhões de contos na banca. Aliás, já a gerou historicamente em alguns casos pendentes nos nossos tribunais ou na Polícia Judiciária.
Portanto, trata-se de um instrumento a gerir com muito cuidado e V. Ex.ª não parece trazer à Câmara nenhuma informação sobre as dificuldades do Ministério Público em aplicar este regime legal.
Em terceiro lugar, não revela nenhuma informação sobre a acção do Ministério das Finanças. Como sabe, é ao Ministério das Finanças que cabe a aplicação de sanções, de coimas, no quadro legal que tem estado em vigor na sua feição actual Como é que o Ministério das Finanças vive e aplica este quadro legal?
Eu sei que V. Ex.ª não está aqui em nome do Ministro das Finanças - e não era suposto ele estar aqui directamente, embora isso lhe ficasse bem -, mas qual e a informação que tem a dar sobre esse aspecto? O que é que o Governo vai fazer para que essas dificuldades de aplicação não tornem nula e, logo, apenas simbólica a existência desta lei, que merece, seguramente, consenso, apesar dos melindrosos problemas que suscita.
Por outro lado, como é que vão aplicar esta lei em relação aos casinos? A autorização legislativa que vamos dar-lhe permite a extensão aos casinos, mas quais são os mecanismos que VV. Ex.ªs estão a preparar para garantir a aplicação nos casinos? Qual é a regulamentação? Qual é a feição concreta do regime?
E em relação à mediação imobiliária? Fica tudo abrangido ou apenas algumas transacções? O que é que VV. Ex.ªs pretendem exceptuar, já que há excepções nas transacções que correm pela banca e por outras instituições financeiras?
Por outro lado, em relação à comercialização de metais preciosos e de antiguidades ou bens culturais, como é que vão espalhar isto em relação à rede de antiquários e de vendedores que existem em território nacional?
Sr. Secretário de Estado, a proposta não responde, rigorosamente, a estas questões.
Além disso, quais são os mecanismos que permitem a terceiros de boa fé, titulares ou não de registo público.

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defenderem os seus direitos, nos casos em que haja suspeitas de branqueamento de capital? Embora isso ;esteja previsto no n.º 7 do artigo 2.º da proposta de lei da autorização legislativa, não foi explicitado na intervenção de V. Ex.ª, dada a opção que utilizou.
Em último lugar, Sr Secretário de Estado, e a PJ, a quem vão ser deferidas competências nesta área, que meios vai ter para alargar às outras zonas as medidas aqui previstas?
Sr. Secretário de Estado, é a perguntas destas que é suposto que responda. O resto é vã glória, é auto-plágio, se calhar, é a tentativa de defesa de alguém que não pode evitar ser condenado aqui à revelia, a saber: o Sr. Ministro da Justiça e o Governo, pela sua posição largamente irresponsável nesta matéria.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente,
Srs Membros do Governo, Srs. Deputados: Depois de uma análise desta proposta de autorização legislativa, chega-se à conclusão de que, afinal, o Governo andou a perder tempo nesta matéria e que, além disso, não são dados argumentos convincentes para que se perceba o porquê dessa atitude.
Na verdade, como o Sr. Secretário de Estado começou por dizer, até ao momento, na lei portuguesa, o problema do branqueamento de capitais tem sido exclusivamente encarado na óptica do combate ao tráfico de droga. Em 1993, o Decreto-Lei n.º 15/93, ainda chamado «nova lei da droga», veio criminalizar o branqueamento de capitais provenientes do tráfico de droga, o que, aliás, tinha sido já previsto numa convenção das Nações Unidas de T988, e só em Setembro de 1993 foi feita a transposição parcial da directiva comunitária, que é de 1991. É de assinalar, que já esta directiva se referia à necessidade de proceder à prevenção do branqueamento de capitais proveniente de outras actividades ilícitas e não apenas a do tráfico de droga.
Nessa altura, optou o Governo por não proceder à transposição integral da directiva e de fazê-lo apenas relativamente ao tráfico de droga, o que, aliás, tinha alguma lógica, na medida em que não estava criminalizado o branqueamento de capitais relativamente a outras actividades criminosas. Em nossa opinião, o problema partia daí, na medida em que já nessa altura, quando foi feita a nova lei da droga, não era novidade, noutros temas jurídicos, a criminalização do branqueamento de capitais provenientes de outras actividades.
Aliás, a própria exposição de motivos desta proposta de lei de autorização legislativa, referindo-se ao Conselho da Europa, diz que este «promoveu a elaboração da Convenção sobre o Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime, assinada por Portugal a 8 de Novembro de 1990, incitando os Estados membros e alargar o combate ao branqueamento de capitais não apenas provenientes do tráfico de droga e precursores, ruas de outras formas de criminalidade, como seja o tráfico de armas, o terrorismo, o tráfico de crianças e de mulheres jovens, bem como outras infracções graves de que os obtenham proventos importantes». Isto não é novidade para ninguém, uma vez que esta convenção está assinada, como disse, desde 1990. Aliás, a directiva comunitária foi também transposta em matéria de prevenção e no mesmo sentido.
A este respeito, quero assinalar que, quando foi aqui debatida a autorização legislativa para transposição desta directiva, que veio dar lugar ao Decreto-Lei n.º 313/93, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais, questionámos o Governo no sentido de saber por que razão este não só não propunha à Assembleia da República a criminalização do branqueamento de capitais provenientes de outro tipo de actividades criminosas com particular gravidade mas também não transpunha a directiva relativamente a outras entidades, que não exclusivamente o sistema financeiro, porque isso, de facto, já estava previsto na directiva comunitária.
Não temos razões de princípio contra esta extensão, contra a transposição integral da directiva comunitária e contra a criminalização do branqueamento de capitais provenientes de outras actividades criminosas particularmente graves, como as que aqui são propostas, o que não percebemos é por que motivo, na altura, o Governo leve tantos problemas em proceder às adaptações legislativas que agora são propostas. Invocava, então, o Governo a necessidade de experimentar, mas, afinal, o que se verifica é que isto não está experimentado! Na verdade, o que se constata é que tem havido grandes dificuldades na aplicação do Decreto-Lei n.º 313/93 relativamente ao sistema financeiro.
O que acontece é que o Governo veio descobrir agora que, no quadro da União Europeia, só quatro Estados circunscreveram o branqueamento à droga, que todos os outros criminalizavam o branqueamento de capitais oriundos de outras actividades e que, actualmente, só Portugal e o Luxemburgo se limitam à adopção de medidas preventivas em matéria de branqueamento do dinheiro proveniente do tráfico de droga.
Portanto, não compreendemos por que razão isto não foi visto até agora, nem por que é que só à última hora, com a VI Legislatura a terminar, aparece um pedido de autorização legislativa do Governo para estabelecer medidas sobre o branqueamento de capitais e outros bens provenientes da prática de crimes.
Aliás, isto coloca outros problemas: é que se é perfeitamente admissível discutir, em sede de autorização legislativa, a criminalização do branqueamento das actividades que são propostas, relativamente às medidas preventivas, a experiência que temos do debate do último pedido de autorização legislativa demonstra que há problemas que podem ser suscitados. Isto é, se compararmos a autorização legislativa que foi dada ao Governo em 1993 para proceder à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais da droga com o decreto-lei que foi aprovado, verificamos que muitas das questões que, pertinentemente, foram colocadas aquando da discussão do pedido de autorização legislativa só foram respondidas no decreto-lei autorizado.
Aquando do debate da proposta de lei de autorização legislativa, colocámos muitas dúvidas quanto a grandes indeterminações existentes na proposta, designadamente em relação ao facto de cia não assegurar, à partida, que houvesse uma compatibilidade entre os mecanismos previstos e os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, e pedimos, inclusivamente, que se respeitassem as competências próprias das entidades competentes para procederem à investigação criminal. Evidentemente, não é o funcionário de uma instituição financeira que tem competência para proceder à investigação criminal, há entidades competentes para tal e essas competências têm de ser

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respeitadas. Ora, isso não estava, de maneira alguma, salvaguardado no texto da autorização legislativa e só veio a ser respondido, nalguns casos satisfatoriamente, no decreto-lei autorizado - e creio que terá valido a pena o debate parlamentar feito nessa altura, porque algumas das prevenções que aqui foram feitas acabaram por ter consequências no texto do decreto-lei -, mas, agora, é legítimo que se coloquem problemas semelhantes.
De facto, quando no n.º 6 do artigo 2.º do pedido de autorização legislativa que aqui é apresentada, o Governo diz. «Sujeitar a obrigações semelhantes às estabelecidas no Decreto-Lei n.º 313/93, de 15 de Setembro, (...)» - que se refere ao sistema financeiro - «(...) com as especialidades que se mostrem necessárias para garantir a sua eficácia e praticabilidade, as pessoas singulares ou colectivas que: a) Explorem salas de jogo; b) Exerçam actividades de mediação imobiliária ou de compra de imóveis para revenda; c) Utilizem habitualmente bilhetes ou outros instrumentos ao portador (...)», é legítimo que perguntemos como e que obrigações que estão previstas especificamente para o sistema financeiro são aplicáveis a outras entidades e com que especialidade. Esta não é uma questão somenos. E que não estou a ver que seja possível fazer uma transposição mecânica, para outras entidades, dos mecanismos que existem para o sistema financeiro ou, pelo menos, que tal seja possível sem que o pedido de autorização legislativa seja mais claro sobre o que o Governo pretende lazer para que sejam respeitadas escrupulosamente as competências próprias das entidades competentes para a investigação criminal. Naturalmente, não são as pessoas que exploram as salas de jogo, não são os antiquários nem os comerciantes de obras de arte que têm por missão proceder à investigação de crimes relacionados com o branqueamento de capitais. Portanto, há aqui competências que têm de ser salvaguardadas e não é claro, pelas simples apreciação da proposta de lei, que essas salvaguardas estejam devidamente feitas.
Como disse há pouco, a experiência do Decreto-Lei n.º 313/93 é reduzida. Aliás, sempre que esta matéria tem sido abordada, designadamente em comissão parlamentar, tem-se verificado que existe uma dificuldade grande, por parte do sistema financeiro, em pôr em prática algumas das determinações constantes deste decreto-lei. Assim, esta matéria devia ser particularmente estudada, para que se verifique qual é, de facto, a sua eficácia prática e quais são os problemas que podem colocar-se na aplicação desta legislação, inclusivamente do ponto de vista da salvaguarda de direitos fundamentais. Esta matéria precisa, como disse, de ser cuidadosamente vista.
Concluo, dizendo que estamos, agora, a dar um passo em frente que, do nosso ponto de vista, deveria ter sido dado aquando do primeiro diploma - à partida, não vemos razão para que isso não tenha acontecido. De qualquer maneira, penso que deve ser cuidadosamente analisada a experiência do Decreto-Lei n.º 313/93, para que se possa verificar qual é a eficácia que tudo isto vai ter e quais são os problemas que poderão ser suscitados com a aplicação destas determinações legais.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Cosia Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Se as Escrituras têm razão, quando dizem que há tempo para tudo, tempo para amar e tempo para morrer, também para os Parlamentos haverá tempo para tudo. Mesmo para os Parlamentos, quando fazem legislação em matéria de luta contra o crime, haverá tempo para tratar das coisas de Direito Penal substantivo, de Direito Penal adjectivo e de intendência, designadamente da afectação dos meios necessários para a prossecução das tarefas definidas a nível da lei penal substantiva.

O Sr. José Magalhães (PS): - Intendência?!

O Orador: - Se bem virmos as coisas, somos hoje convocados para discutir uma proposta de lei de carácter fundamentalmente substantivo. Trata-se de uma proposta intrinsecamente boa e fundada, porque tem, por si, o apoio do Governo, da maioria que o sustenta e da oposição, como acabámos de ver.

O Sr. José Magalhães (PS)- - E da ONU!

O Orador: - Portanto, poder-se-ia dizer que, de certa maneira, o debate estava feito Sendo nós, como partido que apoiamos o Governo, que nos revemos na intervenção feita pelo Sr. Secretário de Estado, a proximidade ao texto expositivo não é, do nosso ponto de vista, critério de falta de qualidade. Pelo contrário, apesar de a aproximação a uma peça de qualidade ser um bom argumento, talvez devamos reflectir um pouco mais, aproveitando parte do tempo de que dispomos para tecer algumas considerações sobre problemas que se vão repetir e se relacionam com a transposição de directivas da União Europeia em matéria de Direito Criminal.
As referidas directivas suscitam vários problemas a um Parlamento nacional, cioso da cultura, do povo que representamos e da soberania, que importa preservar, no quadro da integração europeia. Tudo está em saber como se articulam a prossecução dos fins propostos pelas directivas, que é matéria da competência da União Europeia, e a sua concretização, que é matéria que releva da cultura e da soberania dos povos e que há-de reflectir a pluralidade e a natural dissonância dos povos da União Europeia. Talvez poucas pessoas, em Portugal, tenham pensado e escrito sobre este tema com tanta pertinência e acerto como V. Ex.ª, Sr. Presidente da Assembleia da República, no seu ensino de Contencioso Administrativo, lição com a qual inteiramente me identifico.
Portanto, este é um problema com que esta Assembleia vai reencontrar-se muitas vezes, daqui para o futuro.
Em tomadas de posição como as que surgiram no discurso da oposição, designadamente do Srs. Deputados José Magalhães e António Filipe, que referem a transposição integral de uma directiva, é preciso ter algum cuidado com essas expressões. Naturalmente, faço justiça aos Srs. Deputados José Magalhães e António Filipe, por não terem querido assumir posições fechadas e drásticas nesta matéria. No entanto, há expressões e conceitos que podem induzir em erros e perigos, o que é tanto mais significativo quanto é certo que estamos, neste caso concreto, perante uma directiva prudente e sábia.
No seu artigo 14.º, a directiva apela para a discricionariedade e a liberdade de os Estados modelarem a luta contra o branqueamento de capitais de acordo com as suas próprias instituições penais. Por isso, em rigor, não há o conceito de transposição integral. A única coisa que existe para transpor são as metas, os objectivos. Isto é extremamente importante, convém retê-lo e, do meu ponto de

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vista, os que nos sucederem nesta Câmara devem ter uma consciência clara deste problema.
Outro problema extremamente importante e o das relações entre Estados de direito democrático e a luta contra certas formas de criminalidade, luta que apela para mecanismos excepcionais, justificados pela particular ameaça de certas formas de criminalidade, terrorismo, droga, tráfico de armas, entre outras, mas não pode levar o Estado a abrir mão da sua superioridade ética e das suas próprias garantias fundamentais, enquanto Estado de direito. É preciso ponderar, equilibrar e avançar, aqui, por tateamentos e tentativas.
Portanto, deste ponto de vista, o comportamento do Governo, o facto de ter avançado por tentativas, é mais de louvar do que criticar. Pessoalmente, eu seria algo restritivo quanto à extensa fenomenologia de crimes em relação à qual se vão estender estes mecanismos de luta contra o branqueamento de capitais. Nada tenho a opor à draga, ao tráfico de armas, ao terrorismo, a crimes de grande dimensão transnacional, mas há outras coisas, de carácter paroquial, outras formas de criminalidade em relação às quais talvez devêssemos ser mais prudentes e, antes de avançarmos para aí, esgotar os meios que a legislação penal portuguesa já nos oferece, como o auxílio material ao crime, o favorecimento pessoal, a receptação de objectos de crime, etc. Em meu entender, também aqui se revela a necessidade de alguma prudência e ponderação.
Outra cautela a ter em conta é a da conveniência de uma harmonização acabada, tanto quanto possível, dos diferentes textos legislativos. Quem trabalha no outro lado, no lado forense, com o problema do crime, sabe por experiência própria que a falta de harmonização da legislação é a malha por onde a criminalidade, sobretudo a criminalidade inteligente - e esta é-o, manifestamente -, se move.

O Sr. José Magalhães (PS): - Muito bem!

O Orador: - Com uma boa argumentação jurídica, um advogado bem preparado consegue quase sempre, se a legislação não é coesa, não é harmónica e há mais do que um diploma... Depois, jogam as regras de sucessão de leis no tempo, as diferenças de expressão e os diferentes teores dos debates parlamentares, então, raramente se consegue apanhar um criminoso. É importante que, na eficácia da luta contra o crime, se evite a anomia de uma grande dispersão legislativa e, sobretudo, de uma grande descoordenação e desassimilação ou dessistematização.
Sr. Presidente, Sr Secretário de Estado, Srs. Deputados: São estas as alegações que, na «25.ª hora» desta sessão legislativa e desta legislatura, quando todos estamos atentos ao voo das aves e às entranhas das vítimas que sacrificamos, sobre o destino que as parcas nos tecem, se me afiguram dizer, em nome do Partido Social Democrata, concordando inteiramente com a intervenção do Sr. Secretário de Estado, com a proposta de lei e com a oposição, na medida em que também ela considera esta uma boa proposta de lei.

Aplausos do PSD.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr Presidente, peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Para que efeito, Sr. Deputado?

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Para interpelar a Mesa, Sr. Presidente, mas, como a interpelação não está relacionada com este debate, gostaria de a fazer mais tarde.

O Sr. Presidente: - Então, para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Costa Andrade, a minha pergunta encaixa directamente na parte final da sua intervenção. Não a parte sobre as entranhas da pomba, os arúspices, a angústia antes do penalty, etc., mas sobre a questão que colocou quanto às malhas da lei.
O nosso receio - devo dizer-lhe que é o único - é este: neste domínio, a malha legal portuguesa foi, como V. Ex.ª bem sabe, objecto de muitos sedimentos e muito diversos, pelo que não há harmonização de regimes. Precisamente, o que é difícil de perceber, mesmo para quem esteja a analisar o nosso quadro legal, é a estratégia que está atrás desta produção jurídica. Começámos por transpor- entenda a palavra adequadamente - a directiva numa parte. Era nosso direito, não o questionei. Agora, a questão é a de saber se isso se filiava numa estratégia eficaz, porque, ao fazermos isso, deixámos de lado outras modalidades de branqueamento de capitais e, como provavelmente sabe, neste momento, há processos sobre branqueamento de capitais que foram encetados na mira de encontrar uma conexão com o tráfico de droga, mas que estavam, afinal, associados a outros tráficos, nomeadamente de mulheres, de armas ou de diamantes. Ora, não é possível prosseguir esses processos, porque a lei só prevê o combate ao branqueamento de capitais ligados à droga. Ou seja, já perdemos tempo, efectivamente. Não se trata de um medo abstracto mas, sim, de um facto.
O segundo problema e o seguinte: como é que se articula esta lei com a do combate à corrupção, a qual, como sabe, é de calibre amplo? Prevê-se neste pedido de autorização legislativa, ou julgamos que se prevê, porque a norma está escrita em termos hábeis, o alargamento das obrigações de vigilância a pessoas singulares e colectivas que explorem salas de jogo e actividades de mediação imobiliária ou de compra de imóveis para revenda.
Agora, tenha em atenção a alínea c) do n.º 6 do artigo 2.º do pedido de autorização legislativa, que refere as pessoas singulares ou colectivas que «utilizem habitualmente bilhetes ou outros instrumentos ao portador, ou que prestem serviços ou transaccionem bens de elevado valor unitário (...)» - e, repare - «(...) nomeadamente pedras e metais preciosos, antiguidades ou bens culturais». Na verdade, caiu aqui a referência que consta no preâmbulo deste diploma ao transporte de dinheiro e outras actividades. Mas este «nomeadamente» é hábil, pois permite incluir, virtualmente, quaisquer outras actividades. Isto cria incerteza no acto de legislar. Ora, como se sabe, há diferença entre um banco ou uma companhia de seguros e uma mediadora anónima, minúscula, à qual um traficante mafioso recorrerá para lavar, comprando x prédios de milhares de contos, algum dinheiro que obteve ilicitamente. É diferente! Como é que o Governo e nós, legisladores, que, no fundo, vamos dar autorização, estamos a ver essa tipificação de situações? Resposta: não estamos! Não estamos! Creio que isso é mau metodologicamente e do ponto de vista da boa articulação Governo/Assembleia, autorizante/autorizado. É mau!
A terceira questão tem a ver com a intendência, Sr. Deputado Costa Andrade. Suponho que a expressão «intendência» tem origem militar e refere aqueles executantes, por definição, menores, que tratam de organizar os meios materiais para que a grande estratégia do general possa, na altura própria, consumar-se. Mas o

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que estamos aqui a discutir, desde há anos, e o Sr. Deputado Costa Andrade sabe disso perfeitamente, é que é mau aquilo que tem acontecido em Portugal, ou seja, reúne-se uma comissão de ínclitos juristas - V. Ex.ª tem estado praticamente em todas as que versam sobre Direito Penal -,..

O Sr Presidente: - Sr. Deputado, queira terminar.

O Orador: - Termino já, Sr. Presidente.
Como estava a dizer, essas comissões trabalham anos a fio e as suas actas são tardiamente reveladas, depois, os governos exploram os resultados desse trabalho no momento que entendem, como entendem e, até, «às prestações», como acontece agora com a revisão do Código de Processo Penal, de que tivemos um pequenino extracto, um extractículo, enquanto que o produto do labor dos mestres que reflectem sobre essa matéria é guardado nas gavetas, não se percebe porquê. A seguir, as reformas tropeçam na prática, porque a PJ não tem carros ou está em luta por regalias, como subsídios de risco, meios de protecção, armas mais sofisticadas, meios mais poderosos de intersecção e acompanhamento das operações financeiras.

O Sr. Presidente: - Sr Deputado, queira concluir.

O Orador: - Concluo já, Sr. Presidente.
Por sua vez, os institutos de medicina legal explodem por falta de meios. Fora de Lisboa e do Porto, não há investigação criminal. De que nos adianta...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, tem de concluir.

O Orador: - Sr. Presidente, permita-me apenas enunciar a pergunta.
Sr. Deputado, como é que V. Ex.ª, no caso do branqueamento de capitais, que exige meios reforçados e superlativos, pode dizer que isso é uma questão de intendência? Arriscamo-nos a ir parar a outro Camarate, daqui a 15 anos. É isso que não queremos.

O Sr. Presidente: - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado José Magalhães, vou começar, precisamente, pela última questão, que me parece ser a mais importante.
Penso que o Sr. Deputado entendeu mal as minhas afirmações. O que eu quis dizer foi esta coisa extremamente simples e óbvia: o bom método, o discurso do método, manda separar as questões e há questões de direito penal substantivo, de que hoje curamos, e questões de processo penal e de adequação de meios para a prossecução das metas do direito substantivo, de que curaremos noutra época. Não se trata de contraposição. Pelo contrário, se e na medida em que progredirmos ao nível do direito penal substantivo, de que hoje aqui tratamos, se e nessa medida, repito, mais legitimidade teremos para sermos exigentes em matéria de meios; se e na medida em que colocarmos alto - e devemos fazê-lo - os objectivos a nível de direito penal substantivo, nessa mesma medida, aumenta o nosso espaço para reivindicarmos. E, naturalmente, aumentam as obrigações do Governo - que é quem disponibiliza os meios para tornar praticáveis as metas, que nós aqui, hoje e nos outros dias, estabelecemos, quando discutimos questões de direito penal substantivo -, em termos de resposta, amanhã e nos outros dias para além de amanhã, quando aqui discutirmos questões de meios. Era só isto o que queria dizer. Sr Deputado, para que alguém que nos veja de outros passos, não estranhe isto. Como é que discutimos tanto uma proposta de lei. com que, afinal, concordam o Governo, o PCP e o PS? Pois não seria mais de celebrar, hoje, esta concordância, esta união, para responsabilizar muito mais, amanhã, quem tem a obrigação de dar os meios? Parece-me que estamos aqui a inventar conflitos para continuarmos todos a desempenhar o nosso papel: o de Deputado da maioria e o de Deputado da oposição. Porém, julgo que isso não é necessário, pois todos sabem quem e da maioria e quem é da oposição. Não devemos seguir o exemplo do monge superior que estava a ensinar ao noviço por que é que há guerras e conflitos. Mas deixemos a História, que talvez nos levasse muito longe...
Penso, pois, que as afirmações que fiz não são contraditórias, nem o são, de resto, com as do Sr. Deputado O Sr. Deputado, se continuar aqui para além disto, terá ganho hoje um ponto de referência importante para reivindicar, porque é preciso lutar contra o branqueamento de capitais.
Outra questão colocada pelo Sr. Deputado tem a ver com o inciso «nomeadamente», na alínea c) do n º 6 do artigo 2.º da proposta de lei em apreço. Vamos lá, Sr. Deputado, também não ampliemos as dificuldades! Estamos a tratar de uma autorização legislativa e numa autorização legislativa definimos parâmetros máximos, no âmbito dos quais o Governo tem de mover-se. Portanto, o «nomeadamente», que num tipo legal de crime já pode criar dificuldades, porque pode violar o princípio constitucional da determinabilidade, aqui, numa autorização legislativa, não me parece que seja um obstáculo intransponível. Assim sendo, a nível de autorização legislativa, podemos conviver com o «nomeadamente»

O Sr. José Magalhães (PS): - E o artigo 168.º, n.º 2, da Constituição?

O Orador: - O princípio da definição da autorização legislativa não é violado, Sr Deputado, porque isto é um limite De facto, o Governo pode legislar, nomeadamente em matéria de arte, pedras preciosas, ele, pode ser até que não abarque isso tudo, mas, depois, o Governo fá-lo-á. Ao que o Governo está obrigado é, na tipificação concreta dos crimes, a obedecer ao princípio da determinabilidade e da previsão - nullum crimen sine lege certa, além de escrita certa. E, com certeza, o Governo vai fazê-lo, porque se o não fizer, viola a Constituição e nós temos o Tribunal Constitucional para sindicar isso.
Depois, o Sr. Deputado colocou uma outra questão: a de saber se não se perdeu já tempo Sr. Deputado, estou convencido que sim, o Governo está convencido que sim, todos nós estamos convencidos que sim, numa matéria, a do branqueamento de capitais, onde estamos a avançar por tentativas, onde ninguém tem ideias claras Se o Sr. Deputado tivesse ideias claras sobre o modelo do direito penal substantivo, o modelo de processo penal e o modelo de ajustamento de meios, nós agarrávamo-las já com as duas mãos! Mas não temos!

O Sr. José Magalhães (PS). - E onde é que estão as mãos, Sr. Deputado Costa Andrade?!

O Orador: - Por outro lado, não podemos paralisar a razão prática, que nos obriga a caminhar em nome de uma

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racionalidade teórica, abstracta, que ainda não temos. Quer dizer, a razão prática pode, em certos casos, ser incompatível com a razão teórica. Porque o que nos dizia a razão teórica era que parássemos até termos ideias tiaras e definitivas Mas não podemos parar! Temos de ir fazendo alguma coisa! Se calhar, até cometer alguns erros... Temos de avançar, até alcançarmos o paradigma definitivo de luta contra o branqueamento de capitais, o que,

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró(CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado, Srs. Deputados: A legislação sobre o branqueamento de capitais é fundamental para prevenir o crime de tráfico de droga, a passagem ilícita de capitais através do nosso país e a importação de avultadas quantias, que aqui vêm ser colocadas, sem qualquer fundamento ou objectivos que não sejam os da mera especulação através das nossas instituições financeiras.
O que se tem verificado e que, por um lado, devido ao segredo bancário e, por outro, devido a uma falta de controlo por parte de organizações financeiras, o nosso país tem sido, nos últimos anos, um sítio - para dizer a palavra certa - aproveitado pelos grandes especuladores para depositar e fazer transitar e ...
Há dois ou três meses, tivemos conhecimento do caso de um determinado senhor, que apareceu num fim-de-semana, numa sexta-feira, num conhecido banco português para depositar meio milhão de contos. Naturalmente, dois outros bancos recusaram esse depósito. Mas houve um que o recebeu e que comunicou imediatamente à Polícia Judiciária e às entidades competentes que tinha sido depositado numa sexta-feira, à hora do fecho do banco, meio milhão de contos, à ordem, pois não se dizia qual era o prazo.
O banco que recebeu essa quantia, que tinha sido recusada por outros dois bancos, era um banco comercial, que entendeu nada haver na legislação que o impedisse de receber esse depósito. Mas, à cautela, imediatamente comunicou à Polícia Judiciária e às outras entidades que tinha acabado de ser depositada nos seus cofres, à ordem, uma tão avultada quantia por estrangeiros, sem que estivesse presente algum português.
Entretanto, os bancos fecharam, passou-se o sábado e o domingo, e, na segunda-feira, quando a Polícia Judiciária quis intervir, o dinheiro já tinha saído do banco. E já tinha saído, normalmente, porque a mesma pessoa que depositou o dinheiro foi lá levantá-lo e o banco ganhou o chamado overnight. Ora, a taxa overnight sobre, meio milhão de contos é uma fortuna para qualquer bando! E não houve qualquer dúvida de que tudo se passou normalmente: o dinheiro entrou legalmente; o banco entendeu não haver qualquer legislação que proibisse a recepção desse dinheiro, mas comunicou-o imediatamente às autoridades. O banco fechou, por se tratar de um fim-de-semana. e, na segunda-feira, de manhã, nem a Polícia Judiciária nem ninguém tinha tomado medidas para proibir a saída desse dinheiro, pelo que ele saiu normalmente e o banco cobrou a sua comissão de 48 horas, o chamado overnight.
Isto veio publicado nos jornais, não fiz qualquer investigação! A notícia, que tem cerca de dois meses, escandalizou-me pela maneira como vinha relatada nos jornais e guardo-a de memória. Nunca mais se falou deste episódio, mas este foi um caso, entre muitos outros que poder vir a acontecer, se não houver legislação capaz de, em primeiro lugar, dar poderes às próprias instituições financeiras para investigarem de onde vem esse dinheiro e de lhes indicar as precauções que devem tomar para receberem esse dinheiro, e de, em segundo lugar, prever o modo como as nossas autoridades devem agir imediatamente, quebrando o sigilo bancário e todas as normas que hoje rodeiam e quase facilitam a passagem dos capitais ilícitos e o branqueamento dos capitais, para que os nosscs sistemas financeiro, bancário e policial não estejam totalmente desarmados como estavam há dois meses.
Julgo que esta autorização legislativa já vem sendo anunciada há muito mais tempo pelo nosso Ministro de Justiça, que tem este bom hábito de um ano antes de fazer qualquer coisa, dar como feito aquilo que vai fazer. Por isso, quase todos estavam convencidos de que a matéria do branqueamento de capitais já tinha legislação própria. É que o Sr. Ministro da Justiça falava tanto nela que alguns de nós convencemo-nos do seguinte. «Se calhar, naquele dia, faltei; sou Deputado, mas como isso não me passou pelas mãos, provavelmente, faltei naquele dia e o Ministro levou a autorização».

Risos do PS, do PCP e de Os Verdes.

Ainda bem que ela chegou! Vejo com os meus olhos que ela está aqui! A legislação sobre o branqueamento dos capitais vai ser concretizada Parabéns ao Sr. Ministro Laborinho Lúcio, que os merecia há mais de um ano, quando ele quase nos tinha convencido de que esta legislação já estava em vigor

Vozes do PSD e do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Dou agora a palavra ao Sr. Deputado Sousa Lara, para como há pouco solicitou, fazer uma interpelação à Mesa.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, gostaria cê comunicar à Câmara um assunto, que. penso, terá o maior interesse para todos nós e mesmo para Portugal.
Como diz directamente respeito ao Sr. Deputado Adriano Moreira, que se encontrava numa reunião e, agora, está a caminho do Plenário, se V. Ex.ª me permitisse renovar o pedido de interpelação para quando o Sr. Deputado estivesse presente, ficar-lhe-ia muito grato, pois não queria intervir na sua ausência

O Sr. Presidente: - Assim se fará, Sr Deputado.

Srs. Deputados, vamos, agora, passar à discussão, na generalidade, da proposta de lei n º 131/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado Adjunto ao Ministro da Justiça (Borges Soeiro): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A reforma do contencioso administrativo, levada a cabo em 1984/85 - que se concretizou, nomeadamente, através da publicação do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 1218, de 27 de Abril, e da Lei de Processo nos Tribunais. As

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mmistrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, ambos ratificados posteriormente pela Assembleia da República - constituiu um primeiro passo, de inegável importância, para adaptar a disciplina legislativa da matéria ao disposto na Constituição da República Portuguesa e aos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, bem como para aliviar o órgão de cúpula do nosso sistema de tribunais administrativos, o Supremo Tribunal Administrativo, do grande número de processos que, já então, excedia manifestamente a capacidade de produção decisória do referido tribunal, apesar dos sucessivos aumentos do número de juizes ao seu serviço, de que foi beneficiando na década imediatamente anterior.
Acontece, no entanto, que, passados 10 anos, todos os tribunais administrativos portugueses - e, de modo muito particular, o Supremo Tribunal Administrativo - estão, de novo, a braços com uma sobrecarga de trabalho, que se revela em absoluto incomportável nos limites do sistema actualmente em vigor.
Decidiu, pois, o Governo estudar e aprovar uma segunda reforma do contencioso administrativo português, a qual, como a anterior, se desdobrará, para começar, em dois diplomas básicos - o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e uma nova lei de processo, a que, desta vez, se chamará Código do Processo Contencioso Administrativo -, e será, depois, completada pela revisão da legislação reguladora do Tribunal dos Conflitos.
O decreto-lei para cuja elaboração o Governo solicitou o presente pedido de autorização legislativa corresponde ao primeiro dos diplomas enunciados, isto é, constitui o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Quais são, neste momento, as principais dificuldades práticas que obstam ao bom funcionamento dos nossos tribunais administrativos?
Pode sintetizar-se correctamente a resposta principal a essa pergunta, dizendo: são as dificuldades causadas pelo número de processos anualmente instaurados, o qual se revela excessivo em relação às possibilidades reais dos tribunais existentes. Daí que, para aliviar simultaneamente a sobrecarga do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Administrativos de Círculo, o presente Estatuto venha criar, pela primeira vez na história do nosso contencioso administrativo, um novo tribunal, que constituirá uma instância intermédia entre o primeiro e os segundos e que terá a designação de Tribunal Central Administrativo.
Paralelamente, aproveita-se a oportunidade para melhorar diversos aspectos da orgânica e funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais, do estatuto dos seus magistrados e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
A principal inovação introduzida pelo diploma que se pretende elaborar cifra-se, assim, na criação de um Tribunal Central Administrativo, com sede em Lisboa, cuja 1.ª Secção se ocupará do contencioso administrativo e cuja 2.ª Secção, do contencioso tributário, assumirá o lugar e fará as vezes do actual Tribunal Tributário de 2.ª Instância.
Destinando-se o novo tribunal, na parte relativa ao contencioso administrativo, a aliviar, simultaneamente, a sobrecarga de trabalho do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Administrativos de Círculo, lógico é que as respectivas competências venham a resultar de uma dupla transferência, que este diploma determina - uma transferência descendente, que desloca competências actuais do Supremo para o Tribunal Central, e uma transferência ascendente, que passa para este mesmo Tribunal competências actuais dos Tribunais Administrativos de Círculo. Só assim se conseguirá, na verdade, aliviar o excesso de trabalho do Supremo, sem ser à custa de mais trabalho para os tribunais administrativos de círculo, e aliviar estes, sem o fazer a custa de mais trabalho para o Supremo.
Em consequência da criação do Tribunal Central Administrativo e do significativo elenco de competências que lhe são conferidas pelo novo Estatuto, a 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo será libertada de mais de metade dos processos da sua actual competência, que é constituída pelos recursos jurisdicionais das decisões proferidas pelos tribunais administrativos de círculo e pelos recursos directos dos actos do Governo em matéria de função pública.
Por seu turno, os tribunais administrativos de círculo serão libertados dos processos que à data da entrada em vigor do Estatuto de 1984 não eram da sua competência, mas do Supremo, designadamente os relativos aos recursos directos dos actos dos directores-gerais e órgãos equivalentes, bem como dos actos dos institutos públicos e associações públicas de âmbito nacional e ainda dos pedidos de declaração de ilegalidade de normas regulamentares de âmbito nacional
Mantendo-se no contencioso administrativo o princípio do duplo grau de jurisdição (sem casos de triplo grau), das decisões dos tribunais de círculo deixa de haver recurso para o Supremo, cabendo recurso apenas para o Tribunal Central, e só das decisões deste proferidas em recursos directos é que haverá agora recurso para o Supremo.
Assim, a competência principal dos três escalões que passarão a existir na orgânica dos tribunais administrativos portugueses poderá, sucintamente, resumir-se da forma seguinte:
Supremo Tribunal Administrativo: competir-lhe-á essencialmente conhecer os recursos das decisões do Tribunal Central Administrativo, proferidas em recursos directos para ele interpostos e, bem assim, dos recursos directos de actos praticados em matéria administrativa pelos vários poderes do Estado, salvo, quanto aos actos administrativos do Governo, se versarem matéria de função pública;
Tribunal Central Administrativo: competir-lhe-á fundamentalmente conhecer dos recursos das decisões dos tribunais administrativos de círculo, dos recursos dos actos do Governo em matéria de função pública, dos recursos dos actos da alta administração pública e dos órgãos independentes do Estado, dos órgãos das regiões autónomas, dos órgãos superiores da administração central, dos institutos públicos e das associações públicas de âmbito nacional e regional, bem como dos pedidos de declaração de ilegalidade de regulamentos de âmbito nacional;
Tribunais Administrativos de Círculo: competir-lhes-á conhecer dos recursos dos actos dos órgãos não políticos do Estado e das regiões autónomas, dos actos dos governadores civis e assembleias distritais, dos institutos públicos e associações públicas de âmbito municipal ou inter-municipal, das autarquias locais e suas associações e serviços autónomos, das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e dos concessionários, bem como dos pedidos de declaração de ilegalidade de regulamentos de âmbito local e ainda de todas as acções administrativas.
Sr. Presidente, Srs. Deputados Por esta forma, julga o Governo ser possível estabelecer uma redistribuição de competências mais lógica, funcional e equilibrada, com o objectivo principal de não assoberbar de processos os

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diferentes escalões do contencioso administrativo e, em especial, o Supremo Tribunal Administrativo.
complementarmente, outras alterações se pretendem introduzir com o mesmo objectivo funcionai das anteriormente expostas: prevê-se um número significativo de casos em que, nos tribunais administrativos e fiscais, passa a haver alçada; reduz-se o número de juizes que participam em cada julgamento no pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, com a consequente redução do número de vistos e maior celeridade na conclusão dos processos; permite-se a afectação exclusiva ao pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de seis juizes (mais os que transitoriamente forem necessários), a fim de se poder ultimar com maior rapidez os numerosos processos que nessa formação aguardam julgamento, e determina-se que o pleno da 1.ª Secção passe a reunir ordinariamente duas vezes por mês, em lugar de: uma, como hoje ocorre; reforçam-se os meios humanos et técnicos de apoio ao funcionamento do Supremo Tribunal Administrativo, bem como aos restantes tribunais do contencioso administrativo e tributário; e, por último, aperfeiçoam-se as regras relativas à composição, competência, funcionamento e pessoal de apoio do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que, pela primeira vez, será dotado de uma secretaria própria e de um quadro de inspectores privativos da jurisdição administrativa e fiscal.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Num plano bem diverso, o novo Estatuto pretende introduzir duas importantes inovações no que toca ao estatuto dos juizes do contencioso administrativo e fiscal.
Por um lado, atendendo à necessidade imperiosa de acentuar a formação profissional especializada, quer inicial quer em exercício, dos juizes do contencioso administrativo e fiscal e enquanto o Centro de Estudos Judiciários não a puder assegurar, alarga-se o acesso à respectiva magistratura a licenciados em direito, habilitados com cursos equivalentes, a realizar mediante acordo prévio entre o Ministério da Justiça, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e as Faculdades de Direito ou o Instituto Nacional de Administração.
Por outro lado, e além disso, prevê-se poderem também candidatar-se ao concurso de provimento nos tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários e aduaneiros os docentes universitários de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal com, pelo menos, dois anos de serviço, e os doutores e mestres na mesma especialidade, sem esta última exigência.
De qualquer forma, a questão do recrutamento dos juizes do contencioso administrativo e fiscal será solucionada consensualmente entre as associações representativas dos magistrados e o Governo. Portanto, ir-se-á trabalhar no decreto-lei autorizado de uma forma consensual com os magistrados, por forma a que toda a área do recrutamento tenha o consenso das associações sindicais dos magistrados Esse foi um compromisso que ocorreu há 10 ou 15 dias entre o Ministério da Justiça e a Associação Sindical dos Magistrados Judiciais.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Governo espera, sinceramente que o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, preparado por uma comissão especializada de docentes universitários, em íntima colaboração com o Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente com o seu presidente, possa alcançar os objectivos práticos que se propõe e contribua, do mesmo passo, para uma justiça administrativa mais célere e de acrescida qual idade, como é reclamado pelas exigências de um moderno Estado de Direito Democrático.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, embora o Sr. Deputado Alberto Costa esteja inscrito para pedir esclarecimentos ao Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, tem precedência no uso da palavra o Sr. Deputado Sousa Lara, visto estar reunido o pressuposto de que fez depender a sua interpelação de há pouco.
Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, é-me particularmente grato tomar a palavra nesta ocasião - e agradeço a interrupção do debate - para anunciar à Câmara um acontecimento que nos deve alegrar a todos e que honra muito não só esta Câmara com também o nosso país.
Como disse há pouco, esse acontecimento diz particularmente respeito a um dos nossos colegas, o Sr Deputado Adriano Moreira, Vice-Presidente desta Casa e um dos seus mais ilustres parlamentares, em todo o caso, ele também honra esta Câmara e Portugal, porque se trata de uma excepção justíssima que, desta forma, consagra o apreço da Organização das Nações Unidas a toda uma vida de combate em prol dos objectivos desta grande Organização.
Trata-se da concessão, suponho, da única medalha comemorativa dos 50 anos da Organização das Nações Unidas a um português. O Sr Professor Adriano Moreira é o único português que a vai receber. Fui informado de que o Secretário-Geral já tinha aprovado a sua atribuição, embora a quisesse entregar em cerimónia pública, tendo marcado para tal o Dia Mundial da População, que ocorre a 11 de Julho.
Sei também que o relatório que precede a atribuição da medalha se refere ao nosso colega, Deputado Adriano Moreira, de forma extremamente elogiosa, e, se me permitem, leria apenas três ou quatro linhas. «Um colaborador incansável e um paladino das causas que a Organização defende, pelo que as Nações Unidas deveriam expressar de alguma forma o seu reconhecimento pela notável acção desenvolvida durante a sua ilustre carreira de académico e de político».
Estas simples frases mostram a justeza da decisão e, por isso, propunha, Sr. Presidente, que a Câmara manifestasse também, nesta ocasião solene, o seu apreço e o seu aplauso bem como manifestasse às Nações Unidas a nossa gratidão pela justiça que acaba de ser feita.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Srs Deputados, as palmas generalizadas da Câmara são a prova da justeza da sugestão que V. Ex.ª, Sr. Deputado Sousa Lara, acaba de fazer.
Associo-me, com todo o gosto, a esta manifestação, porque, na verdade, é uma grande distinção a que acaba de ser conferida - ou vai ser conferida, mas já está anunciada - ao nosso companheiro Sr Deputado Adriano Moreira, ilustre Professor da Universidade Técnica de Lisboa, e quero exprimir-lhe pessoalmente a satisfação que a mim me dá a circunstância de ver as Nações Unidas, lá longe - diremos nós, portugueses -, em Nova Iorque, ocupadas com tantas questões do mundo, terem em atenção o que nesta pequena terra lusitana se passa e saberem medir a grandeza dos homens que cá temos.

