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19 DE JULHO DE 1997 3545

jurisdição ou autoridade, nem contra vós mandar fazer, determinar ou executar algum acto de jurisdição, ou judicial ou extrajudicial, nem com alguma cor ou pretexto, traça, causa ou ocasião, directa ou indirectamente. possam molestar-vos, ou perturbar-vos, ou inquietar-vos".
Na luta contra a Inquisição, Vieira inconformista foi intérprete de um pensamento liberto, tolerante, combatente dos interditos censórios, defensor da justiça contra a violência.
Vieira foi a palavra justa e audaz, fraternal. Um Homem que por cima do seu tempo vislumbrou e fez sua a "igualdade das raças" e a "soberania da liberdade".
Para António Vieira, o Padre António Vieira, os índios não têm a condição de escravos: "os índios não são escravos, nem ainda vassalos. Escravos não, porque não tomados em guerra justa; e vassalos também não, porque assim como o espanhol ou genovês cativo em Argel é, contudo, vassalo do seu reino e da sua república, assim o não deixa de ser o índio, posto que forçado e cativo, como membro que é do corpo e cabeça política da sua nação, importando igualmente para a soberania da liberdade, tanto a coroa de penas como a de ouro, tanto o arco como o ceptro".
A genialidade de António Vieira, um estrangeirado na sua própria terra, é tanto mais marcante quanto se distancia de um Portugal inquisitorial. Um Portugal mergulhado na intolerância e na religiosidade fanática, que despreza a sua liberdade. Um Portugal onde, à exploração dos colonos e à ganância do lucro, pouco importava á humanidade "das raças iguais".
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados, Sr.as e Srs. Convidados: Homenagear António Vieira é, hoje e agora, lembrar alguém que esteve para além dos limites do seu tempo. É lembrar alguém de quem Torga, exemplarmente, escreveu:
"Filho peninsular e tropical / De Inácio de Loiola/Aluno do Bandarra I E mestre/De Fernando Pessoa, / No Quinto Império que sonhou, sonhava/O homem lusitano/à medida do mundo./E foi ele o primeiro./Original/No ser universal.../Misto de génio, mago e aventureiro."

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado José Calçada, em representação do Partido Comunista Português.

O Sr. José Calçada (PCP): - Sr. Presidente da República, Sr. Primeiro-Ministro e Srs. Membros do Governo, Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, Sr.as e Srs. Deputados, Demais Autoridades, Sr.as e Srs. Convidados: O que, passados 300 anos sobre a sua morte física, melhor nos parece sintetizar a vida e a obra de António Vieira é a sua unidade de contrários, frequentemente expressa numa dialéctica de coragem - de grande coragem, diga-se -, quotidianamente assumida.
É um homem dividido, ao mesmo tempo presa do passado e visionário de futuros, e, apesar disso, ou talvez por isso, comprometido voluntária e profundamente com o seu tempo. Fruto da circunstância histórica, como todos nós, tem, o que já não acontece com todos, a consciência de assumir-se como seu sujeito, com uma ideia, com um projecto, com uma prática.
Na defesa da "liberdade" dos índios do Brasil ou na da independência do Portugal restaurado de após 1640, confundem-se em Vieira grandes desígnios colectivos corporizados em acções individuais.
Homem de transição numa época de transição, ele próprio não deixaria de atribuir significado - providencial, provavelmente - ao facto de a sua vida se situar, coincidentemente, na bissectriz cronológica de dois grandes marcos da História de Portugal: João II, o Rei, e o Marquês de Pombal.
Para quem, como Vieira, descortinava nas Trovas do Bandarra sinais proféticos do reforço da identidade nacional e do papel de Portugal no mundo, esta feliz coincidência seria bem a demonstração de que "o coração tem razões que a razão desconhece", como afirmava Blaise Pascal, seu contemporâneo. Pascal, muito provavelmente, nada significava para Vieira, como certamente nada lhe dizia o racionalismo cartesiano, fonte moderna das filosofias idealistas e materialistas que desde então atravessam toda a história do pensamento europeu. Mas é de uma clareza argumentativa e de um frio "racionalismo", que Descartes não desdenharia, o documento elaborado por Vieira em 1643 sob a forma de Proposta feita a El-Rei D. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por partes diversas da Europa.
Um texto como este tipifica, de modo exemplar, o escritor e o homem de acção que coexistem em Vieira como vertentes indissociáveis de uma realidade una. Vieira é, aqui, conselheiro e diplomata ao serviço de João IV na luta em defesa da independência nacional, ainda gravemente ameaçada após a expulsão dos reis filipinos. E compreende que as guerras se ganham com dinheiro, e di-lo: "tudo isto se reduz a dinheiros"; e avisa que, neste como noutros domínios, "nenhum segue mais leis que as da conveniência própria"; e conclui que "os homens de negócio nunca foram tão ricos nem tão poderosos como hoje estão no mundo".
Com esta Proposta ao rei João IV, Vieira defende a necessidade de tolerância religiosa, social e política para com os judeus, detentores do capital mercantil e financeiro indispensável não apenas, a prazo, ao desenvolvimento global do País mas, de imediato, com absoluta urgência, à manutenção do seu esforço de guerra contra os espanhóis.
Vieira vê a circunstância e o futuro e, deste modo, levanta contra si a brutal oposição da Inquisição, a qual, porta-voz e biombo das classes ofendidas nos seus privilégios e interesses, se veria amputada da grande parte da fonte de rendimentos com origem na confiscação dos bens dos cristãos-novos. Aliás, o Tribunal do Santo Ofício nunca perdoou a Vieira o seu posicionamento nesta matéria e, mais tarde, após a morte de João IV e ao sabor da instável correlação das forças políticas, Vieira foi, primeiro, julgado, condenado, proibido de pregar e colocado em prisão domiciliária, e, mais tarde, amnistiado.
Estas atribulações colocam-no em muito boas companhias: desde Galileu, seu contemporâneo, obrigado a fingir negar o que a evidência científica lhe impunha, até Leonardo Boff, nosso contemporâneo, obrigado por 365 longos, longos dias a um ensurdecedor silêncio que a todos nós envergonha. Quero eu dizer que é esta a linhagem em que Vieira se insere, de todas a mais nobre, nas suas limitações, certamente, mas também na grande capacidade de as ultrapassar. A Vieira nunca faltou coragem, mesmo quando parecia faltar-lhe quase tudo o resto.

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