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3546 I SÉRIE - NÚMERO 97

Numa época em que, de todo, inexistia qualquer meio de comunicação de massas, Vieira antecipou-os através do púlpito, deste se servindo abundantemente, nos seus sermões, para atacar e denunciar as injustiças, os excessos e a hipocrisia dos grandes senhores do mundo, assim intervindo na vida social e política do seu tempo.
Vieira é, neste domínio, de uma dureza e de uma frontalidade ainda hoje raras. Sobre o exercício corrupto do poder, diz que "não há merecimento que se não aniquile, não há lei (...) que se não atropele, não há incapacidade que se não levante, não há pobreza, nem miséria, nem lágrimas que se não acrescentem, não há injustiça que se não aprove, não há violência, não há crueldade, não há tirania que se não execute. E como estes são os abusos, os excessos e as durezas do poder, justíssimo é (...) que os poderosos (...) sejam poderosamente atormentados".
Sobre a contradição entre as palavras e os actos, Vieira é igualmente inequívoco: "Se as galas, as jóias e as baixelas (...) foram adquiridas com tanta injustiça e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se espremeram, haviam de verter sangue - como se há-de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão revestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis a quem despistes, para as vestir a elas, estão nus e morrendo de frio - como se há-de ver a fé nas vossas paredes?"
Vieira, é justo dizê-lo, nunca escolheu para a sua vida o caminho mais fácil ou o que se lhe afigurasse com menos escolhos. Assumiu a causa da independência nacional quando ela ainda se encontrava muito longe de ser bem sucedida; assumiu a causa da burguesia mercantil, financeira e cristã-nova contra o aparelho inquisitorial e a nobreza parasitária que atrás dele se acobertava; assumiu a causa da servidão dos índios do Brasil contra o sistema esclavagista a que os colonos os queriam submeter.
Muito do que foi sonhado por António Vieira, muito do que do seu sonho soube transformar em luta, foi um rio que só com Pombal desaguou na concreção da História. Foi assim com a emancipação dos índios do Brasil, foi assim com a instituição estratégica de companhias comerciais majestáticas, foi assim com a consideração do comércio como uma "profissão nobre, necessária e proveitosa", foi assim com o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
Vieira já há muito havia deixado o mundo. É muito improvável - por mais forte que seja a tentação de o imaginarmos -, é realmente muito improvável, que Vieira, quase com 90 anos, pouco antes da sua morte, possa ter pronunciado uma frase como "A História me absolverá". De ciência certa, sabemos quem muito mais tarde a escreveu, e ainda hoje prossiga essa escrita. E sabemos também que, de António Vieira, os Sermões feitos actos ou os actos feitos Sermões são antes de tudo uma herança que, responsável e orgulhosamente, nos coube e que, orgulhosa e responsavelmente, deveremos saber legar aos nossos filhos. É por isso que Vieira aqui está connosco hoje, 300 anos depois. Porque também com ele nos construímos.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, em representação do Partido Popular, tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria José Nogueira Pinto.

A Sr.ª Maria José Nogueira Pinto (CDS-PP): Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: O que é que intriga, o que é que fascina, o que é que impressiona na pessoa, na vida e na obra do Padre António Vieira?
Trezentos anos depois da sua morte, podemos dizer que é sem dúvida a multiplicidade dos interesses e dos talentos, a "harmonia na discordância" das actividades, a extraordinária qualidade do trabalho desenvolvido em áreas tão diversas, em ambientes tão distantes, em "províncias do saber" tão variadas, em terras e gentes tão remotas.
Olhemos as grandes etapas da sua vida: nasce em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, de família modesta de funcionários públicos. Vai com o pai para o Brasil e fixa-se na Baía. Estuda no Colégio dos Jesuítas e ingressa, com 15 anos, na Ordem de Loiola, onde aprende o latim, as Escrituras, a História Antiga. Mas vai também sertão adentro, nos riscos da missionação, baptizando índios e aprendendo as línguas nativas.
E no Brasil português, em guerra com os holandeses, Vieira aparece como um profeta da resistência e do patriotismo, proferindo sermões depois célebres, tal como Pela vitória das nossas armas, em 1640.
Faz sentido recordar aqui que os portugueses do Brasil, além de terem guardado parte do Brasil para Portugal durante o período da dominação filipina, foram entusiastas na adesão à Restauração joanina e tomaram em mãos a reconquista do "Brasil holandês", fomentando ali a revolta do reconhecimento desde o Maranhão ao Recife.
Padre António Vieira, vindo na embaixada mandada a D. João IV em 1641, para além de se distinguir junto da Corte, pela sua oratória que põe ao serviço da legitimidade do rei e da monarquia restaurada, vai servir como conselheiro, estratega e agente do rei e do Estado português na complexa diplomacia dos anos 40, em Paris e na Haia. Depois, em 1650, está em Itália, vive em Roma algum tempo e tenta fomentar uma revolta dos napolitanos contra o rei de Espanha.
Esta actividade no terreno não o impede de dar largas a uma outra das suas facetas: a de conceber grandes projectos estratégicos para Portugal, tais como o de conseguir o retorno ao reino dos cristãos-novos emigrados na Europa e dos seus capitais, a troco da liberdade religiosa; e a concepção de uma grande companhia multinacional de comércio e navegação, para o Brasil e o Oriente, à semelhança das companhias majestáticas holandesas.
Entretanto, a maioria destes projectos malogrou-se, pois Vieira, como outros portugueses de excepção, teve dificuldade em ser entendido pelos poderosos do seu tempo, e gerou, bem pelo contrário, um cortejo de invejas, de calúnias, de intrigas, de golpes baixos. Valeu-lhe, contra eles, a protecção de D. João IV, mas, mesmo assim, com "guerras internas" na Companhia de Jesus, o Padre António Vieira volta para o Brasil para coordenar as missões jesuítas no Maranhão.
Aí, bateu-se pela dignidade dos índios, defendendo-os contra as injustiças e opressão e procurando para eles a protecção da Coroa, o que lhe valeu a fúria dos colonos. Deste tempo e circunstância data o mais célebre dos seus sermões, O Sermão de Santo António aos Peixes. Também neste segundo tempo brasileiro ele explorou a bacia do Amazonas, viajando milhares de quilómetros rio acima, embrenhando-se pelo Tocantins e pelo Madeira, e nessas paragens terá redigido o Quinto Império do Mundo, Esperanças de Portugal.