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A minha homenagem pessoal ao Professor Adriano Moreira e o meu contentamento pela forma como as Nações Unidas se orientaram nesta circunstância.

Aplausos gerais.

O Sr Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Adriano Moreira.

O Sr. Adriano Moreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs Deputados: Em primeiro lugar, quero agradecer a intervenção do Sr Deputado Sousa Lara. Sei que ele tem compromissos sentimentais comigo, porque foi meu aluno e é professor do Instituto onde passei praticamente toda a minha vida, mas atrevo-me a supor que também há bastante objectividade na sua intervenção, porque ela fez parte do ensino professado por aquela escola.
Em segundo lugar, quero dizer que, de facto, dediquei alguma atenção às Nações Unidas, em épocas que não eram fáceis, porque sempre entendi que era o único lugar do mundo onde todos se encontram com todos, e também neste momento, julgo que, terminada a ordem dos factos militares, o regresso do mundo às Nações Unidas é, em muitos aspectos, o regresso a um deserto, porque as Nações Unidas não foram providas da logística necessária, dos meios e até talvez da devoção que requerem os objectivos que têm em vista.
Tive a honra de ser delegado às Nações Unidas, e devo dizer que, nesses anos já distantes, em fins da década de 50, isso mudou completamente a minha percepção do mundo em que vivemos. Julgo que, mesmo os meus compromissos intelectuais, são diferentes, até essa data e depois dessa data.
Penso que sobretudo os pequenos estados têm interesse e vantagem em defender a organização, recuperá-la para a sua função e redefinir a sua intervenção.
Esta concessão que me fizeram, que me surpreendeu e da qual não tive qualquer notícia anterior, é excessiva para o pouco que pude fazer, mas é, ao mesmo tempo, reconfortante, e tenho de dizer-vos que a recebi com alguma devoção, com agrado, e que esses sentimentos ficam agora aumentados com a recepção que a Câmara fez à comunicação que foi feita e sobretudo com as palavras do Sr. Presidente, não apenas por ser o Presidente da Assembleia da República, mas pela sua reconhecida autoridade intelectual e cívica

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Após este feliz incidente, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa para fazer o seu pedido de esclarecimento.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, passo a colocar-lhe duas perguntas às quais gostaria que V. Ex.ª se referisse de maneira concisa e directa.
A primeira tem a ver com as implicações financeiras desta proposta. Frequentemente, não apenas os dirigentes da maioria como também o Sr. Primeiro-Ministro, que dirige o Governo a que V. Ex.ª pertence, nos acusam de fazermos propostas sem termos presentes os contornos financeiros precisos das suas implicações.
E se esta crítica é interessante em relação à oposição, a sua formulação corresponde a um dever em relação à oposição, quando procura inteirar-se junto do Governo sobre as implicações do que propõe, nomeadamente quando se encontra a curtos meses de um acto eleitoral. A questão é esta: existe um orçamento da justiça administrativa e fiscal, que traduz, no quadro das opções financeiras do Ministério da Justiça e do Estado português, a importância atribuída a essa justiça administrativa e fiscal.
Seria bom que esta Câmara tivesse ideia do peso relativo dessa rubrica, que não consta do orçamento, mas que tem de constar dos estudos preparatórios de uma reforma, e que, a partir dessa delimitação, pudéssemos aqui saber quanto vai custar esta reforma, nomeadamente a criação do tribunal central administrativo, seja em relação a vencimentos de magistrados, seja em relação a vencimentos de pessoal, seja em relação a instalações Isto porque se procura resolver aqui um problema existente no Supremo Tribunal Administrativo, onde algumas dessas questões se colocam com particular acuidade. E, Sr. Secretário de Estado, reforço a pergunta porque há algumas semanas atrás discutimos uma autorização legislativa respeitante à reforma do notariado sem que nos fossem dados elementos precisos sobre as implicações financeiras, e, muito instada na Comissão, a Sr.ª Secretária de Estado da Justiça admitiu, grosso modo, que 12 % a 13 % do orçamento do Ministério da Justiça seriam perdidos nos próximos anos, por virtude dessa reforma, sem que, no entanto, nos tivesse podido, depois, remeter, conforme prometeu, os elementos respeitantes a cada um dos fluxos financeiros que seriam afectados, do lado da receita e do lado da despesa, nos próximos anos.
Portanto, parece-me importante saber, do ponto de vista financeiro, quanto vai custar a mais esta reforma e se, do ponto de vista logístico, já está em vista algum edifício para instalar este tribunal. Existe algum compromisso e está orçamentada alguma verba para a aquisição deste edifício? Faço também muito força nesta questão, porque, em relação ao edifício destinado aos serviços de Combate à Corrupção, foi, como o Sr. Secretário de Estado sabe, anunciado, num determinado ano. que já havia um; no entanto, passados dois anos, foi novamente anunciado; afinal, veio a saber-se que não era o mesmo edifício e que, entretanto, o negócio tinha sido desfeito. Sendo assim, parece-me absolutamente importante que, nesta altura, se saiba, com clareza, quais são os compromissos e o seu grau de concretização em relação à instalação deste tribunal central administrativo.
A outra questão tem a ver com a referência feita por V. Ex.ª à comissão que colaborou com o Governo na preparação deste diploma, que, como foi referido e consta da exposição de motivos, foi constituída por docentes universitários e, numa expressão que pessoalmente não julgo muito feliz, «em íntima colaboração com o Supremo Tribunal Administrativo». Ora, era importante saber em que termos se processou esta colaboração, de maneira a que um órgão como o Supremo Tribunal Administrativo e o seu Presidente não ficassem associados a todas e a cada uma das propostas que aqui são apresentadas. Penso que isso não seria correcto, nem seria conforme a princípios, pelo que, em minha opinião, o Governo tinha o dever, por um lado, de esclarecer, visto que até agora não houve ocasião de o fazer, qual a composição desta comissão e qual o grau de comprometimento - expressão que apenas emprego neste contexto dada a fórmula infeliz - do Supremo Tribunal Administrativo no conjunto de propostas aqui apresentadas. Penso que, ao menos, se deveria acrescentar, como nos livros, que o que estiver bem poderá pertencer nomeadamente aos ilustres magistrados mas o que estiver mal deverá, naturalmente, poder ser apenas, politicamente, assacado ao Governo.

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Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Adriano Moreira.

O Sr. Presidente: - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Alberto Costa, começo por agradecer as perguntas que me fez.
Quanto às implicações financeiras deste diploma, há duas vertentes, a das instalações e a dos quadros do pessoal de oficial de justiça e de magistrados, porque este diploma acarreta despesas que lhe advém precisamente da criação do tribunal central administrativo. Com a criação deste tribunal central é necessário criar-se, ao nível da logística, todos os meios necessários ao normal funcionamento de um tribunal e de um tribunal superior.
Não posso dizer ao Sr. Deputado qual irá ser o quadro de magistrados e quantos juizes irá ter este tribunal central, porque ainda não foi decidido, pois isso teta a ver, depois, com o decreto ou mesmo com o quadro anexo ao decreto regulamentar. Mas digo-lhe que as verbas que, nesta sede, serão pagas aos magistrados, oriundas da chamada rubrica «verba comum das magistraturas», têm, portanto, o seu suporte orçamental adequado, logo, é visível. No entanto, como o Sr. Deputado dizia, e bem, não há efectivamente uma discriminação da justiça administrativa e fiscal. Há uma verba que abarca todo o pagamento dos vencimentos aos magistrados, e, portanto, é desta verba geral, que é uma verba bastante avultada, que irão sair os pagamentos aos magistrados colocados no tribunal central administrativo.
No que toca aos oficiais de justiça, como também sabe, a verba para pagar os seus vencimentos é retirada dos cofres geridos pelo Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça, portanto também um grande bolo. Face ao número de magistrados que temos, mais de 2000, e ao número de oficiais de justiça, 7000, os magistrados e os oficiais de justiça que vierem a ser colocados ao tribunal central administrativo representarão, penso eu, uma percentagem muito reduzida e pouco significativa a nível orçamental.
Relativamente às instalações, posso dizer-lhe, Sr. Deputado, que - e penso que é importante dizer isto porque é uma reivindicação muito antiga e justa, justíssima, dos Srs. Conselheiros, dos Srs. Procuradores-Gerais Adjuntos e dos Srs. Oficiais de Justiça do Supremo Tribunal Administrativo - estamos na fase final da negociação da ampliação do Supremo Tribunal Administrativo, que passa pela aquisição ou pelo menos pela cedência do edifício contíguo ao Supremo Tribunal Administrativo, por forma a podermos ter um espaço redobrado, a fim de que o Supremo Tribunal Administrativo funcione devidamente.
Quanto ao novo tribunal central, posso dizer que há cobertura financeira no PIDDAC do Ministério da Justiça, porque o PIDDAC do Ministério da Justiça tom maleabilidade suficiente para abdicar, por exemplo, da construção de um tribunal, se vier a verificar-se que â fase de estudos ou a de projecto se atrasa, e avançar para uni outro projecto, que, no caso, será o tribunal central administrativo. Há, portanto, cobertura no PIDDAC, e, neste momento, os serviços técnicos do Ministério estão com algumas alternativas entre mãos.
Sendo assim, não posso dizer ao Sr. Deputado qual irá ser o edifício, apenas posso dizer-lhe que a questão vai ser analisada, que deve passar pela aquisição de um imóvel, mas há várias alternativas. Portanto, ainda não há qualquer decisão sobre onde irá ser de facto instalado o tribunal central administrativo.
No que toca à comissão, quero dizer-lhe, Sr. Deputado Alberto Costa, que o que se passou foi, enfim, alguma confluência de contributos, relativamente à elaboração não só do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais como do projecto, que está praticamente concluído, do código do processo contencioso administrativo, entre a universidade, ou entre alguns docentes universitários, e magistrados, não só conselheiros, do Supremo Tribunal Administrativo, que agiam e trabalhavam absolutamente a título individual e não em representação do Supremo Tribunal Administrativo. Estes senhores magistrados - e, posso referir, um deles é o actual Presidente do Supremo Tribunal Administrativo - colaboraram de perto connosco, Ministério da Justiça, como com alguns Srs. Professores universitários, a título individual e sem a carga institucional, no caso, por exemplo, do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo. Portanto, é óbvio que foi como técnicos de Direito, como eminentes juristas que trabalharam nesta comissão os Srs. Conselheiros, e não a título institucional.

(O Orador reviu.)

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta intervenção governamental, na área da justiça administrativa, não pode deixar de ser considerada tardia, não só face aos problemas que se vêm acumulando como também em relação à própria programação que seria de esperar para a execução do Programa do Governo.
Estamos no fim da legislatura, teria terminado já o período normal de funcionamento da última sessão legislativa desta legislatura, e é estranho que o Governo, que já em 1991 dizia (e era V. Ex.ª e o Ministro da Justiça, pasta que ainda hoje ocupa, quem elaboravam esse programa do Governo, vindo do programa anterior) estar adiantada a elaboração da proposta nesta matéria, que os trabalhos de revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estavam adiantados, só agora, em 1995 e nesta altura, apareça com esse produto, o que só se justifica por alguma insensibilidade em relação à dimensão destes problemas - e espero que ninguém diga que a oposição retardou o agendamento do debate desta proposta, pois ela ocorre no dia em que a maioria e o Governo quiseram e propuseram -, além de que já em 1990 tinha sido apresentado um projecto de código do processo contencioso administrativo pelo Professor Freitas do Amaral. Pelo menos é essa a data apresentada por um projecto de diploma com essas características.
Ora, tudo isto reforça a ideia de que se chega muito tarde a esta problemática e de que se contribui para adensar um fenómeno muito anómalo, que é o de, a partir do dia das próximas eleições, poder entrar em vigor uma montanha de normas, de diplomas, de um Governo que, naturalmente, nessa altura, terá sido substituído por qualquer outro. No entanto, não deixa de transmitir uma ideia de pouca tempestividade e de uma certa concepção das reformas, em que parece que o importante é o que está a montante da redacção final dos diplomas e da sua entrada em vigor, quando todos sabemos que a jusante dessa

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publicação se colocam um série de problemas e aspectos que qualquer governo responsável gostaria de poder coordenar e implementar.
Não obstante o carácter tardio desta reforma, ela surge-nos como sendo muito fragmentária e incompleta, o que também é inexplicável sobretudo no final da legislatura, porque a Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais, apesar de todas as promessas, ainda não é alterada e há elementos de grande importância que devem ser «mexidos», respeitantes à legitimidade, a incidentes cautelares, a intimações, ao processo de execução. É uma vergonha que um incidente de execução demore 36 meses nos tribunais, e, nomeadamente no Supremo Tribunal Administrativo, esta é a média dos incidentes de execução. É um fenómeno escandaloso que requeria, nesta reforma do contencioso administrativo, para além de outros aspectos, um grau de urgência que, manifestamente, ao longo desta legislatura não foi reconhecido. O mesmo sucedeu com o tribunal de conflitos, que é mais uma vez mencionado por V. Ex.ª, e com a renovação de legislação substantiva, como a respeitante à responsabilidade por actos de gestão pública, porque ao longo desta legislatura as questões dos hemodialisados e hemofílicos mostraram - e isso foi reconhecido - que o nosso ordenamento jurídico e o nosso sistema judiciário não estão preparados para resolver, de harmonia com os valores básicos de justiça e os critérios fundamentais do Estado de Direito, problemas dessa dimensão. E, se não o estão, não é compreensível que estas matérias não tenham sido também tratadas.
Chegamos ao fim da legislatura neste estado, a ponto de expressamente se admitir ainda que vai existir uma décalage temporal entre a entrada em vigor deste diploma e a das alterações processuais, que se reconhece serem indispensáveis. Creio, portanto, que se pode dizer que há uma grande insensibilidade e indiferença por parte do Ministério da Justiça em relação ao relevantíssimo lugar da justiça administrativa na construção de um verdadeiro Estado de Direito e parece-me que, nesse domínio, se verifica uma deficiente prioridade e - repito - uma insensibilidade quanto à importância das reformas neste domínio.
Para além disto, e no final da legislatura, esta proposta surge impreparada no sentido de que não foi divulgado qualquer estudo, nem a Assembleia o pôde conhecer, que contivesse um diagnóstico preciso com contornos quantitativos e qualitativos sobre os problemas que se pretende resolver, no qual, por exemplo, o problema ligado à composição da magistratura e à formação dos magistrados estivesse explicitado e equacionado. Há soluções para esse problema? Naturalmente, presume-se que, do ponto de vista de quem escreveu sobre esta matéria ou apresentou essa proposta, havia problemas. Mas por que razão não é isso equacionado? Que magistrados, que efectivos, de que proveniência? Nada disso é publicamente apresentado.
Há 10 anos que está previsto que o Centro de Estudos Judiciários faça cursos nesse domínio. Nada foi feito! O Sr. Ministro da Justiça esteve cinco anos à frente desse Centro de Estudos Judiciários; agora, esta equipa já há cinco anos que tutela directamente esse Centro. Porquê 10 anos? A solução era má? Que razão conduziu a que fosse letra morta a disposição prevendo esta intervenção do Centro de Estudos Judiciários? Nem uma palavra é dita; houve, sim, uma mudança de agulha sem um diagnóstico, razão pela qual esta reforma, também nesse campo, foi muito mal preparada.
Quanto ao modelo organizacional, VV. Ex.ªs parecem ter-se inspirado no modelo francês ao proporem a criação deste tribunal administrativo central. Porém, havia várias alternativas a considerar, até porque esta proposta é subscrita sobretudo por entidades ligadas à posição e à postura do Supremo Tribunal Administrativo. Importa dizer que, em França, há cinco tribunais administrativos de apelação distribuídos pelo território francês, cuja justificação e função não são bem as que podem ser transferidas para a criação de um tribunal administrativo central em Portugal. E, havendo várias alternativas, era bom que se equacionasse, em termos organizacionais e funcionais, o que resultava de cada uma delas. Nomeadamente, o governo francês, em meados dos anos 80, calculou e apresentou, com grande precisão, qual a percentagem de actividade do Conselho de Estado que seria transferida para estes novos tribunais e previu até um calendário de transferências ao longo dos anos, que, aliás, foi discutido, porque admitiu não ser uma boa receita operar-se imediatamente essa transferência. Seria positivo tê-lo examinado e contemplado, em virtude de uma série de críticas, que estão hoje formuladas, a aspectos ligados a este tribunal e que merecem grande meditação.
Tal não foi feito, as causas da morosidade dos vários incidentes e processos também não foram examinadas e não há qualquer documento nem opiniões minimamente sérias sobre isso. Os estudos em boa hora encomendados pelo Ministério da Justiça sobre esta matéria não versaram, lamentavelmente, a justiça administrativa e conhecem-se mesmo dados alarmantes referentes ao tempo - 36 meses - que um incidente de execução pode durar, depois de esse processo poder ter-se arrastado 10, 15 anos na fase - chamemos - declarativa, o que é inaceitável.
Há um grande impressionismo na justificação de motivos da proposta de lei. Diz-se que há processos a mais para os juizes que temos, o que é um problema que urge descongestionar, o que é hoje manifestamente insuficiente para dizer-se a uma Câmara justificando uma proposta desta natureza.
Portanto, em fim de legislatura, também há uma grande insatisfação em relação ao impressionismo com que todas estas reformas são preparadas. Deve dizer-se que o mesmo, em medida maior ou menor, passou-se com o Código Penal: não foram feitos quaisquer estudos, circularam notícias a olho sobre dados, foram revelados números errados sobre prisões preventivas e sobre condenações a multas, os quais eram alterados no dia seguinte. Todo este processo se processa sobre o joelho e sem estudos preparados previamente e, sendo esta a realidade, deve revelar-se.
Compare-se este com o óptimo trabalho de outros governos. O governo conservador inglês, os vários governos franceses que se têm ocupado desta matéria produzem trabalhos excelentes para fundamentar as reformas. Em Portugal, ao longo destes anos todos, tivemos muitas conversas, com muitos argumentos e muita retórica, mas não há quaisquer estudos desses.
A intervenção que proferiu, Sr. Secretário de Estado, é também inconsistente e incoerente com algumas orientações gerais que o partido maioritário tinha dado a conhecer, nomeadamente no seu projecto de revisão constitucional, o que me parece importante, conhecido o especial interesse que o titular da pasta da justiça colocou nalgumas dessas propostas. Em primeiro lugar, se se pretendeu reconstruir o actual Conselho Superior de Magistratura e o actual Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais na figura unificada de um Conselho Superior de Justiça, não é coerente vir agora insistir numa série de particularismos, seja no domínio da gestão onde

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se conservam, seja no domínio do recrutamento, seja em vários outros domínios que contrariam essa tendência geral. E isto tem de fazer algum sentido: não se pode apontar numa sede, numa direcção e, depois, nas reformas ordinárias,...
Bem sei que a Constituição não foi revista, mas as políticas têm de ter alguma lógica, e aqui parece que se aponta num sentido diferente, de mais particularismos em domínios importantes. E, mais grave ainda, numa, das formulações propostas pelo PSD aponta-se no sentida de um estatuto único para os juizes dos tribunais judiciais administrativos e fiscais. Parece-me um ponto excelente da proposta de revisão constitucional apresentada mas, agora, Sr. Secretário de Estado, na realidade, propõem-se em conformidade algumas alterações específicas e próprias ao estatuto dos juizes dos tribunais administrativos e Fiscais. Além de, do meu ponto de vista, ser uma má opção, é incoerente com esses sinais dados em matéria da revisão constitucional e tínhamos de ser esclarecidos de uma vez por todas para saber se, ao menos, em final de legislatura, há convicções claras da parte do Governo em termos de política judiciária sobre esta matéria. Passaram-se cinco anos desde que esta equipa iniciou funções e OS sinais dados por ela são, a meu ver, contraditórios.
Sobre a matéria das implicações financeiras, V. Ex.ª já teve a bondade de esclarecer-nos, pelo que não me alongarei, mas gostaria de voltar a chamar a atenção para o aspecto, a que há pouco me referi brevemente, do modelo organizacional.
Este modelo de criação de um tribunal intermédio com deslocação simultânea de competências, à imagem do sucedido noutros países, tinha de ser seriamente pedido a partir das alternativas disponíveis e dos modelos de implementação, razão pela qual me parece ligeira e algo inconsistente a solução construída.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Sr. Deputado, queira concluir, pois esgotou o tempo de que dispunha.

O Orador: - Sr. Presidente, tentarei fazê-lo rapidamente, apenas necessito de mais alguns minutos para concluir a minha intervenção.
Este modelo tem implicações no domínio da proximidade de quem demanda justiça, porque é preciso dizer que, em Portugal, muito poucos cidadãos demandam a justiça administrativa. Como o acesso per capita ao tribunal administrativo é muito baixo, precisamos de alterá-lo pata melhorar a qualidade do Estado de Direito, sendo que as soluções preconizadas também devem ter presente essa implicação.
Mas, para abreviar e atender à justa observação do Sr. Presidente, diria que não são visíveis orientações estáveis. Aliás, o modo como foi elaborado este diploma, com a remissão feita para alguns docentes especializados (creio ser o caso do Professor Freitas do Amaral, mas desconheço o nome de outros universitários que a ele tenham estado ligados) bem como para alguns magistrados do Supremo Tribunal Administrativo, sem explicitação clara de objectivos políticos, deixa uma enorme dúvida sobre essas orientações.
Dessas, três ou quatro que se extractam das soluções parecem-me negativas: a primeira é o reforço do particularismo, do especialismo, dos tribunais administrativos. O que se propõe de novo em matéria de recrutamento e noutras sedes - não tenho tempo para desenvolvê-lo agora - reforça esse especialismo com alguns resquícios menos agradáveis no nosso caso, seja no que foi o nosso passado nesta matéria, a presença de membros da Administração Pública nos tribunais, seja o próprio modelo francês que tem de ser visto com espírito crítico, nomeadamente as contribuições críticas muito importantes que hoje estão a ser feitas em França e não esqueçamos que, naquele país, o Vice-Presidente do Conselho de Estado (que é, na prática, o presidente) é o primeiro funcionário da França, sendo dessa forma apresentado, e que estes tribunais têm, numa grande parte, funções consultivas. Por essa razão, é necessário ter muita atenção quando se credenciam algumas destas novidades com a referência francesa.
Em segundo lugar, verifica-se uma restrição indesejável de garantias em relação a incidentes, como a suspensão da eficácia, onde era mister que elas fossem conservadas, verifica-se uma restrição de garantias quando conflitos em torno de áreas importantes, como o urbanismo, ou melhor, todos os conflitos ligados à Administração Local têm como último tribunal de recurso, pelo menos, de revista, o tribunal administrativo central.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Sr. Deputado, peco-lhe que conclua porque excedeu bastante o tempo de que dispunha.

O Orador: - Vou terminar de seguida, Sr. Presidente.
Telegraficamente, direi que não percebo como é que, depois das preocupações expostas, se mantém um Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais cuja composição não é maioritariamente influenciada por órgãos eleitos, e parece-me pouco coerente face a propostas anteriormente apresentadas.
Não percebo como é que não se mexe na logística dos tribunais fiscais nem porque se mantém o estatuto da jurisdição aduaneira. Pela nossa parte, o recrutamento dos juizes só deve ser alterado em termos gerais e na base de uma reflexão ampla e não em termos especiais para os tribunais administrativos. Na verdade, um docente de Direito Administrativo é, em princípio, tão competente para ensinar esta matéria como um docente de Direito da Família para ensinar aquela e, se a docência for de há um ou dois anos, então, tratar-se-á de um eminente especialista e muito qualificado para julgar, como se dá a entender na proposta.
Somos contra a diminuição de garantias dos administrados que se verifica nesta proposta, pensamos que a alternativa custos/benefícios não está devidamente ponderada nestas implicações e não compreendemos que aspectos fundamentais da legislação administrativa material não sejam revistos.
Aguardamos com muita atenção os compromissos que vão ser assumidos e não nos parece satisfatório nem aceitável que haja um compromisso de co-redacção com os magistrados das alíneas respeitantes a recrutamento, e, sobretudo quando do Programa do Governo fazia parte um discurso sobre corporativismo, não nos parece que essa seja a metodologia justa.
Ouviremos o que for dito e, em função disso, decidiremos que posição tomar, sendo que as nossas preocupações ficam claramente expostas.
Finalmente, Sr. Presidente, muito obrigado pela compreensão manifestada por este alongamento imprevisto dá minha intervenção.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Antes de dar a palavra ao próximo orador, gostava de informar a Cama-

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rã que, em virtude de não haver tempo para nos ocuparmos do terceiro ponto da ordem do dia desta manhã, há consenso das várias bancadas no sentido de ser transferido para a da parte da tarde.
Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Pensamos que, bem à socapa, com muito sigilo e discrição, o Governo aprovou há pouco tempo a subversão completa do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pretende que o mesmo passe - ao que parece, agora, com algumas alterações que desconhecemos quais são -, com a discrição possível, num dos numerosos debates em finais de legislatura, quando as atenções já se concentram no próximo acto eleitoral com, aliás, incontido entusiasmo, pela morte anunciada do Governo.
Mas é justo realçar a afronta que esta autorização legislativa representa para os administrados, para os cidadãos que procuram justiça na jurisdição administrativa e fiscal, e esta afronta é de tal ordem que o Ministério da Justiça não conseguiu garantir a discrição e o sigilo pretendidos.
Esta proposta de lei, em meu entender, é clara e gritantemente inconstitucional em vários dos seus pontos: em primeiro lugar, porque, através de uma autorização legislativa, o Governo pretende legislar sobre o estatuto dos juizes titulares de órgãos de soberania. Ora, nos termos do artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa, é a Assembleia da República que tem a competência exclusiva para legislar sobre o estatuto dos titulares dos órgãos de soberania.
Em segundo lugar, a proposta é inconstitucional porque, em meu entender também, fere gravemente o princípio da independência dos tribunais consagrado na Constituição. Este princípio, que é garantido pela independência dos juizes, exige, para além da inamovibilidade e responsabilidade destes e da sua liberdade perante quaisquer ordens ou instruções, também um sistema de designação que não se compadece com o preenchimento dos quadros de juizes de acordo com os interesses do Governo e da Administração.
Em terceiro lugar, a proposta de lei é inconstitucional porque viola - e parece-me que viola flagrantemente - o princípio constitucional entre a magistratura judicial e a do Ministério Público.
Por último, a proposta de lei apresenta-se também como inconstitucional quando priva os cidadãos do segundo grau de jurisdição, por exemplo nos procedimentos cautelares e também noutras matérias importantes.
Para além destas inconstitucionalidades, a que voltaremos, algumas das soluções deixam as mais justificadas inquietações. E o que vou dizer não poderá ser interpretado de forma a que nós estamos contra a criação de um tribunal central administrativo, parece é que, da forma como vem gizado, deixa muitas interrogações em relação às competências e à maneira como, depois, os tribunais se engrenam uns nos outros.
Não há dúvida nenhuma de que a criação de um tribunal administrativo central, justificada pela necessidade de descongestionar os tribunais administrativos de círculo e o Supremo Tribunal Administrativo - e esta é uma objecção que já foi colocada -, afasta geograficamente dos cidadãos alguma justiça que está nos tribunais administrativos de círculo.
Será também lícito colocar aqui outras dúvidas e interrogações: o tribunal central não será estrangulado à nascença pelo volume processual que o espera?
Constata-se em seguida que todas as questões julgadas nos tribunais administrativos de círculo não poderão ser apreciadas no Supremo Tribunal Administrativo, ainda que algumas possam ser relevantes ou tenham valor económico significativo.
A ordem hierárquica dos tribunais administrativos que pretende criar-se - penso que esta é uma objecção a sopesar também - não contribui para uma desejável uniformidade jurisprudencial, gerando uma maior incerteza entre os administrados. Assim, a solução gizada na proposta de lei quanto à nova organização dos tribunais administrativos e fiscais, mesmo que não se cuide da sua inconstitucionalidade, deixa as mais sérias dúvidas e preocupações.
Já em relação a outras questões que se prendem todas com a alínea g) do artigo 2.º da proposta de autorização legislativa merecem, de facto, a nossa censura.
Só depois de recebido o projecto de diploma foi possível apreciar o sentido e a extensão do pedido de autorização legislativa e apreciar aquilo que, nalguns pontos, pode classificar-se de «enormidade»: o Governo, através do Ministério da Justiça, pretende preencher vagas dos tribunais administrativos e fiscais com licenciados em Direito, oriundos dos quadros do pessoal da Administração em comissão permanente de serviço. A vingar esta proposta, por exemplo, licenciados a exercerem funções na Direcção-Geral das Contribuições e Impostos podem vir a ser juizes dos tribunais tributários e directores-gerais ou assessores dos ministérios podem vir a ser juizes dos tribunais administrativos de círculo, do tribunal central administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo.
Ora, independentemente da competência técnica destes quadros, a qual não está em causa, a verdade é que os mesmos têm uma prática funcional em defesa da Administração, em defesa dos autores de actos administrativos impugnados nos tribunais, representando o fisco ou a Administração. Esta prática funcional coloca-os, à partida, em situação de desfavor na função de julgar, função para a qual a Constituição exige a aprendizagem e a prática da independência. A solução é, quanto a nós, verdadeiramente inconstitucional, como atrás se disse, correndo-se o risco de se desacreditar perante os cidadãos a justiça administrativa .e fiscal que desta forma apareceria como funcionalizada através da designação de juizes, pelo menos na aparência, de acordo com as conveniências da Administração e do Governo.
Se este diploma vingasse, em nosso entender, o princípio da independência dos tribunais entraria em crise porque tal princípio assenta numa formação e numa prática de julgar que nada tem a ver, nem pode ter, com uma cultura de funcionalização e de obediência a hierarquias. Foi por isso mesmo que, após o 25 de Abril, os juizes dos quadros da justiça fiscal e da justiça de trabalho, integrados até àquela data nos Ministérios das Finanças e das Corporações, foram integrados como juizes de direito, deixando de estar ligados ao poder de direcção da Administração.
A solução agora proposta não pode, pois, deixar de ser considerada uma intromissão abusiva na justiça administrativa e fiscal, justiça que, por conflituar especialmente com o poder executivo, com a Administração, volta desta forma a sentir o peso da sua sombra tutelar de que os tribunais tributários e aduaneiros não conseguiram libertar-se totalmente. Na verdade, deve registar-se que estes continuam a dispor, nos seus órgãos auxiliares, de funcionári-

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os de secretaria dos quadros do Ministério das Finanças, situação que, aliás, o projecto de diploma mantém o que, a nosso ver, também é incrível.
A Constituição dedica especial atenção ao Estatuto dos Magistrados Judiciais nos tribunais comuns, apontando claramente as regras de recrutamento e provimento. É a Constituição que claramente define como importante para a administração da justiça em nome do povo a formação e a prática de julgar, garantes da sua independência pelo menos na jurisdições e, sobretudo, naquelas em que se julga matéria de facto. Se é certo que a Constituição não explicita as mesmas regras relativamente à justiça administrativa e fiscal, a verdade é que, consagrando também o princípio da independência - como não podia deixar de ser - para os tribunais administrativos e fiscais, não pode deixar de entender-se que as regras relativamente ao recrutamento e provimento dos juizes destes tribunais devem ser idênticas às do recrutamento e provimento dos juizes dos tribunais judiciais. Surge, assim, também como aberrante a solução de recrutar como juizes em comissão permanente de serviço docentes universitários de direito Administrativo ou de Direito Fiscal. No entanto, não creio que eles optem de facto por esta magistratura. É uma solução que reputamos inconstitucional.
Inconstitucional será que o concurso curricular para juizes dos tribunais administrativos e fiscais, julgando matéria de facto, possa ser aberto a magistrados do Ministério Público. Como dissemos logo no início, a Constituição consagra - e por boas razões, pelas razões que os Constituintes tiveram em conta e que não foram razões corporativas - a separação das duas magistraturas, e pedido que ninguém ousará dizer o contrário. Ora, ao prever-se que delegados do Procurador da República possam ser juizes dos tribunais administrativos de círculo, dos tribunais tributários, dos tribunais aduaneiros, que Procuradores da República possam ser juizes do tribunal central administrativo viola-se o princípio constitucional da separação das magistraturas porque se permite o acesso da magistratura do Ministério Público à magistratura judicial, mas não se permite o inverso.
Para além disto, penso que quem elaborou as normas da proposta de lei não terá atentado no absurdo; que é evidente, de algumas soluções que são discriminatórias.
Por exemplo, um Procurador da República que tenha tido a classificação de «muito bom» e mais de 15 anos de serviço terá acesso ao tribunal central administrativo, sem ser necessário que lhe seja reconhecido mérito no domínio do Direito Administrativo ou do Direito Fiscal. O juiz de círculo já só poderá aceder àquele tribunal se, para além de ter 15 anos de serviço, provar o mérito naquelas áreas de Direito. Acresce a isto que a quota para acesso reservada aos Procuradores da República é o dobro da quota disponibilizada uma norma por onde poderão aceder aqueles juizes.
As questões relativas ao Supremo Tribunal Administrativo colocam-se de uma outra forma porque se trata de uma jurisdição sobre matéria de direito e, assim, o sistema deve ser igual ao do Supremo Tribunal de Justiçai
Na proposta de lei em apreço, quanto aos juízes da Relação, para os quais, contrariamente ao que diz o seu actual estatuto, passa a exigir-se cinco anos de serviço na categoria de Juiz de Relação, regista-se que estes são, de facto, discriminados em relação aos Procuradores-Gerais Adjuntos que, de acordo com a proposta, acedem ao Supremo Tribunal Administrativo com muito menos tempo de serviço do que os primeiros. Não se entende a justificação desta norma.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: O que está em causa com a proposta de lei, com a qual subitamente nos vimos confrontados, não são discussões meramente corporativas. Está em causa um figurino constitucional, o estatuto de duas magistraturas de igual dignidade e igual relevância como garantes da legalidade democrática mas com funções diferentes, estão em causa as garantias dos administrados que não se compadecem com regras de recrutamento dos juizes no interior da própria Administração.
Penso que esta proposta de lei de autorização legislativa é um triste e descosido remate no labor do Ministério da Justiça, é uma caricatura, que chega a ter contornos de farsa, do labor do Ministério da Justiça.
Precisamente por se tratar de uma caricatura, nem mesmo nesta apoteose final quando está iminente a queda do Governo, consegue passar com o sigilo e discrição pretendidos.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Rui Machete.

O Sr. Rui Machete (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É com uma ponta de emoção, por duas ordens de razão, que intervenho nesta reunião plenária a propósito desta proposta de lei de autorização legislativa relativa ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Em primeiro lugar, porque é a última intervenção que tenciono fazer nesta sessão legislativa, nesta legislatura e, provavelmente, nesta Assembleia e, em segundo lugar, pela circunstância de se tratar de uma matéria que me é particularmente cara visto que fui responsável, no Ministério da Justiça da altura, pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que agora se pretende rever.
Hoje, esta matéria é ainda mais importante do que era há 10 anos, na medida em que, na última revisão constitucional, a Constituição da República Portuguesa consignou uma noção de jurisdição em sentido material, no artigo 214.º, n.º 3, à qual, por vezes, o legislador ordinário não tem sido particularmente sensível mas que dá à jurisdição administrativa um enorme relevo. É que no referido artigo 214.º, n.º 3, diz-se que «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais». Por isso, é natural que o Governo e a Assembleia dediquem a esta matéria uma particular atenção.
É evidente que o Governo estava perante uma opção difícil entre, por um lado, deixar protelar por mais tempo uma situação complicada, sobretudo quanto ao funcionamento do Supremo Tribunal Administrativo, onde são significativos os atrasos dos processos e onde a carga de trabalho vai aumentando em exponencial e, por outro lado, esperar que se completassem os trabalhos de revisão da justiça administrativa - e só nessa altura pedindo a necessária autorização legislativa -, tendo já pronta a lei do processo contencioso administrativo ou o código de processo dos tribunais administrativos e fiscais.
Optou-se por esta última solução e penso que, fundamentalmente, tal se deveu a dar uma prevalência às razões de celeridade porque, efectivamente, uma justiça que não é atempada não é justiça, e a situação com que nos defrontamos é grave.
Todavia, conviria - e seria interessante - que fosse publicada oportunamente uma estatística em matéria de pró-

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cessos, com as respectivas categorias, no Supremo Tribunal Administrativo e nos tribunais administrativos de círculo. De outro modo, ficamos apenas com uma noção impressiva, mas faltar-nos-ão os dados quantitativos exactos.
A óptica que foi escolhida para esta revisão é, ainda, a que dá predominância aos recursos sobre as acções. Isto leva-nos a fazer uma observação que, não sendo naturalmente impeditiva de darmos a nossa aprovação ao pedido de autorização legislativa, gostaríamos que fosse tomada em devida conta. É que ainda não sabemos bem quais as soluções que vão vingar na lei do processo - chamemos-lhe assim para encurtar. E se a lei do processo der, como deveria dar, prevalência às acções sobre os recursos? Toda a estrutura em que está constituído este novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revelar-se-á, de algum modo, carecida de uma revisão, visto que ainda consagra a estrutura tradicional da divisão de competência na base da categoria hierárquica da entidade que pratica os actos administrativos recorríveis.
Portanto, julgo que era interessante tomar em consideração este aspecto, pelo menos para admitir a hipótese de uma nova revisão do ETAF caso se venha, efectivamente, a optar pela óptica das acções e não dos recursos.
Uma outra observação que gostaria de fazer prende-se com a solução que foi dada para a criação do tribunal central administrativo, que leva a fazer convergir nele um conjunto muito vasto de competências vindas do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais administrativos de círculo, correndo-se, porventura, o risco - só os dados estatísticos permitirão dar aqui uma ideia clara - de rapidamente «afogar» também o tribunal central. Portanto, conviria ver se não há uma excessiva transferência de competências.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Muito bem!

O Orador: - Acresce que não se ousou em matéria disciplinar nem se avançou para uma competência de plena jurisdição, que os factos e a maturidade doutrinal que se conseguiu nesta matéria já justificavam plenamente.
A criação de um tribunal central administrativo, que é uma solução relativamente rara em países de pequena dimensão - em França, como foi recordado pelo Sr. Deputado Alberto Costa, só há muito pouco tempo é que se optou por essa solução -, foi algo que já na altura, em 1984, se discutiu amplamente mas foi considerado que não era curial adoptar-se essa solução. Hoje pensa-se diferentemente.
De facto, admito que esta possa ser uma solução interessante. Mas se olharmos para as acções administrativas, nada, a meu ver, justifica manter nas acções administrativas a ideia de apenas dois graus de jurisdição, isto é, parece-me bem que as acções administrativas deixem de ser tipificadas em acções de interpretação, validade e execução dos contratos administrativos, acções de responsabilidade e acções para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo para se unificarem dentro de uma figura global das acções administrativas. Todavia, nada justifica uma especificidade de apenas duas instâncias quando acções perfeitamente similares, designadamente em matéria de responsabilidade nos tribunais comuns, gozam, obviamente, da garantia de ter três instâncias e, desse modo, poderem ir até ao Supremo Tribunal de Justiça.
Também aqui, portanto, há algo sobre o qual importaria reflectir, que não põe em causa, repito, o essencial da autorização legislativa, mas que convinha ser pensado se essa é a solução para a qual, efectivamente, se pretende caminhar.
Já agora, ainda no mesmo capítulo, faço uma outra observação, que, aliás, já aqui foi referida pelo Sr. Deputado Alberto Costa, relativa aos eventuais inconvenientes do chamado contencioso da administração local, designadamente em matéria de urbanismo, que fica, praticamente, impedido de atingir o Supremo Tribunal Administrativo justamente devido à regra da limitação a dois graus de jurisdição, que, em princípio, é uma regra aceitável para os recursos mas que pode conduzir, em matérias extremamente importantes, como é a do urbanismo, a esta situação, para prevenir que o Supremo Tribunal Administrativo possa marcar, com a sua jurisprudência, as orientações mais aconselháveis num domínio tão relevante como este.
Também me parece criticável a ideia de, em relação aos meios processuais acessórios, designadamente quanto ao incidente da suspensão da eficácia do acto, se impedir a possibilidade do recurso Penso que nessa matéria é fundamental que haja, pelo menos, dois graus de jurisdição.
A título de outras observações, que têm como propósito, fundamentalmente, dar uma ajuda ao legislador que vai concretizar a autorização legislativa, gostaria de referir, por um lado, a cautela que importa ter quanto às alçadas, na medida em que se deveria evitar que houvesse um encarecimento da justiça administrativa, até hoje barata- é dos poucos casos em que, de facto, não é extremamente oneroso socorrermo-nos dos tribunais - e, por outro lado, também não se me afigura justificada a manutenção dos tribunais aduaneiros. Penso que, nesse capítulo, as reformas, designadamente resultantes da integração europeia, deixam de justificar a existência desses tribunais como entidades autónomas.
Nestas considerações que estou a tecer à autorização legislativa reservo uma última palavra quanto à questão do recrutamento dos juizes.
Julgo que não pode interpretar-se a ideia de que os tribunais administrativos são órgãos de soberania - e são - e, a propósito do Estatuto dos Juizes, dizer que se trata de uma matéria da exclusiva competência da Assembleia da República, insusceptível de autorização legislativa. Isso, aliás, é frontalmente contrariado pela alínea g) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
Contudo, importará, isso sim, agilizar o recrutamento de modo a dar aos juizes uma especialização que nem sempre lhes tem assistido. E, por isso, algumas das inovações tentadas pelo projecto ETAF parecem extremamente interessantes, muito embora julgue que não se deve caminhar com excessiva ligeireza para admitir, sem mais, que haja ingresso na magistratura de pessoas apenas com uma formação docente. Creio que importaria garantir um mínimo de experiência na judicatura, através de fórmulas que podem ser várias ou de uma preparação específica para esse fim através de um curso ad-hoc, de modo a evitar-se que pessoas sem qualquer experiência ou preparação prévia em matéria de julgar passem a ser membros dos tribunais administrativos e fiscais.
Tudo visto e ponderado diria que é difícil formular um juízo global sem se conhecer em detalhe e em pormenor aquilo que vai ser o Código do Processo de Contencioso, o qual vai ser, naturalmente, preparado - já existem ou, pelo menos, já conheço duas versões, mas as coisas ainda estão, relativamente, carecidas de algum trabalho para estarem prontas para publicação -, o que vai implicar que este estatuto tenha algum grau de provisoriedade, o que

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não é necessariamente mau, porque, nesta matéria, vai permitir, pelo menos, um certo período de probation.
Repito que a urgência que existe em dotar o Supremo Tribunal Administrativo e os restantes tribunais administrativos de meios que permitam resolver, num tempo aceitável, os processos que todos os dias «caem» para seu julgamento, leva a compreender esta posição do Governo e a darmos o nosso voto positivo.
Gostaria, contudo, de insistir muito no sentido de me permitir solicitar que o Governo continue, como até agora tem feito, a usar toda a sua atenção e prudência para dotar, efectivamente, os órgãos de jurisdição administrativa dos meios financeiros e, sobretudo, de pessoal que lhes permitam, cabalmente, resolver os litígios que lhe são submetidos e estar à altura da sua natureza verdadeira de órgãos de soberania.

Aplausos do PSD.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Muito bem!
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Correia Afonso.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Ferreira Ramos.

O Sr. Ferreira Ramos (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: A linha orientadora das reformas que o Governo tem introduzido na organização jurídico-processual do nosso país tem sido, a nosso ver, a da pequena reforma conjuntural.
Recentemente, tivemos a oportunidade de salientar, a propósito da reforma do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil, de que aquilo que a nossa administração da justiça se mostra carenciada é de novas filosofias, de novas dogmáticas e, nalguns casos, de uma completa refundação dos princípios sobre os quais o sistema assenta.
Em vez disso, o Governo apresentou um conjunto de reformas parcelares para cada um dos referidos diplomas, traduzidas em preceitos que, desde já, permitem augurar uma difícil articulação sistemática do conjunto, que traem, em certos casos, as linhas orientadoras que o próprio Governo traçou para a reforma e que, por isso mesmo, irão criar dificuldades de interpretação quando o seu sentido último tiver de ser apurado em função destas.
É por isso que nos confessamos surpreendidos: Com a amplitude que tomou a reforma do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Trata-se de um estatuto completamente novo, primeiro passo no sentido do estabelecimento da nova filosofia que vai presidir à organização judiciária e processual do contencioso administrativo e fiscal, e que será complementado com uma lei inovadora do processo nos tribunais administrativos e fiscais que, finalmente, ganhará o estatuto de código de processo, com uma revisão da legislação do tribunal de conflitos e, ainda, com a actualização do diploma regulador da responsabilidade da administração por actos de gestão pública.
Não fazemos crítica pela crítica e, por isso, não deixamos de registar com agrado que o plano legislativo estabelecido é aquilo que se pode, efectivamente, chamar uma reforma, por oposição a um conjunto de acertos de pormenor.
Sobre a proposta de lei em discussão, e dentro do uma perspectiva de apreciação global, não podemos deixar de referir as reacções de sinal contrário que têm provocado as novas regras de acesso à magistratura administrativa e fiscal, que irá integrar os quadros dos tribunais administrativos de círculo, do Supremo Tribunal Administrativo e do novo tribunal central administrativo.
Onde uns vêem uma inovação de sinal contrário, chamando inclusivamente à colação a história da evolução desta jurisdição no sentido da sua autonomização e completa jurisdicionalização, outros vêem uma evolução positiva e o reconhecimento de um estatuto peculiar aos profissionais do direito público, administrativo e fiscal, onde opinar e julgar são tarefas de tal maneira próximas que a comunicabilidade é aceitável.
É facilmente perceptível a valia dos argumentos avançados em favor de qualquer uma das teses. Todavia, a construção das mesmas não esconde algum pendor corporativo que as anima, pressuposto que aconselha a que, sobre elas, não tomemos por agora posição.
Quanto às principais inovações em matéria de organização da jurisdição administrativa e fiscal, já de passagem falámos de uma delas, a criação do tribunal central administrativo, cuja razão de ser se prende, sobretudo, com a urgente desconcentração de processos, quer nos tribunais administrativos de círculo, quer na 1.ª secção do Supremo Tribunal Administrativo, com a correspondente desconcentração, ascendente e descendente, de competências e sua reunião neste novo órgão.
Compreende-se que o Governo tenha querido aliviar os tribunais administrativos de círculo sem recorrer à criação de outros tribunais administrativos de círculo no continente, o que viria apenas aumentar a sobrecarga de recursos jurisdicionais sobre o Supremo Tribunal Administrativo; compreende-se igualmente que não tenha querido aliviar o Supremo Tribunal Administrativo à custa dos tribunais administrativos de círculo, através da transferência de competências que, logicamente, lhe pertencem por razões que se prendem, umas, com a qualidade do autor do acto e, outras, com a própria natureza do mesmo.
Pensamos, porém, que a proposta de lei padece de uma certa tibieza, sendo desejável que se tivessem extraído mais algumas conclusões - e esperamos que, se aprovada esta autorização legislativa, daí se extraiam essas conclusões - da importante premissa que é a criação deste novo órgão jurisdicional.
Entendemos, nomeadamente, que a proposta deveria consagrar, inequivocamente, o tribunal central administrativo como instância intermédia de recurso, na sequência, aliás, do que aqui já foi dito por vários Sr. Deputados, nos casos em que se prevê a existência de alçadas, e articular satisfatoriamente estes factores com o princípio do duplo grau de jurisdição.
Tratar-se-ia, em suma, de aproximar significativamente a jurisdição administrativa e a jurisdição cível, em particular no domínio das acções sobre contratos administrativos e responsabilidade civil, prevendo-se a existências de três graus de jurisdição, cabendo ao novo tribunal o mesmo papel que, na jurisdição cível, é desempenhado pelo tribunal da relação, e estabelecendo-se a indispensável correspondência em termos de alçada e sucumbência.
Sr. presidente, Srs. Deputados, Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça: A criação do tribunal central administrativo é, a nosso ver, a grande aposta desta reforma e por isso a ele nos referimos em particular.
Não queremos, com isto, retirar importância às restantes inovações presentes nesta proposta de autorização legislativa, mas não deixamos de sentir que a sua previ-

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são se fundamenta na necessidade de coerência do sistema e que a maior parte delas participa da característica de ser consequência mais ou menos directa e imediata de tal aposta.
Concluiremos dizendo que a apreciação global que fazemos da proposta é positiva e que esperamos poder vir a pronunciar-nos dentro do mesmo registo sobre os restantes diplomas que compõem esta reforma da organização jurídico-processual do contencioso administrativo e fiscal, seja qual for o governo que a venha a concluir.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

O Sr. Presidente (Correia Afonso): - Srs. Deputados, não havendo mais inscrições, está encerrado o debate relativamente à proposta de lei n.º 131/VI.
Vamos interromper agora os nossos trabalhos, que serão retomados às 15 horas e 15 minutos.

Está suspensa a sessão.

Eram 13 horas e 15 minutos.

Após o intervalo, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Adriano Moreira.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos reiniciar a sessão.

Eram 15 horas e 40 minutos.

Passamos à discussão conjunta da proposta de lei n.º 132/VI - Autoriza o Governo a alterar o Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro (Aprova o regime jurídico dos loteamentos urbanos) e do projecto de lei n.º 592/VI - Processo de reconversão das áreas urbanas de génese ilegal (PSD, PS e PCP).
Para fazer a apresentação da proposta de lei, tem a palavra o Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território.

O Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território (Valente de Oliveira): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta de lei de autorização legislativa que apresentamos visa conferir maior fluidez, transparência e responsabilidade a um processo que tem tendência a ser moroso e opaco.
Ora, em todos os sectores, precisamos de garantir que não haja entraves que penalizem a iniciativa, nem delongas que atrasem a fruição de benefícios ao nosso alcance.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 448/91, de 20 de Novembro, operou-se uma profunda reformulação do regime de licenciamento municipal das operações de loteamento e das obras de urbanização, que vigorava desde 1984. Tornou-se o regime mais coerente e promoveu-se uma articulação mais consequente entre a concepção geral do sistema de ordenamento do território e a maneira de concretizar as operações de ocupação do espaço.
Surgiram, entretanto, algumas situações pontuais que reclamam clarificação e interpretação jurídica que não deixe dúvidas.
A arquitectura geral do diploma não sofre alterações, nem as opções de fundo que ele consagra. É conveniente, porém, que, em relação aos aspectos mais inovadores da adaptação, se explicite o entendimento que deles temos, não deixando margem para interpretações subjectivas que desvirtuem a lógica do conjunto.
Sucede, por outro lado, que, no princípio deste ano, foram aprovadas alterações ao regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares, visando desburocratizar e simplificar os trâmites do procedimento administrativo, por via da diminuição da intervenção da Administração e de uma responsabilização acrescida dos demais intervenientes no processo. Essas alterações têm-se revelado eficazes e receberam bom acolhimento por parte das entidades públicas e privadas a quem se destinavam.
Acontece que as situações que reclamam clarificação, no domínio da aplicação do novo regime jurídico do licenciamento municipal de loteamentos urbanos e obras de urbanização, são, na sua maioria, semelhantes a outras que foram devidamente esclarecidas pelas alterações introduzidas ao regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares.
Por isso e dado que as soluções encontradas, a este respeito, se têm revelado satisfatórias, decidimos promover uma aproximação dos regimes, adaptando ao licenciamento dos loteamentos e obras de urbanização as regras pertinentes previstas para o licenciamento de obras particulares.
Desse modo, ir-se-á consolidando uma forma coerente de abordagem dos problemas, que assenta em procedimentos semelhantes para resolver questões de natureza semelhante.
As principais alterações que nos propomos fazer no regime de licenciamento de operações de loteamentos urbanos e de obras de urbanização são várias.
Em primeiro lugar, propomo-nos alterar o regime do direito dos particulares à informação, consagrando a figura do «pedido de informação prévia», já existente no quadro do licenciamento de obras particulares e que consiste na possibilidade conferida aos administrados de obterem da Administração uma informação acerca da viabilidade de realizarem uma determinada operação de loteamento. A diferença entre o novo regime e o do direito à informação já consagrado no Decreto-Lei n.º 448/91 é a de que esta informação prévia é vinculativa, pelo prazo de um ano, para a entidade que a emite.
Está, assim, clara a vontade de não fazer perder tempo aos promotores e de lhes permitir gerir com segurança a sua actividade. O valor dos terrenos poderá, pois, ser aferido de modo mais preciso, em função da ocupação permitida, reduzindo-se ou mesmo acabando com as operações de carácter especulativo de comprar no eseuro, para depois forçar, ao fim de muito tempo de exposições, de insistências, de pressões e sabe-se lá de que mais, o licenciamento de uma ocupação desajustada, nomeadamente no conjunto urbano em que se insere. Estará também, desse modo, mais garantida a posição dos proprietários dos terrenos, mais facilitada a actividade dos promotores de boa-fé e mais clarificada a actuação da Administração.
Em segundo lugar, propomo-nos reformular o regime dos encargos a suportar pelos promotores das operações de loteamento e de obras de urbanização, estabelecendo que devem ser equivalentes à efectiva tradução dos encargos suplementares determinados pela operação de loteamento para reforço ou nova construção de infra-estruturas.
Acabar-se-á, desse modo, com a fixação de compensações que nada têm a ver com a operação em causa, as quais são objecto de queixas veladas ou explícitas e não permitem tornar totalmente transparente uma acção que tem sempre de o ser, mesmo quando as compensações se traduzam em benefícios reais para a comunidade no seu conjunto.

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Independentemente da questão da definição do ponto de vista a partir do qual são apreciados esses benefícios, coloca-se a da aferição dos custos, que têm de ser articulados pelos promotores, com os benefícios das operações que pretendem levar por diante.
A identificação de todas as parcelas dos custos que tenham a ver com dinheiros ou interesses públicos impõe-se e o estabelecimento de valores justos para os encargos a suportar pelos promotores representa a melhor maneira de estimular a sua intervenção no desenvolvimento urbano.
Trata-se, assim, de dar um novo passo no sentido da objectivação dos encargos, não fazendo os promotores pagar mais do que o devido nem os cofres públicos prescindir de contribuições que reflictam o acréscimo de custos com que a colectividade irá ter de arcar.
A terceira alteração que propomos é a de reforçar o regime de garantias contenciosas dos particulares, atribuindo competências às associações representativas do sector para accionar meios contenciosos de defesa dos promotores, aos tribunais administrativos para intimar as câmaras municipais à emissão do alvará, nos casos em que se tenha verificado o deferimento tácito da licença, e a promover as consultas a entidades exteriores ao município que, legalmente, se tenham de pronunciar e, finalmente, a capacidade substitutiva do alvará à sentença que haja intimado a câmara municipal a proceder à emissão do mesmo.
Numa ocasião em que se fala tanto do reforço dos direitos dos cidadãos face a uma administração central ou local, que, alegadamente, exibiria tendências autistas e propensões para uma auto-suficiência arrogante, esta é uma forma de patentear que o que se pretende é exactamente o contrário: a Administração é que está ao serviço do cidadão e não é este que tem de se aproximar da primeira, reverente e de chapéu na mão!...

O Sr. Carlos Pinto (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Este grupo de alterações tem, assim» como fito facultar aos particulares um meio expedito para fazerem valer os seus direitos, através de um mecanismo já previsto na Lei de Processo dos Tribunais Administrativos: a «intimação para um comportamento». As adaptações agora introduzidas permitem que este mecanismo seja usado em relação ao licenciamento de operações de loteamentos urbanos e obras de urbanização.
Por outro lado, alarga-se a legitimidade processual às associações representativas do sector em causa, permitindo-lhes substituírem-se aos promotores na defesa dos seus direitos, o que não era permitido na actual versão do diploma.
É com medidas como esta que se traduz, na prática, a vontade, tantas vezes enunciada, de reforçar o papel da sociedade civil.
Em quarto lugar, propomos o estabelecimento de regras claras em relação à responsabilização dos intervenientes no processo de licenciamento, designadamente qualificando como ilegalidade grave, para efeitos de aplicação da lei da tutela administrativa, a exigência, por pane dos órgãos administrativos, de contrapartidas, compensações ou donativos não previstos na lei como condição do licenciamento de operações de loteamento e de obras de urbanização.
Já comentei a conveniência de fazer provisões nesse sentido e numa ocasião em que se pretende, muito justamente, assegurar a maior transparência na acção de todos os agentes públicos, as novas regras contribuem para reduzir a margem de subjectividade de que padecem todas as coisas que comparam sectores não facilmente comparáveis entre si.
Sei bem que, na maior parte dos casos, as compensações visam o acréscimo do bem-estar colectivo de uma comunidade ou o seu progresso, mas, além de serem numerosas as queixas apresentadas por particulares que se sentem explorados e coagidos, de forma oportunista, é bom que não se subverta um programa de acção, estabelecido e devidamente aprovado, por intromissões casuísticas que podem ser muito espertas mas escapam a procedimentos que, pela sua própria natureza, não podem deixar de ser muito formais.
A quinta alteração proposta vai no sentido de explicitar que a câmara municipal só pode aplicar a taxa por realização de infra-estruturas urbanísticas nas situações em que a realização da operação de loteamento ou de obras de urbanização implique a execução, a seu cargo, das referidas infra-estruturas.
Esta alteração vai também na direcção de tornar menos dispendiosas as operações de loteamento e as obras de urbanização e de fazer reflectir sobre os promotores somente aquilo que represente um acréscimo de encargos para os órgãos da Administração. Não queremos, obviamente, penalizar estes, mas não podemos passar sem a contribuição dinâmica dos primeiros, nem deixar que o produto final, as habitações, veja o seu custo inflacionado por via de alcavalas que pouco têm a ver com o que efectivamente custa produzi-lo.
Como se sabe, de todos os bens de que as famílias precisam para levar uma vida condigna e confortável, a maioria tem vindo a decrescer na importância relativa do seu custo face ao rendimento do agregado familiar, menos a própria habitação. Por isso, impõe-se aproveitar todas as oportunidades para «domesticar» uma evolução que, se não for contrariada, acabará por trazer consequências que extravasarão, facilmente, a esfera individual para adquirir contornos sociais muito complexos e de reflexos muito prolongados no tempo.

O Sr. Joaquim da Silva Pinto (PS): - Sim, senhor!

O Orador: - A sexta alteração proposta é uma alteração importante mas que é de mero bom senso e menor, sob o ponto de vista material, e é a seguinte: a dispensa de reapreciação de documentos que permaneçam válidos, em caso de novo pedido de licenciamento que se siga a uma rejeição liminar ou no caso de pedido de alteração de especificações de um alvará. Trata-se de uma medida de desburocratização que se explica por si própria.
Sr. Presidente e Srs. Deputados, tudo quanto acabo de expor tem intenções evidentes: clarificar e objectivar procedimentos; conferir estabilidade ao quadro de actuação dos muitos intervenientes no processo de urbanização, de modo a que eles possam tomar decisões que reclamam sempre muito tempo para preparar e executar; garantir direitos reforçados aos cidadãos face à Administração, que deve estar ao seu serviço; estabelecer uma proporcionalidade dos encargos em relação aos benefícios que cada um colhe e também em relação ao que efectivamente custam as operações em que têm de se envolver para levar a cabo as suas iniciativas; responsabilizar cada um, cada vez mais e em consonância com o grau de autonomia acrescida de que passa a usufruir; e aproveitar todas as oportunidades para desburocratizar, o que tem de ser um imperativo numa sociedade que quer ser moderna e

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que tem de competir com outras muito eficientes no funcionamento das suas máquinas administrativas.
O pedido de autorização legislativa que tenho a honra de apresentar à Assembleia respeita a alterações que se irão traduzir, a breve trecho, em benefícios expressivos para todos os cidadãos que precisam de casa e para os promotores que a essa necessidade se propõem responder.
A matéria quase parece do foro da mecânica administrativa de rotina, mas não é! O que proponho beneficia, naturalmente, da observação atenta que fizemos da prática directa deste sector e do que está já a acontecer no domínio paralelo do licenciamento municipal de obras particulares.
Temos, assim, boas razões para crer que as adaptações que vos propomos se hão-de repercutir, de forma positiva, no nível de bem-estar dos portugueses.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro, a questão fundamental que lhe quero colocar, neste momento, tem a ver com o seguinte: o Sr. Ministro, na sua intervenção, referiu tendências arrogantes e autistas, que são atribuídas ao Governo, e a situação concreta desta proposta de lei como um exemplo de que elas não se verificariam.
No entanto, a verdade é que, quando olhamos para o texto da proposta de lei, temos uma extrema dificuldade em saber aquilo que o Governo verdadeiramente pretende e, em alguns aspectos, a intervenção do Sr. Ministro não foi completamente esclarecedora.
É de bom tom, e diria até que se tornou um dever de cortesia, fornecer o texto dos próprios decretos-leis que o Governo pretende aprovar ou, pelo menos, informações mais claras acerca dos regimes jurídicos que o Governo pretende.
Ora, nesta matéria, no n.º 2 do artigo 2.º, encontramos, por exemplo, na alínea a), uma referência ao regime do direito à informação, na alínea b) uma referência ao regime dos encargos, na alínea d) uma referência ao estabelecimento do regime da responsabilidade, mas não fica claro, perante esta Assembleia, designadamente em face do texto da proposta de lei, qual o sentido exacto dos regimes que o Governo pretende aprovar.
De resto, como o Sr. Ministro bem sabe, nos termos do Regimento da Assembleia da República, é obrigatória a consulta da Associação Nacional de Municípios, quando se trate de projectos ou propostas de lei que digam respeito às autarquias locais.
Nesta situação concreta, o Governo, efectivamente, fez uma consulta e a Associação Nacional de Municípios respondeu como não poderia ter deixado de responder, isto é, que não sabe exactamente o que o Governo pretende com a alteração ao regime do direito de informação. Os termos usados por aquela Associação são concretamente os de que «não se alcança o sentido desta alínea da autorização legislativa».
Por outro lado, quando se refere, por exemplo, à reformulação do regime em matéria de encargos decorrentes dos trabalhos a realizar para reforço de infra-estruturas, é afirmado que «não se alcança que sentido pode ter a reformulação do regime».
Noutro momento, quando se refere, por exemplo, uma matéria particularmente importante, afirma-se o seguinte: «se a intenção do legislador foi acabar com o regime previsto no referido artigo 16.º, parece ser de rejeitar, liminarmente, tal hipótese». Isto é, também aqui a posição da Associação Nacional de Municípios aparece no condicional, porque o Governo resolveu fazer uma consulta às autarquias locais, designadamente àquela Associação, mas não se deu ao trabalho de informar sobre aquilo que verdadeiramente pretendia com a apresentação desta proposta de lei.
Assim, a primeira questão que se pode colocar é a seguinte: o Governo, por acaso, considera que cumpriu o dever de consultar a Associação Nacional de Municípios, ao proceder à consulta nestes termos? A resposta clara a esta questão vai em sentido negativo.
A outra questão, que não é igualmente pouco importante, é a seguinte: o Sr. Ministro, ao penalizar os municípios, designadamente em matéria de custos de infra-estruturas e de contrapartidas, tem a garantia de que está efectivamente a diminuir o custo da habitação ou não estará, pura e simplesmente, a aumentar os custos dos municípios e os lucros dos loteadores?
Se o Sr. Ministro tiver a certeza sobre esta matéria, prometo que lhe dou um prémio, porque é um verdadeiro milagre poder ter uma certeza deste tipo.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Não tem! Não tem!

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso.

O Sr. Correia Afonso (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território, entre outros aspectos desta proposta de lei, julgo que devo realçar dois que, na minha perspectiva, são muito positivos, sendo o primeiro o facto de o pedido de informação passar, depois, a constituir um direito adquirido do proprietário. Isto acaba com uma situação que era comum na maior parte dos municípios e que se traduzia sempre na imprevisibilidade da situação seguinte.
O outro aspecto é a proibição de pagamento de contrapartidas e compensações neste processo de licenciamento de obras ou de urbanização. Acaba, assim, a negociação lateral, que não era pública nem transparente mas, infelizmente, era prática corrente nos nossos municípios.
Estes aspectos, na minha perspectiva, vão contribuir para uma moralização deste processo e também para que acabem, de uma vez por todas, as prepotências e as arbitrariedades que normalmente ocorriam quando se processavam licenciamentos de obras ou de urbanizações.
Mas aquilo que quero perguntar ao Sr. Ministro tem a ver, fundamentalmente, com as leis sobre licenciamento de obras e processos de urbanismo, que são, hoje, um emaranhado e o intérprete e principalmente o utilizador vêem-se, por vezes, confundidos com aspectos que, para quem não é entendido, podem ser contraditórios.
Aliás, há quem defenda, e bem, um código do urbanismo- cito, por exemplo, o Juiz-Conselheiro Alves Correia, do Tribunal Constitucional -, em que se estabeleça a organização e a sistematização de todas as normas referentes a esta área de actividade. Seria um passo muito positivo para todos aqueles que se movem neste domínio.
Assim, a pergunta que lhe faço é a seguinte: no horizonte do Governo, com os passos sucessivos que tem dado nesta área do urbanismo e das obras, está em vista um código do urbanismo?

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para responder, se assim o entender, tem a palavra o Sr Ministro do Planeamento e da Administração do Território.

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O Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, antes de mais, agradeço as questões que me colocaram.
Sr. Deputado Luís Sá, naturalmente, fazemos as consultas nos termos em que entendemos serem suficientemente claros os objectivos que nos propomos e consideramos que aquilo que foi feito com a Associação Nacional de Municípios é suficientemente claro para se saber qual era a matéria em que queríamos legislar. Vimos agora ao Parlamento, que tem não só a proposta como os elementos de esclarecimento adicionais que dei durante um quarto de hora.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Tem coragem de dizer que foi há um quarto de hora!

O Orador: - Sr. Deputado, durante um quarto de hora!
Com esses elementos, têm os Srs. Deputados a possibilidade de saber qual é o entendimento e o sentido das modificações que queremos introduzir. Estão, assim, justificados esses termos e passamos, agora, a uma fase em que, naturalmente, vamos elaborar o diploma adequado e nessa ocasião haverá novamente, como é de regra, uma consulta. Deste modo, ninguém está a querer furtar-se às consultas que são de regra e que temos feito, escrupulosamente, no passado.
Sr. Deputado Luís Sá, não queremos, de maneira nenhuma, penalizar os municípios em matéria de contrapartidas nem aumentar os lucros dos loteadores. O que queremos é dar uma clareza muito grande a todo o processo e, assim, não o queremos deixar ficar na mão de alguém que tem uma legitimidade parcial para tomar a seu cargo a negociação das contrapartidas quando há processos muito rigorosos para definir os programas de acção dos próprios órgãos municipais. Seguramente, haveria um desajustamento no plano de acção, de actividades, que se aprova, com todo o formalismo, numa sessão de câmara e numa sessão da assembleia municipal, se, depois, não envolvêssemos os órgãos legitimados para o fazer na apreciação de contrapartidas e de outro tipo de compensações.
Como se vê, há aqui um desajustamento em relação ao qual temos tido muitas queixas. Tem havido numerosíssimas queixas em relação ao sistema de compensações que são atribuídas sem entrar na regra geral de apreciação de uma actividade do município; porém, se, em relação a cada compensação, se repetisse todo o sistema de consultas e todo o formalismo de definição de uma actividade do município, isso era capaz de estar certo mas, nessa ocasião, toda a gente diria que era uma máquina demasiado pesada que estava em curso para resolver coisas pequenas. Sendo assim, façamos as coisas de uma maneara rigorosa, estabelecendo os termos em que há compensações e de que forma é que essas compensações são feitas.
Aliás, se seguiu atentamente aquilo que disse mo meu discurso verá que ninguém quer prejudicar os cofres públicos, mas o aumento de capacidade das infra-estruturas e as infra-estruturas que são construídas têm de ser devidamente aferidas e têm de ser pagas. Todavia, não se trata, de maneira nenhuma - e gostaria que isso ficasse bem claro -, de fazer com que os dinheiros públicos vão alimentar os lucros de privados mas, sim, de não dar pretextos para, a propósito de formas muito críticas :de compensações, que não têm o aval nem têm o processo formal de definição e de aprovação que os documentos fundamentais têm, se fazer outro tipo de compensações.
Sr. Deputado Correia Afonso, é evidente que está em marcha uma mudança grande de toda a prática do direito ligado ao urbanismo; ainda anteontem cá estive para falar do diploma quadro do ordenamento do território e é natural que estas afinações sucessivas, que vamos tendo e que têm determinado, como sabe, muitas publicações de juristas em matéria de Direito Administrativo, estejam a começar a consolidar-se, arranjando-se um lastro grande quer de conceitos quer de prática.
Ao mesmo tempo, porque se quer tornar mais rigoroso, mais transparente tudo isto, está a exigir-se, simultaneamente, maior competência aos planeadores, aos arquitectos, aos engenheiros e aos próprios juristas que tratam destes assuntos. Assim, é natural - e eu devo dizer que a nossa ideia é essa- que, progressivamente, se caminhe para uma codificação de tudo isto. Mas, enquanto não há uma razoável estabilização de uma prática que é completamente nova, caminhar para uma codificação é capaz de ser extemporâneo. Assim, seguramente dentro de poucos anos, suponho que estaremos em condições de «afinar» um código de urbanismo, mas temos de esperar que estes ajustamentos que vimos fazendo se consolidem e deixem ficar alguma doutrina, porque o que se está a fazer, parecendo que não, é uma grande inovação.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, antes de dar a palavra à Sr.ª Deputada Leonor Coutinho, quero chamar a atenção da Câmara para o facto de estar em discussão conjunta a proposta de lei n.º 132/VI e o projecto de lei n.º 592/VI e de o Sr. Deputado António Costa ter prescindido do uso da palavra na apresentação deste projecto de lei, de que é autor.
Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Leonor Coutinho.

A Sr.ª Leonor Coutinho (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Neste momento vou-me pronunciar apenas sobre o pedido de autorização legislativa.
O Sr. Ministro vem aqui com um sentido da autorização legislativa bastante consensual, como sempre, ou seja, com a justificação de simplificar procedimentos, reduzir as formalidades e aumentar a respectiva celeridade, no que toda a gente estará de acordo. Porém, o que não se percebe é a razão por que o Governo, com objectivos que parecem tão claros, não conseguiu fazer um projecto de lei, tendo sido preciso o Sr. Ministro vir aqui, num quarto de hora, explicar aquilo que pretende. O Governo sabe ou não aquilo que quer? Se sabe, porque é que não apresenta o diploma? Se não sabe, parece-me que ao fim de 10 anos já é um bocado tarde!
Portanto, não me parece que seja muito correcto um pedido de autorização legislativa sobre esta matéria. Parece-me, em contrapartida, que o Governo deveria ter apresentado um projecto de lei dizendo exactamente aquilo que pretende.

O Sr. Joel Hasse Ferreira (PS): - Muito bem!

A Oradora: - Assim, há matérias como a alínea a), acerca do direito à informação, e a alínea c), sobre o reforço das garantias contenciosas, que, obviamente, não põem qualquer problema. Mas já no que diz respeito a reformular os regimes de encargos, constantes das alíneas d) e e), não se sabe qual é o sentido em que o Governo pretende alterar e, pelos vistos, nem o próprio Governo sabe, na medida em que não nos apresentou um texto escrito sobre a matéria mas apenas intenções.

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Se se trata de pôr em causa que os loteadores paguem as infra-estruturas e façam as cedências para as utilizações colectivas necessárias à urbanização que estão & promover, evidentemente que isso será extremamente negativo, na medida em que já temos um urbanismo com infra-estruturas deficientes e com poucos equipamentos. Portanto, tudo o que seja no sentido de facilitar que essas infra-estruturas e equipamentos colectivos não sejam realizados ou que os seus encargos sejam passados para a administração local, evidentemente que não podemos estar de acordo, aliás, como também não podemos estar de acordo em que se penalize a administração local.
Pelos vistos, a própria Associação Nacional de Municípios tem dúvidas sobre este assunto. O Sr. Ministro diz que não se trata disso mas, na realidade, não nos apresentou um projecto de lei. Assim, não concordamos que em matérias como estas, que têm que ver com os processos de urbanização e com a administração local, o Governo proceda deste modo, sem mostrar o projecto de lei, pedindo um cheque em branco...

O Sr. Joel Hasse Ferreira (PS): - E um cheque em branco sem cobertura!

A Oradora: - ... e, por isso, não concordamos com este pedido de autorização legislativa.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, para que não haja mal entendido, quero dizer que o projecto de lei n.º 592/VI vem da Subcomissão de Habitação e Telecomunicações, sendo subscrito pelos Srs. Deputados António Costa, João Matos, Luís e Sá e outros.
O Sr. Deputado Joel Hasse Ferreira pediu a palavra para que efeito?

O Sr. Joel Hasse Ferreira (PS): - Para uma interpelação à Mesa, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Joel Hasse Ferreira (PS): - Sr. Presidente, talvez não tenha ficado claro para todos o que pretendia o meu camarada António Costa. Assim, devo esclarecer que aquilo que ele pretendia era não separar a apresentação do projecto da sua própria intervenção de fundo sobre o assunto. Trata-se de um problema de funcionamento do Plenário e não de não vir a fazer a apresentação do projecto, que será feita aquando da sua intervenção de fundo sobre o assunto.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Está assim corrigida a intenção do Sr. Deputado António Costa.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: Em primeiro lugar e antes de me referir à proposta de lei de autorização legislativa, quero sublinhar a intervenção do Sr. Presidente e interpelação do Sr. Deputado Joel Hasse Ferreira, tanto mais que este é um projecto que nos é particularmente querido pois é, provavelmente, uma ocasião relativamente rara que, com uma maioria do PSD, seja apresentado e aprovado nesta Câmara um projecto de lei que tem por base uma iniciativa do PCP, concretamente um projecto de lei, que julgamos irá resolver o problema de dezenas de milhar de pessoas.
Sobre esta proposta de autorização legislativa e para além daquilo que já referi, creio que é importante dizer o seguinte: nesta fase final da legislatura, temos sido confrontados com uma verdadeira catadupa de iniciativas por parte do Governo, algumas delas acompanhadas de projectos de lei e com um mínimo de esclarecimento, mas outras sem qualquer esclarecimento acerca daquilo que o Governo verdadeiramente pretende.
Ainda há dias, por exemplo, tivemos a oportunidade, a propósito das alterações a um diploma muito importante que está previsto na Constituição, o Código de Procedimento Administrativo, de colocar ao Governo a necessidade de criar um código de procedimento legislativo. E um código de procedimento legislativo porque o Governo está a actuar sistematicamente sem o devido respeito pela Assembleia da República nesta matéria.
Não pode ser pedido a qualquer bancada parlamentar - creio mesmo que nem é justo pedi-lo à própria bancada da maioria - um cheque em branco ao Governo sem que os contornos daquilo que verdadeiramente se pretende sejam claramente definidos, sobretudo numa matéria em que estamos a falar de autarquias locais. Aliás, há até um conjunto de eleitos autárquicos ou de antigos eleitos autárquicos que estão na bancada da maioria e que certamente gostariam de ter um melhor conhecimento daquilo que aprovam no momento em que dão uma autorização legislativa ao Governo numa matéria que, como é o caso dos loteamentos urbanos, tem uma grande importância nas finanças municipais, na gestão urbanística e sobretudo, como é sabido, nas áreas metropolitanas, em que a sua repercussão é muito grande.
Creio que é evidente para todos, pelo menos para muitos, que há uma tendência cada vez maior - está nos livros, nos manuais e vai adquirindo algum consenso na doutrina - para, além das regras gerais deverem ser uniformes para todos, existir uma garantia dos particulares. Nesse sentido, aprovaremos tudo o que seja reforçar o direito à informação, tudo o que seja reforçar a transparência, tudo o que seja reforçar as garantias contenciosas dos particulares perante a Administração pois, para nós, essa questão é evidente, como também é evidente e natural que haja determinadas matérias em que tem de haver & possibilidade de a Administração Pública (seja administração central, seja administração municipal) poder contratualizar com os particulares as decisões que toma.
Isto significa, naturalmente, ter a possibilidade de uma margem mínima de negociação, significa contratualizar decisões, sob pena, inclusive, de poder haver, eventualmente, investimentos que não se realizam ou, então, uma situação que é igualmente prejudicial e que é não garantir devidamente o interesse público porque as normas são tão gerais que não se adaptam às situações concretas.
Ora, neste caso, independentemente daquilo que o Governo promete legislar em matéria do regime de direito à informação, há outras matérias, designadamente o regime dos encargos decorrentes dos trabalhos a realizar para reforço de infra-estruturas, que nos deixam uma grande inquietação acerca daquilo que vai, verdadeiramente, ser legislado.
Perguntamos, por exemplo, se aquilo que é adequado para a Covilhã ou para Vila Nova da Barquinha o é também para os concelhos de Loures, de Oeiras ou de Cãs-

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cais. Provavelmente a resposta é não ou, então, 'que era preferível deixar uma margem contratual maior e permitir que os municípios, que têm uma legitimidade democrática - é uma legitimidade menor, é a da população que os elegeu, mas é uma legitimidade democrática -, continuem a ter a possibilidade de uma margem mínima de negociação com os loteadores, que não tem impedido os investimentos, em vezes de serem sujeitos a regras que, ainda por cima, não sabemos quais serão.
Um outro aspecto que quero assinalar é a alteração do regime de responsabilidade. Neste momento, sabemos que, em matéria de ilegalidade grave e, designadamente, em matéria de tutela, aquilo que está previsto é já altamente gravoso para os municípios. Há mesmo situações em que, podemos dizê-lo, se fosse aplicável ao Governo O regime de perda de mandato que é aplicável às autarquias locais, provavelmente já alguns ministros e secretários de Estado teriam perdido o seu mandato.
Portanto, a questão que se coloca nesta matéria é saber o que é que justifica o agravamento do regime de responsabilidade para o qual - e isto é sempre um bocado colocado na condicional, porque o Governo não clarifica o que verdadeiramente quer - esta proposta de lei parece apontar.
Quanto ao problema das taxas municipais pela realização de infra-estruturas urbanísticas, aquilo que é dito, designadamente na alínea e), ou seja, que só são devidas quando resultem de efectiva prestação de serviços pelo município, naturalmente pode ser um princípio justo, mas também temos de perguntar o que é, verdadeiramente, a realização de serviços pelos municípios. É a respeito daquele loteamento concreto ou é a respeito do loteamento do lado? Isto é, há determinados investimentos públicos que valorizam o projecto de um novo loteamento e - isto não é, de forma nenhuma, claro -, por esta via, pode o Governo estar a atentar contra os direitos municipais e, em última análise, estar a atentar contra o interesse público.
Portanto, lamentando, naturalmente, que não possamos acompanhar o Governo no seu entusiasmo por esta proposta de lei, não poderemos aprová-la, porque não damos um cheque em branco ao Governo e menos ainda podemos dá-lo quando, no fim de contas, a resposta que a Associação Nacional de Municípios Portugueses teve de dar à consulta que lhe foi feita foi que não sabia muito bem o que é que o Governo pretendia, sobre aquilo que o Governo pretendia tinha muitas dúvidas e não o podia aprovar.
Assim sendo, não poderemos deixar de votar contra, não só em homenagem ao poder local mas também aos próprios direitos da Assembleia da República, que tom de saber aquilo que verdadeiramente aprova quando dá uma autorização legislativa ao Governo.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território, Sr. Secretário de Estado, Srs. Deputados: A intervenção que vou fazer é relativamente curta, como é curta a minha experiência de autarca municipal.
Na verdade, sou autarca nas Caldas da Rainha pela primeiro vez e tenho um ano de experiência do que lá se discute, do que lá se faz, do que lá se passa, que não
é muito diferente daquilo que deve passar-se noutros concelhos e noutras partes do nosso território.
Relativamente a esta questão dos loteamentos e da atribuição de alvarás, bem como à parafernália que rodeia essa matéria, eu não tenho dúvidas nenhumas: ao contrário do que aqui foi defendido pelo Sr. Deputado Luís Sá, acho que deve haver uma parte uniforme para o País. E assim deve ser porque, como se trata do aproveitamento dos solos, uma das riquezas que tem muito a ver com questões de ambiente, de salubridade, de defesa paisagística, da defesa da qualidade de vida, da defesa da ordem pública, da defesa de interesses superiores não apenas da colectividade municipal mas das colectividades em geral, onde cada município se integra, este problema merece um tratamento nacional em vez de um tratamento local ou territorial.
Mas isto de forma nenhuma quer dizer que a centralização ou a governamentalização - uma palavra que se tornou pejorativa, mas que nem sempre tem de sê-lo - abarque todas as matérias, de modo a não deixar respirar os próprios municípios nas matérias que lhes dizem directamente respeito e que eles estão em melhores condições de, no terreno, na sua área, compreenderem as coordenadas gerais que a legislação nacional deve lançar.
No entanto, o problema que se põe é o seguinte: o que é que devem ser as coordenadas nacionais dos loteamentos e dos licenciamentos e qual é a parte que deve caber aos municípios, não só para preencherem os quadros nacionais, legais, nesse matéria, mas para terem também um pouco de criatividade, poderem suprir as necessidades, as particularidades e as peculiaridades locais e terem uma voz directa e eficaz nesta matéria de loteamentos?
Quero com isto dizer que as câmaras municipais não podem ser meras executoras, meras intérpretes e aplicadoras da legislação nacional, porque a elas tem também de ser deixada a construção de normas, de soluções e de iniciativas, para melhoria dos objectivos legais a que toda a legislação, tanto nacional como local, deve sujeitar-se em matéria de licenciamento e aproveitamento do solo. Este é o primeiro problema.
O segundo problema que se coloca é o da corrupção, e, aqui, sejamos claros: se há matéria em que as câmaras, justa ou injustamente, são objecto de acusações, nem sempre provadas - as oposições gostam de dizer que o presidente da câmara é corrupto e as maiorias municipais costumam dizer que são as oposições que fazem os negócios e os atribuem depois às câmaras, porque também por lá passaram (este problema sempre existiu) -, não há dúvida nenhuma que o problema do loteamento e do aproveitamento dos solos é uma delas. No País, ele é considerado pela opinião pública e, principalmente, por aqueles que estão directamente interessados nos loteamentos, como uma das fontes do enriquecimento injusto dos autarcas, dos engenheiros, dos técnicos, dos gabinetes de urbanização, dos gabinetes de loteamento, dos gabinetes onde se fazem, onde se «cozinham» as plantas e os projectos que se levam para as câmaras. E o Sr. Ministro não desconhece que há empresas ligadas às câmaras de varias maneiras: Por vezes é a mulher que tem uma empresa que faz os projectos e que tem as melhores formas de lotear o terreno, outras vezes é o primo, o irmão, etc., mas é sempre do indivíduo que, dentro da câmara, tem o poder de decisão e que organiza o processo que será, depois, enviado ao presidente da câmara, quem está ligado, cá fora, a muitas empresas, as quais traduzem aquilo que o presi-

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dente da câmara gostaria de ver chegar-lhe para despacho, porque aquilo já vai bem feito cá de fora.
Ora o loteamento é uma da matérias sobre o qual existe a maior suspeita e aquele que leva a que os autarcas, bem ou mal, sejam apodados ou suspeitos de enriquecimento injusto à custa da concessão de alvarás.
Por isso mesmo, seria uma defesa para os autarcas a existência de uma legislação que os libertasse deste seu poder discricionário, de um princípio de legalidade que os libertasse do poder discricionário, porque isso dar-lhes-ia uma maior cobertura, uma espécie de armadura legal para dizerem que estão a cumprir a lei e não a seguir os interesses a cada momento levantados.
Ora bem, o pedido de autorização legislativa hoje em debate é tão vago que não sabemos que espécie de interesses quer prosseguir. Não sabemos se quer firmar um quadro legal nacional, que depois seja preenchido com as iniciativas e também com as normas legais locais, de modo a haver um quadro completo de loteamento antes de ser dado o alvará; não sabemos se é antes uma manobra - que não será vossa mas, sim, do próximo governo (pior ainda) -, para que todo o problema do loteamento fique nas mãos do Poder Central; não sabemos se quer deixar as coisas tal como elas actualmente existem ou piorá-las, uma vez que não dá uma armadura às câmaras e aos os autarcas, já que eles continuam com uma parte do poder discricionário, onde podem negociar e com outra, digamos, meramente ideológica, não no sentido doutrinário mas no da fixação de grandes ideias sobre o que devem ser o loteamento e o licenciamento no nosso País, exactamente por causa dos interesses do ambiente, da qualidade de vida, etc.
Ora tudo isto é deixado em branco, porque o que aqui se pede é uma autorização genérica, vaga, que apenas nos dá as grandes linhas, que não sabemos no que é que serão traduzidas. Contudo, como a confiança que este Governo merece é muito pouca, principalmente à hora da saída- e nem sequer podemos cantar aquele fado de Coimbra e dizer-lhe que «O Governo tem mais encanto na hora da despedida», pois cada vez é maior o nosso desencanto na hora da despedida - também nós não podemos dar uma autorização legislativa que é pedida em termos tão latos que talvez nem lhe sirva e venha apenas a servir o próximo Governo. Ora nós não queremos, de forma nenhuma, dar uma autorização legislativa para que os próximos governos tenham de cumprir um decreto-lei que VV. Ex.ªs farão e que ninguém sabe o que será. Portanto, não queremos vincular os próximos governos e achamos que talvez seja melhor os senhores perderem o prazo e deixarem que o próximo Governo elabore uma nova proposta de lei, o que será mais adequado.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Sr. Deputado, faça o favor de concluir, porque já ultrapassou o seu tempo.

O Orador: - Numa matéria destas, a prudência mandaria, dada a sensibilidade e a delicadeza da matéria, que um Governo que se despede não viesse pedir a esta Câmara uma autorização legislativa.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Santos Pereira.

O Sr. Fernando Sanados Pereira (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Deputados: O Governo submete à Assembleia da República a proposta
de lei n.º 132/VI, visando a obtenção de autorização legislativa para alterar o Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, que aprova o regime jurídico dos loteamentos urbanos.
Nas últimas décadas tem-se ouvido falar, por toda a parte e de forma cada vez mais intensa, de meio ambiente, significando-se o conjunto de fenómenos físicos, químicos, biológicos que, conjugados com factores económicos, culturais e sociais, directa ou indirectamente exercem influência sobre os seres vivos e, em especial, sobre o tipo de vida das populações.
Por essa razão, não é de estranhar que o homem vá tomando cada vez mais consciência dos efeitos malévolos que muitas das suas acções exercem sobre a natureza, sentindo a necessidade de normalizar regras de comportamento destinadas a prevenir a sua degradação, a começar pelo próprio solo, para o qual é sempre fundamental procurar obter uma utilização correcta.
No que concerne a este debate, todos estaremos de acordo em que as operações de loteamento urbano e as obras de urbanização constituem, seguramente, uma das formas mais importantes de ocupação do solo, quer pelas incidências que possuem ao nível do ordenamento do território, do ambiente e dos recursos naturais, quer pelas repercussões que delas resultam para a qualidade de vida dos cidadãos.
Já antes do 25 de Abril, o Estado tinha sentido necessidade de disciplinar o regime da divisão de prédios rústicos para a construção.
Porém, as intervenções legislativas da altura, reflectindo as circunstâncias políticas, económicas e sociais então vigentes, foram mais norteadas pela preocupação de controlar a construção urbana, designadamente através do combate à construção clandestina, do que por razões de ordenamento do território, defesa do ambiente e qualidade de vida, valores que nessa altura praticamente não se colocavam ao legislador.
Como consequência desse regime fortemente centralizador, as câmaras municipais assumiam um papel muito diminuto, limitando-se a servir de intermediário entre os particulares e os serviços dependentes da então Direcção-Geral de Urbanização.
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 400/84, veio a atribuir-se, por via da visão descentralizadora que o enformava, uma função mais interventora às câmaras municipais quanto ao licenciamento das operações de loteamento e à autorização para a realização de obras de urbanização.
O diploma tinha, contudo, um formalismo muito complicado, sobretudo em relação às formas de processo especial e ordinário, os quais, pela morosidade que implicavam, levavam a que os loteadores fossem tentados a negociar os talhões de terreno mediante a celebração de simples contratos-promessa de compra e venda, onde, não raro, chegaram a ser implantadas construções, ficando os promitentes-compradores à mercê desses loteadores quanto à execução das obras de infra-estruturas, que executavam ou não, conforme o sentido da decisão sobre as respectivas obras de urbanização.
Na década de 80, estas situações eram frequentes, com a agravante de que, mesmo obtido o indispensável licenciamento, as cauções destinadas a assegurar a execução das obras de urbanização, por efeito dos valores da inflação da época, não raramente se tornaram insuficientes e os loteadores, sobretudo quando já haviam vendido todos os lotes ou parte deles, abandonavam as obras, deixando os

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compradores entregues à sua sorte, sem acessos condignos e, por vezes, sem água, luz e esgotos.
Não deixa de ser verdade que o Decreto-Lei n.º 400/84 já continha algumas disposições destinadas a acautelar os interesses dos adquirentes de terrenos loteados bem como a preservar o património paisagístico e cultural e a defender a capacidade de uso dos solos. Mas tais medidas revelaram-se inadequadas na prática, sendo ineficazes para dar satisfação quer aos interesses de natureza pública quer aos de índole privada.
Por isso, os Governos da responsabilidade do Partido Social Democrata pretenderam ir mais longe, mais de encontro às populações. Foi sob a superior direcção de V. Ex.ª, Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território, que se encetou uma verdadeira reforma no que respeita ao regime jurídico dos loteamentos urbanos e das obras de urbanização.
Assim, no uso da autorização legislativa concedida por esta Assembleia através da Lei n.º 7/91, de 15 de Março, veio o Governo a aprovar o Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, onde se proeurou, e procura, que as operações de loteamento, que «(...) estão na origem da criação de novos espaços destinados à habitação. Ou ao exercício das mais diversas actividades humanas, (...) sejam projectadas e realizadas por forma a proporcionar aos futuros utentes o necessário conforto e bem-estar. Por esse motivo se defende que aquelas operações sejam balizadas por um processo administrativo que garanta a defesa do interesse público, nomeadamente em maioria de urbanismo e de protecção do meio ambiente.
A defesa desse interesse superior não obsta, porém, ao salutar desenvolvimento da iniciativa privada nem deve permitir uma administração intervencionista, face aos interesses que importa preservar, e desadequada da óptica descentralizadora que se pretende para a prática administrativa.
Foi com esse intuito que a revogação do Decreto-Lei n.º 400/84 teve presentes os princípios da simplificação administrativa e as regras de demarcação de competências entre a administração central e a administração local, indo-se, nessa altura, já de encontro às preocupações do Sr. Deputado Narana Coissoró. Consagrou-se uma tramitação única para todas as operações de loteamento, procurando-se uma maior celeridade e sanando-se as interpretações antagónicas que quase sempre surgiam em torno da classificação dos processos.
De igual forma, simplificou-se o licenciamento, ião articulá-lo com o esforço desenvolvido pelas autarquias na área do planeamento territorial, considerando-se, como regra, os casos em que vigora um plano municipal de ordenamento do território.
Nessas situações, em que se conferiu às autarquias autonomia no processo de licenciamento, limitou-se a execução de operações de loteamento a áreas urbanas ou urbanizáveis, obstando-se, por essa via, à continuação da dispersão da construção.
Se nesses capítulos muito se avançou com a publicação do Decreto-Lei n.º 448/91, somos levados a manifestar igualmente a nossa concordância com o «ir mais além» plasmado no sentido da autorização pretendida agora pelo Governo que é «o de simplificar o procedimento do licenciamento, reduzindo as suas formalidades e incrementando a respectiva celeridade, bem como o de reforçar as garantias dos particulares».
Exemplo dessas intervenções são: a fixação de prazos, que se pretendem equilibrados quer para a administração quer para os particulares; a constituição de direitos por parte da resposta a um pedido de informação prévia formulado pelo proprietário; a dispensa de reapreciação de documentos que permaneçam válidos; e a revalidação de alvarás, em casos determinados.
Sr, Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Deputados: No que respeita à extensão da autorização, a proposta apresentada pelo Governo assenta em cinco pontos essenciais.
Em primeiro lugar, sustenta-se o estabelecimento do regime do direito à informação dos administrados, no respeitante a assuntos em que tenham interesse e, para o caso, em matéria de licenciamento de operações de loteamento e de obras de urbanização.
Pretende-se, de seguida, reformular o regime dos encargos decorrentes dos trabalhos a realizar para reforço das infra-estruturas e, em terceiro lugar, reforçar o regime de garantias contenciosas dos particulares. Esta última intenção é, aliás, semelhante à adoptada na Lei (de autorização legislativa) n.º 29/92, de 5 de Setembro, que deu origem a alterações no Decreto-Lei n.º 445/91, sobre o licenciamento de obras particulares.
Também aí se consagrou a atribuição: de competências aos tribunais para intimar a administração; de efeito substitutivo à sentença transitada em julgado; e de legitimidade processual às associações representativas dos industriais de construção civil e obras públicas e dos promotores imobiliários.
Pensamos, assim, ser justificada tal proposta, até porque o correcto será a existência de um regime paralelo de garantias contenciosas dos administrados, quer nos processos de licenciamento de obras particulares, quer nos loteamentos.
O quarto ponto da proposta apresentada pelo Governo tem a ver com o regime de responsabilidade dos órgãos autárquicos e seus titulares bem como com a qualificação dos actos ou omissões relevantes para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 9.º e na alínea g) do n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 87/89, que estabelece o regime jurídico da tutela administrativa das autarquias locais.
Neste aspecto, pensamos ser correcto que o Governo queira proceder a um melhor esclarecimento das situações, tal como o pretende no quinto ponto, relativo às taxas municipais por realização de infra-estruturas urbanísticas.
Aproveito a oportunidade para dizer que estranhámos a postura do PS e do PCP quanto ao parecer da Associação Nacional de Municípios Portugueses. Este parecer não deixa de ser curioso e em nada ajuda quem defende que aquela Associação não tem uma visão partidarizada deste problema.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Quanto ao sentido da autorização legislativa, a ANMP não deixa de concordar com ele, alertando apenas para que não se proceda a uma diminuição excessiva dos prazos. Em relação à extensão, diz que não alcança o sentido da alteração proposta para o direito à informação. Diz também que não alcança o sentido da proposta de reformular o regime dos encargos decorrentes dos trabalhos a realizar para o reforço de infra-estruturas. No que respeita ao reforço do regime de garantias contenciosas dos particulares, a ANMP concorda em absoluto Diz ainda este parecer, no que respeita ao regime de responsabilidade dos órgãos autárquicos, que a sua opinião é negativa mas, aqui, nós compreendemos. Quanto às taxas municipais, diz a ANMP que tem uma opinião condicionada, pois tem dúvidas acerca do que pretende o Governo.

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Srs. Deputados, sei que no parecer se afirma que poderá ser revisto, mas não acham incorrecto socorrerem-se de um parecer intrinsecamente contraditório para criticarem esta proposta de lei do Governo? Não pensam VV. Ex.ªs ser estranho que a ANMP utilize o carimbo «desfavorável» para marcar um documento acerca do qual afirma ter dúvidas interpretativas?

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Joel Hasse Ferreira (PS): - Não!

O Sr. Luís de Sá (PCP): - Quem é que criou as dúvidas?!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: O Governo, com a aprovação da proposta de lei n.º 128/VI, fica autorizado a elaborar um diploma que, com base na experiência enriquecedora dos últimos três anos, irá certamente melhorar o actual regime jurídico dos loteamentos urbanos.
Aprovado este normativo, bem como a proposta de lei n.º 128/VI, que autoriza o Governo a legislar em matéria de princípios, objectivos e instrumentos de ordenamento do território, de regime geral da ocupação, uso e transformação do solo para fins urbanísticos, bem como de regime do planeamento territorial e sua execução, fica estruturalmente sistematizado o quadro legal do ordenamento do território do nosso país.
Conforme afirmei no início da minha intervenção, Portugal passou do tempo em que as poucas iniciativas de ordenamento eram centrais para a fase do desordenamento geral e de desarrumação do espaço, em que se confundiu em absoluto o direito de construção e o direito de propriedade.
Foi o trabalho notável dos Governos do Partido Social Democrata que veio paulatinamente sensibilizar e convencer as populações e muitos responsáveis da importância das políticas de ordenamento como elemento fundamental do seu bem-estar e da sua qualidade de vida.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Hoje, por via dessa reforma de que V. Ex.ª, Sr. Ministro, é o principal obreiro, os responsáveis da administração central estão familiarizados com o processo de tomada de decisões sobre a matéria de ordenamento do território, as populações estão sensibilizadas e conscientes da sua importância e os profissionais estão preparados e sabem o que esperar da administração.
Porque o ordenamento do território continua a ser uma das prioridades do Partido Social Democrata, o meu grupo parlamentar considera fundamental que a Assembleia da República autorize o Governo a, no prazo de 60 dias, elaborar e aprovar um diploma que consagre a matéria em discussão.
É no prosseguimento desse objectivo que o Grupo Parlamentar do PSD votará favoravelmente este pedido de autorização legislativa, cujo texto e intervenção de V. Ex.ª, Sr. Ministro, são suficientes para o nosso esclarecimento e tomada de posição.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Costa.

O Sr. António Costa (PS): - Sr. Presidente, Sr. Ministro do Planeamento e Administração do Território.
Srs. Deputados: Permitam-me que, antes de mais, enderece, enquanto Presidente da Subcomissão Parlamentar de Habitação e Telecomunicações, os meus cumprimentos a todos os meus colegas, bem como aos do PSD e do PCP, que participaram activamente na audição parlamentar sobre a legislação relativa aos bairros de génese ilegal, sem a qual não teria sido possível obter este consenso, que permitiu a aprovação, pelos Deputados da referida Subcomissão, de um diploma que pode merecer o consenso da Assembleia da República.
O trabalho desempenhado por todos os Deputados da Subcomissão foi decisivo nesta matéria, permitiu que chegássemos aqui com este diploma e que possamos, até à próxima quarta-feira, proceder à sua revisão na especialidade, de forma a ser sujeito a votação final global antes do termo dos trabalhos desta sessão legislativa.
O problema dos bairros de génese ilegal remonta a décadas. Iniciou-se com particular intensidade na década de 60 e é um processo que resultou de causas diversas. Naturalmente, a causa fundamental tem a ver com a vinda e a concentração nas áreas metropolitanas de muita população originária da chamada província, que não encontrou nas áreas metropolitanas habitação a preço adequado, onde se alojasse a mão-de-obra que para aqui se deslocou. Resultou também de uma época em que o ordenamento jurídico não tinha tradição em matéria de licenciamento, quer das construções, quer, sobretudo, das licenças de loteamento. Convém não esquecer que só em 1951 foi introduzida a obrigatoriedade da licença de construção e, em 1965, a da licença de loteamento.
De todas estas causas, resultou um fenómeno que, seja por loteamento ilegal, seja por construção ilegal, nos permitiu assistir a um processo de desordenamento do território, em particular das áreas metropolitanas, por via da chamada construção clandestina, que prefiro designar como construção de génese ilegal.
Desde há uns anos que os municípios e, em particular, os proprietários ou comproprietários e moradores dos bairros de génese ilegal têm posto as mãos às obras, no sentido de procederem ao que falta, ou seja, à reconversão urbanística dos bairros.
Foram anos de trabalho duro e com muitos sacrifícios, que implicaram a realização, a posteriori, do que já deveria ter sido realizado antes, ou seja, as obras de infra-estruturas e o arranjo de espaços para equipamentos e utilização colectiva. Esse trabalho foi realizado com grande esforço, em particular dos membros das comissões de proprietários e moradores, que se revelaram - é preciso reconhecê-lo - os verdadeiros grandes autarcas destes municípios e a cujo trabalho, em meu entender, é nosso dever prestar a devida homenagem.

Aplausos do Deputado do PS Joaquim da Silva Pinto.

Ao longo deste processo, muito foi realizado. Na audição parlamentar, para além da audição das câmaras municipais, das entidades da administração central, pôde a Subcomissão visitar diversos bairros de génese ilegal e verificar que, como fruto do trabalho desenvolvido, já estão muitos deles dotados de infra-estruturas de saneamento, de abastecimento de água, de rede eléctrica, de rede viária e mesmo muitos conseguiram obter espaços disponíveis, onde se pode, no futuro, instalar equipamento, estando algum já instalado, zonas verdes e outras zonas de uso colectivo.
Contudo, este trabalho foi realizado sem que a lei o enquadrasse e, sobretudo, sem que o apoiasse, não por

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falta de legislação mas por total desadequação da existente. A legislação remonta a 1971, quando era Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo o nosso antigo colega José Luís Nogueira de Brito, sofreu alterações já depois do 25 de Abril, mas também essa legislação manteve, tal como a anterior, um modelo que apontava para a responsabilidade quase exclusiva dos municípios e para um modelo de natureza expropriativa que não tinha em conta os direitos e as legítimas expectativas de quem havia adquirido avos ou parcelas destacadas ou de quem era, simplesmente, promitente-comprador daquilo que desejava vir a ser o lote onde pudesse instalar e viver a sua vida.
Esta legislação revelou-se, na prática, totalmente: desadequada, por isso, não foi, de todo em todo, aplicada.
Assim, tornou-se necessário, como reconheceu a Comissão de Petições, por unanimidade, adoptar novas medidas legislativas com o objectivo de ajudar a reconversão urbanística destes bairros e facilitar, nos casos iam que estes se mantêm em regime de compropriedade indivisa, a divisão da propriedade.
São estas as duas grandes questões que temos pela frente e foi a elas que este projecto de lei, subscrito pelos Deputados da Subcomissão de Habitação e Telecomunicações, proeurou dar resposta.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Quanto à reconversão urbanística, em primeiro lugar, revelou uma adequação às dinâmicas em curso. Como eu disse, apesar de a lei não a enquadrar, a verdade é que a reconversão tem vindo a ser feito. Ora, a pior coisa que a lei poderia fazer, hoje, seria cortar uma dinâmica que está em curso, que deve ser acarinhada, apoiada e também, necessariamente, enquadrada.
Portanto, o projecto de lei começa por não impor qualquer metodologia fixa e tanto podemos recorrer ao processo de loteamento como ao plano de pormenor: o projecto de loteamento, em primeira linha, por iniciativa dos proprietários e o plano de pormenor, naturalmente, por iniciativa dos municípios, ou seja, as práticas, paralelamente, têm vindo a ser Adoptadas ora num município ora noutro.
Em segundo lugar, proeurou-se eliminar definitivamente a lógica administrativa e expropriativa dos processos de reconversão, apostando na responsabilização dos. proprietários ou comproprietários dos lotes da área de urbanização. Essa responsabilização implica consagrar legislativamente aquilo que as populações, por sua própria iniciativa, já tinham imposto e revelado como a metodologia adequada: a sujeição do prédio ou dos prédios que integrem a mesma área de urbanização de génese ilegal a um processo de administração conjunta, que se inspira no quadro legislativo do regime da propriedade horizontal, responsabilizando e atribuindo meios e competências às comissões, para poderem praticar os actos de administração necessários.
O primeiro acto de administração que passa a ser classificado como tal é precisamente o que diz respeito ao projecto do loteamento. Na verdade, se houve coisa que a prática revelou é que não é possível a reconversão urbanística sem que se estabilize o quadro da propriedade. No entanto, não é possível proceder à estabilização deste sem saber qual é a divisão urbanisticamente aceitável pelo município em questão.
Por isso, entendeu-se não ser possível manter, a regra geral da compropriedade, que impõe o acordo unânime e exige unanimidade para legitimar o pedido de loteamento, sob pena de alguns desinteressados ou de alguns que, pura e simplesmente, estão interessados em especular à custa do interesse alheio pudessem paralizar os actos e as operações de reconversão. Assim, a lei atribui à maioria dos comproprietários o poder de requererem por si próprios o loteamento.
Estes sacrifícios, quanto às regras da unanimidade, foram naturalmente compensados com uma enorme exigência em matéria de publicitação de todos os passos do processo e em matéria de segurança. Porque, obviamente, sem sacrifício da necessária celeridade, não poderão ser sacrificados direitos fundamentais, como o direito à propriedade, nem permitida, sob o pretexto da celeridade, a existência de processos menos claros. Portanto, exige-se a máxima publicidade e a máxima segurança, mas sem reconhecer a quem quer seja, como actualmente a lei faz, o poder de paralizar uma operação que a todos interessa e que deve ser considerada de interesse público, porque essencial ao reordenamento do território das áreas metropolitanas.
Assim, as comissões passam a ter legitimidade, o que não acontecia até agora, seja para agirem quando as câmaras não o façam no sentido de impedir novas construções que desrespeitem o projecto em apreciação, seja sobretudo para obter a cobrança coerciva de quem se furte à comparticipação que é devida pelo custo das obras de infra-estruturas e de urbanização.
A segunda característica importante deste projecto é a sua adequação à realidade. Revelou-se efectivamente absurdo procurar impor a posteriori, em realidades que já existem, novas normas que não estavam sequer em vigor à data em que a divisão de facto se processou e em que a construção, apesar de não licenciada, teve lugar.
Certamente, todos compreendemos que é impossível impor a Alfama, por exemplo, as normas que a lei hoje consagra - e bem - para novas urbanizações, no que diz respeito ao dimensionamento das vias ou à disponibilidade de áreas de cedência. É óbvio que nenhum destes bairros está nas mesmas circunstâncias que Alfama, mas é evidente que em qualquer um destes bairros a realidade de facto já não é consentânea com a aplicação a posteriori de condições que, de todo em todo ou muitas vezes, não existem.
Por isso, a terceira característica deste diploma é a de assegurar a total autonomia dos municípios, que começa, desde logo, por esta lei só ser aplicável aos bairros de génese ilegal, considerados pelos respectivos PDM como bairros recuperáveis. Não se aplica, portanto, aos chamados bairros irrecuperáveis, relativamente aos quais é necessário também, um dia, encarar-se o problema, já que, neste final de legislatura, não havia condições para tratar.
Quanto à autonomia dos municípios, é-lhes conferido o poder não só de diminuírem ou agravarem, conforme entendam, as respectivas taxas de licenciamento como ainda de, mediante contrato de urbanização a celebrar com comissões e com o Estado, regularem qual a forma de comparticipação do município e do Estado no financiamento das obras de infra-estruturas e sobretudo na construção do equipamento indispensável à qualidade de vida destas áreas urbanas.
Outra característica importante, como referi, é a que diz respeito à celeridade. Celeridade, desde logo, na redução dos prazos gerais previstos na lei, mas redução também na introdução de medidas inovatórias, que parecem extremamente importantes. Inovatória, desde logo, ao permitir que as obras de infra-estruturas possam começar-se ainda antes da emissão do alvará, desde que se en-

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contrem caucionadas, os projectos de infra-estruturas mereçam aprovação e a realidade já existente no terreno esteja em conformidade com o projecto de loteamento. Mas inovação ainda mais importante para poupar as populações ao «jogo do empurra», que constituem sistematicamente as consultas às entidades exteriores ao município, às entidades gestoras das redes de electricidade, das redes telefónicas, das redes de água, etc., prevendo-se, agora, que, no caso de o parecer ser negativo, ele deva ser acompanhado de uma sinopse indicativa de qual a solução que permitiria o deferimento do pedido, poupando, assim, os moradores e os proprietários à apresentação de sucessivos projectos, eventual e sucessivamente rejeitados, e ficando estes, desde logo, a saber que, se seguirem a indicação feita pelas entidades consultadas, o seu projecto merecerá aprovação.
Obviamente que este projecto de lei não poderia servir o interesse público se não fosse acompanhado de medidas preventivas. Ora, a primeira medida preventiva é a de repor em vigor a norma do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro, que veio proibir a venda de propriedades em avos e que o Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, ao revogá-lo sem mais, havia deixado de manter em vigor, voltando a permitir que se vendesse em avos, ou seja, voltando a permitir que fossem fraccionadas propriedades de forma a proceder ao seu loteamento ilícito. Este projecto de lei vem repor em vigor a proibição da venda em avos.
A segunda medida preventiva essencial é a de facilitar e operacionalizar os meios de que as câmaras municipais dispõem de embargar obras e proceder às demolições de obras sem licenciamento.
A segunda área abordada por este diploma diz respeito a muitos destes bairros que se encontram em regime de compropriedade forçada. Como é sabido, alguns destes bairros têm mais de 6000 comproprietários e, obviamente, as disposições de direito comum que vigoram no País dificultam extremamente a obtenção da unanimidade ou mesmo a divisão da coisa comum por via judicial.
Este projecto de lei opta por uma circunstância particular, que é a de a divisão já existir na prática configurada por acordo de uso, ou seja, quando o traçado das redes implantadas no terreno, quando o traçado das vias implantadas no terreno, quando a demarcação da posse de cada um dos comproprietários já está claramente evidenciada no terreno, não é necessário o acordo unânime e, por acordo de uso, pode proceder-se à divisão da coisa comum e ao seu registo com base no alvará de loteamento.
Mas este diploma vem também conceder uma garantia essencial aos municípios, que é permitir-lhes registarem a parte que advém para o seu domínio, como área de cedência para vias ou área de cedência para uso colectivo, oficiosamente, após a aprovação do alvará de loteamento.
Para terminar, Sr. Presidente e Srs. Deputados, gostaria de dizer que, obviamente, este projecto de lei, que cremos pode ser aprovado até ao final da legislatura, não constitui uma «varinha mágica», nem vem legalizar o que não pode ser legalizado. Vem, antes de mais, eliminar bloqueios e permitir um novo diálogo entre os municípios e as comissões, no sentido de acelerar e concluir este processo, e, acima de tudo, fazer algo de essencial, que é repor alguma dignidade e alguma verdade histórica em todo este processo. E que se há culpados neste processo, eles não são, com certeza, quem comprou os lotes em avos ou quem comprou as parcelas destacadas, mas quem, explorando o sagrado direito à habitação de quem dela necessitava, procedeu ilicitamente e com fim especulativo ao loteamento ilegal, seja por destaque seja por venda em avos.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - E se há coisa que é gritante e que este projecto de lei vem eliminar é o poder que os chamados loteadores clandestinos, os prometedores de loteamento clandestino, têm, nos termos da lei, como comproprietários ou como proprietários da parte residual dos prédios de onde foram feitos os destaques, de tentarem vir à segunda volta do negócio especulativo, exigindo agora daqueles a quem já enganaram uma vez o pagamento dos espaços para as ruas, para as áreas de equipamento ou para as áreas de uso colectivo.
Portanto, é com particular satisfação que verifico ter sido possível estabelecer-se o consenso na Assembleia da República para dizer àqueles que já lotearam, uma vez, clandestinamente que essa vez passou, mas que à segunda volta da especulação já não vêm e não exploram mais ninguém à custa deste negócio.

Aplausos do PS.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Barbosa de Melo.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território.
O Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero fazer quatro observações finais relativamente às intervenções que ouvi.
Gostei naturalmente de ver que há consenso em torno dos princípios. O Sr. Deputado Luís Sá referiu que aprova o reforço da informação, da transparência e dos direitos dos cidadãos perante a Administração, o mesmo tendo feito, de outra forma, o Sr. Deputado Narana Coissoró. Portanto, quanto a princípios, estamos todos de acordo.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Não são esses, são os outros!

O Orador: - Depois, em relação às dificuldades, o Sr. Deputado Luís Sá referiu que seria muito difícil saber se uma determinada infra-estrutura beneficiaria um determinado loteamento e um loteamento ao lado. Sr. Deputado, nunca disse que isto não iria reclamar mais trabalho, mas também estou convencido de que esta actuação acabará por ir ao encontro daquilo que qualquer urbanista ou qualquer administrador público quer, que é construir as cidades mais baratas. Portanto, quando se estiver a fazer a apreciação dos custos das infra-estruturas adequadas, as pessoas irão aferir e ver para que lado a cidade crescerá mais economicamente e para qual deixará de crescer ou haverá grandes custos para crescer. Há autores que, há 30 anos, procuram encontrar uma teoria para isto e já a acharam - é a teoria dos limiares. Ora, vencer o limiar mais baixo é a ambição de qualquer urbanista e administrador público.
Portanto, o que estamos a fazer, ao propor que se façam cálculos das infra-estruturas para se saber quais são as mais adequadas, distinguindo o que é do loteamento e o que é do loteamento ao lado, ao fim e ao cabo, não vem senão preencher e responder à velha ambição de todos os urbanistas, que é construir as cidades mais baratas. Por isso, é um efeito lateral daquilo que estamos a propor e que vai ter, Sr. Deputado, as maiores consequências.

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O Sr. Deputado Narana Coissoró falou na questão das coordenadas nacionais e das coordenadas locais, dizendo que deveria haver margem para uma intervenção Contrai, regras gerais com as quais estamos perfeitamente de acordo - são estas -, e, depois, alguma margem local, para a adaptar às situações, com o que também estamos de acordo. O que queremos é que essa margem local seja feita não caso a caso, sector a sector, loteamento a loteamento, mas que sejam estabelecidos princípios gerais, aprovados nos mesmos termos dos planos que são supostos sair aprovados, e, nesse caso, então, seguindo o mesmo processo, de uma forma geral, com compensações gerais, apreciando os casos na sua globalidade e evitando o casuísmo e tudo aquilo que disse serem as suas preocupações, que também são as nossas. Tenho referido muitas vezes haver suspeitas que não se confirmam e estou em boa posição para afirmar que a imensa maioria dos autarcas portugueses se encontram efectivamente acima de toda a suspeita, sendo servidores públicos exemplares. Porém, casos há em que pode haver alguma possibilidade de desvio e a nossa obrigação é a de estabelecer mecanismos que dificultem qualquer tentação.
Finalmente, no que se refere à questão que o Sr. Deputado Narana Coissoró referiu de o pedido de autorização legislativa vir apenas no final da legislatura, devo dizer que há coisas que só se podem fazer depois de se ter visto muito, de se terem apreciado muitas queixas e muitas exposições e de se ter analisado a situação com toda a calma e com toda a abertura.
A sua preocupação é se a autorização legislativa servirá a este Governo? Não serve a este Governo seguramente, mas servirá ao próximo!

O Sr. Joaquim da Silva Pinto (PS): - Obrigado!

O Orador: - Em meu entender, ela vai servir fundamentalmente ao País. Essa é a nossa obrigação e o sentido pela qual a apresentamos.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Cardoso Martins.

O Sr. Cardoso Martins (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Secretários de Estado, Srs. Deputados: Os loteamentos e os bairros clandestinos nos subúrbios das grandes cidades de Lisboa e do Porto surgiram nas décadas de 60 e 70, em consequência da conjugação de diversos factores, a saber: o grande surto migratório do interior para os grandes centros urbanos; a deficiência e o desequilíbrio da oferta de habitação em Lisboa e no Porto para dar resposta a tão grande procura; as características sociológicas e psicológicas dos cidadãos migrantes, entre os quais uma forte apetência pela posse da terra e para a habitação unifamiliar; a falta de reprovação da sociedade em relação ao próprio fenómeno; a contemporização de algumas câmaras municipais; e, finalmente, e não menos importante, os especuladores sem escrúpulos.
As consequências ficaram à vista de todos e, infelizmente, até de quem nos visita.
Nas centenas de bairros clandestinos que rodeiam sobretudo Lisboa vivem milhares de compatriotas nossos.
Só o loteamento do Pinhal do General, na Quinta do Conde, nos concelhos de Sesimbra e Seixal, tem cerca de 6000 comproprietários em 233 hectares.
Os custos desse mau ordenamento são elevadíssimos, pelas redes gigantescas que implicam, em termos de recolha de lixo, fornecimento de água e de electricidade, de esgotos, etc., devendo, por princípio, esses custos ser suportados localmente.
Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Deputados: Não se pode negar o esforço desenvolvido pelas câmaras municipais, no sentido de recuperar muitos desses bairros e de dotar os loteamentos clandestinos com as infra-estruturas mínimas. E, ao reconhecimento desse esforço, é justo associar a colaboração das associações de proprietários e comproprietários para corrigir os erros e recuperar o que é possível recuperar. Às direcções dessas associações se deve, em grande parte, a recuperação de alguns desses bairros. Aqui fica a homenagem à sua constância e dedicação.

Vozes do PSD, PS e CDS-PP: - Muito bem!

O Orador: - O quadro legal vigente prevê o ataque ao fenómeno e a recuperação dos loteamentos clandestinos. Porém, a aplicação do Decreto-Lei n.º 804/76, de 6 de Novembro, que é a lei especial que regula a matéria, tem deparado com dificuldades, tais como: a de obter o acordo dos proprietários e possuidores para a reconversão, para a divisão da coisa comum (a terra) e para a divisão dos custos; o facto da legislação especial só abranger loteamentos anteriores a 13 de Abril de 1976; as relacionadas com os registos nas conservatórias de registo predial; e as respeitantes aos actos notariais.
Se bem que o recurso à lei de regime geral dos loteamentos urbanos tenha resolvido alguns casos, mostrou-se também este desadequada quanto às exigências da outorga por todos os comproprietários do contrato de urbanização; quanto às situações provocadas pelas construções não legalizáveis e pelas que devam ser demolidas; quanto ao próprio regime de indemnizações a conferir aos donos dos lotes expropriados para infra-estruturas.
Também a aplicação da Portaria n.º 1182, de 22 de Dezembro, se viu confrontada com questões próprias da necessidade de ponderar entre o desejável e o mínimo de tolerância em relação a situações de facto sanáveis por menores custos relativos.
Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Secretários de Estado, Srs. Deputados: O projecto de lei em debate resulta da audição parlamentar que o PSD também aprovou. Foram ouvidas as câmaras municipais e alguns departamentos da administração central; foram visitados inúmeros loteamentos clandestinos; foram auscultadas associações de comproprietários; e tornou-se possível formar um consenso entre os partidos representados na Comissão.
Acordou-se que o âmbito de aplicação da nova lei seria restringido às situações anteriores à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro.
No projecto de lei procura-se salvaguardar o direito à propriedade privada, bem como o direito à participação dos cidadãos nas decisões que lhe dizem respeito. Porém, o interesse público não pode subordinar-se ao interesse daqueles que, tendo infringido a lei, se recusam, contra a maioria dos seus congéneres, a colaborar na recuperação das situações a que também deram causa. Daí que se imponha, como dever dos comproprietários, a reconversão urbanística e o direito de regresso sobre o antepossuidor do lote.
Com o projecto de lei, garantem-se cedências destinadas a espaços verdes e equipamentos colectivos; quanto ao licenciamento das construções, este fica dependente da verificação dos índices aprovados para a reconversão e

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também da liquidação dos encargos que competem a cada comproprietário; confere-se uma moratória de três anos, para adequar as construções existentes aos valores mínimos de habitabilidade; estabelecem-se regras para a administração dos loteamentos clandestinos; cria-se um processo especial de loteamento, que assegure o empenhamento das câmaras municipais e dos interessados, a realização das obras de infra-estruturas, mesmo antes da emissão do alvará, e a necessária prestação de caução que garanta a sua boa execução das obras; inova-se ao permitir a divisão e desanexação, em conformidade com o alvará de loteamento, por acordo de uso e nos termos gerais de direito; conferem-se poderes extraordinários às câmaras municipais no domínio das taxas das operações de reconversão urbanística e de licenciamento; e às assembleias municipais confere-se o poder para regulamentar as condições de manutenção temporária de construções em áreas insusceptíveis de recuperação.
Foi por isso que o PSD, atento às angústias dos comproprietários, mas também e sobretudo à necessidade de salvaguardar os princípios do ordenamento do território e da qualidade de vida das gerações futuras, subscreveu o projecto.
Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Secretários de Estado, Srs. Deputados: O projecto de lei não é ainda obra acabada e contém algumas deficiências, lacunas e imprecisões, que o PSD tentará colmatar, com uma apreciação rigorosa no debate na especialidade, em sede de Comissão.
Entre as questões que nessa sede suscitaremos, referirei as seguintes: falta a interligação com a legislação que estabelece o regime geral sobre os loteamentos, ajustamentos e procedimentos; falta clarificar as formas que reveste a iniciativa da reconversão do plano de pormenor apresentado pelas próprias câmaras municipais; falta a fixação de prazos para a aprovação do instrumento de reconversão.
Quanto a nós, é necessário que passe a constar de diploma a obrigação das câmaras municipais de, em prazo a fixar, delimitarem as áreas a reconverter; deve possibilitar-se às assembleias municipais a faculdade de dispensar o cumprimento do Regulamento Geral das Edificações Urbanas em relação às construções existentes, só a essas e em casos devidamente justificados; bem como possibilitar às câmaras municipais a realização das infra-estruturas e clarificar os efeitos da presente lei em relação aos processos que estejam pendentes.
Finalmente, Sr. Presidente e Srs. Deputados, é nossa opinião que, para além do quadro legal que agora se discute, importa prosseguir os esforços de pedagogia e cultura, para estabelecer um permanente quadro de intervenção que defenda e salvaguarde o ambiente em geral e, neste particular, o ordenamento urbanístico em que vivemos.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: O projecto de lei que hoje debatemos na generalidade é para nós um motivo de satisfação e só temos a lamentar que seja tão raro que a Assembleia da República, em vez de rejeitar cegamente, através da sua maioria, as propostas que são apresentadas, não se debruce atentamente sobre elas, na perspectiva de resolver os problemas efectivos do País.
Não vou retomar a descrição do projecto de lei, porque, de algum modo, os meus colegas que trabalharam nesta matéria já o fizeram.
Divirjo, por exemplo, do Sr. Deputado que acaba de intervir, quando aponta a necessidade de algumas alterações na especialidade como, por exemplo, o problema da não aplicação da Regime Geral das Edificações Urbanas, que já está razoavelmente contemplado. Mas vamos continuar a trabalhar e com certeza que vamos manter o acordo no sentido de assegurar que este problema, que já foi motivo de incómodos para tantos moradores e tantos municípios, possa finalmente ter uma contribuição para ser resolvido.
Se me permitem, Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo e Srs. Deputados, vou antes recordar alguns aspectos que estão subjacentes à apresentação deste projecto de lei.
Recordo, designadamente, que para nós e, eventualmente, ao contrário do que aconteceu, para outras bancadas parlamentares, este problema dos loteamentos ilegais não é novo e não nos apercebemos dele, das suas características e dimensões, através da audição que recentemente aqui foi decidida e que, felizmente, não bloqueou, apenas adiou, a aprovação de iniciativas legislativas sobre esta matéria.
Na verdade, ao longo dos anos, tivemos contacto com os loteamentos ilegais. Antes de termos apresentado dois projectos de lei, um sobre a questão da legalização de loteamentos de génese ilegal, particularmente o problema da divisão da compropriedade em propriedade plena, e outro sobre a questão do financiamento dos loteamentos, tivemos oportunidade de realizar uma audição na Sala do Senado, na qual estiveram presentes largas centenas de moradores, representando muitas e muitas associações que deram o apoio aos projectos que apresentámos e uma boa contribuição para o trabalho que desenvolvíamos.
Recordo também que o Grupo Parlamentar do PCP teve oportunidade de marcar, para o dia 5 de Maio, o agendamento dos projectos de lei que oportunamente apresentou, que não puderam ser discutidos por intervenção do PS e do PSD. Em todo o caso, tive oportunidade de intervir no período de antes da ordem do dia, recolocando um problema que ciclicamente trouxemos à Assembleia da República, porque nos preocupou, ao longo do tempo, de uma forma intensa.
Felizmente, o facto de, por coincidência, o Governo ter marcado esta má proposta de autorização legislativa sobre loteamentos para hoje deu oportunidade de estes projectos de lei deixarem de. estar congelados - naturalmente que admitimos que as outras bancadas também possam ter sido sensibilizadas pela voz dos moradores e dos municípios que, nesta altura, ouviram - e de os debatermos hoje, finalmente.
Em vez de debatermos os dois projectos de lei apresentados pelo PCP, ainda bem que estamos a debater um projecto de lei da Subcomissão, subscrito, simultaneamente, pelo PSD, pelo PS e pelo PCP Congratulamo-nos com isso, e só temos pena de que não tenha acontecido mais vezes, e também, em particular, com a contribuição que o Grupo Parlamentar do PCP deu com a sua iniciativa, trazendo aqui a voz dos moradores, a preocupação dos municípios, ouvindo-os ao longo do tempo, através dos Deputados da Assembleia da República, tal como os ouviu nas próprias autarquias locais.
Os moradores da Sobreda e tantos outros moradores sabem perfeitamente que tiveram, ao longo dos anos, o apoio do PCP nas autarquias locais e do Grupo Parlamentar do PCP e, por isso, congratulamo-nos que tenha havido um feliz desenlace nesta matéria.
Naturalmente que vamos trabalhar de uma forma muito intensa até à próxima quarta-feira. no sentido de permitir a

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aprovação do diploma na especialidade. Ainda há, naturalmente, muito a fazer, mas julgamos que o trabalho está a decorrer num bom clima e que este bom clima de trabalho conjunto vai permitir, com certeza, superar as dificuldades.
Este aspecto é muito importante, porque as câmaras municipais e os moradores, que procuraram resolver este problema ao longo do tempo, esbarraram com grandes dificuldades legais, burocráticas e financeiras, que esperamos ver, de algum modo, atenuadas.
Quanto às dificuldades financeiras, como é natural, preocupa-nos o facto de o acordo a que chegámos ter sido mais vago do que o que propúnhamos anteriormente. Pensamos que o esquema previsto, designadamente para o plano de erradicação das barracas, deveria serve também para a reconversão dos loteamentos de génese ilegal, sobretudo nas situações em que os moradores não têm capacidade financeira suficiente para suportarem por si mesmos as infra-estruturas e os equipamentos que se impõem através da reconversão. Logo, deveria haver; nesta matéria, uma co-responsabilização dos municípios, do Estado e dos próprios moradores. Aquilo que está estabelecido no diploma é um pouco menos preciso, no entanto, creio que é suficientemente claro para ficar estabelecido o princípio de que o Estado, o Governo que vier a ser criado, tem responsabilidades específicas nesta matéria, não se podendo demitir, de forma alguma, da reconversão dos loteamentos de génese ilegal que vier, estar em curso ou que está em curso neste momento.!
Em resumo, temos razões para nos congratulai Estamos dispostos ao trabalho e vamos a ele com muita intensidade, conjuntamente com todos aqueles que têm estado a trabalhar; e esperamos que, antes do término desta Legislatura, tal como referiram os outros grupos parlamentares, haja um desfecho feliz desta questão para alegria dos moradores, das autarquias locais e de todos aquelas que têm lutado para resolver este problema.
Como já foi referido, os moradores não têm culpa da situação em que foram investidos, têm uma cultura particular, que é a de procurar um tipo de habitação particular com a sua cultura, foram, naturalmente, vítimas, mas as autarquias também não são as culpadas nesta matéria. Há um problema, que temos de resolver. Logo, contem connosco para o trabalho. Vamos ao trabalho!

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Correia Afonso, dispondo, para o efeito, de um minuto.

O Sr. Correia Afonso (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Sá, só pedi o uso da palavra pára repor a verdade algumas das afirmações de V. Ex.ª, que não são exactas.
Sr. Deputado, quanto aos projectos de leis n.ºs 504/VI e 505/VI, do PCP, devo dizer, pois fui o relator dia Comissão e dei um parecer sobre esses projectos, que eles ou o processo legislativo em que estavam inseridos não cumpria o artigo do Regimento; o parecer foi no sentido de ficarem suspensos, o que a Comissão aprovou, com os votos favoráveis do PCP, ou melhor, por unanimidade, pois todos aprovaram esse parecer.
Portanto, não me parece demonstrativo de grande exactidão ir à tribuna dizer que eles foram suspensos por culpa do PSD e do PS. Não é verdade, Sr. Deputado, eles foram suspensos também com o voto favorável do PCP.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Correia Afonso, ainda bem que colocou esta questão, porque poderia ainda haver alguma dúvida da parte de alguém.
O Grupo Parlamentar do PCP fez, sobre essa matéria, uma declaração de voto, que ficou anexa ao relatório que esclarece esta questão.
É que, normalmente, não se elabora projecto algum, na área das autarquias locais, sem o enviar directamente à Associação Nacional de Municípios Portugueses, pois o artigo 150.º do Regimento diz, efectivamente, que é a respectiva comissão parlamentar. Logo, a comissão parlamentar respectiva poderia tê-lo feito imediatamente após a entrada do projecto de lei - e eu creio que este seria o procedimento adequado -, sem estar à espera de qualquer outra diligência. Mas, acima de tudo, aquilo que acontece - e o Sr. Deputado sabe-o bem, como pessoa que acompanhou a elaboração do Regimento - é que o artigo 150.º manda ouvir a Associação Nacional de Municípios Portugueses e a ANAFRE, e nós não nos opusemos a isso.
Dissemos, pois, que as associações tinham de ser ouvidas antes de acabar o processo legislativo. O projecto de lei podia ser debatido na generalidade e na fase da especialidade ouvíamos as associações e teríamos em conta aquilo que elas dissessem.

O Sr. Correia Afonso (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Correia Afonso (PSD): - Sr. Deputado, muito obrigado por ter autorizado a interrupção.
O problema fundamental é este, e faço-lhe a pergunta directamente: é ou não verdade que o PCP deu o voto favorável à suspensão desses projectos? Esta é que é a questão.

O Sr. Carlos Pinto (PSD): - E mais nada!

O Orador: - Não é!

O Sr. Correia Afonso (PSD): - O Sr. Deputado, através dos seus representantes na Comissão, deu o voto favorável, mas hoje vem aqui dizer o contrário.

Vozes do PCP: - É mentira!

O Orador: - Sr. Deputado, em primeiro lugar, não houve qualquer voto favorável e, em segundo lugar, há uma outra questão.
Os projectos de lei foram agendados com um mês de antecedência. Logo, nada impediria que o Sr. Presidente da 5.ª Comissão os tivesse enviado, imediatamente após o agendamento, para a Associação Nacional de Municípios Portugueses, a qual teria tido a oportunidade de se pronunciar antes do debate. Não se pronunciou, não foram enviados, mas, mesmo assim, poderiam ter sido enviados imediatamente após a deliberação da Comissão. Entretanto, teria lugar o debate na generalidade dos diplomas e, antes da aprovação na especialidade, se fosse o caso, haveria a possibilidade de se pronunciar.

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Portanto, esta foi a posição que sempre defendemos e não outra. Não demos acordo nesse sentido. Pronunciámo-nos contra a audição, porque o problema dos moradores e das autarquias andávamos a ouvi-lo há muitos anos, Sr. Deputado, conhecíamo-lo perfeitamente e tínhamos realizado uma audição na Sala do Senado. Já tínhamos, portanto, colocado essa questão há muito tempo.
Agora, o grande apelo que faço, Sr. Deputado Correia Afonso e já agora o Sr. Deputado António Costa, é no sentido de não regressarmos a uma questão que já deveria estar ultrapassada, à qual não queria regressar nestes termos exactos...

Protestos do PSD.

... e num momento em que o fundamental é resolver os problemas dos moradores. Mas há também um outro aspecto, que é a verdade histórica. Aquilo foi um momento infeliz, e felizmente que as outras bancadas estão agora a repará-lo através desta actuação.
Portanto, apelo a que se agarrem à actuação de agora e esqueçam aquele momento de grande infelicidade que tiveram.

O Sr. António Costa (PS): - Peço a palavra para interpelar a Mesa, Sr. Presidente, não sobre o assunto agora em debate, em que estão envolvidos os Srs. Deputados Luís Sá e Correia Afonso, mas sobre o procedimento a tomar em relação ao diploma em apreço. Mas não sei se este será o momento oportuno.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Mas deixando clara a verdade dos factos!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, visto não haver mais inscrições, dou por encerrado o debate conjunto das propostas de lei n.º 132/VI - Autoriza o Governo a alterar o Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro (aprova o regime jurídico dos loteamentos urbanos) e 592/VI - Processo de reconversão das áreas urbanas de génese ilegal (Subcomissão de Habitação e Telecomunicações).
Tem a palavra, para interpelar a Mesa, o Sr. Deputado António Costa.

O Sr. António Costa (PS): - Sr. Presidente, a minha interpelação tem a ver com uma questão funcional.
Como é do conhecimento geral, estamos a poucos dias do encerramento dos trabalhos parlamentares e o que queria saber, em concreto, visto os diplomas referidos pelo Sr. Deputado Luís Sá já terem sido retirados e de o único diploma, que é o que está em debate, ter resultado da Subcomissão de Habitação e Telecomunicações, no quadro da audição parlamentar que foi aprovado por maioria realizar-se, é se baixa automaticamente à Subcomissão, para a discussão na especialidade, ou se não baixa automaticamente e é necessário requerê-lo formalmente e se há, no caso de baixar, do ponto de vista do Plenário, condições para fazer a sua votação final global até à próxima quarta-feira.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, em princípio, a votação destes diplomas será feita na reunião plenária da próxima quarta-feira.

O Orador: - Portanto, será uma votação final global.

O Sr. Presidente: - Exacto, mas se a todos convir que se faça a votação na generalidade, na especialidade e a votação final global faremos tudo de uma só vez. Se entendem que deve baixar à Comissão, esta terá de acelerar os seus trabalhos por forma a que antes do encerramento...

O Orador: - Sr. Presidente, coloquei esta questão só para clarificar a situação, porque no quadro da Subcomissão e da audição parlamentar, que funcionou muito bem e com grande consenso entre todos os partidos representados na Subcomissão, não só foi elaborado esse diploma como foi previsto um calendário de trabalhos, quer na Subcomissão, quer em Comissão, por forma a que até terça-feira o trabalho em Comissão esteja encerrado, pelo que se pudesse subir a Plenário ainda viria a tempo das últimas votações, que, segundo creio, ocorrerão na quarta-feira, já que nos dois dias seguintes de Plenário não haverá votações. Mas se há essa disponibilidade por parte da Mesa, creio que o consenso, fora estes arrufos públicos, para um clima normal de trabalho se poderá estabelecer rapidamente, não prejudicando o que já foi feito e adquirido até agora.

O Sr. Presidente: - Sr Deputado, a proposta de lei será votada na quarta-feira, na generalidade, na especialidade e votação final global. O projecto de lei será, em princípio, posto à votação na generalidade, excepto se todos concordarem fazer a votação na especialidade e, depois, a votação final global. Para esse efeito, eventualmente, e um pouco antes, pode a Comissão introduzir na terça-feira as alterações que concertarem, para que na quarta-feira possa ser tudo feito numa só votação aqui, em Plenário.
Srs. Deputados, vamos dar início à discussão da proposta de lei n.º 88/VI - Lei de bases da justiça militar e de disciplina das Forças Armadas, sobre a qual há um relatório da Comissão especializada, cujo relator é o Sr. Deputado Adriano Moreira, que não se encontra presente.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Peço a palavra, para interpelar a Mesa, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Faça favor.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, pedi a palavra apenas para informar a Mesa de que o Sr. Deputado Adriano Moreira me pediu o favor, se o Sr. Presidente autorizar, de ler o relatório, visto não poder estar neste momento aqui.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, se for para ler, penso que estamos numa Casa de alfabetos, pelo que todos o poderão ler. Mas se quiser resumir, enfim... Agora, apenas para ler, não!

O Orador: - Sr. Presidente, resumir apenas não dá.

O Sr. Presidente: - Sendo assim, já que, suponho, todos sabemos ler, economizamos esse tempo.

O Orador: - Sr. Presidente, o único resumo possível é dizer que a proposta de lei n.º 88/VI está em condições de subir a Plenário.

O Sr. Presidente: - Muito bem, Sr. Deputado.
Para uma intervenção, na qualidade de autor, tem a palavra o Sr. Ministro da Defesa Nacional, dispondo, para esse efeito, de 5 minutos e o excedente será descontado no tempo regimentalmente atribuído.

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O Sr. Ministro da Defesa Nacional (Figueiredo Lopes): - Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: O Governo tem a honra de apresentar, formalmente, ao Plenário da Assembleia da República a proposta de lei de bases da justiça militar e da disciplina das Forças Armadas. Trata-se de uma iniciativa legislativa reclamada pela alínea m) do artigo 167.º da Constituição e também pelo n.º 2 do artigo 32.º da Lei de Defesa Nacional das Forças Afinadas. Ela corresponde, com efeito, às opções político-legislativas, cujo desenvolvimento normativo se vai concretizar através da aprovação de um novo código de justiça militar, de novos regimes orgânicos dos tribunais militares e da Polícia Judiciária Militar, bem como de um novo regulamento de disciplina militar.
Do ponto de vista técnico-jurídico, a apresentação desta proposta não reveste, pois, apenas uma dimensão de oportunidade mas ainda uma dimensão de possibilidade: é que, sem ela, o referido processo legislativo não pode concluir-se, dependente que está das directivas e limites materiais fixados nas bases gerais que, deste modo, constituem um quadro essencial de referência normativa que os demais diplomas devem acolher.
Quanto ao conteúdo desta iniciativa do Governo, também ele constitui uma questão de possibilidade, pois como a doutrina tem certeiramente assinalado, aliás apoiando-se em argumentação perfeitamente lógica em termos hermenêutica jurídica, deve entender-se que as bases gerais de disciplina das Forças Armadas abrangem quer o direcção disciplinar quer o direito penal e processual penal militares.
Compreende-se perfeitamente que o legislador constitucional tenha querido, nesta matéria como nalgumas outras, fazer preceder os diplomas há pouco referidos da fixação de alguns princípios orientadores da actividade legislativa. Trata-se, na verdade, de matérias de grande complexidade normativa, às quais, para mais, anda aliado, em particular desde 1982, um sentimento de necessidade de reforma profunda, sentimento esse que a proposta do Governo acolhe inquestionavelmente.
Nas suas traves-mestras, o direito penal e processual penal militares e o Regulamento de Disciplina Militar actualmente em vigor entre nós remontam ao primeiro quartel do século, já que as versões de 1977 se limitaram ao mínimo indispensável para conformar aqueles regimes à Constituição de 1976 e ao sistema democrático entretanto instaurado no nosso país.
A revisão do Código de Justiça Militar, nas suas vertentes substantiva e adjectiva, e do Regulamento dó Disciplina Militar, revela-se hoje realmente imperiosa dado o evidente desajustamento de ambos, agravado, quanto ao primeiro, pelo inaceitável distanciamento verificado em relação ao direito penal e processual penal comuns postos em vigor pelo Código Penal de 1982 e pelo Código e Processo Penal de 1987.
Clarificada que está a necessidade de a lei de bases que o Governo propõe à Assembleia da República para que possa concluir-se a reforma da justiça militar e da disciplina das Forças Armadas, há um outro ponto que quero, desde já, deixar bem sublinhado: com a aprovação deste diploma não fica de modo algum encerrada a intervenção desta Câmara no âmbito do processo legislativo por que aquela reforma se desenvolve. A»'bases constituem, uma vez aprovadas, condição necessário para a prossecução da reforma mas não condição suficiente; valem, enquanto directivas e limites à actividade legislativa, na estrita dimensão do seu conteúdo, não comprometendo opções normativas que estejam para além deste
quer do ponto de vista material quer em termos de competências legislativas.
O único diploma que o Governo, por si, está em condições de aprovar no desenvolvimento da lei de bases é o Regulamento de Disciplina Militar; mas, para que tal assim possa ser, a proposta do Governo fez constar das bases relativas à disciplina militar, talvez até por excesso, o regime geral de punição da infracção disciplinar militar, matéria da competência legislativa da Assembleia da República, em termos de reserva relativa.
A aprovação dos demais diplomas, o Código de Justiça Militar, a Lei Orgânica dos Tribunais Militares e a Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar, implicará ainda leis, em sentido formal, pois é seguro que estes normativos contendem, também eles, com competências legislativas da Assembleia da República. Esta constatação de ordem jurídica, expressa aliás na exposição de motivos da proposta e contida no seu artigo 41.º, faz cair pela base afirmações expendidas aquando da análise da mesma, já promovida por este Parlamento, no sentido de que os Deputados estariam em matéria de justiça militar a «passar um cheque em branco ao Governo».
Sejamos claros, Sr.ªs e Srs. Deputados: estamos perante matérias nucleares da organização da defesa nacional, cuja revisão assume a dignidade de uma grande reforma de Estado. Como sempre, o Governo está empenhado em promover o mais amplo consenso democrático em torno dessa reforma de interesse nacional através de uma participada discussão tão aberta quanto profícua.
O direito penal constitui em cada país um barómetro de desenvolvimento sócio-cultural e político,...

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Isso é verdade!

O Orador: - ... enquanto repositório de valores essenciais. Tal afirmação tem particular aplicação à instituição militar e é válida quanto ao direito penal militar e ao direito disciplinar militar, pois não só constituem um repositório dos valores militares fundamentais, como participam com especial enfoque na estrutura da organização específica das Forças Armadas, conferindo-lhes uma particular identidade.
Eis como o Governo encara o conteúdo da proposta de lei de bases da Justiça Militar e da Disciplina das Forças Armadas, eis a razão por que se recusa a aceitar que tais matérias sejam travestidas em arma de arremesso político, eis justificada a postura de procura de consenso por nós assumida desde o início do presente processo legislativo.
Tinha o Governo consciência, quando iniciou este processo, da delicadeza e dificuldade da tarefa. Contudo, por razões de interesse nacional, não deixou de, com sentido do dever, a ele se abalançar. Elaborou um projecto que debateu, longa e exaustivamente, com as estruturas militares. Liderou, em diálogo constante, esse debate e obteve o consenso, de modo a que a actual proposta, sendo formalmente sua, é-o substantivamente também das Forças Armadas portuguesas.
A iniciativa legislativa do Governo é acompanhada de uma detalhadíssima exposição de motivos, da qual transparecem à sociedade os fundamentos de todas as opções do legislador, as quais recolheram o parecer favorável do Conselho Superior de Defesa Nacional. Aqueles fundamentos e opções foram também já debatidos informalmente na Comissão Parlamentar de Defesa Nacional e analisados, há cerca de um ano, num colóquio subordinado ao tema «Justiça Militar».

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O Ministério da Defesa Nacional ponderou, de maneira milimétrica, o teor de todas as intervenções até agora produzidas, e dessa ponderação retirou a confirmação do acerto das suas opções. Como Ministro da Defesa Nacional mantenho, contudo, a mesma disponibilidade que até aqui o Governo sempre manifestou neste processo para acolher, em sede de debate na especialidade, eventuais propostas de melhoria das normas ora em análise.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados, é-me impossível nesta sede detalhar o conteúdo da proposta do Governo. Há, ainda assim, algumas referências que não podem deixar de ser feitas. Vai a primeira para o sistema interno do projecto de diploma, estruturado com base num conjunto de valores objectivos fundamentais, aqueles de cuja preservação depende a organização particular das Forças Armadas, e sem a qual não estariam em condições de prosseguir as suas missões com eficiência e eficácia.
A delimitação da tutela penal de bens jurídicos militares ou inerentes aos interesses militares da defesa nacional fundamentar-se-á a partir daqueles valores e, deste modo, tipificar-se-ão como crimes essencialmente militares, de acordo com o princípio do foro material, que se reafirma, apenas aquelas condutas que afectem gravemente os referidos bens jurídicos, tendo já o Governo apresentado à Comissão de Defesa Nacional os nove núcleos de crimes essencialmente militares que prevê resultem do desenvolvimento normativo da sua proposta, uma vez aprovada como lei.
O processo penal militar, simplificado e inspirado no modelo processual penal comum, sujeito ao princípio da legalidade também quanto às medidas de coacção, assegurará ao arguido todas as garantias de defesa, terá estrutura acusatória e comportará uma instrução com carácter necessariamente contraditório e decidida com a eficácia própria das decisões judiciais, por forma a obter-se uma efectiva separação entre quem acusa, pronuncia e julga; tudo, na forma de processo sumário.
Valoriza-se decisivamente a acusação pública, pois o exercício da acção penal competirá ao Ministério Público apoiado por um oficial das Forças Armadas na sustentação da acusação ou da pronúncia, o que significa que as autoridades militares deixarão de intervir em matérias de promoção da acção penal e de investigação. Estas terão, justificadamente, um conjunto de competências processuais numa lógica próxima de algumas das competências processuais do assistente.
A Polícia Judiciária Militar, organicamente dependente do Ministro da Defesa Nacional, actuará em processo penal militar sob a direcção e na dependência funcional das autoridades judiciárias.
Os tribunais militares, organizados em duas instâncias e não tripartidos por ramos das Forças Armadas, independentes e apenas sujeitos à lei, terão uma composição mista; as autoridades judiciárias terão um estatuto em tudo idêntico ao estatuto das autoridades judiciárias nos tribunais criminais; criar-se-ão juízos de instrução criminal militar; estatuir-se-á rigorosamente sobre a criação de tribunais de guerra.
Trata-se da matéria da inclusão na jurisdição dos tribunais militares de crimes dolosos equiparáveis aos essencialmente militares.
Regula-se, com rigor, a matéria das penas aplicáveis em processo penal militar.
Estas bases, não podendo deixar de considerar-se assumidas de forma pacífica na doutrina penalista, contêm, ainda assim, orientações de reforma profunda da justiça militar, que é imperioso concretizar sem delongas.
Não estando em causa a subsistência de um direito penal e processual penal especiais nem a existência de tribunais militares, o Código de Justiça Militar assumirá plenamente a sua especialidade, remetendo-se subsidiariamente para o Código Penal e para o Código de Processo Penal o tratamento das matérias que criteriosamente não possam considerar-se específicas da tutela penal militar. Um tal modelo, de constitucionalidade inequívoca, é, paia mais, «perfeitamente passível de legitimação democrática» e encontra «justificação funcional, racional e ideologicamente fundada», como afirmou o Professor Figueiredo Dias a propósito precisamente da proposta de lei que hoje analisamos.
O direito disciplinar das Forças Armadas abrange o direito disciplinar militar, objecto do Regulamento de Disciplina Militar, cujo projecto é já do conhecimento da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, e o direito disciplinar dos funcionários e agentes civis das Forças Armadas, não necessitando este de qualquer desenvolvimento normativo, pois estatui-se a aplicação do direito disciplinar da função pública, articulando-se a competência disciplinar das chefias militares com a do Ministro da Defesa Nacional.
O futuro regulamento de disciplina militar, enformado também ele pelo sistema interno de valores da lei de bases, será notoriamente diferente do actual, podendo dizer-se, em termos gerais, que será mais simples, mais operativo e capaz de assegurar ao arguido as necessárias garantias de defesa.
Foi aperfeiçoada, segundo cremos, a regulamentação do âmbito pessoal de aplicação, a definição de infracção disciplinar militar, o tratamento dos deveres militares, das penas disciplinares, da competência disciplinar e dos recursos hierárquico e contencioso da decisão disciplinar. Foi resolvida a questão disciplinar dos agentes militarizados das Forças Armadas.
Uma nótula final para a regulamentação exaustiva, a que a lei de bases não fugiu, da articulação entre a apreciação da responsabilidade penal (militar ou comum) e a apreciação da responsabilidade disciplinar (militar ou outra), estatuindo-se, conforme os casos, um regime de autonomia ou de apreciação integrada. O regime geral é o da autonomia, com excepção dos casos em que o agente é militar e em que a sua conduta é qualificável simultaneamente como infracção disciplinar militar e crime essencialmente militar, pois, nestes casos, o crime é um plus perante um minus que é a infracção disciplinar.
Sr. Presidente, Sr.ª e Srs. Deputados, a reforma que o Governo propõe para a justiça militar e para a disciplina das Forças Armadas é tão necessária quanto profunda mas é equilibrada. Ela aponta para o estabelecimento de normativos perfeitamente integrados no sentido moderno do direito penal e disciplinar mas permite salvaguardar a especificidade da instituição militar enquanto detentora de uma organização própria que lhe é vital e cuja existência é balizada pelos valores fundamentais que são a sua própria razão de ser.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Defesa Nacional, não pretendia formular um pedido de esclarecimento mas, uma vez que ainda não

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sou Deputado exclusivo, gostava de, nesta sede, fazer eco de uma preocupação dominante do último Congresso dos Advogados Portugueses, realizado na cidade do Funchal, sendo que uma das suas conclusões, vivamente aplaudida pelos assistentes, foi a da extinção dos tribunais militares como o foro privilegiado para o julgamento de crimes militares.
De acordo com a filosofia do diploma em apreço, os tribunais militares não julgam apenas os militares, isto é, não são tribunais de foro pessoal. Logo, os crimes militares são julgados pelos tribunais militares, mesmo quando praticados por civis, assim como os crimes comuns são julgadas pelos tribunais comuns, mesmo quando praticados por militares. Este conceito não me passa despercebido mas devo fazer eco da vontade generalizada dos advogados portugueses no sentido de mesmo os crimes militares serem julgados pelos tribunais ordinários, embora de competência, Especializada. Isto é, poderá haver dentro da orgânica desses tribunais comuns tribunais com competência específica para julgarem crimes de natureza militar.
Não queria, pois, deixar de transmitir este desejo a V. Ex.ª, principalmente para que conste da acta desta sessão, porque o Congresso dos Advogados Portugueses constituiu um acontecimento de enorme importância, e esta, que é uma preocupação profunda da actual sociedade portuguesa civil, merece ser levada ao conhecimento do titular da pasta da Defesa Nacional, embora saibamos que não vá ter qualquer eco no imediato. Trata-se de uma propositura - digamos assim - com que este ou os futuros governos deverão contar para que, pelo menos, faseadamente, desapareçam os tribunais especiais apenas de foro militar para o julgamento das chamadas infracções militares.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Ministro da Defesa Nacional.

O Sr. Ministro da Defesa Nacional: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Narana Coissoró, V. Ex.ª referiu-se a uma questão que eu não ignorava. Aliás, aquando da realização do Congresso dos Advogados Portugueses, no Funchal, foi publicitada, entre outras, essa recomendação dele resultante. Porém, ignorava francamente que o CDS-PP tinha essa mesma opinião e que, nesta Câmara, viria defendê-la fazendo suas as posições da Ordem dos Advogados.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Ministro dá-me licença que o interrompa?

O Orador: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Ministro,, não disse que essa era a posição do meu partido. Até comecei por fazer referência ao facto de não desempenhar as funções de Deputado em regime de exclusividade devido ao facto de ser advogado. Ora, foi na qualidade individual de Deputado/advogado que falei nesta recomendação do Congresso dos Advogados Portugueses, em que participei. Logo, não fiz eco de uma posição partidária, pois os Deputados não representam unicamente os partidos, mas também a voz da sociedade civil em que estão integrados e era a esse aspecto que me queria referir, já que os Deputados não são papagaios dos partidos.
Sendo advogado, foi nessa qualidade que expressei as minhas opiniões, não importando, neste caso, a bancada onde me sento, já que sucederia o mesmo se tomasse assento no Conselho de Ministros e V. Ex.ª acabou de dizer que já tinha tomado conhecimento desse facto. Tal não significa que se trate de uma posição partidária, mas da atitude de um Deputado livre nas suas opiniões, independente no seu julgamento, ao representar nesta Câmara uma voz forte da sociedade civil, que integrou no referido Congresso.

O Orador: - Sr. Deputado, agradeço o seu esclarecimento e, por essa razão, julgo estar, neste caso, a responder fundamentalmente ao Sr. Advogado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Exactamente!

O Sr. António Braga (PS): - Esse não está cá!

O Orador: - Em todo o caso, penso que essa questão não se coloca porque, neste momento, os tribunais militares têm existência e consagração constitucionais pelo que não estamos perante qualquer modelo inconstitucional na sua manutenção ou regulamentação.
Por outro lado, os tribunais militares têm uma perfeita legitimação democrática como, de resto, referi, citando há pouco as palavras do Professor Figueiredo Dias por ocasião do colóquio que aqui teve lugar no ano passado, em que deixou muito claro essa mesma opinião, embora também não ignore que, nesse mesmo colóquio, se desenvolveu a opinião de que, eventualmente, poderia seguir-se um outro modelo que seria o de criar, nos tribunais comuns, no sistema judiciário civil - se me permite -, secções especializadas para tratamento das questões militares.
Estamos no domínio da teoria e do que sucederá futuramente mas, neste momento, enquanto Ministro da Defesa Nacional, preocupa-me a regulamentação de uma das matérias mais importantes que, de facto, carece, desde há muitos anos, de um tratamento correcto e frontal, de modo a acabar sobretudo com determinadas situações que ainda perduram na área da justiça militar e da disciplina das Forças Armadas que, se não rondam a área da inconstitucionalidade, deixam porventura muito a desejar aos princípios mais elementares da defesa e das garantias do arguido. Daí que tenhamos consciência de que não podemos esperar e que é forçoso que esta regulamentação avance. Como deixei dito, a lei de bases vai constituir o quadro de referências e a opção político-jurídica fundamental para prosseguirmos com o Código de Justiça Militar, o Regulamento de Disciplina Militar, a Lei Orgânica dos Tribunais Militares e o Estatuto da Polícia Judiciária Militar.
Acrescentaria mais uma palavra a este respeito. Seja qual for a solução que vier a ser encontrada no futuro - e ela terá de ser encontrada em sede de revisão constitucional -, não esqueçamos que estamos a tratar de questões que têm que ver com valores fundamentais do Estado. Na verdade, trata-se de preservar a capacidade, a organização, as missões e as questões fundamentais que permitem às Forças Armadas serem uma estrutura organizada com capacidade de realização eficaz da sua missão, hierarquizada, coesa, com segurança. São estes valores que estão em causa e que, quando violados, constituem na verdade infracções especiais que devem ser tratadas de modo específico.
Se não considerássemos que as Forças Armadas carecem desta regulamentação e que, na sua dimensão completa, devem ser encaradas com organização, estrutura e valores específicos que lhe são próprios, estaríamos perante Forças Armadas diminuídas na sua capacidade de cumprimento das missões que lhes são cometidas e que o poder político lhes confia, que têm de cumprir e para cujo

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cumprimento carecem de condições de eficácia e de eficiência. De outro modo, estaríamos, porventura, não perante Forças Armadas dignas deste nome mas perante grupos armados a quem carecia este sentido dos valores fundamentais que as enformam.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Miranda Calha.

O Sr. Miranda Calha (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sr. Ministro da Defesa Nacional, Sr. Secretário de Estado: A sociedade democrática e moderna em que hoje nos inserimos implica a afirmação essencial de valores relacionados com os cidadãos, modernizações e adaptações legislativas mais consentâneas com a realidade que se vive.
A justiça e a disciplina militares não fogem a esses princípios e, naturalmente, precisam das necessárias adequações que melhor correspondam à actualidade.
A própria Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, promulgada em Novembro de 1982, no seu artigo 73.º, dava já então um ano para a actualização de legislação diversa, destacando-se em primeiro lugar a referente ao Código de Justiça Militar e Regulamento da Disciplina Militar.
E logo aqui se nos coloca uma dúvida importante - importante, em termos do debate que estamos a travar - e que reside no facto de aqui estarmos hoje a tratar das bases da justiça militar e da disciplina das Forças Armadas quando o citado artigo 73.º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas refere tão-só as duas mencionadas leis. Aliás, e intimamente ligado com esta matéria, está a relacionada com a competência e organização dos tribunais militares para a qual o mesmo artigo propunha um prazo de 18 meses para a respectiva aprovação ou revisão, ou seja, sensivelmente 10 anos.
Ora, é evidente, Sr. Presidente, Srs, Deputados, que matéria tão importante e sensível como aquela que, hoje, aqui analisamos deveria estar tanto quanto possível anexada das propostas de legislação referidas que melhor nos consubstanciariam as reais e essenciais opções que o Governo perfilhava em termos de justiça e disciplina militares. E é tanto mais de lamentar quanto, em sede de Comissão de Defesa Nacional, nos foi prometido que tais propostas legislativas nos seriam presentes antes do debate que hoje se trava.
Mais parece estarmos assim perante uma mal concebida e encapotada proposta de autorização legislativa do que tão-só da definição de algumas bases sobre a justiça e a disciplina militares.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, mas analisemos a proposta de lei em si e depara-se-nos, logo no artigo 1.º, a questão essencial dos valores militares fundamentais. E só esta matéria já dá para uma reflexão profunda.
Em recente colóquio parlamentar que a Comissão de Defesa Nacional organizou sobre a matéria - e próprio Sr. Ministro já aqui citou este colóquio -, o Professor Figueiredo Dias, na sua intervenção, refere o seguinte: «Há, no entanto, uma circunstância inquietante (...)» - e sublinho «inquietante» - «(...) Trata-se do propósito assumido de se perspectivar todo o direito penal militar a partir de uma estrutura de sentido axiológico que permitiria, inclusivamente, enformar em coerência, não só a justiça penal como a própria justiça disciplinar militares. Estrutura essa de que faria parte ao lado de valores que podem legitimamente estruturar-se como bens jurídicos militares - a defesa militar da Pátria, a necessidade de umas Forças Armadas eficientes e eficazes na prossecução das suas missões e dotadas de organização própria - outros valores que a proposta de lei de bases chama valores militares fundamentais, com repercussão individual traduzida nos valores individuais aqueles correspondentes e que se concretiza no articulado em valores como os da missão, da hierarquia, da coesão e da segurança.
Valores como os referidos valores fundamentais militares não podem, nem devem, (...)» - e isto vem sublinhado- «(...)por eles mesmos e em si mesmo, assumir-se como bens jurídicos militares dignos e necessitados de tutela penal. Como tal devem assumir-se apenas os interesses militares de Defesa Nacional».
Também no mesmo colóquio, o Professor Freitas do Amaral demonstrou - e sublinho também este aspecto - «as maiores dúvidas sobre a construção que aparece, explicitamente umas vezes e implicitamente outras vezes, relativamente à dicotomia entre os valores militares objectivos e os valores militares individuais, considerando esta construção errónea e fundamento para muitos equívocos e de muita indisciplina militar».

Vozes do P§: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs Deputados: Perfilhamos também as mesmas dúvidas e ficamos ainda mais preocupados com o que pode ser a legislação subsequente, que repetimos que não conhecemos, tendo em conta a concepção teórica que baseia a proposta de lei.
Ainda o último citado orador referia que o esquema que norteou o Governo nesta matriz parece assentar no seguinte: há valores militares objectivos e como tais dignos de protecção jurídica, há depois - o que foi caracterizado como expressão infeliz - a aceitação natural pelos militares desses valores objectivos e há ainda um terceiro momento, aquele em que esses valores naturalmente aceites por cada militar se tornam valores militares individuais. É grave esta situação e é um ponto fundamental e fulcral, em termos das bases que nos são apresentadas.
Uma outra questão está directamente relacionada com os crimes essencialmente militares. Estão contemplados em termos constitucionais, onde até se acrescenta que lei avulsa, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos crimes essencialmente militares.
No entanto, esta lei de bases não nos dá uma ideia clara sobre o conceito de crime essencialmente militar e sabe-se que as concepções variaram ao longo dos anos, desde o código de 1925 até ao código de 1977, e que a própria possibilidade de equiparação de crimes a crimes essencialmente militares deve merecer a maior atenção e o maior cuidado, e isto enquanto vigora a actual solução constitucional.
Ora, nada se vislumbra na proposta de lei sobre a matéria e daí poder concluir-se da gravidade de não existir uma clarificação sobre a matéria, que é essencial que seja analisada numas bases sobre a justiça militar e o regime disciplinar militar.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Mas uma legislação como a proposta não podia deixar de ter anexado o diploma sobre tribunais militares. Há várias concepções sobre a organização e concepção dos tribunais militares. Há países nossos aliados da NATO mesmo sem

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tribunais militares. E daqui pergunto claramente ao Governo: qual é seu modelo? Que ideias tem o Governo sobre tribunais militares? Como pensa que deverá ser uma estrutura referente a esta matéria, em termos da aplicação do Código de Justiça Militar? Em termos das bases, não há nada indiciativo apresentado pelo Governo.
No colóquio que tenho vindo a citar, Freitas do Amaral, perfilhando ideias idênticas de outros oradores, referia ser difícil ajuizar da bondade de diplomas como este sem se saber quais as ideias do Governo sobre a Organização e composição dos referidos tribunais.

O Sr Alberto Costa (PS): - Muito bem!

O Orador: - Há, pois, dúvidas de legitimação 4q tribunais não constituídos por juizes ou compostos predominantemente por pessoas que não são juizes nem sequer têm formação jurídica. Esta questão prende-se ainda com as garantias de independência e isenção de que os juizes dos tribunais militares devem gozar, em tudo iguais aos dos restantes tribunais.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Também a questão do Ministério Público nos levanta diversas dúvidas, especialmente pela criação da chamada promotoria de justiça. Porquê uma composição dupla - um magistrado do Ministério Público e um oficial das Forças Amadas? Porque não se chama tão-só Ministério Público? E por que não pensar-se - e esta seria talvez uma ideia interessante e inovadora - numa magistratura militar?
Há soluções diversas em termos de direito comparado e talvez devesse ter sido interessante, em matéria tão sensível e importante como esta, a publicação de um, livro branco sobre legislação de países acerca desta matéria, para que houvesse, de facto, uma análise aprofundada sobre o assunto. Por exemplo, a Itália tem uma magistratura judicial militar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Uma outra questão essencial prende-se com a lei orgânica da Polícia Judiciária Militar. Que ideias sobre a sua organização tem o Governo? Como será o seu funcionamento? Trata-se, evidentemente, de uma outra matéria vital para se percepcionar da qualidade do diploma em si.
Também não é claro o que se pretende em termos do Regulamento de Disciplina Militar, e isto porque é vasto o campo da definição de infracção disciplinar.
O artigo 22.º refere que será infracção disciplinai! a violação dos deveres militares estatuídos na Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, no estatuto dos militares das Forças Armadas, no próprio Regulamento de Disciplina Militar e demais legislação, que não se sabe qual será.
Seria ao Regulamento de Disciplina Militar, e tão só a este, que se deveriam referenciar todas as infracções disciplinares e tomá-lo exaustivo - e repito « exaustivo» -; nos deveres militares na sua globalidade. Deste modo, aprovar-se no futuro um RDM quando, à partida, até há, mais legislação não titulada cuja substância também poda Conter elementos referenciais para infracção disciplinar d» no mínimo, exagerado e ambíguo.
Sr. Presidente, Sr. Ministro, Srs. Deputados: De modo algum é exaustiva - nem nós o desejávamos - a analisei que se proeurou fazer sobre a proposta de lei. Destacámos alguns pontos, talvez os mais significativos e todos elas, nos levantam dúvidas. Aprovar esta proposta de lei seria, já foi dito no referido colóquio, «passar um cheque em branco». Aliás, o Sr. Ministro da Defesa Nacional teve o cuidado de citar esta mesma frase porque, na verdade, seria «passar um cheque em branco» e nós não o faremos.
Por outro lado, a Constituição da República sublinha questões relevantes que esta proposta de lei não contempla, como sejam a distinção entre defesa da Pátria e defesa da República, a questão da defesa militar perante o inimigo externo (segundo Freitas do Amaral, um dos intervenientes nesse colóquio, não há defesa nacional perante qualquer hipotético inimigo interno), as obrigações do Estado português decorrentes de convenções internacionais, para já não mencionar conceitos vertidos nesta legislação muito usados noutra época não democrática.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Governo teve muito tempo para legislar - aliás, esta matéria faz parte do Programa do actual Governo tal como do anterior - sobre a matéria que já referimos, ou seja, Código de Justiça Militar, Regulamento de Disciplina Militar, orgânica dos tribunais militares e Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar.
Quer agora o Governo, a oito dias do final da legislatura, aprovar umas bases sobre a matéria, porventura com o secreto desejo íntimo de poder dizer que cumpriu o seu Programa.
Ora, a matéria em causa é importante de mais e contempla matéria de tal modo sensível que, obviamente, não se compadece com intuitos menos indicados, nem deve agir-se sob os mesmos.
Por isso mesmo, e no que diz respeito ao meu grupo parlamentar, não podemos dar qualquer parecer favorável a estas bases da justiça militar. Pelo contrário, o nosso parecer é profundamente desfavorável.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Condesso.

O Sr. Fernando Condesso (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Miranda Calha, como sabe, estou aqui em substituição de um meu colega de bancada, Sr. Deputado Correia de Jesus, que é membro da Comissão a que V. Ex.ª preside, e eu próprio há muito tempo que estou afastado destas questões de defesa, embora, em tempos, também tenha sido presidente da mesma Comissão.
Não sei se a culpa será minha, talvez por estar afastado destas questões há muito tempo, mas a verdade é que não entendi a sua intervenção. E que julgava que vínhamos para um debate sobre a lei de bases, sobre os princípios gerais que estabelecem orientações para os futuros diplomas sobre esta matéria. Ora, pareceu-me que V. Ex.ª estava a pretender antecipar o debate referente a esses futuros diplomas, tais como o Código de Justiça Militar, a lei orgânica dos tribunais e a lei orgânica da Polícia Judiciária Militar, e que tinha algumas queixas em relação, por exemplo, a uma eventual autorização legislativa que tratasse sobre essas matérias. Por outro lado, queixou-se de não estarem anexados alguns diplomas a esta proposta de lei.
Assim, gostaria de dizer que é do nosso conhecimento que o Regulamento de Disciplina Militar será aprovado por decreto-lei mas que tudo o resto debateremos nesta sede.
Por exemplo, no que diz respeito ao Código de Justiça Militar, gostaria de saber se o Sr. Deputado já tem alguma informação sobre aquele núcleo de crimes que irão ser abrangidos por este Código, sendo certo que se referiu a valores fundamentais que poderiam estar em cau-

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sa quando, na justiça militar, apenas deveria ter-se presente os bens jurídicos a defender.
Mas reparando bem naquele núcleo de crimes que o Governo anexou a este projecto de diploma, como nota informativa, e que aqui debateremos depois, quando for formalmente tratada a proposta...

O Sr. Alberto Costa (PS): - Na próxima legislatura?

O Orador: - O País não pára só porque há eleições! E esta é uma proposta de lei de princípios gerais! Se têm algo a dizer contra os princípios gerais, digam-no agora, porque nada têm a ver com a legislatura! É isso que estamos a aprovar. Quanto ao Código de Justiça Militar, aprová-lo-emos depois!
Como dizia, V. Ex.ª proferiu um conjunto de afirmações que eu gostaria que esclarecesse porque não entendi onde está o tal «cheque em branco».
O Sr. Deputado falou também no problema da formação jurídica. Que fale na independência dos magistrados, qualquer que seja a sua origem, muito bem, mas falar na formação jurídica?! O Sr. Deputado sabe que noutros países há tribunais, até de outra índole - tribunais de tipo constitucional, tribunais ligados ao foro administrativo -, em que não é obrigatório pertencer à carreira ou sequer ter formação jurídica. Portanto, esse argumento... Â independência dos magistrados? Isso sim!
Repito, então, que gostaria que esclarecesse estes seus comentários pois certamente não terei percebido o que disse na tribuna. Provavelmente, é algo que terá de repetir quando, depois, os códigos vierem à apreciação deste Parlamento pois, nessa altura, é que terá oportunidade. Se tiver, claro!

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a Sr. Deputado Miranda Calha.

lavra o

O Sr. Miranda Calha (PS): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Fernando Condesso, creio que no já longínquo ano de 1975 ou de 1976 V. Ex.ª até foi Presidente da Comissão de Defesa Nacional, o que muito me honra pois eu próprio faço parte da Comissão...

O Sr. Fernando Condessa (PSD): - Não foi há tanto!

O Orador: - Foi sensivelmente por essa altura!
Só que há um pequeno pormenor: V. Ex.ª nunca mais foi à Comissão! Como nunca mais lá foi, está completamente desfasado das questões que estamos a tratar, e este é que é o problema essencial!

O Sr. Fernando Condesso (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: - Peço-lhe que me deixe concluir primeiro.
Como dizia, V. Ex.ª está completamente desfasado em relação a estas questões. Vejamos: o Sr. Deputado diz que estamos perante uma questão de princípios gerais. Ora, na proposta de lei há de facto umas bases gerais, mas, logo à partida, pus em causa a necessidade de existirem bases gerais. A própria Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas aponta directamente para o Código de Justiça Militar, para o Regimento de Disciplina Militar, para a orgânica dos tribunais militares, etc. e é muito duvidoso
que seja necessária a apresentação de uma lei de bases de justiça militar. Nunca aqui foram discutidas as bases do Código Penal nem as bases gerais de outros, como o Código Civil, etc. Aqui não está prevista esta matéria...

O Sr. Fernamdo Condesso (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: - Deixe-me acabar, Sr. Deputado!
Como dizia, porque havia dúvidas sobre a necessidade de uma matéria desse género, considerámos que seria importante uma anexação dos documentos essenciais e substanciais, ou seja, da «carne» desta matéria. E qual é a «carne» desta matéria? É o Código de Justiça Militar, é o Regulamento de Disciplina Militar. Isto é que é o essencial e o resto é tudo acessório.
Portanto, numa matéria deste tipo, o que fiz na minha intervenção foi reafirmar um conjunto de princípios gerais, alguns dos quais até estão ligados às bases que aqui foram apresentadas pelo Governo, mas que, no essencial, nada têm a ver, nem correspondem àquilo que nos interessa que é a matéria de facto.
Repito que a matéria de facto é o Código de Justiça Militar, é o Regulamento de Disciplina Militar, é saber o que pensa o Governo dos tribunais militares, é uma eventual magistratura militar, é a orgânica da Polícia Judiciária Militar.
Embora tenhamos apontado alguns princípios gerais, temos muitas dúvidas sobre eles. Aliás, no final, vou oferecer-lhe um exemplar do livro subordinado ao tema Justiça Militar, que inclui um conjunto de intervenções, nomeadamente dos Srs. Professores Freitas do Amaral e Figueiredo Dias, do Dr. Luís Nunes de Almeida e outros, cuja leitura o aconselho vivamente! Até digo mais: depois de ter lugar este colóquio, onde participou o Sr. Secretário de Estado - na altura ainda não era Ministro da Defesa Nacional -, pensei que o Governo, no final, admitisse retirar este documento,...

O Sr. João Amaral (PCP): - E muito bem!

O Orador: - ... para ser feito de novo e de forma completamente diferente. Mas não! O Sr. Ministro da Defesa Nacional chegou aqui e disse que, apesar de todas as intervenções terem sido analisadas até ao milímetro, tudo se mantinha igual. Quer dizer: não entenderam nada do que se passa, nem os tempos, nem os especialistas, nem as pessoas, pelo que não se percebe bem o que é que, realmente, está na base desta mesma documentação. De qualquer modo, vou dar-lhe um exemplar do livro a que fiz referência.
Há ainda um último aspecto, que não é menor em relação a este assunto. Este é, de facto, um tema que deve merecer o máximo de consensualidade, pois estão em causa matérias sensíveis e de grande importância. Confesso que não compreendo que a apresentação deste documento seja feita só agora! Por que razão só agora, quando estamos a 8 dias do final da legislatura? Temos em mãos, como já foi dito, um verdadeiro cheque em branco; aliás, de maneira incorrecta, até lhe chamei uma «espécie de autorização legislativa», porque, no fundo, quase parece que é disso que se trata.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Deputado Fernando Condesso, agradeço a sua intervenção por ter ajudado a clarificar algumas questões sobre esta matéria e, ao mesmo tempo, quero di-

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zer que lhe farei chegar às mãos o livro subordinado ao tema Justiça Militar, que considero fundamental para tratarmos aqui estas matérias com rigor, seriedade e honestidade.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem â palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Ministro e Secretário de Estado da Defesa Nacional, Srs. Deputados: Creio que se pode dizer que o agendamento da proposta de lei sobre justiça e disciplina militares neste momento ou é uma brincadeira de mais gosto ou uma tentativa de atropelar a seriedade do trabalho da Assembleia da República com uma espécie de rolo compressor, que é o voto do PSD.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - De facto, a esta sexta-feira à tarde só se seguem dois dias de trabalho legislativo, terça e quartas-feiras, já que quinta-feira é dia de debate do estado da Nação e sexta-feira de sessão solene comemorativa do começo dos trabalhos da Constituinte. Temos, repito, dois dias de trabalho legislativo, terça e quartas-feiras, completamente preenchidos e sem qualquer «buraco» possível.
Convém dizer que o que se tem passado nestes últimos dias, em matéria de trabalho legislativo, constitui um completo desrespeito por parte do Governo pela Assembleia da República, que meteu na agenda, «a mata cavalos», em apenas quatro reuniões plenárias, o Código de Processo Penal, o Código de Processo Civil, o regime do ordenamento do território, o regime dos loteamentos urbanos, o regime do praticante desportivo, o branqueamento de capitais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a justiça e disciplina militares. Tudo isto, Srs. Deputados, em quatro reuniões plenárias, com debates atrás de debates. Tudo a toque de caixa!
É absolutamente impossível, a qualquer parlamento, e concretamente à Assembleia da República, realizar um trabalho sério e profundo nestas circunstâncias.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - Então o dia de hoje parece o cabaz de Natal do Professor Cavaco Silva: com tudo a molho e um «peru» enorme, que é esta proposta de lei sobre justiça e disciplina militares.
Na verdade, esta proposta de lei é de uma complexidade extrema, exigindo um debate cuidado na generalidade e um outro na especialidade ainda com maiores cuidados. Claro que o Governo pode dizer que a proposta de lei já poderia ter sido agendada, mas a responsabilidade de não o ter sido é exclusivamente do Governo. Do Governo! Há um ano, isto é, desde a realização do colóquio parlamentar subordinado ao tema Justiça Militar, em 16 de Maio do ano passado, que estão reunidas as condições para o debate, que se poderia ter realizado, por exemplo, no começo desta sessão legislativa, em Novembro ou Dezembro passados.
Que quer agora o Governo, quando apresenta esta proposta de lei a dois dias do fim do trabalho legislativo? Pode dizer-se que ou está a gozar connosco, introduzindo na agencia matéria só para estatística, sem fazer a mínima tenção de a aprovar em votação final global ou, então, está a desprezar a seriedade da Assembleia da República e do trabalho que aqui é feito.
Mais: para quê tanta pressa? Tem alguma utilidade votar esta lei neste momento? Não tem! E não tem rigorosamente qualquer utilidade, porque exige que a Assembleia da República, depois dela, aprove outras leis complementares, sem as quais esta não tem qualquer eficácia. E preciso um código de justiça militar, uma lei orgânica dos tribunais militares, bem como uma adaptação da Lei Orgânica do Ministério Público ou uma lei orgânica judiciária militar, ou seja, leis que a Assembleia da República não tem a mais pequena possibilidade de aprovar.
O Sr. Secretário de Estado não tem qualquer razão nas observações que produziu em torno desta questão, porque a nem a Assembleia da República nem nenhum Governo do PSD têm qualquer possibilidade de aprovar essas leis!

Aplausos do PCP.

Nem sequer é possível aprovar um regulamento de disciplina militar, porque, ao contrário do que os senhores dizem, não pode ser aprovado por decreto-lei. Embora a Lei de Defesa Nacional o diga, a verdade é que a Constituição, com as suas sucessivas alterações, reserva a competência de aprovar leis disciplinares para a própria Assembleia da República. Tem, pois, cabimento perguntar para quê aprovar esta proposta de lei!
Acresce ainda referir o seguinte: foi bom que o Sr. Ministro da Defesa Nacional tivesse vindo aqui dizer que a proposta de lei era apresentada nos termos da alínea d) do artigo 167.º da Constituição, precisamente para recordar que se trata de uma lei orgânica de bases, que tem de ser aprovada, na especialidade, em Plenário. Pergunto, então: que hipótese há de a aprovar? Nenhuma! A não ser que se faça essa aprovação sem tempos, sem debate e sem qualquer seriedade. Nada que dignifique a Assembleia da República! Quando muito, estamos no domínio das actividades lúdicas do Governo...
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Há, entretanto, que analisar o conteúdo. A verdade é que a proposta de lei é de 27 de Janeiro de 1994 e o seu conteúdo está perfeitamente ultrapassado, porque depois de ela ter sido aprovada em Conselho de Ministros, há um ano e meio, ocorreram dois factos que a tornam profundamente questionável. Em primeiro lugar, o colóquio realizado pela Comissão Parlamentar de Defesa Nacional e, em segundo lugar, o processo de revisão constitucional, encetado e não concluído, mas que marca o que pode ser o futuro processo que terá lugar a partir da próxima eleição da Assembleia da República.
O colóquio foi, é bom registá-lo, apesar de o Sr. Deputado Miranda Calha já o ter referido, do ponto de vista técnico, um êxito raro na Assembleia da República, porque permitiu o esclarecimento do conteúdo das questões que giram em torno do direito penal militar, esclarecimento esse feito pelos melhores especialistas portugueses na matéria.
Tivemos oportunidade de ouvir intervenções do Srs. Professores Figueiredo Dias e Freitas do Amaral, do Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional, Luís Nunes de Almeida, e do Dr. José Luís Nunes. Essas intervenções puseram completamente em questão o conteúdo da proposta de lei, tal como ela estava. Até se pode dizer que, depois da realização daquele colóquio, o Governo só tinha uma alternativa válida: substituir a proposta de lei, já que os seus alicerces foram definitivamente abalados!

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Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - Vejamos alguns exemplos: em primeiro lugar, a concepção do direito penal militar a partir de uma estrutura de sentido axiológico foi desancada sem piedade, e sobre ela já aqui foi utilizada a palavra «inquietante», que há pouco provocou sorrisos da bancada do Governo - espero que provoque outra vez! Mas a palavra «inquietante foi o mínimo que foi dito acerca da proposta, porque as pessoas foram relativamente simpáticas e não quiseram dizer tudo o que lhes ia na alma. Agora, afrontaram directamente o conteúdo!

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - Com efeito, uma concepção de direito penal concebida nesses termos é de um reaccionarismo atroz e inimaginável!

O Sr. António Filipe (PCP): - Exactamente!

O Orador: - Fiz o curso de Direito Penal há 30 anos com o Professor Eduardo Correia e, já então, ele desancava essa visão, sem dó nem piedade! Há 30 anos, Srs. Deputados!

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Muito bem!

O Orador: - Portanto, essa concepção não tem pés nem cabeça.
Mais: há agora uma tentativa de resolver a questão através da seguinte fórmula, que passo a citar: «A delimitação da tutela penal de bens jurídicos militares ou inerentes aos interesses militares da defesa nacional fundamentar-se-á a partir daqueles valores». Isto é, fez-se uma espécie de transmutação dos valores em bens jurídicos, não configurando os bens jurídicos como tal mas chamando aos valores bens jurídicos! Ora, é exactamente a mesma coisa, o mesmo erro de concepção básico que torna completamente imprestável a proposta de lei.
Em segundo lugar, também foi muito bem evidenciado pelos participantes no colóquio que, nos termos da Constituição vigente e dos princípios que a enformam, não há uma «hierarquia de valores» e, portanto, também não existe a noção de «valor supremo», sublinhada, várias vezes, na proposta de lei e da qual decorrem muitas das configurações concretas do diploma.
Por outro lado, não existe a noção de «sacrifício dos interesses individuais a favor do interesse colectivo». A Constituição tem uma formulação e postula aquilo que é um sistema de concordância prática entre interesses que possam conflituar. É, pois, preciso fazer essa concordância e não erigir «valores supremos». Aliás, durante o colóquio, foram feitas perguntas pertinentes como, por exemplo, que significado pode ter esse princípio para a dignidade da pessoa humana; há um «valor supremo» que pode sempre sacrificar a dignidade da pessoa humana? Esta é uma pergunta tremenda!
Em terceiro lugar, resultou uma clara oposição, manifestada por esses professores doutores que participaram no colóquio, ao uso da possibilidade que está na Constituição de equiparação de crimes dolosos a crimes essencialmente militares, fora da situação de guerra; isto é, que em tempo de paz seja possível essa equiparação.
Em quarto lugar, todos os oradores acentuaram como essencial a seguinte componente: que eram necessários esclarecimentos adicionais e que aquela proposta de lei não fazia qualquer sentido sem se conhecer o resto e, em particular, sem se saber como irão funcionar os tribunais militares, designadamente quem iria designar os juizes, quem seriam os juizes, que estatuto teriam e que garantias e, mais, como é que essas garantias vão funcionar. É a velha questão do «depois», que foi muito bem colocada pelo Juiz Conselheiro Luís Nunes de Almeida, ou seja, um coronel que vai fazer uma comissão de dois anos a um tribunal é inamovível durante esse período, mas tem de tratar do futuro, porque depois irá fazer um tirocínio, etc. Pergunto então: há aqui independência? Não estou, evidentemente, a pôr em questão a seriedade pessoal desse coronel, mas o sistema não oferece garantias.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Estas questões essenciais - e foram colocadas muitas mais no colóquio sobre Justiça Militar - não estão minimamente respondidas na proposta de lei tal como ela se apresenta agora, o que me leva a questionar se o profundo trabalho de ciência jurídica, consubstanciado naquele colóquio, em que intervieram os mais reputados especialistas, é completamente indiferente ao Governo.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Muito bem!

O Orador: - Além do mais, pergunto se um debate como este pode realizar-se apenas numa óptica de defesa nacional. Onde é que está o Ministro da Justiça? Não tínhamos de saber qual é a opinião de quem tutela essa componente da organização do Estado?

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - Aliás, também pergunto à bancada do PSD onde é que estão os Deputados da Comissão de Defesa Nacional! Sempre podem responder que não trouxeram o Ministro da Justiça para a bancada do Governo, mas também mandaram embora os Deputados da Comissão de Defesa Nacional!

Risos do PCP.

Sr. Presidente, além do colóquio que, do meu ponto de vista, demoliu a proposta, há um outro facto relevante que é o do processo de revisão constitucional encetado e não concluído. Nesse processo, três partidos - o PS, o PCP e Os Verdes - propuseram acabar com os tribunais militares, com uma pequena divergência: o PCP propunha acabar com os tribunais militares apenas em tempo de paz, e não em tempo de guerra.
De qualquer forma, a proposta foi feita, a alteração vai ser discutida brevemente e, por isso, pergunto: se foi possível viver, durante 13 anos - desde a aprovação da Lei de Defesa Nacional -, com este sistema, por que é que não é possível viver mais um ano ou dois até ser concluído o processo de revisão constitucional e ver como Ficam os tribunais militares na ordem jurídica portuguesa? Qual é a questão?
Finalmente, Sr. Presidente e Srs. Deputados, creio que se o Governo quiser contribuir verdadeiramente para a seriedade do trabalho parlamentar - e é um desafio que lhe faço - deve retirar a proposta, pelo menos da agenda parlamentar. Seria uma atitude séria e que contribuiria para o prestígio desta Assembleia e da actividade que desenvolvemos.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Muito bem!

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O Orador: - Se o Governo não o quiser fazer votaremos contra, pelas razões materiais que já referi, pela inoportunidade deste debate e também pela falta de seriedade do trabalho a que o Governo quer sujeitar a Assembleia.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Condesso.

O Sr. Fernando Condesso (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apreciamos hoje um diploma que é uma proposta de lei de bases da justiça e da disciplina militar.
Há pouco, tentei que o Sr. Deputado Miranda Calha reponderasse algumas palavras que disse na tribuna, na medida em que me parecia confundir uma proposta de lei de bases com uma proposta de autorização legislativa de um ou vários dos diplomas que virão mais tarde, sem dúvida, a esta Casa. No entanto, o que ele disse confirmou-o totalmente.
Penso que o Governo andou bem, ao trazer aqui...

O Sr. Miranda Calha (PS): - Pensa mal!

O Orador: - ... este debate sobre os princípios gerais que hão-de enformar um conjunto tão grande de diplomas, que serão - podemos dizê-lo - os mais importantes em matéria de justiça e disciplina militar.
Em debate estão os princípios orientadores dos futuros diplomas que haveremos de voltar a debater, nas suas diferentes componentes, nesta Assembleia da República. E, contrariamente ao que foi dito pelo Sr. Deputado Miranda Calha, estamos a discuti-los porque é a Constituição que se refere a uma lei de bases, é o artigo 32.º de lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas que se refere a uma lei de bases! Aliás, compreende-se que assim seja: os diplomas são muito importantes e é muito grande o esforço de inovação que, durante todo este período tem vindo a ser desenvolvido - e está hoje, aqui, a ser feito -, no sentido de se enveredar por uma jurisdição militar com características conformadoras da Constituição e dos princípios penais que, efectivamente, dela derivam. Daí a oportunidade e a necessidade deste debate prévio, a que se referiu o Sr. Ministro, que irá condicionar os parâmetros das propostas que surgirão posteriormente.
Portanto, não há aqui um «cheque em branco», há uma proposta de debate a que nenhum dos Srs. Deputados deveria fugir com afirmações e fugas em frente para o debate de diplomas que não estão sobre a Mesa e que, pese embora o facto de muitos destes princípios os condicionarem, iremos debatê-los mais tarde.
A organização militar, o militar enquanto tal, está enformado por um mundo de valores e referências fundamentais, e é isso que aqui está em causa. Não se trata de questões subjectivas - aliás, aproveito para dizer que li os textos dos colóquios que os Srs. Deputados referiram, mas não na estrita medida da perspectiva negadora de tudo o que é inovador e sim no bom sentido - e, provavelmente, não teria sido feita a crítica aqui atribuída ao Sr. Professor Figueiredo Dias se ele conhecesse, tal como os Srs. Deputados já conhecem, alguns desenvolvimentos do que serão os grandes núcleos de crimes que constam do documento que o Governo nos fez chegar, prefigurando já aquela que será a proposta no domínio do código de justiça militar. A proposta não é suficiente, mas teremos oportunidade de a complementar. No entanto, uma coisa é não chegar, outra coisa é criticar tudo, de alto a baixo, em nome de pessoas que, desenquadradamente, fazem afirmações que aqui são repetidas, o que não deveria ser legítimo.
Nesta proposta estão em causa, isso sim, condutas lesivas de bens jurídicos militares. Se o Sr. Deputado reparar nos crimes que aí vêm referidos não pode deixar de concluir desse modo. Há, pois, um enquadramento da justiça e da disciplina militar que decorre das próprias especificidades da organização militar. E isto sem prejuízo do princípio da aproximação ao modelo comum de direito penal e de direito processual penal, que é afirmado.
O código de justiça militar aparece aqui enquadrado ou perspectivado como um código penal que não é um outro direito penal, mas um direito penal especializado, precisamente pelas condicionantes que acabei de referir. Portanto, há aqui um acento de soluções de tipo e pena que se justificam devido à especificidade da matéria.
Conforme foi dito pelo Sr. Deputado Narana Coissoró, e por imposição da própria Constituição, ninguém pode desconhecer o avanço fundamental que representa o facto de se acabar com qualquer tipo de foro militar e perspectivarmo-nos, claramente, por um foro que não é pessoal mas material. Ou seja, o que está em causa são as condutas e não a qualidade militar, enquanto tal.
Claro que há aqui questões que são fundamentais, em face de uma jurisdição militar específica, com um direito perspectivado por e para valores militares, como é o caso do próprio estatuto do tribunal, autónomo em relação à administração militar - não pode deixar de o ser - e do estatuto das magistraturas. Mas isso não passa pela crítica que hoje vi repetida e sobre a qual, há pouco, pretendi também questionar o Sr. Deputado Miranda Calha, que é a das qualificações jurídicas, das especializações jurídicas. Isso não colhe aqui em Portugal, nem tem de colher, como não colhe em outros países, mesmo noutro tipo de jurisdições que não a militar, pois importante é a questão da independência dos juizes, sejam eles de carreira, sejam eles oriundos do próprio meio militar.
Por outro lado, também me parece de salientar a clarificação que fica feita no que diz respeito aos funcionários civis das Forcas Armadas, que têm - tenham de ter - o estatuto dos funcionários da Administração em geral, com as adaptações que têm a ver com a própria estrutura militar.
Entendo que as bases, os princípios gerais que aqui nos são propostos marcam um grande avanço, um avanço inovador, modernizador, em todas estas matérias, e colocam-nos perante dois períodos: o período anterior a toda esta inovação, a toda esta renovação - se bem que imposto pela própria Constituição e pelos princípios constitucionais - e o período que surgirá posteriormente, a partir do desenvolvimento que se fizer destes princípios.
Por isso, o meu grupo parlamentar vai votar favoravelmente esta proposta de lei do Governo

O Sr. Joaquim da Silva Pinto (PS): - Gostei de ouvir os «aplausos» da sua bancada!

O Orador: - Não fui à tribuna recebê-los, Sr. Deputado!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Adriano Moreira.

O Sr. Adriano Moreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Parece-me que o agendamento da discus-

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são desta lei está errado. Ela deveria ser discutida no próximo dia 22, quanto aos seus princípios enformadores, porque se trata de uma matéria que diz respeito ao estado da Nação.

O Sr. Joaquim da Silvo Pinto (PS): - Muito bem!

O Orador: - E o debate desta matéria, no enquadramento do estado da Nação, deveria preceder a formulação do texto - e não estou a pronunciar-me sobre a sua aceitação ou não -, porque estamos a tratar de um tema em que as dúvidas entre as várias correntes do País são enormes. Por exemplo, compare-se o conjunto de dúvidas que hoje aqui foram manifestadas com a unanimidade que rodeou a aprovação da Lei de Defesa Nacional e o clima que vigorou sempre no grupo de avaliação estratégica do Ministério da Defesa Nacional, e veja-se como esse espírito não está hoje presente nesta avaliação da proposta de lei. E porquê? Porque este diploma toma posição em relação a pontos extremamente desafiantes na conjuntura portuguesa, o primeiro dos quais é a definição dos valores essenciais ou fundamentais que a instituição militar deve servir e o segundo, como corolário, o próprio conceito normativo de militar.
Sempre que lidarmos com estas matérias, teremos de definir objectivos e conceitos normativos de militar. Mas, neste momento, estamos seguros sobre objectivos essenciais? Neste momento, em que não sabemos qual é a definição da fronteira do País? Neste momento, em que a fronteira do País é uma fronteira geográfica que não coincide com a fronteira de segurança, com a fronteira económica e com a fronteira cultural? Qual é o objectivo fundamental que se vai entregar à responsabilidade das Forças Armadas?
O segundo aspecto que desejo referir é o seguinte: para definirmos o conceito normativo de militar - e volto a insistir que não estou a exprimir a opinião que poderá ser assumida pela minha bancada relativamente a estas matérias - temos de estar seguros sobre o conceito de dever do serviço militar que vem na Constituição.
Ora, neste momento, provavelmente, a opinião geral encaminha-se no sentido de um serviço de defesa de segurança obrigatório mas não necessariamente de um serviço militar obrigatório. E é completamente diferente o tipo de normativo militar, se disser respeito a umas forças armadas baseadas no serviço militar obrigatório ou a umas forças armadas que sejam, no fundamental ou até completamente, baseadas no voluntariado e no contrato. Não serão, de forma necessária, os mesmos conceitos normativos que estarão em causa num e noutro caso.
Por outro lado, pelo que toca à própria hierarquia, que mudança radical não tem havido nos últimos tempos?! A obediência cega, per inde usque ad cadáver, foi posta em causa pelo Tribunal de Nuremberga. A obediência não existe, quando estejam em causa valores essenciais que respeitem à dignidade humana.
Entre nós, ainda não equacionámos isso, mas os debates em curso, menos nas instâncias do poder do que, por exemplo, na juventude, nas reuniões universitárias, mostram as dúvidas fundamentais que existem a esse respeito.
Por isso - e volto a insistir, sem dizer qual poderá vir a ser a posição desta bancada -, julgo que não foi oportuna a apresentação desta proposta de lei. E não foi oportuna, em primeiro lugar, porque o País passou 10 anos sem ela - desde a Lei de Defesa - e passará bem sem ela e as suas consequências até que haja um novo Governo, saído das próximas eleições. É que nada do que vem nesta lei poderá ser executado durante este período! Por que é que é necessário, em matérias que oferecem tantas dúvidas e que temos debatido em tantos fora, vir definir uma lei de bases? Porque é de uma lei de bases que se trata e da qual não decorre nenhuma autorização para o Governo legislar.
Julgo que, dada a importância da questão que aqui está estabelecida e definida, a ligação que ela tem com conceitos essenciais, designadamente o dever militar, obrigatório ou não, um corpo de exército que tende para ser de laboratório, um corpo de exército que precisa ter noções sobre as fronteiras, que nós não temos ainda estabelecidas, exigiria que este tema fosse abordado num clima de tranquilidade e de horizonte temporal que permitisse à Câmara assumir responsavelmente uma opinião sobre estas matérias.
Devo dizer, seriamente, tendo eu próprio elaborado o parecer da Comissão de Defesa Nacional e procurado fazer uma análise objectiva da estrutura da lei, que mereceu a aprovação unânime da Comissão, que considero que a Câmara não tem nem sequer horizonte temporal . para, responsavelmente, votar esta matéria.
O CDS-PP abster-se-à nesta lei.

Aplausos do PS, do PCP e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Creio que para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Ministro da Defesa Nacional.

O Sr. Ministro da Defesa Nacional: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como sempre, ouvi com a maior atenção o Sr. Prof. Adriano Moreira e estou 100 % de acordo com a questão de fundo que ele coloca quando nos diz que estamos perante valores e questões de Estado, questões essenciais que têm muito mais a ver com o futuro, com a adaptação que todo o sistema jurídico e institucional tem de fazer às novas realidades, às mudanças estratégicas, à nova organização da defesa nacional e das forças armadas, mas, Sr. Deputado, não poderia deixar passar esta oportunidade sem lhe perguntar se temos ou não consciência do que é que são as questões com carência de actualização e de regulamentação que ainda existem no ordenamento jurídico penal e disciplinar militar.

O Sr. Miranda Calha (PS): - Não é essa a questão!

O Orador: - É que ou queremos acabar, por exemplo, com a possibilidade de um militar ser afastado das forças armadas pela aplicação de sanções extraordinárias independentemente de processo disciplinar, com a existência de presunção da verdade na participação de superiores hierárquicos ou com o processo disciplinar só com as fases de instrução e decisão e sem uma fase de defesa do arguido. Esta é toda uma série de questões essenciais para a salvaguarda do direito e da justiça que carecem há muito tempo de tratamento.

O Sr. João Amaral (PCP): - Só no dia 16 de Junho é que se lembrou disso? Só agora é que se lhe apertou o coração?

O Orador: - O Governo teve oportunidade de, há quase dois anos, apresentar nesta Câmara a sua proposta de lei de bases. Daí perguntar-lhe também: não reconhece que para que se possa andar para a frente em matén-

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as de tamanha importância como esta não seria recomendável que avançássemos degrau a degrau, de uma forma gradativa, neste momento corrigindo de forma clara estas deficiências, estas anomalias, introduzindo-as nos códigos respectivos e iniciando - estou 100 % de acordo com o Sr. Deputado - um debate sério, profundo, reflectido, sobre o futuro, quer quanto aos tribunais militares, quer quanto à justiça militar, quer quanto às regras essenciais da disciplina das forças armadas?
Estou de acordo consigo, mas questiono-o sobre se não considera urgente, imprescindível e inadiável proceder rapidamente à correcção de anomalias tão graves como aquelas que acabei de mencionar?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Adriano Moreira.

O Sr. Adriano Moreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, penso que o Sr. Ministro me dirigiu um pedido de esclarecimento e não quero perder a oportunidade de continuar com este diálogo, aquela sólida cooperação que todos os representantes desta Câmara têm dado ao Ministério no Grupo de Reflexão Estratégica.
Sr. Ministro, não tenho a menor dúvida de que o país precisa de resposta sobre essas questões, e resposta urgente. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Também nunca me apercebi de dúvidas sobre esse assunto nos grupos de trabalho, sejam comissões, seja o Grupo de Reflexão Estratégica, vindas de qualquer das formações parlamentares. Todas comungam nisso.
Não é essa, portanto, a questão. Nesse ponto o Sr. Ministro veio ao encontro de uma preocupação do país. Foi por isso que eu há pouco disse que, em vista do calendário, e trazida a questão neste momento, ela devia ser analisada no dia em que vamos discutir o estado da Nação porque, apesar da urgência desta matéria, não demos resposta a esses problemas até hoje nem vamos ter possibilidade de a dar durante a vigência deste Parlamento.
Vamos, pois, com humildade, aceitar que há problemas para os quais não assumimos uma resposta e vamos, com humildade, assumir também que não temos horizonte temporal para decidir esta questão com a profundidade, o sentido de responsabilidade que ela exige porque estamos a lidar com pontos essenciais da organização do Estado.

O Sr. José Vera Jardim (PS): - Ora aí está!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, apesar de não ter ficado claro a que título interveio o Sr. Ministro da Defesa Nacional, tem a palavra, para um pedido de esclarecimento, o Sr. Deputado Miranda Calha.

O Sr. Miranda Calha (PS): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Defesa Nacional, ouvi a sua intervenção, que foi extremamente interessante, mas deveria ter sido feita no princípio da legislatura. Não é agora, nesta altura, que o Sr. Ministro pode chegar aqui e dizer-nos que esta é uma matéria sensível, que há pormenores relevantes, que há matéria importante que tem de ser analisada, que há anomalias que persistem em termos de legislação, não pode, a oito dias do final da legislatura, vir-nos dizer alguma coisa sobre essa matéria! Não pode ser!
Portanto, há aqui uma situação completamente citada em relação ao processo e em relação à maneira como se conduziram as questões relacionadas com o Código de Justiça Militar.
Por outro lado, quando V. Ex.ª invoca a necessidade de resolver anomalias, pergunto-lhe concretamente: que anomalias é que V. Ex.ª vai resolver com esta lei de bases se o Código de Justiça Militar é uma lei orgânica que tem de ser analisada na Assembleia da República? Mesmo a questão do RDM tem de ser, se calhar, analisada na própria Assembleia da República! A orgânica dos tribunais militares também tem de ser analisada na Assembleia da República! Objectivamente, o que é que o Sr. Ministro vai resolver com esta lei de bases? V. Ex.ª, ao apresentar-se com essas preocupações, deu uma ideia pia sobre esta matéria mas o que demonstra, acima de tudo, é que não há uma ideia concreta sobre a materialização destas ideias, destes objectivos em termos do próximo futuro.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Ministro, tenho pena que não tenha dito isso há quatro anos, e se calhar há oito anos, porque, sistematicamente, esta matéria tem sido anunciada no programa de governo do PSD, mas sistematicamente ficou por resolver. E mais uma vez vai ficar por resolver! Aliás, penso que seria importante da sua parte que, perante as opiniões aqui expendidas e também por aquilo que se passou no colóquio parlamentar sobre justiça militar, retirasse esta matéria de apreciação porque, objectivamente, não há razão para ela ser tratada nesta fase do processo.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, havendo mais um pedido de esclarecimento do Sr. Deputado João Amaral, V. Ex.ª deseja responder já ou no fim?

O Sr. Ministro da Defesa Nacional: - Respondo já, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Então, tem a palavra o Sr. Ministro.

O Sr. Ministro da Defesa Nacional: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Miranda Calha, compreendo, perfeitamente, as razões que nos levam a cair neste tipo de debate: estamos a analisar questões de timing em vez de analisarmos questões de substância.

O Sr. Miranda Calha (PS): - Mas qual substância?

O Orador: - Isso é grave Sr. Deputado! E é-o pela seguinte razão: deixei há pouco muito claro - e creio que ninguém me contestou - que, no sistema jurídico-constitucional, tal como vem expresso na Constituição da República e na Lei de Defesa Nacional, esta lei de bases, por exemplo, é fundamental para que, na sua decorrência, se aprove o regulamento de disciplina militar. Ora, bastaria aprovarmos este regulamento...

O Sr. Miranda Calha (PS): - Mas V. Ex.ª vai aprová-lo até ao final da sessão legislativa?

O Orador: - Naturalmente que...

Protestos do PS.

O Sr. Miranda Calha (PS): - Vai aprová-lo?

O Orador: - Sr. Deputado, peço desculpa, mas assim não sei responder.

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Compreendo que a sua opinião não seja essa, mas, no meu entendimento - e julgo que com fundamento jurídico, legal e constitucional -, o Governo, uma vez aprovada esta lei de bases, com a pormenorização e com o texto do seu artigo 41.º, está em condições de aprovar imediatamente o diploma que os Srs. Deputados conhecem há vários meses e que é o novo Regulamento de Disciplina Militar...

O Sr. Miranda Calha (PS): - E o Código de Justiça Militar?

O Orador: - ... que está em vosso poder, o único que contempla e corresponde a um pedido efectivo de autorização legislativa.
Portanto, o Sr. Deputado não tem razão quando diz que o Governo não traz os documentos que devem decorrer da lei, porque traz, na verdade, o Código de Disciplina Militar, que foi entregue na altura própria e que, caso a proposta de lei seja aprovada, iremos, na minha opinião, aprovar por via de decreto-lei.
Em relação aos restantes elementos, ficou muito claro que serão apresentados a este Parlamento, nomeadamente o Código de Justiça Militar e a Lei Orgânica dos Tribunais, pois está bem claro que não são da competência do Governo, mesmo que para eles obtivesse autorização legislativa.
Portanto, temos de ler esta proposta nos seus termos correctos, completos e substantivos e não nos perdermos, se me permite a crítica, em questões de timing ou de oportunidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro da Defesa Nacional, vou ser muito breve, porque tenho o tempo mais do que esgotado. No entanto, não podia deixar de referir-me às questões de oportunidade que o Sr. Ministro levantou, como argumento para a necessidade de aprovar agora esta lei. Foi o Sr. Ministro que o disse! Não foi a Assembleia que enveredou pelas questões de timing.
A este respeito, quero fazer-lhe duas perguntas.
Em primeiro lugar, gostava que me dissesse se é verdade ou não que o seu partido, o PSD, e nomeadamente o Sr. Ministro, ocupam o Ministério da Defesa Nacional desde a aprovação da Lei de Defesa Nacional. Isto é, desde Dezembro de 1982 foram sempre ministros do PSD...
Ó Sr. Secretário de Estado da Defesa Nacional, deixe de segredar ao ouvido do Sr. Ministro, porque não fica bem. Parece que está a dar recados ao Sr. Ministro! Isso faz-se de uma maneira mais discreta!
Portanto, a primeira pergunta é esta: é ou não verdade que a responsabilidade de se chegar, 13 anos depois da Lei de Defesa Nacional, a esta situação, é do PSD?
A segunda pergunta tem a ver com o conteúdo material das alterações. É ou não verdade que estas bases, no que toca à justiça, só têm execução a partir da próxima legislatura, quando a Assembleia aprovar as leis subsequentes? É verdade ou não que o Sr. Ministro, depois de a Assembleia dar por fim os seus trabalhos, mesmo que defendesse a tese, como defendeu agora; de que podia fazê-lo, não está em condições políticas de aprovar um documento como o Regulamento de Disciplina Militar sem ter o controlo da Assembleia?
A minha tese é a de que o Governo não pode fazê-lo, mas, admitindo mesmo que o Governo quisesse fazê-lo, acha, do ponto de vista da ética política, que é aceitável que o faça quando a Assembleia já não funciona, quando já programou que não reúne?
Quero colocar-lhe estas questões, porque o problema central que se põe, desde sempre, é o do relacionamento entre o Governo e a Assembleia. Já não é a questão da instituição militar!...

Aplausos do PCP e do PS.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Adriano Moreira.

O Sr. Presidente: - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Ministro da Defesa Nacional.

O Sr. Ministro da Defesa Nacional: - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Sr. Deputado João Amaral, diria apenas que, de facto, não teremos conseguido - defeito meu, com certeza - transmitir-lhe o efeito útil e imediato desta proposta de lei.
Na verdade, deixei claro que ela confina as opções político-legislativas - que são estas e que certamente não serão as suas, não poderiam ser - do Governo, o qual, naturalmente, tem decisões diferentes das do Partido Comunista. O Sr. Deputado pode não estar de acordo - e naturalmente não está -, mas a questão consiste em saber se as opções são ou não essenciais para que, através do tal efeito útil, possam vir a resolver-se problemas que efectivamente existem, que carecem de regulamentação e para os quais esta lei dispunha já de uma capacidade e de uma base normativa que permitiriam ao Governo vir a regulamentar nomeadamente a disciplina militar, em termos de a actualizar e de a tornar mais adequada ao sistema jurídico vigente.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, terminou o debate, na generalidade, da proposta de lei n.º 88/VI.
Vamos, de seguida, apreciar, também na generalidade, o projecto de lei n.º 530/VI - Protecção aos animais (PSD, PS, PCP, CDS-PP e Deputado independente Mário Tomé).
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Maria Pereira.

O Sr. António Maria Pereira (PSD): - Sr. Presidente, Sr.ªs Deputadas, Srs. Deputados: Este projecto de lei tem uma longa história. Arrasta-se nesta Assembleia há 10 anos, ao longo de três legislaturas. Os pareceres das numerosas comissões consultadas - cerca de 10 ou 11 - foram sempre favoráveis. Na última legislatura, chegou a haver discussão na generalidade, com baixa às comissões competentes. No entanto, com o termo da mesma, o projecto de lei caducou, tal como neste momento - já o percebi - se pretende que aconteça com este.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - Na realidade, há interesses que não reflectem transparência e se opõem a que este projecto de lei de protecção aos animais, à semelhança das leis existentes em todos os países da União Europeia sobre esta matéria, seja, alguma vez, votado por esta Assembleia.
Já na presente legislatura o projecto foi retomado na sua forma inicial, com 128 artigos, a maioria dos quais ré-

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produzia o disposto nas convenções internacionais e directivas comunitárias sobre protecção a animais.
Porquê esta metodologia, que entretanto abandonei? Porque o primeiro subscritor do projecto, que sou eu, tinha como objectivo conseguir um verdadeiro código dos direitos dos animais, que permitisse a qualquer autoridade pública, a qualquer polícia, diante de um caso concreto, saber se estava ou não perante uma violação a esse código. Portanto, a metodologia que inicialmente segui consistiu em transpor para esse código toda a legislação avulsa que existia, nomeadamente convenções internacionais e directivas comunitárias.
Ora, esta metodologia é adoptada em numerosos sectores do Direito, e qualquer jurista sabe que assim é. Por exemplo, o Código de Propriedade Industrial, recentemente publicado, contém não só disposições da lei portuguesa como também todas as disposições convencionais aprovadas por Portugal. Deste modo, temos um Código da Propriedade Industrial que abrange tudo aquilo que existe nessa área. O mesmo acontece com o Código dos Direitos de Autor, que contém não só a matéria convencional mas também toda a restante matéria para além desta,
Em relação a este código dos direitos dos animais, pretendi fazer o mesmo. Mas, por razões variadas, nomeadamente porque ficaria muito extenso, concordei com alguns reparos e algumas críticas formuladas, designadamente pelo Sr. Presidente da Assembleia da República e pelo Dr. António Costa, que foi o relator do projecto de lei, pelo que esse código, que tinha 128 artigos, transformou-se num projecto de lei-quadro, com apenas 12 artigos, que contêm as disposições básicas da protecção dos animais. E isto, simplesmente, que está em discussão! É isto que provoca ainda todos os problemas que vi surgirem à última hora!
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não admito que se diga que este projecto de lei-quadro está mal elaborado, apesar de poderem não concordar com ele.
Por exemplo, dispõe-se que acaba o tiro aos pombos. Quem gostar de tiro aos pontos, votará contra, e, quem não gostar, votará a favor do articulado. O mesmo se passa quanto as corridas de galgos com lebres vivas, desporto extremamente cruel, que está a acabar em toda a parte e que em Portugal recomeçou há dois anos. Quem: não concorda, vota contra, quem concorda, vota a favor.
Apesar disso, não se diga que o projecto de lei está mal elaborado. Ele foi feito por mim, que sou jurista, foi visto pelo Dr. António Costa, um ilustre jurista e relator nomeado pela comissão competente, inclusive foi visto pelos serviços da Presidência da Assembleia da República. Em suma, vários juristas estudaram este projecto de lei e não fizeram qualquer reparo ao articulado do ponto de vista jurídico, embora, evidentemente, admita que haja quem não esteja de acordo e vote contra. Quem não está de acordo, vota contra! É tão simples como isto!
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Passo a enumerai, muito rapidamente, os princípios gerais deste projecto de lei, para verificarem que não há qualquer razão para todo o barulho que tem sido feito.
No artigo 1.º enumeram-se os princípios gerais, nos quais se proíbe, em termos genéricos, a crueldade com os animais, incluindo o seu abandono, concretizando-se depois algumas actuações particularmente cruéis. Entre essas actuações, a alínea g) do n.º 3 do artigo 1.º proíbe a caça a cavalo. Aceito que esta proibição seja polémica, mas, em relação a ela, há que observar o seguinte: antes de mais, em nada se toca no regime geral da caça, para aqui trata-se apenas de uma modalidade particularmente cruel da caça à raposa e às lebres, a qual obriga os animais a correrem durante horas, perseguidos por cavaleiros e cães, até que, quando exaustos, perdem as forças e são dilacerados pelos mastins que os perseguem.
Por se tratar de uma modalidade particularmente cruel, a caça a cavalo foi proibida em numerosos países de Comunidade Europeia, designadamente na Alemanha, na Grécia, na Itália, na Holanda, na Dinamarca e no Grão-Ducado do Luxemburgo. Na Itália e nos Países-Baixos, os cavaleiros e os seus cães perseguem um rasto artificial. Na Inglaterra - onde esta modalidade é tradicional -, todos os anos se assiste a um grande debate público sobre a questão, em que os amigos dos animais têm vindo a ganhar terreno e já conseguiram que na Escócia fosse proibido o uso de cães para caçar veados.
Em Portugal, só duas ou três dezenas de pessoas praticam este desporto. Os caçadores são 5 % dos portugueses mas, friso, os caçadores a cavalo são apenas duas ou três dezenas de pessoas. Para não se privarem essas pessoas do seu desporto, poder-se-á perfeitamente, tal como acontece na Itália e na Holanda, substituir o animal vivo por um rasto artificial. É tudo o que se pretende.
Na alínea O do n.º 3 do artigo 1.º - outro ponto polémico -, proíbem-se as corridas de cães com lebres vivas. Trata-se também de um desporto extremamente cruel, proibido na generalidade dos países da União Europeia, onde, nas corridas de galgos, se usa também um rasto artificial. Em Portugal, de há três anos para cá, as lebres vivas foram introduzidas nas corridas de galgos, o que não tem qualquer justificação, em minha opinião. Os amadores desta corrida poderão voltar a usar o rasto artificial, como se fazia até há três anos. É isto o que se propõe neste projecto de lei.
Finalmente, na alínea j) do n.º 3 do artigo 1.º, proíbe-se o tiro aos pombos, modalidade que está também proibida em numerosos países da União Europeia, designadamente em Inglaterra, na França e no Grão-Ducado do Luxemburgo. Nestes países, o pombo vivo é substituído por um alvo lançado por um aparelho, solução em que se obtém o mesmo resultado de pôr à prova a perícia dos atiradores, sem o aspecto cruel que reveste o abate do pombo acabado de ser liberto.
Estas proibições acompanham, portanto, um movimento em curso na União Europeia no sentido da abolição dos desportos cruéis, correspondendo assim ao apelo contido na Declaração Anexa ao Tratado de Maastricht, para que os países membros promovam o bem-estar dos animais.
Os n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º contemplam as touradas. Sosseguem os aficionados: as touradas vão continuar no estilo português e em nada se altera o que está fixado. Apenas se exige que seja seguida a tradição portuguesa, como sempre aconteceu até há dois anos. Na verdade, apenas há dois anos foi introduzida em Portugal uma «sorte» extremamente bárbara, a «sorte das varas», que consiste em pôr na praça um cavalo de olhos vendados, montado por um sujeito com uma puia compridíssima, que aguarda o touro e o espeta, para o sangrar, esgravatando na ferida do touro, até este ficar totalmente ensanguentado e sem forças, para ser, então, toureado.
Antes de mais, isto é, em minha opinião, extremamente cruel e bárbaro e não tem comparação com a corrida à portuguesa. Depois, isto não faz parte da corrida à portuguesa, é uma «sorte» espanhola. Nós, que constantemente invocamos a nacionalidade e o nacionalismo - e acho muito bem! -, não podemos admitir que se espanholize a corrida à portuguesa, através da «sorte de varas». Aliás,

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todos os ministros e secretários de Estado da Cultura, desde o 25 de Abril, proibiram a sorte de varas, tendo sido autorizada apenas há dois anos, a título excepcional, e agora está a vulgarizar-se, pois são realizadas, constantemente, corridas de touros com «sorte de varas». Não podemos consentir nesta crueldade, que é uma espanholização da tourada à portuguesa.
Portanto, esta é, digamos, a única restrição que existe quanto ao que se passa nas touradas. Proíbe-se a morte do touro na praça, mas isso já acontece desde 1928, pelo que não constitui uma novidade. O outro ponto que se acrescenta, em relação às touradas, é a obrigação de o touro, na corrida à portuguesa, ser abatido logo após ser corrido. Porquê? Porque, quanto ao sofrimento do touro, o período que se segue é extremamente doloroso, o touro fica doente e, por isso, a carne que resulta do touro ferido com as bandarilhas, para aproveitamento dos cidadãos, não está, por vezes, em condições de ser consumida, razão pela qual se exige que o touro seja abatido de seguida. Como é que isso se fará? É uma questão para ser regulamentada. Não compete a uma lei-quadro dizê-lo.
Quanto a touradas, nada mais há a dizer. Elas devem continuar em Portugal, segundo a tradição portuguesa. E ponto final.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Sr. Deputado, peço-lhe que abrevie, pois já excedeu o tempo de que dispunha.

O Orador: - Serei muito rápido, Sr. Presidente.
Relativamente a transportes públicos, o artigo 8.º termina com uma situação profundamente injusta, que cria um problema insolúvel a milhares de pessoas, sobretudo às de pequenas posses, que não têm automóvel próprio, as quais, em virtude de uma incompreensível postura camarária, estão impossibilitadas de transportar num táxi o seu animal de estimação para o levar a um veterinário, quando ele está doente, mesmo com a concordância do motorista. Portanto, acaba-se também com esta proibição, que me parece absurda. As sanções previstas no projecto, aspecto aqui bastante discutido há quatro anos, correspondem sensivelmente à média das praticadas noutros países ocidentais, e, quanto às penas privativas de liberdade, correspondem a cerca de metade das inicialmente previstas nos anteriores projectos.
Essas sanções são, em regra, aplicadas em alternativa com a pena de multa, o que, nos termos do artigo 70.º do novo Código Penal, significa que o tribunal aplicará praticamente sempre a pena pecuniária em vez da pena de prisão.
O n.º 5 deste artigo 10.º, ao dispor que as infracções às disposições das convenções internacionais ratificadas por Portugal ou das directivas comunitárias transpostas, sobre a protecção a animais, serão punidas com a pena de prisão até seis meses, ou, em alternativa, com pena de multa pelo mesmo período, vem colmatar uma lacuna do legislador, consistente em que grande número desses diplomas legais não são acompanhadas de sanções para a sua violação. Portanto, o que acontece é que há cerca de oito convenções do Conselho da Europa, sobre a protecção a animais, que foram aprovadas aqui na Assembleia da República, que estão em vigor, mas nas quais o poder legislativo se esqueceu de prever sanções, pelo que não têm qualquer eficácia. O mesmo acontece com grande parte das directivas comunitárias, razão pela qual este projecto de lei estabelece uma sanção geral, que é a pena de prisão até seis meses, em alternativa com a pena de multa pelo mesmo período. O que é que isto significa, em termos práticos? Que o juiz, uma vez que a aplicação é alternativa, nos termos do artigo 70.º do novo Código Penal, é obrigado a aplicar a pena de multa e não a pena de prisão. É esta a filosofia do nosso Código Penal.
Finalmente, quanto às associações zoófilas, o artigo 11.º passa a atribuir-lhes legitimidade para intervir judicialmente nos processos relacionados com a violação da lei de protecção a animais, isentando-as de custas e impostos de justiça.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A protecção aos animais é, hoje, um dado irreversível da cultura dos povos, em particular da cultura ocidental.
Por isso, foi promulgada, em 1978, na UNESCO, a Declaração Universal dos Direitos do Animal; por isso, em Declaração anexa ao Tratado de Maastricht, como há pouco referi, se convidam os Estados membros a «terem plenamente em consideração, na elaboração e aplicação da legislação comunitária, o bem-estar dos animais»; por isso, quer o Conselho da Europa, através de várias convenções, quer a União Europeia, através de numerosas directivas, se têm preocupado, e muito, com a questão da crueldade com os animais; por isso, em todos os países civilizados, há leis de protecção aos animais. Só em Portugal tem faltado, até agora, uma lei deste tipo!
Esta inadmissível lacuna, que nos coloca, neste aspecto, ao nível dos mais atrasados países do mundo, deverá terminar.
Não podemos consentir que, em Portugal, se continue a torturar animais impunemente e que, como com frequência tem acontecido, os juizes a quem foram submetidos casos de crueldade com animais, para julgamento, se declarem impotentes e absolvam os réus por falta de lei aplicável!
É uma questão cultural de ordem ética que está em causa. E é precisamente à luz da ética que deve entender-se a obrigação, que todos temos, de não torturar animais gratuitamente e de, na medida do possível, reduzir o seu sofrimento. É o objectivo deste projecto de lei.

Vozes de auguras Deputados do PSD: - Muito bem!

Aplausos do CDS-PP.

O Sr. Presidenta (Adriano Moreira): - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado José Reis Leite.

O Sr. José Reis Leite (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado António Maria Pereira, gostaria de perguntar-lhe se, como autor deste projecto de lei, estaria de acordo com a inclusão de um aditamento ao artigo 4.º que salvaguardasse a situação específica que se vive na Região Autónoma dos Açores relativamente às matérias de tauromaquia. Se o Sr. Deputado concordar com isto, farei entrega na Mesa de uma proposta de aditamento a este projecto de lei.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado António Maria Pereira.

O Sr. António Maria Pereira (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado José Reis Leite, efectivamente, não pensei nas tradicionais touradas à corda que se praticam nos Açores. Por isso, não as contemplei no articulado. Porém,

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quero dizer que estou perfeitamente de acordo em excluir do regime previsto no articulado as touradas à corda praticadas nos Açores, em que não há bandarilhas.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Rosa Albernaz.

A Sr.ª Rosa Albernaz (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A Declaração Universal dos Direitos do Animal, aprovada em 1978 no âmbito da UNESCO, diz «que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das espécies no mundo; que todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie; que nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a actos cruéis».
Este é o preâmbulo com o qual concordamos plenamente e pensamos que se deve legislar sobre esta matéria, como o fizeram diferentes Estados europeus e diversas organizações internacionais, designadamente o Conselho da Europa e a Comunidade Europeia, que adoptaram disposições de protecção aos animais e de onde resultaram várias recomendações e directivas comunitárias neste sector.
Tendo em conta a importância da matéria, os valores que animam o projecto e o vasto consenso político que o mobiliza, o Partido Socialista é favorável à aprovação deste tipo de legislação, considerando, contudo, que deve baixar à Comissão de Administração do Território, Equipamento Social, Poder Local e Ambiente, para, de uma forma mais adequada, se efectuarem melhorias, pois pensamos que se deve atender a algumas realidades do nosso país.
A posição do PS nesta discussão é igual à que teve no discurso do projecto de lei n.º 266/V. Nessa discussão dissemos que somos por um equilíbrio que não torne desproporcionado o tratamento legalmente exigido parti os animais, em comparação com as condições de vida do homem na terra.
Somos por um equilíbrio que não queira resolver apenas pela via da lei um comportamento humano, que deverá resultar, sobretudo, numa mudança de mental idades e numa maior sensibilização da comunidade nacional para com a protecção dos animais.

Vozes do PS: - Muito bem!

A Oradora: - Por isso, é natural que reafirme que, para nós, socialistas, o quadro de protecção animal se deve fazer no cenário desse equilíbrio a que já aludimos.

Vozes do PS: - Muito bem!

A Oradora: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: No início da minha intervenção, solicitei que este projecto da lei fosse enviado à Comissão respectiva, pois pensamos que, quanto às penas aplicáveis a quem pratique malfeitorias sobre animais, importará privilegiar as penas ressocializadoras, de prestação de trabalho à comunidade, em desfavor de soluções meramente penais. As medidas de prestação de trabalho à comunidade têm um sentido pedagógico, que deverá ser privilegiado em detrimento de uma maior sobrecarga do sistema prisional, além, das consequências burocratizantes do próprio sistema judicial. Somos, pois, apologistas de uma lei simples, que possa ser aplicada para pôr fim ao tal atraso e degradação que existe em Portugal, como o afirma a introdução deste projecto de lei.

Vozes do PS: - Muito bem!

A Oradora: - Outro ponto que pensamos merecer uma atenção mais cuidada diz respeito à eliminação e identificação de animais errantes. Pensamos nós que, neste ponto, haveria necessidade de analisar melhor os artigos 6.º e 7.º, pois poderá levar a interpretações incorrectas e a uma violação quanto ao espírito deste projecto de lei, assim como contemplar mais propostas concretas em relação a estes animais, para que a sua eliminação não se faça, pura e simplesmente, sem que haja um esforço para encontrar alternativas. Essas alternativas podem passar, por exemplo, por um apoio, por parte das autarquias e poder central, às associações protectoras dos animais, que fazem um enorme esforço para conseguirem alimentar, tratar e procurar lares para os animais recolhidos. Há necessidade de legislar mas também há necessidade de apoiar todas as associações que desenvolvam trabalho na defesa dos direitos dos animais.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como já afirmámos, para nós é necessário procurar e encontrar um ponto de equilíbrio em matéria de protecção de animais, como, de resto, noutras temáticas, em particular na área do ambiente e da preservação das espécies.
Na preservação das espécies pensamos que há necessidade de afastar duas posições radicais: a primeira, a da reposição, sem mais, da vida natural, como se fosse possível apagar a história, anular a técnica e impedir o avanço criativo do homem; a segunda, a da crença na técnica, na ciência ou na sorte, o que, no caso vertente, implicaria tudo deixar correr, porque os animais lá iriam sobrevivendo aos maus tratos do homem. Por isso pensamos que em relação às espécies de animais em perigo de extinção deveria este projecto de lei ser mais completo e mais preciso nas medidas de protecção que protagoniza.

O Sr. José Vera Jardim (PS): - Muito bem!

A Oradora: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Cabe a todos nós mas principalmente ao poder central colocar em prática um dos pontos da Declaração Universal dos Direitos do Animal, quando diz «que a educação deve ensinar, desde a infância, a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais».
Esperamos ver no poder executivo maior dinamismo e mais acção, pois tem condições para promover campanhas e acções de informação e para apoiar as associações de protecção do animal, no sentido de criar uma nova consciência cívica e uma nova consciência pedagógica perante os direitos do animal, porque sobretudo os jovens de hoje não compreenderão a inacção perante a realidade da vida e dos valores naturais.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em primeiro lugar, quero felicitar o Sr. Deputado António Maria Pereira pela tenacidade, pela

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firmeza das suas convicções e também por este combate que vem travando ao longo de anos, para que, efectivamente, a Assembleia da República vote uma lei com este articulado ou com outro, se não gostarem deste, mas que, substantivamente, proteja os animais.
Se acham que as penas devem ser brandas; se estão aqui alíneas ou artigos que devem ser eliminados e, por outro lado, se a dor dos animais deve ser suavizada; se nos chocam alguns dos aspectos com que nos deparamos todos os dias em todo o lado, quando vimos os animais barbaramente maltratados ou mesmo mortos; se tudo isto nos choca, se tudo isto é preciso ser evitado, vamos votar a lei.
O problema do Sr. Deputado António Maria Pereira, como o meu ou o de todos aqueles que são amigos dos animais, não é que votem esta lei concreta mas, sim, que votem uma lei que proteja os animais e, para tanto, apresentem propostas que sejam do agrado, pelo menos, da maioria desta Câmara.
Sr. Presidente, quando vejo este projecto de lei assinado por Deputados desta Casa, como, por exemplo, os Srs. Deputados Macário Correia, Pacheco Pereira, Cecília Catarino, Manuela Aguiar, Rui Machete, Fernando Amaral, Fialho Anastácio, Manuel dos Santos, José Lello, António Martinho, Rosa Albernaz, Raul Rego, Marques Júnior, Almeida Santos, Alexandrino Saldanha, Paulo Rodrigues, eu próprio, Helena Barbosa, Mário Tomé e mais seis assinaturas, com tão ilustres Deputados desta Casa, tirando a minha pessoa,...

Vozes do PSD: - Não apoiado!

O Orador: - ... pergunto se estes Deputados, da categoria de um Almeida Santos, de um Fernando Amaral, de um Macário Correia ou de um Rui Machete, fizeram isso para brincar com o Sr. Deputado António Maria Pereira, para brincar com esta Casa, para brincar com animais ou para satisfazer um mero desejo lúdico de pôr uma assinatura num papel qualquer ou de assinar de cruz um projecto de lei!
Quando pessoas tão ilustres assinam um documento como este articulado e com todas estas penas, estão a praticar um acto responsável, estão a fazer um projecto de lei que ficará nos arquivos desta Assembleia, vinculando esta Câmara, quer, efectivamente, o tenham feito com consciência, quer como uma mera brincadeira parlamentar. Não creio que qualquer destes Deputados tenha aposto a sua assinatura sem saber o que, efectivamente, pretendia, só por brincadeira!
Em segundo lugar, Srs. Deputados, agora que começa o verão e vamos atravessar as auto-estradas, todos nós veremos centenas de cães largados nelas para serem atropelados.
Existem centenas de animais que fizerem companhia aos seus donos e às suas crianças - os «lulus» e os «pupus» que compraram em todo o lado, pagando centenas de contos - que, depois, por não terem paciência, não terem a quem os deixar e não quererem privar-se de gozar férias, são deitados em plena auto-estrada, para serem atropelados ou mortos. Estes indivíduos vão de alma tranquila, às gargalhadas, para as suas merecidas férias, sem quererem saber se atrás deles vem algum carro que ceifa a vida desses seres vivos.
Em terceiro lugar, quero perguntar se aquele que mata com crueldade um animal deve ficar impune ou se aquele que tem o prazer mórbido de fazer todas as espécies de crueldades aos animais deve merecer da parte de todos os portugueses apenas um encolher de ombros e a seguinte observação: «Foi um maluco que fez isto, não vale a pena lutar mais contra isso». Penso que não! Penso que se trata de um problema ético e de um problema de educação!
Pode ser que muitos dos actos que aqui estão originem gargalhadas! Lembro-me da intervenção do Dr. Leonardo Ribeiro de Almeida, quando fez aqui um número, digamos assim, sobre uma pulga e não sei quê, sobre uma barata ou sobre...

Vozes do PSD: - Uma mosca!

O Orador: - ... uma mosca... Tratou-se de uma intervenção para fazer rir toda gente, mas que nada tinha de substancial. Foi fazer pouco daqueles que assinaram esse diploma!
Eu, como subscritor deste diploma, fi-lo em consciência, li-o e, quando o assinei, tomei a responsabilidade de tudo o que nele está escrito, e não permito a ninguém que eu e todos aqueles que aqui apuseram a assinatura sejamos considerados uns parvos, uns papalvos, uns irresponsáveis, que trouxemos a esta Câmara um articulado que não merece à vossa atenção. Se o fizemos foi porque tínhamos a plena consciência de que estávamos a contribuir para um acto de justiça para com os animais.
Como já aqui foi dito. há uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais e um organismo como a UNESCO não faz actos irresponsáveis, não faz actos para fazer rir o mundo. Há muitas outras coisas para fazer rir o mundo! A UNESCO, naturalmente, fez uma Declaração dos Direitos dos Animais, como fez uma Declaração sobre os Direitos da Criança, como fez uma Declaração dos Direitos do Homem, como fez uma Declaração dos Direitos dos Refugiados, como fez uma Declaração dos Direitos dos Prisioneiros de Guerra, mas, quando se fala na Declaração dos Direitos dos Animais, há gente que ri e diz que é para deitar ao lixo.
Ora, organismos como a UNESCO devem merecer a nossa atenção e o nosso respeito. E as pessoas que fizeram e aprovaram a Declaração dos Direitos dos Animais, as que a assinaram e as que se bateram para que ela fosse cumprida, tal como deve ser cumprida a Declaração dos Direitos dos Prisioneiros de Guerra, dos Refugiados, dos Feridos, dos Deficientes, etc., devem merecer o mesmíssimo respeito que merecem todas as outras que se batem pelas outras categorias de declarações de Direitos. E isso que está em causa e é isso que queremos!
O que nós, Deputados que assinámos esse diploma, dizemos é que, se não gostam deste projecto de lei, apresentem outras propostas. Para quê baixar à Comissão? Para passar para outra Legislatura? Isso é cobardia! É uma cobardia dizer que baixa à Comissão em vez de dizer: «Nós não queremos este diploma, andámos a brincar com o Dr. António Maria Pereira, andámos a brincar com o Dr. Rui Machete, andámos a brincar com o Dr. Fernando Amaral, andámos a brincar com todos os Deputados que assinaram esse projecto de lei, porque realmente é essa a nossa consciência. Nós não queríamos nada disso, o que queríamos era satisfazer um desejo do Dr. António Maria Pereira, que nos anda a 'chatear' para assinarmos este diploma e, por isso, aproveitámos o último dia para o mandar para o cesto do lixo». Eu não vou nisso, eu não farei isso, porque quero respeitar o Dr. António Maria Pereira, quero respeitar todos os Deputados que assinaram este projecto de lei, quero respeitar esta Câmara que aceitou e agendou este projecto de lei.

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Quero prestar homenagem a todos aqueles que, firmes nas suas convicções, digam: «O que aqui está é um acto de ética! É um acto profundamente humano! É um acto profundamente cultural! É nossa obrigação tratar deste assunto e não relegá-lo para o cesto do lixo, através do envio para a Comissão, no fim de uma legislatura, para o remeter para a caducidade deste projecto de lei!» B isto repete-se anos após anos, para que toda a gente vá de consciência tranquila a dizer: «derrotámos, mais uma vez, o António Maria Pereira. Gozámos com ele e vamos todos agora matar os animais! Vamos todos tratar os animais como entendemos! Vamos fazer tudo quanto pudermos fazer, com toda a barbaridade, com toda a crueldade, porque não há ninguém que ponha cobro a estes nossos actos». Não sou capaz de dizer isto, não sou capaz de tomar, a não ser como uma acto de barbárie parlamentar, aquilo que se está a fazer a este diploma legal, já há duas legislaturas.
Portanto, cada um que tome a responsabilidade de dizer que está a brincar com os seus colegas, com o António Maria Pereira, com todos aqueles que assinaram este projecto de lei, que está a brincar com esta Câmara e, acima de tudo, com os animais que temos em nossas casas, com quem convivemos, a quem chamamos os «nossos fiéis amigos, a quem damos de comer, que nos prestam serviços, e agora, chegado o tempo de votar nesta Câmara e dar-lhes uma côdea da lei que suavize a sua vida, em vez de termos um acto de gratidão, praticamos novamente este acto de barbárie, que é provocar a caducidade de uma medida justa e inadiável.

Aplausos dos Deputados do PSD António Maria Pereira e Macário Correia e do PS Marques Júnior.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou fazer uma intervenção, muito breve, para definir a posição da minha bancada em relação a esta matéria.
Entendemos que é importante produzir legislação sobre esta matéria, por isso subscrevemos o projecto de lei, como o subscreveram outros Srs. Deputados que, como nós, acham que a existência de uma legislação nesta área é uma contribuição importante para o resultado de não serem mal tratados indevida e legitimamente os animais, e esta é a questão.
Não vivemos numa sociedade sem regras e sem princípios. Existe entre todos nós, creio que de uma forma alargada, muito alargada mesmo, a consciência de que os animais não devem ser maltratados e muitos de nós o fazem no dia-a-dia.
Todos nós temos filhos que prezam, na forma como estão nas escolas, esse valor de não maltratar os animais; todos nós temos o cuidado e o gosto, na forma como os educamos, de lhes ensinar exactamente isso, mas isso pode não chegar para situações extremas e, portanto, é necessário uma legislação, sem nos esquecermos de uma questão essencial: as leis devem abrir caminho às transformações mas têm de se basear no património cultural de um determinado povo, não podem ser alienistas, não podem ser estranhas aos próprios sentimentos.
Por isso esta lei deve ser cuidada, tendo em atenção a nossa realidade cultural. Até nem somos um país particularmente agressivo, penso eu, embora, a nível das explorações pecuárias e da forma como são transportados os animais, haja muito que se lhe diga e todos nós podemos ver na estrada, muitas vezes, a forma chocante como esse transporte se faz. Provavelmente, essas actividades têm de ser reguladas; a legislação que existe não é suficiente e é, portanto, importante regulá-la.
Mas nós devemos legislar com realismo, com os pés bem assentes no chão,...

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - ... e creio que o esforço que possa ser feito em Comissão para encontrar uma legislação equilibrada é importante.
Alguns de nós poderão sair daqui com alguma mágoa excessiva, outros, enfim, com alguma agressividade em relação a isso ou com a sensação de que podíamos ter feito nesta Legislatura aquilo que até agora ainda não foi feito - em relação a isto e a muitas outras coisas. Recordo, por exemplo, o rendimento mínimo garantido, questão que aqui foi muito discutida, em relação à qual houve quem concordasse e quem discordasse e quem concorda com ela acha que foi mau não ter sido produzida nesta Legislatura.
Portanto, a Legislatura é o que é, no quadro que tem e, ao contrário do que foi dito - não vou ter os aplausos do Sr. Deputado António Maria Pereira, não os proeuro, mas era muito fácil tê-los, facílimo -, penso que tem sido feito um caminho, aqui, na Assembleia, para ganhar mais pessoas para a necessidade de uma legislação sobre esta matéria.
Sabe-se que os seus pontos mais delicados têm a ver, por um lado, com algumas tradições instaladas e, por outro, com a questão das sanções. Assim, creio que essas questões delicadas têm de ser analisadas em sede de Comissão para se encontrar uma lei que corresponda àquilo que é desejável no quadro cultural português. É pena que não tenha sido feita agora, mas deram-se passos e o facto de não ela não ter sido feita até agora não é um pressuposto de que não se consiga fazer daqui até quarta-feira que vem.
Repito, deram-se passos e as transformações legislativas também ocorrem assim, pelo alargamento da consciência da sua necessidade. Creio que podemos, com alguma sensatez, dizer que não foi inútil o que foi feito até agora e a situação em que estamos não deixa falta de perspectivas. Podemos dizer, com alguma confiança, que a Assembleia, esta ou a seguinte, há-de chegar a uma solução legislativa adequada para este problema.

Aplausos do PCP.

Vozes do PSD e PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Macário Correia, em tempo cedido pelo PCP.

O Sr. Macário Correia (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por agradecer ao PCP a cedência de tempo que me é feita para juntar a minha voz a esta causa, balizando claramente para a acta aquilo que penso e aquilo que é o meu contributo nesta questão.
Aquilo que se discute aqui, hoje, não é uma questão da política partidária corrente, é uma questão no plano dos valores, no plano das convicções de cada um de nós e no plano da ética do próprio Parlamento.

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Quando esta matéria entrou em discussão, há 10 anos atrás, diziam alguns que tínhamos de fazer um estudo apurado em comissão, um estudo detalhado de legislação comparada e que havia questões que se prendiam com costumes, com contradições dos portugueses, sejam em Barrancos, nos Açores, no Sabugal ou em qualquer outra zona do País. Outros aspectos que se prendiam não apenas com as touradas e os touros mas com muitas outras questões delicadas, que têm a ver com uma nova maneira de encarar os direitos dos animais tal como o direito ao ambiente e os direitos difusos de um modo geral, tinham de ser ponderadas.
Há 10 anos atrás havia razões muito válidas para pensar assim. Passou uma Legislatura, passaram duas, passaram três e aquilo que se constata não é tanto uma necessidade de aprofundamento da matéria mas apenas uma necessidade de adiamento devido a dificuldades de alguns para conseguirem explicar aquilo que, sobre essa mesma matéria, já reuniram em pensamento e em assunção pública possível.
Compreendo que é delicado trabalhar nesta matéria, mas penso que o prestígio da Assembleia ganha muito quando se tomam decisões que são necessárias e não tanto quando elas se adiam por incapacidade de as tomar, naturalmente.
Este diploma, em versões diferentes, já passou por cinco Comissões - não numa nem em duas mas em cinco -, durante vários anos, e não foi por falta de tempo ou de opções alternativas que não foi aprovado. Simplesmente, mexe em questões concretas que muitos têm dificuldade em assumir porque não se enquadram nas balizas partidárias, na ideologia, nos padrões políticos correntes. Prendem-se com o íntimo, com a convicção, com a experiência pessoal e profissional, com os interesses, no sentido positivo, de cada um: é-se caçador ou ecologista ou pertencesse a este ou àquele grupo de amigos, de caçadas, tauromáquico ou de tiro aos pombos. Cada um de nós, na vida, pertence a vários grupos, relaciona-se, o que é legítimo e respeitável.
Facto é que, ao prestígio do Parlamento, nada acrescenta não decidir mais uma vez; importa, sim, decidir e assumir opções. Esta questão tem muito a ver com o íntimo de cada um, como há pouco dizia o Sr. Deputado Vítor Crespo, recordando-se da discussão havida sobre a possibilidade de fumar ou não no Plenário. Nessa altura - embora não fosse Deputado, consultei as actas e apercebi-me do sentido das votações realizadas -, a verdade é que, tendo essa decisão sido tomada num determinado momento, ela é hoje cumprida.
Há que respeitar as minorias e as maiorias. Associo a minha voz à daqueles que entendem que devem proteger-se os direitos dos animais. Se for vencido, respeito a maioria e acomodo-me na minha função; perseguirei os meus objectivos com argumentos diferentes para os tornar mais válidos, mas aceito essa decisão. Agora, não posso aceitar que, 10 anos depois, o argumento mais válido de hoje seja no sentido de não decidir porque «ainda não estudámos bem». Arranje-se uma outra forma de melhor explicar o que sentimos, que é o que, no fundo, sabemos estar em causa, mas diga-se a verdade.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - Em conclusão, quero expressar que aceito a baixa do diploma à Comissão, desde que haja a coragem de reunir na segunda ou terça-feira, pois só dessa forma poderemos debater todos os argumentos e propostas alternativas para fazer-se a sua votação na quarta-feira.
Nesta matéria, é fácil dizer que os animais (os pombos, os touros e todos os que estamos aqui, supostamente, a defender) não votam mas, hoje em dia, há que ter a noção de que Portugal é um dos países mais atrasados nessa matéria e que surgiram novos direitos e valores.
Tenho muita pena de que, próximo do século XXI, o Parlamento da República Portuguesa ainda não seja capaz de dar um passo em frente em relação a valores que são de respeitar, ainda que pertençam às tradições portuguesas. Na política, o conservadorismo deve fazer-nos pensar que é preciso dar passos em frente nalguns momentos delicados em que as fronteiras partidárias, sendo postas de parte, permitem a cada um manifestar-se de acordo com o seu íntimo e pensamento.

Aplausos do Deputado do CDS-PP Narana Coissoró.

O Sr. Antunes da Silva (PSD): - Separem-se as coisas!

O Sr. Macário Correia (PSD): - Qual é a sua proposta?

O Sr. João Amaral (PCP): - Isso é terrorismo intelectual! Também há os direitos das pessoas!

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, não havendo mais inscrições, declaro encerrado o debate do projecto de lei n.º 530/VI.

Vamos passar à apreciação do relatório e projecto de resolução apresentado pela Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de Camarate (Inquérito Parlamentar n.º 14/VI).
Para apresentar o relatório, em tempo não superior a cinco minutos, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Usando da palavra como Presidente da V Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de Camarate, gostaria de, muito brevemente, sumariar os trabalhos, que, segundo julgo, são já do conhecimento da Câmara.
Apresentado pelo PSD o projecto de resolução n.º 147 VI, foi constituída, em 13 de Maio de 1993, pela resolução n.º 19/93, da Assembleia da República, a V Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de Camarate, que teve por objecto continuar a averiguação das circunstâncias em que ocorreu a tragédia que, em 4 de Dezembro de 1980, vitimou o Primeiro-Ministro, Dr. Francisco Sá Carneiro, o Ministro da Defesa Nacional, Engenheiro Adelino Amaro da Costa e seus acompanhantes. Sá Carneiro e Amaro da Costa foram membros eminentes desta Câmara e personalidades que deixaram marca inapagável na vida portuguesa.
A Comissão iniciou os seus trabalhos em 6 de Julho de 1993. No entanto, como sabem, o prazo de 180 dias estabelecido na lei para os seus trabalhos de investigação foi interrompido entre 21 de Setembro de 1993 e 19 de Janeiro de 1995 em virtude de um incidente processual suscitado pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa sobre as competências da Comissão.
Com efeito, o referido magistrado indeferiu os pedidos da Comissão para o envio de diversos relatórios e pareceres bem como da amostra e dos contratipos directos das radiografias dos pés do piloto da aeronave. Fê-lo com o fundamento de inconstitucional idade orgânica da resolução n.º 19/93, acima referida, que instituía a Comissão, bem como de várias disposições da própria Lei n.º 5/93, de 1 de Março, Lei dos Inquéritos Parlamentares. Interposto recurso

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para o Tribunal Constitucional, a Comissão solicitou ao plenário a confirmação da deliberação de suspender os Seus trabalhos, que foi votada por unanimidade.
Em Março de 1994, o Tribunal Constitucional proferiu um acórdão onde declara que os preceitos invocados da Lei n.º 5/93, de 1 de Março, não colidem com os preceitos constitucionais, concedendo provimento ao recurso e revogando as decisões recorridas, ordenando a sua reformulação no que diz respeito à recusa do solicitada pelo Presidente da V Comissão.
Só em Junho de 1994 foram recebidos na sua totalidade os elementos solicitados, tendo sido depois desencadeados os exames periciais a cargo de uma equipa de peritos chefiada pelo Sr. Dr. Morais Anes do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, que entregou os relatórios elaborados em finais de 1994.
Retomadas as reuniões em 19 de Janeiro de 1995, a Comissão continuou as investigações, tendo conseguido progressos notáveis, que se devem, em boa parte, ao empenhamento dos peritos que colaboraram com a Comissão, os quais conseguiram fundamentar cientificamente os factos que constam das conclusões do relatório final e que passo a referir: existência de um incêndio em voo na aeronave Cessna logo após a descolagem; libertação em pleno voo de um rasto de fragmentos queimados provenientes do seu interior; existência de partículas metálicas apontadas como provenientes de aço não temperado na zona dos calcâneos do piloto Jorge Albuquerque; detecção de sulfato de bário em zonas do cockpit do avião sinistrado; verificação confirmada de novas substâncias explosivas na análise das amostras 1 e 2 do «fragmento 7», a saber, nitroglicerina, dinitrotolueno, trinitrotolueno; comprovação, através de análises químicas realizadas por peritos nacionais e posteriormente confirmadas em laboratórios britânicos, que os produtos retirados do «fragmento 7» apresentam uma constituição química-mineralógica idêntica à das peças da fuselagem da aeronave sinistrada.
Os factos acima referidos, cuja verificação foi votada por unanimidade, permitem estabelecer a presunção de que o despenhamento do avião foi causado por um engenho explosivo que visou a eliminação física de pessoas, tendo assim constituído acção criminosa. Esta Ultima conclusão registou apenas a abstenção do PCP.
Quero referir ainda a extraordinária importância das declarações proferidas por dois professores de Medicina Legal, o Professor Crane, da Universidade de Belfast, e o Professor Luís Concheiro, da Universidade de Santiago de Compostela, ambos com bastante experiência em exames autópticos de vítimas de engenhos explosivos, que confirmaram que as partículas metálicas encontradas nos corpos dos pilotos resultaram de um engenho explosivo.
Devo ainda acrescentar que a V Comissão teve a oportunidade de juntar ao número de testemunhas (10) que afirmaram perante a IV Comissão ter visto que o avião se incendiou em pleno voo, uma nova testemunha ocular, que nunca tinha sido ouvida, e que afirmou o mesmo.
A Comissão solicitou uma inventariação de todas as peças contidas no caixote que se encontrava no aeroporto de Lisboa, que foi realizada por peritos, como podem ver a pág. 41 e seguintes do relatório final.
A Comissão ouviu diversos depoentes, constantes das actas, em cujos testemunhos se podem encontrar dados relevantes para a investigação dos presumíveis autores e congratulou-se com a reabertura da investigação criminal em filiais de Abril, a solicitação do Sr. Procurador-Geral da República, esperando que chegue agora a conclusões.
Mas foi, sem dúvida, graças ao trabalho da Comissão, dos representantes das famílias das vítimas, dos peritos, que o processo foi reaberto e não se verificou o prazo pres-cricional em 4 de Dezembro próximo. Claro que lamento que o sigilo nem sempre tenha sido respeitado, dando aso a inúmeras especulações que, muitas vezes, não correspondiam sequer à realidade dos trabalhos da Comissão.
Finalmente, quero agradecer a todos os que contribuíram para o bom êxito dos trabalhos da Comissão, os representantes das famílias das vítimas, os peritos que prestaram colaboração imprescindível, sem esquecer os funcionários que trabalharam para a Comissão; também os relatores, em apenas 30 dias, fizeram um trabalho muito notável. Nestes termos, em nome da Comissão, tenho a honra de apresentar ao Plenário o projecto de resolução, o qual me dispenso de ler e que foi distribuído, solicitando-lhe que o aprove e referindo que o mesmo foi votado por unanimidade na Comissão.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Estou consciente que, dentro das suas atribuições, sem violar o princípio da separação dos poderes, esta Comissão não só prestigiou esta Assembleia como deu um passo decisivo para aquilo que julgo que todos pretendemos: o esclarecimento da verdade, das causas do que se passou em 4 de Dezembro de 1980.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, de acordo com o que foi estabelecido na conferência de líderes, cada grupo parlamentar dispõe agora de 5 minutos para intervir sobre esta matéria.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Pais de Sousa.

O Sr. Luís Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Coube-nos a honra de assumir, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata, a intervenção final, em sede de Plenário da Assembleia da República, sobre o relatório e o projecto de resolução apresentados pela V Comissão de Inquérito à tragédia de Camarate, que vitimou Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e os seus acompanhantes.
Não iremos fazer, aqui e agora, a apresentação do relatório de que somos co-relatores e que, pela primeira vez, mereceu o voto positivo de todos os Deputados membros da Comissão de Inquérito.
O relatório e todos os documentos que o integram falam por si e requerem estudo e análise, bem como divulgação pública, sendo certo que constituem um significativo contributo para a verdade que o nosso País exige e os portugueses nunca deixaram de reclamar.
Perspectivando agora a matéria de facto, temos que se provou: a existência de um incêndio em voo na aeronave Cessna, logo após a descolagem e na rota ascendente; libertação em pleno voo de um rasto de fragmentos queimados provenientes do seu interior; existência de partículas metálicas na zona dos calcâneos do piloto Jorge Albuquerque; ausência de fracturas e de traumatismos internos potencialmente mortais e ausência de sinais de perecimento das vítimas; detecção de sulfato de bário em zonas do cockpit do avião sinistrado; verificação confirmada de novas substâncias explosivas na análise das amostras l e 2 do fragmento 7 - nitroglicenna, dinitrotolueno e tritrotolueno.
Tais factos apontam, nos termos relatados, para a presunção de que o despenhamento da aeronave foi causado por um engenho explosivo que visou a eliminação física

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de pessoas, tendo constituído acção criminosa. E diremos nós, agora, que as conclusões do relatório surgem, seguramente, alicerçadas em inúmeros factos e esmagadoras provas, designadamente provas periciais.
Por outro lado, afigura-se-nos que a Assembleia da República e o instituto Comissão de Inquérito se prestigiaram com a forma como funcionou e concluiu os seus trabalhos a V Comissão, ao mesmo tempo que se justificam plenamente as linhas constantes do (aliás, consensual) projecto de resolução.
Com efeito, para nós, que sempre nos batemos para que Portuga) seja de facto um Estado de direito, é fundamental prosseguir o apuramento cabal das responsabilidades, desde logo, em matéria de autoria moral e material, incluindo também aqui as responsabilidades que se devem à negligência, a omissões e a incúria, aliás lamentáveis, em matéria de investigações oficiais.
Mais se impõe chamar a atenção - como consta da projectada resolução - para a necessidade de as investigações em curso serem concluídas utilmente dentro do prazo presencional, afastando-se assim, também, a «nuvem» da alegada falta de meios.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Que ninguém confunda a seriedade da investigação própria da V Comissão de Inquérito Parlamentar com propósitos de natureza política ou partidária. É que a História cuidará, seguramente, da homenagem a essa figura ímpar da nossa democracia que foi Francisco Sá Carneiro, como reservará um lugar próprio para todos os que o acompanharam naquela fatídica noite.
Agora, do que se trata é de reafirmar o Estado de direito e o desejo de que a situação a que se chegou, no tempo e ao nível do apuramento da verdade e das responsabilidades, seja, no nosso País, uma situação irrepetível e que ainda possa ser suprida.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Oliveira e Silva.

O Sr. Oliveira e Silva (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Os inquéritos parlamentares têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração. Assim reza, na verdade, o artigo 1.º da Lei n.º 5/93, de 1 de Março, que todos aqui aprovámos.
Nesta conformidade, os inquéritos parlamentares têm por natureza um carácter instrumental, pois, como acentua o Professor Gomes Canotilho, em consonância com a generalidade dos constitucionalistas, «(...) a sua função não consiste em julgar, mas sim em habilitar a Assembleia da República com conhecimentos que podem, eventualmente, levar a tomar medidas (legislativas ou outras) sobre o assunto inquirido.»

O Sr. António Braga (PS): - Muito bem!

O Orador: - Foi nesta perspectiva, como se impunha, que o PS encarou sempre a sua participação no inquérito, não obstante os termos restritivos da Resolução da Assembleia da República n.º 19/93, que constituiu a V Comissão. Pretendeu, com efeito, essa Resolução confinar à partida a sua actividade à averiguação das causas e circunstâncias do acidente de Camarate e, mesmo aí, ainda quis condicionar a investigação, orientando-a em termos que não viessem a pôr em causa as conclusões da anterior Comissão de Inquérito.
Assim terá de ser entendido o texto do n.º 4 da referida Resolução, ao prescrever que «A Comissão considerará o trabalho das anteriores comissões parlamentares de inquérito, competindo dar-lhes continuidade, com vista a remover as dúvidas que persistem e ao apuramento da verdade.»
Não obstante, se o trabalho da V Comissão foi, assim, concebido ab initio como uma mera actividade complementar para o suprimento de dúvidas e aclaração de ambiguidades, que inquinavam as conclusões da anterior Comissão, manda a verdade reconhecer que o trabalho agora concluído cedo se libertou das amarras com que a Resolução n.º 19/93 o pretendeu aprisionar.
Com efeito, tornando-se indispensável, na perspectiva que se reafirma, da função política de fiscalização da Assembleia da República, averiguar as causas e circunstâncias do sinistro de Camarate, é incontestável que a Comissão nunca poderia tomar como adquiridas as conclusões acima referenciadas, já que não se descortina qualquer razão para que devesse funcionar aqui qualquer arremedo ou caricatura de caso julgado.

O Sr. António Braga (PS): - Muito bem!

O Orador: - Impunha-se-lhe, por isso, formular um juízo crítico sobre todas as provas existentes, tomando em consideração os novos elementos de que se passou a dispor, designadamente os que foram recolhidos pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, comprovados no Reino Unido por estabelecimento congénere, internacionalmente reputado como uma das mais prestigiadas autoridades no assunto.
O exame de toda essa matéria probatória permitiu à Comissão assentar na presunção de que o acidente terá ocorrido por efeito de acção criminosa. Trata-se, obviamente, de uma presunção iludível e, portanto, provisória, apta, no entanto, no quadro temporal de que a Comissão dispõe, a satisfazer os objectivos de fiscalização que à Assembleia da República competem. Mas só isso.
Aproveita, assim, essa presunção à fiscalização dos actos do Governo e da Administração pela Assembleia da República, mas tem, portanto, como corolário a sua irrelevância no plano judiciário, onde a verdade terá de ser indagada sob o império de outras preocupações e, sobretudo, com respeito do princípio do contraditório, que, manifestamente, se não coaduna com a metodologia do trabalho parlamentar.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - A pertinência das precedentes considerações prende-se com a necessidade de deixar bem expresso que o inquérito parlamentar não concorre com o processo judicial, já que são substancialmente diversos a estrutura e objectivos de cada um deles, embora ambos comunguem do propósito de que a averiguação dos factos se faça na vivência de idênticos critérios de objectividade.
Foi justamente neste entendimento que os Deputados do PS, que integram a Comissão, se assentaram na presunção de acção criminosa como factor determinante do acidente de Camarate, recusaram, no entanto, frontalmente, que, tanto no relatório como nas suas conclusões, se avançasse com qualquer imputação sobre a sua autoria.
Em primeiro lugar, porque, como pondera o Professor Gomes Canotilho, «Seguramente que pode ser objecto de

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inquérito parlamentar qualquer departamento governamental, ou qualquer organismo ou serviço do Estado, bem domo qualquer acto dos seus titulares ou agentes. Ao invés, afigura-se não ser admissível que possa ser objecto de inquérito parlamentar qualquer pessoa ou organização privada.»
O acerto desta interpretação da lei em vigor, à luz da função que assinala ao inquérito parlamentar, é certamente insusceptível de impugnação válida. Mas ela conduziu desde logo a que tivessem necessariamente de ser expurgadas do projecto inicial de relatório, como foram, as imputações, expressas ou veladas, de comparticipação criminosa a cidadãos, que, ao tempo dos factos, não se inseriam no aparelho estadual nem tinham com ele qualquer vínculo.
Depois, em relação a eles como às demais pessoas e entidades, teve de se concluir que a prova testemunhal recolhida, pelas contradições de que enferma e pelas fontes de que emana, não permite fundamentar nela uma ilação minimamente fiável. A valoração negativa dessa prova constituiu, pois, uma exigência imposta, além do mais, pelo respeito devido à honra e bom nome alheios, que não podem ficar à mercê da calúnia gratuita ou do enxovalho leviano e irresponsável.

O Sr. António Braga (PS): - Muito bem!

O Orador: - Por tudo isto, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, na linha de coerência e isenção que sempre os norteou, não podiam deixar de extrair deste condicionalismo todas as consequências, que ele acarreta no plano factual e jurídico.
Foram, assim, forçados a reconhecer que a Assembleia da República, no exercício da sua acção fiscalizadora dos actos do Governo e da Administração, se encontra desprovida da prova indispensável, em que possa alicerçar qualquer juízo de culpabilidade, já que carece para isso de indícios bastantes, que lhe permitam reconstituir condutas ocorridas há mais de 14 anos em contexto particularmente diverso do presente e, em consequência, de indagação particularmente difícil e aleatória. Por isso não avançaram com suspeitas ou insinuações infundamantadas que, mais cedo ou mais tarde, só poderiam reverter em descrédito desta Assembleia.

O Sr. António Braga (PS): - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não se conclui esta intervenção sem se lamentar e censurar com a maior veemência a divulgação abusiva de um projecto de relatório, que, violando despudoradamente os princípios que se deixam consignados, não chegou sequer a ser objecto de votação.

O Sr. António Braga (PS): - Muito bem!

O Orador: - Semelhante procedimento não pode, com efeito, deixar de merecer o maior repúdio de quantos, empenhados no próprio prestígio da V Comissão de Inquérito, têm fatalmente de recusar as tentativas da sua instrumentalização, ao serviço de interesses e desígnios, a que não aderem por lhe serem completamente estranhos e por afrontarem padrões elementares de lealdade e imparcialidade, que constituem uma exigência ética mínima de todo o inquérito parlamentar.
Resta-nos, como compensação, realçar - o que é mais importante - a consciência generalizada de que o trabalho desenvolvido por esta Comissão conseguiu rasgar outros horizontes à compreensão do acidente de Camarate, ao coligir elementos novos de prova que prestam agora redobrado fundamento às suas conclusões.
Aos Srs. Deputados que integraram a Comissão são, sem dúvida, devidos louvores, que não regateamos, bem como aos Srs. Peritos e Representantes das famílias das vítimas, cuja menção circunstanciada não pode aqui ser feita porque para tanto nos falece o tempo.
Mas se os trabalhos realizados pela Comissão vierem a ser encarados como um contributo positivo às investigações que prosseguem nas instâncias judiciais, isso constituirá um motivo adicional de satisfação para todos nós, por vir reforçar a esperança de que um dia possamos concluir que o nosso esforço comum valeu a pena.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: No momento em que vem a Plenário a apreciação do relatório e projecto de resolução, apresentados pela V Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de Camarate, importa reafirmar as posições assumidas na votação desse relatório, das respectivas conclusões e do projecto de resolução adoptados na sequência do inquérito realizado.
Adoptámos uma posição favorável quanto ao relatório, na medida em que este se limitou à descrição factual das diligências efectuadas pela Comissão e expurgado que foi, relativamente à versão proposta no início, da transcrição de excertos de depoimentos feitos perante a Comissão, cujo grau de credibilidade não é possível garantir com segurança.
Em relação ao projecto de resolução, que será submetido a votação neste Plenário, a nossa posição também é favorável. Propomos, designadamente, que seja dada publicidade ao processo, nos termos legais, e facultados, de imediato e integralmente, ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e à Procuradoria-Geral da República todos os meios necessários ao prosseguimento das investigações.
A nossa posição é ainda favorável quanto à parte das conclusões que refere factos considerados provados, a partir dos resultados de exames periciais efectuados por entidades de cuja idoneidade não existem razões para duvidar, e de abstenção quanto à parte das conclusões que considera provada «a presunção de que o despenhamento da aeronave foi causada por um engenho explosivo que visou a eliminação física de pessoas, tendo constituído por isso acção criminosa».
Esta posição de abstenção resulta do entendimento de que os trabalhos da Comissão de Inquérito não permitem concluir, de forma peremptória, se tratou de acidente ou de acto criminoso e de que apenas que os órgãos competentes para a investigação criminal estarão, eventualmente, em condições de, prosseguindo as investigações, concluir sobre essa questão.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Num Estado de direito, se as coisas cor-

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ressem como deviam, não seria necessário a Assembleia da República levar a cabo uma investigação, durante vários anos e através de cinco comissões de inquérito, para chegar às conclusões a que chegou, decorridos 14 anos sobre o acidente de Camarate.
Efectivamente, se formos ver bem, este relatório nada trouxe de novo: os factos estavam à vista e o material em Portugal, ou seja, tudo aquilo que era necessário para chegar a uma conclusão, fosse qual fosse a tese adoptada - de atentado ou acção criminosa ou de acidente -, tinha inteiro cabimento dentro do circunstancialismo, objectos e pessoas que se encontravam no nosso país. Então, por que razão foram necessários 14 anos e cinco comissões parlamentares de inquérito, num Estado livre e democrático como o nosso, para se chegar à conclusão de que não se tratou de um acidente? Devo dizer que isso deveu-se ao facto de as nossas instituições policiais e judiciárias, a quem está confiada a investigação criminal, não terem funcionado regularmente. Se assim não fosse, elas teriam chegado, cabalmente, à convicção, clara, provada e inabalável, de que foi atentado ou de que tinha sido colocado um engenho e, portanto, que se tratava de uma acção criminal.
Infelizmente, foi preciso a Assembleia da República, através de várias tentativas, chegar aos factos, aos testemunhos e às peritagens, procedimentos esses que não são da competência regular da Assembleia da República mas, sim, de outros órgãos do Estado. Mas, precisamente porque os órgãos competentes para realizar a investigação criminal não nos satisfaziam, os Deputados desta Casa, durante vá-nos anos, teimaram e tentaram levar até ao fim aquilo que era preciso fazer para chegar a uma conclusão objectiva. Devemos, pois, felicitar-nos - todos os Deputados, desde a I até à V Comissão de Inquérito - por, sempre com a consciência de que estávamos a contribuir para descoberta da verdade dos factos, se ter chegado à conclusão a que se chegou. Hoje há claros indícios - factos, ocorrências, testemunhos, provas e peritagens - que nos levam a dizer que o problema de Camarate não está findo. Em bom rigor, é com este relatório que ele começa!
Com efeito, só agora é que a Polícia Judiciária, o Ministério Público, o juiz de instrução criminal e os tribunais estão munidos do material necessário para accionar todo o processo. Terão, no entanto, de actuar rapidamente e dentro do prazo, para que não ocorra a prescrição. Depois de todo este trabalho, o relatório por nós aprovado só terá valor se houver um despacho que impeça a prescrição da acção judicial.

O Sr. Luís Pais de Sousa (PSD): - Muito bem!

O Orador: - É verdade que muito daquilo que não está no relatório foi propagado aos quatro ventos! Foram injuriadas pessoas de bem e anunciados nomes de individualidades que a Comissão não suspeitou nem votou. Lamentamos, por isso, que um projecto, uma minuta, antes de ser apreciada e votada pelo plenário da Comissão, tivesse caído nas mãos de pessoas irresponsáveis, que não merecem outro nome, que se serviram dela para, com total impunidade, atribuir à Comissão suspeitas sobre determinadas pessoas; suspeitas essas que nenhum Deputado que se preze poderia lançar sem estar absolutamente munido de provas seguras.
Não fizemos nem faremos isso e, por isso mesmo, juntamos a nossa voz àqueles que, efectivamente, repudiaram este comportamento.
Por outro lado - é o reverso da medalha -, também não deixamos de lamentar o facto de as instâncias judiciárias não terem descoberto tudo aquilo que esta comissão descobriu dentro do prazo de que dispunha. E há mais um facto que também é preciso dizer!. Os inquéritos parlamentares são para apurar responsabilidades políticas e da Administração, mas este inquérito concluiu que não foi possível apurar responsabilidades políticas dos governantes ou dos altos dirigentes da Administração Pública e, por isso mesmo, é incompleto. Aliás, se o relatório quisesse podia lá chegar mas entendeu-se, e bem, julgo eu, que sendo o caso doravante do foro criminal não devíamos antecipadamente fazer juízos de responsabilidade política sobre os governantes e sobre altos funcionários da Administração Pública.
São estas as cautelas do relatório, são estes avanços que o relatório provoca e são essas lições que proporciona para a descoberta da verdade.
Votámo-lo em consciência e mantemos o nosso voto aqui no Plenário.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, vamos passar à apreciação do relatório apresentado pela Comissão de Inquérito Parlamentar sobre a Eventual Responsabilidade do Governo na Prestação de Serviços pelas OGMA à Força Aérea Angolana com a ampliação do objecto a que se refere a Resolução n.º 15/95, de 20 de Março (Inquérito Parlamentar n.º 27/VI).
Tem a palavra, como relator, o Sr. Deputado Luís Geraldes.

O Sr. Luís Geraldes (PSD): - Sr. Presidente, antes de me pronunciar...

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Sr. Deputado, permita-me. Como não há outro interventor, V. Ex.ª pode continuar no uso do seu tempo.

O Orador: - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Dizia que, antes de me pronunciar sobre o relatório, gostaria ficasse registado um pequeno incidente que teve lugar esta semana, nomeadamente na passada quarta-feira, e que se prende com uma notícia veiculada por um canal de televisão denominado Euronews, o qual divulgou, nos seus noticiários, a notícia de que o Governo tinha feito o seu próprio branqueamento.
Penso que a notícia é condenável a todos os níveis, na medida em que não foi o Governo que requereu a realização do inquérito, não foi o Governo que desenvolveu o trabalho da Comissão e, naturalmente, também não foi o Governo que efectivamente votou esta matéria em Comissão.
Mas, além de condenável, é extremamente curioso que esta notícia surja na altura que, em Paris, estava a decorrer a maior feira internacional de equipamento e de material aeronáutico e onde as OGMA, e por tradição, estavam representadas. E aqui faço a pergunta que várias vezes fiz: existe ou não uma atitude de confrontar o interesse nacional através da divulgação de notícias como estas na comunicação social internacional? E mais, uma questão. Uma vez que o relatório foi votado numa segunda-feira, porque é que as notícias não tiveram lugar na terça-feira? Porquê na quarta? Talvez por ter início a feira internacional de equipamento aeronáutico! E o mais curioso é que, efectivamente, a palavra utilizada neste noticiário era «branqueamento» e numa análise de todas as discussões em Comissão-e desejo que isso fique registado - só em termos de depoimentos ultrapassaram-se 30 horas de trabalho.

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Gostaria de deixar uma questão à reflexão da Câmara e do País, na sua globalidade, tendo esta notícia e a palavra «branqueamento» como pano de fundo e uma vez que esta palavra surgiu numa declaração de voto: não teria havido aqui uma mãozinha da Internacional Socialista?

O Sr. João Amaral (PCP): - Vá lá, não ter dito Internacional Comunista!...

O Orador: - Em relação à Comissão de Inquérito propriamente dita, quero assinalar que o PSD participou nela com seriedade, para que se apurasse a verdade e só a verdade. Contrariamente, as oposições participaram com o juízo feito de condenar politicamente o Governo sobre esta matéria. Aliás, isto foi dito logo na primeira reunião.
Srs. Deputados, considero que o valor estratégico. das OGMA, especificamente em Angola, serve como um vector de cooperação militar. Em minha opinião esta situação deve continuar, para que se potenciem oportunidade, naturalmente devidamente balizadas, de outras actividades económicas que venham a beneficiar tanto Portugal como a República Popular de Angola.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Já, não é «Popular»!

O Orador: - Mas a irresponsabilidade das oposições nesta matéria foi ao ponto de utilizar todos os instrumentos de que dispunham para que a atribuição das responsabilidades, feita no final do inquérito, revertesse exclusivamente para o Governo.
No entanto - e isso ficou provado por todas as audições feitas -, o Governo não sabia das actividades de que era acusado.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - O mal foi esse, o de não saberem de nada.

O Orador: - A questão que se põe é saber se o Governo devia ou não delas saber. E sobre esta questão, uma vez que as OGMA tinham autonomia para as actividades que desenvolviam, entende o PSD que, efectivamente, não deveria saber aquilo que estava a passar-se.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Entendo que, face a esta situação, as OGMA, hoje Indústria Aeronáutica de Portugal, S.A., serão certamente penalizadas pela situação que se verificou.
Faço votos - e espero - que esta situação tenha uma conclusão imediata, na medida em que arrastá-la, sem demonstrar grande responsabilidade para com uma indústria com o valor estratégico das OGMA, poderá ocasionar a estas oficinas mais prejuízos do que aqueles que já teve.

Aplausos do PSD.

O Sr Presidente (Adriano Moreira): - O Sr. Deputado José Vera Jardim pede a palavra para que efeito?

O Sr. José Vera Jardim (PS): - Para exercer o direito regimental de defesa da honra e da consideração da minha bancada, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente(Adriano Moreira): - Sr. Deputado, ser-lhe-á dada a palavra para esse efeito no final do debate Neste momento, tem a palavra para uma intervenção.

O Sr. José Vera Jardim (PS): - Então, se me permite, Sr. Presidente, como disponho de tempo suficiente, vou ligar as duas coisas e começarei, precisamente, pela declaração feita pelo Sr. Deputado Luís Geraldes.
O Sr. Deputado Luís Geraldes é mais novo do que eu, e isso fica-lhe bem. Mas não sei se será tão mais novo que não tenha assistido, em tempos que já lá vão, a encenações deste tipo. Eu explico: nos tempos da «antiga senhora», da ditadura, quando lá fora era publicada uma notícia dita «contra o interesse nacional», imediatamente, em A Voz, no Diário da Manhã, no Diário de Notícias e em outros jornais, era acusada - lembrava bem, há pouco, o Sr. Deputado João Amaral - a Internacional Comunista. Ora, a Internacional Comunista, infelizmente, está reduzida...

O Sr. João Amaral (PCP): - Infelizmente, diz bem!

Risos.

O Orador: - ... ao mais ínfimo e já não serve para ser atacada sistematicamente, por isso, agora, é atacada a Internacional Socialista.
Os Srs. Deputados do PSD, desde o início deste inquérito, colocaram-se nesta posição: este inquérito é contra o interesse nacional.

O Sr. Antunes da Silva (PSD): - E é!

O Orador: - Mas VV. Ex.ªs votaram a favor do inquérito! E disseram sempre, desde o início: «isto é contra o interesse nacional». Essa posição, obviamente, teve os seus reflexos, num inquérito que acabou por não o ser, tendo sido, antes, uma autêntica caricatura de inquérito. Inclusive, a certa altura, houve um relator que «saltou da carroça» ou da «carruagem em andamento» e foi substituído, à última hora, pelo ilustre Sr. Deputado que acabou de falar, para acusar a Internacional Socialista destes nefandos crimes.
Sr. Deputado Luís Geraldes, quero dizer-lhe, com toda a amizade e consideração que tenho por si, que se deixe disso, porque já não estamos em tempo... Estamos numa sociedade aberta, falamos na comunicação, na idade da comunicação, e V. Ex.ª ainda vem descobrir um complot da Internacional Socialista para prejudicar o País! O Sr. Deputado, em matéria de interesse nacional, a nós, não dá lições e, quanto a ressuscitar fantasmas de antigamente, tenha V. Ex." juízo, porque não é época de os ressuscitar!
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Com efeito, desde o início que os Srs. Deputados do PSD condenaram este inquérito à caricatura de um inquérito.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Fizeram-no, tendo por base que este inquérito era contra o interesse nacional! Srs. Deputados, mais valia terem votado contra o inquérito! Mais valia terem tomado, logo no início, atitudes contra o inquérito! Mas, não! Viabilizaram-no, para viabilizarem uma caricatura, um autêntico aborto parlamentar!

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Uma interrupção voluntária!

O Orador: - Como é evidente, quando se fala de aborto, o Sr. Deputado Narana Coissoró reage,...

Risos do PS, PSD e PCP.

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O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Dizia apenas que eles fizeram uma interrupção voluntária!

O Orador: - ... mas não queria, com isso, ofender a bancada do CDS-PP. Falava apenas em aborto parlamentar.
Com efeito, como tivemos ocasião de dizer, na declaração de voto que fizemos aquando da votação do inquérito, com essa votação, encerrou-se, consumou-se, uma escandalosa operação de encobrimento de responsabilidade política a que jamais penso ter-se assistido neste Parlamento. Mais do que branqueamento, Sr. Deputado, foi um encobrimento! O comportamento dos Srs. Deputados do Grupo Parlamentar do PSD inviabilizou o que seria, afinal, o completo apuramento de responsabilidades. A falta de comparência aos trabalhos da Comissão, para aí deporem, do Sr. Deputado Fernando Nogueira, ex-Ministro da Defesa Nacional, e do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros é uma boa demonstração da transparência, tal como a entende o PSD.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Das audições e dos elementos que o Sr. Ministro da Defesa Nacional nos enviou, porque solicitados pelo Sr. Presidente da Comissão - que, aliás, conduziu os trabalhos de uma forma que temos como inteiramente correcta, salvo (tivemos ocasião de o criticar na altura e por isso o criticamos agora) quando dirigiu, sem ter ouvido a Comissão nesse particular, um ofício ao Sr. Ministro da Defesa Nacional, para fornecer à Comissão os elementos respeitantes às OGMA, entidade que inquinamos e investigávamos -, elementos esses porventura incompletos, deduzia-se já responsabilidade política. Tivemos ocasião de o dizer na Comissão e temo-lo repetido vezes sem conta neste Plenário. Mas o PSD, a esta matéria, é surdo.
Srs. Deputados, responsabilidade política não é o mesmo que responsabilidade jurídica. São coisas bem diferentes! A responsabilidade política não se mede pelos mesmos termos em que se mede a responsabilidade jurídica, pela existência de culpa ou dolo, mas, sim, em termos de responsabilidade quase objectiva ou mesmo objectiva. Com efeito, Srs. Deputados, suponham que VV. Ex.ªs não tinham construído esse «muro», atrás do qual se protegeram o Sr. Ministro Durão Barroso e o ex-Ministro Fernando Nogueira, suponham que os tinham deixado vir à Comissão ou, então, que eles se tinham oferecido para cá vir, faculdade que, estranhamente, não usaram, porque poderiam tê-lo feito, e suponham que eles tinham cá vindo e dito: «não sabíamos de nada!». Então, isso afasta a responsabilidade política? Isso afasta automaticamente a responsabilidade política?! É isso que os senhores entendem por responsabilidade política? Então, para VV. Ex.ªs, a responsabilidade política mede-se pelos exactos termos da responsabilidade civil do Código Civil? Não há responsabilidade política, não há conceito de responsabilidade política? Quando um ministro se demite por factos que se passaram no seu Ministério, em relação às quais ele não agiu com culpa nem com dolo, os senhores, certamente, acham isso mal - nós sabemos que acham, porque já muitas vezes Ministros do PSD deste Governo não assumiram a sua responsabilidade política. Até vou mais longe: ainda muito recentemente, não a assumiram; há poucas horas, não a assumiram. Pelo contrário, deitaram-na para trás das costas!

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Deitaram-na sobre os outros, sobre o brigadeiro!

O Orador: - Ora, a responsabilidade política mede-se, em termos de responsabilidade objectiva, por aquilo que se passa no interior, naquilo que é controlado pelos responsáveis políticos. Ora, os factos apurados seriam mais do que suficientes para confrontar o Sr Deputado Fernando Nogueira e o Sr. Ministro Durão Barroso com a actuação dos vários responsáveis sob a sua tutela, no sentido de apurar - mesmo na hipótese, que não concebemos, de não terem tido conhecimento - se não deveriam responder politicamente por essas actuações. A «amputação» que foi feita da presença desses dois senhores, do Sr. Ministro e do Sr. Deputado, na Comissão traduz-se, como já disse, num encobrimento de responsabilidades e transformou este inquérito num não inquérito.
Esta atitude do PSD é tão gravosa para o prestígio da instituição parlamentar que o presidente do meu grupo parlamentar chamou expressamente a atenção do Sr. Presidente da Assembleia da República para o facto.
É caso para dizer que é por estes e outros que o PS tem defendido uma completa reconfiguração das comissões de inquérito. Será necessário corrigir, no futuro, o seu modelo institucional, para que as comissões de inquérito não dependam da vontade de uma maioria política, pois, nesse caso, passam, ou podem passar com facilidade, de comissões de inquérito a comissões de branqueamento. A obrigatoriedade de as conclusões serem aprovadas por uma maioria qualificada é o único caminho para obviar ao desprestígio das comissões parlamentares de inquérito, verificado ao longo da «vigência» da maioria social-democrata nesta Casa.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Apreciámos, hoje, aqui dois relatórios apresentados por duas comissões de inquérito. Numa delas, a Comissão Eventual de Inquérito ao Acidente de Camarate, penso que a Assembleia da República se prestigiou e creio haver um largo consenso nesse sentido; nesta Comissão de Inquérito relacionada com as OGMA, pelo contrário - aliás, na continuação de todos os inquéritos que têm sido feitos para apuramento de responsabilidades políticas do Governo -, o PSD deu mais uma machadada no prestígio desta Assembleia.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira). - Sr. Deputado José Vera Jardim, vou entender que, tendo usado as duas figuras regimentais, o seu tempo incluiu o da defesa da consideração. Ora, para que o debate possa continuar, parece-me apropriado que o Sr. Deputado Luís Geraldes, se assim o entender, dê agora as suas explicações.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Geraldes.

O Sr. Luís Geraldes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado José Vera Jardim, quando V. Ex.ª diz que é mais velho do que eu, isso é natural porque eu é que nasci depois, mas tenho muito a aprender com as pessoas que me merecem respeito e consideração e, naturalmente, o Sr. Deputado é uma dessas pessoas.
Agora, devo dizer-lhe que não ataquei a Internacional Socialista. O que referi foi que, face às circunstâncias, eu tinha uma dúvida, mas não a ataquei! Eu deixei a dúvida se não teria havido aqui uma «mãozinha». Não fiz essa afirmação categoricamente!
Quanto à sociedade aberta e aos fantasmas, Sr. Deputado José Vera Jardim, devo dizer-lhe que, felizmente - e sublinho-o -, vivi sempre em sociedades abertas e não tive o infortúnio que a esmagadora maioria dos portugue-

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sés teve face ao regime em que vivia. Por conseguinte, como compreenderá, agitar-me esse tipo de fantasmas não me afecta nem me incomoda.
Quanto à questão, referida por V. Ex.ª, de saber, por que é que votámos aqui favoravelmente a constituição da Comissão de Inquérito, fizemo-lo, Sr. Deputado, porque, de facto, queríamos apurar a verdade. E apurámo-la! Mas era natural que, logo à partida, o Sr. Deputado não concordasse com a verdade, porque, infelizmente, as oposições já tinham uma ideia sobre essa matéria antes da se dar início à discussão.
Relativamente à sua afirmação de não termos autorizado a vinda à Comissão do Dr. Fernando Nogueira, remeto V. Ex.ª para a declaração de voto do PCP. É que o PCP disse que tanto o PSD como o PS e o CDS-PP não quiseram inicialmente que o Dr. Fernando Nogueira, cá viesse. VV. Ex.ªs é que não quiseram cá o Dr. Fernando Nogueira, pelo que, em minha opinião, neste momento, não devem lamentar-se.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A forma como este inquérito foi conduzido e, encerrado prestou um mau serviço à Assembleia e, por isso, teve a nossa oposição.
O inquérito nasceu com um conjunto de perguntas formuladas pelo CDS-PP que, em nossa opinião, estavam respondidas desde o início, isto é, sabia-se que a empresa tinha prestado o serviço, que a empresa existia em Angola e, se existia aí, é porque prestava serviço à Força Aérea angolana, etc., etc. Portanto, tudo isto já era sabido.
Se havia alguma parte relevante no inquérito parlamentar essa parte era a da responsabilidade política, D. que implicava a audições do então Ministro da Defesa Racional, Dr. Fernando Nogueira, e do actual, Dr. Figueiredo Lopes. Ora, impedindo essas audições, impediu-se, de facto, aquilo que era o objecto essencial do inquérito.
Tínhamos a opinião de que essas audições deveriam ter sido feitas no início do inquérito, mas o facto de isso não ter acontecido nessa altura, não pode justificar que não o tenha sido no fim. Quero deixar isso aqui bem claro,
Portanto, embora a nossa opinião fosse que essas audições deveriam ter sido feitas logo no início, isso não retira nem um milímetro à crítica feita ao PSD por encerrar o inquérito sem permitir a audição dessas duas entidades na parte final.
A Assembleia acaba, assim, a sua lista de inquéritos desta legislatura com o arquivamento, sem qualquer razão, de um deles. É isso que está a ser feito com este.
Quero também referir-me aqui a outra questão, para que não fiquem quaisquer dúvidas: na nossa opinião, as OGMA constituem uma empresa a defender e sempre considerámos que era importante fazê-lo. Mas, para defender as OGMA, é preciso uma atitude coerente também ao longo do tempo. E, por exemplo, certas posições que foram tomadas pela administração das OGMA, com D apoio do Ministério da Defesa Nacional, que conduziram, à perda de um número significativo de postos de trabalho, não correspondem, em minha opinião, à defesa da empresa.
Há um conjunto de iniciativas e actividades, que correspondem a um interesse estratégico das OGMA, que foram postas em questão também pela forma como, a empresa foi administrada. Portanto, a coerência de defender as OGMA implica uma atitude ou várias atitudes que não foram tomadas ao longo do tempo.
Sobre a referência à existência de uma notícia, quando o Sr. Deputado do PSD falou da mãozinha da Internacional Socialista, julguei que estava a falar de alguma notícia da SIC, mas não, era uma notícia da Euronews. Penso que a Euronews só é ouvida por funcionários do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, portanto, não há grande problema quanto à divulgação dessa notícia.
Ora, sabendo-se que este assunto estava agendado para hoje, que o Sr. Dr. Fernando Nogueira é Deputado à Assembleia da República e que o Sr. Ministro Figueiredo Lopes esteve cá hoje, há poucas horas, sempre esperei que se sentassem aqui connosco agora, sujeitando-se às perguntas e dando as suas explicações, que se recusaram a dar ou que o PSD os impediu de dar. Esperei que tivessem esse último assomo de dignidade, que era virem aqui assumir a total responsabilidade que têm pelas actuações das OGMA.

O Sr. José Vera Jardim (PS): - Você é um lírico!

Aplausos do PCP e do PS.

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não estou em condições de falar sobre o inquérito às OGMA, porque nas comissões de inquérito não estão representados os partidos, estão representados os Deputados, que são ajuramentados e que devem manter absoluta confidencialidade sobre tudo quanto apuram.
Sendo representante do CDS-PP nesta Comissão de Inquérito o Sr. Deputado Manuel Queiró, que acompanhou todo o inquérito, naturalmente que não me deu quaisquer notícias sobre o que se lá se passava, porque competia-lhe, efectivamente, guardar sigilo também em face dos seus próprios colegas.

O Sr. João Amaral (PCP): - Ao menos que houvesse um Deputado que o fizesse!

O Orador: - Não sei se o que se passa nos outros partidos é virem contar, logo à saída, tudo quanto lá se passou!

O Sr. João Amaral (PCP): - Nos outros partidos é exactamente assim!

O Orador: - No meu partido não se passa assim! Risos gerais.
Mantém-se rigorosamente um estatuto do julgador, do estatuto de quem ouve, e é ele o responsável pelas declarações de voto que faz e pelos testemunhos que ouve.

O Sr. João Amaral (PCP): - A continuarem assim, ficam reduzidos a um Deputado!

O Orador: - Exactamente!
Sucede que ele hoje não está presente, mas tenho na minha mão uma declaração de voto que ele deixou para ser junta ao relatório. Portanto, não posso fazer mais do que repetir apenas a conclusão daquilo que ele entendeu dizer sobre este relatório final.

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E o que ele diz em conclusão, na parte final da sua declaração de voto, é o seguinte: «Não deveria a Comissão, uma vez que estava encarregada de apurar as responsabilidades políticas, deixar de investigar os motivos da desorientação com que os responsáveis governamentais reagiram à divulgação pública dos factos que determinaram este inquérito. Não foi possível saber a razão pela qual a reacção dos governantes variou da invocação do desconhecimento dos factos divulgados, até ao seu reconhecimento implícito, desde a sua qualificação como «graves» até à sua justificação posterior. A completa ausência de uma explicação coerente para este comportamento deixa apenas espaço para uma conclusão: ao conhecimento prévio dos factos e ao respectivo sancionamento somou-se a tentativa de encobrimento das responsabilidades políticas, tentativa essa que não pode deixar de corresponder a uma decisão de orientação política ao mais alto nível.
Facto particularmente grave é sem dúvida a circunstância de essa tentativa de encobrimento ter chegado ao ponto da instrumentalização desta Comissão Parlamentar de Inquérito. Os Deputados do PSD aprovaram a realização do inquérito e a constituição da respectiva comissão, mas, pelos vistos, fizeram-no somente em resultado de uma cedência circunstancial à pressão da opinião pública. O impedimento ao trabalho da Comissão e a tentativa de a desprestigiar e de a desqualificar como processo de fiscalização política, ainda por cima com argumentos que rapidamente se revelaram falsos e totalmente deslocados, constituíram em si mesmo um atentado grave aos poderes de fiscalização, que constitui umas das características fundamentais do Estado de Direito democrático.»
Quer dizer, o Sr. Deputado Manuel Queiró diz exactamente aquilo que os outros Deputados da oposição aqui disseram, principalmente o Sr. Deputado José Vera Jardim.

O Sr. João Amarai (PCP): - Principalmente a Internacional Socialista!

Risos.

O Orador: - Não está aqui qualquer registo do envio desta declaração à Euronews ou a qualquer outra agência noticiosa. Penso que ficou arquivada no lugar próprio e, naturalmente, estamos livres desta explicação que o relator quis dar, de como a notícia teria chegado aos órgãos de comunicação social internacional, onde foi mencionado o caso das OGMA. Estamos livres, porque não fazemos parte da Internacional Socialista nem da Internacional Comunista nem de nenhuma outra organização internacional.
Felicito-o, Sr. Deputado Luís Geraldes, por o seu relatório ter chegado às grandes agências noticiosas e de elas terem também feito o mesmo juízo que nós, aqui, fizemos.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Sr. Presidente (Adriano Moreira): - Srs. Deputados, visto não haver mais inscrições, declaro encerrado o debate.
A nossa próxima reunião plenária terá lugar terça-feira, dia 20, às 10 horas, e terá como ordem do dia a discussão dos seguintes diplomas: do projecto de lei n.º 577/VI - Reduz a duração semanal do trabalho normal (PCP); das propostas de resolução n.º 93/VI - Aprova, para ratificação, a Convenção e Protocolo entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento e 96/VI - Aprova, para ratificação, o Acordo de Cooperação e Defesa entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América, o Acordo Técnico e o Acordo Laborai; dos projectos de lei n.ºs 572/VI - Isenção do pagamento de taxas e encargos para a habitação e custos controlados (PSD) e 580/VI - Suspende a eficácia do artigo 3.º da Lei n.º 10/95, de 7 de Abril, que altera a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (PSD); e da alteração à Lei n.º 28/82 - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Está encerrada a sessão.
Eram 21 horas.

Entraram durante a sessão os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

António Augusto Fidalgo.
António Esteves Morgado.
António Joaquim Correia Vairinhos.
António José Barradas Leitão.
António Maria Pereira.
António Paulo Martins Pereira Coelho.
Armando de Carvalho Guerreiro da Cunha.
Fernando dos Reis Condesso.
Jaime Gomes Milhomems.
João Eduardo Dias Madeira Gouveia.
José Augusto Santos da Silva Marques.
José de Oliveira Costa.
José Guilherme Pereira Coelho dos Reis.
José Manuel Alvares da Costa e Oliveira.
Luís Carlos David Nobre.
Luís Manuel Costa Geraldes.
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira.
Marília Dulce Coelho Pires Morgado Raimundo.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho.
Vasco Francisco Aguiar Miguel.

Partido Socialista (PS):

Eduardo Ribeiro Pereira.
Elisa Maria Ramos Damião.
João Maria de Lemos de Menezes Ferreira.
João Rui Gaspar de Almeida.
Joaquim Dias da Silva Pinto.
José Eduardo Vera Cruz Jardim.
José Manuel Santos de Magalhães.
José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
Maria Teresa Dória Santa Clara Gomes.
Nuno Augusto Dias Filipe.
Raul d'Assunção Pimenta Rego.
Rui do Nascimento Rabaça Vieira.

Partido Comunista Português (PCP):

Alexandre Augusto Saldanha.
Luís Carlos Martins Peixoto.
Otávio Augusto Teixeira.
Paulo Manuel da Silva Gonçalves Rodrigues.

Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Adão José Fonseca Silva.
António de Carvalho Martins.
António Germano Fernandes de Sá e Abreu.

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Aristides Alves do Nascimento Teixeira.
Carlos de Almeida Figueiredo.
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves.
Carlos Manuel Duarte de Oliveira.
Cecília Pita Catarino.
Delmar Ramiro Palas.
Domingos Duarte Lima.
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco.
Eduardo Alfredo de Carvalho Pereira da Silva.
Ema Maria Pereira Leite Lóia Paulista.
Filipe Manuel da Silva Abreu.
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva.
Jorge Avelino Braga de Macedo.
José Alberto Puig dos Santos Costa.
José Álvaro Machado Pacheco Pereira.
José Angelo Ferreira Correia.
José Fortunato Freitas Costa Leite.
José Manuel Nunes Liberato.
José Pereira Lopes.
Luís António Carrilho da Cunha.
Luís António Martins.
Manuel Acácio Martins Roque.
Manuel Antero da Cunha Pinto.
Manuel da Silva Azevedo.
Manuel Filipe Correia de Jesus.
Mário Jorge Belo Maciel.
Melchior Ribeiro Pereira Moreira.
Pedro Domingos de Souza e Holstein Campilho.
Simão José Ricon Peres.

Partido Socialista (PS)-

António de Almeida Santos.
António Domingues de Azevedo.
António José Martins Seguro.
António Manuel de Oliveira Guterres
António Poppe Lopes Cardoso.
Armando António Martins Vara.
Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.
João Cardona Gomes Cravinho.
José Alberto Rebelo dos Reis Lamego
José Manuel Lello Ribeiro de Almeida.
Luís Filipe Marques Amado.
Luís Filipe Nascimento Madeira
Manuel Alegre de Melo Duarte

Partido Comunista Português (PCP).

Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas.
Miguel Urbano Tavares Rodrigues

Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):

Manuel Tomas Cortez Rodrigues Queiró.

Partido Ecologista Os Verdes (PEV): André Valente Martins

Deputado independente

Raul Fernandes de Morais e Castro

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.

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