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3548 I SÉRIE - NÚMERO 97

segundo os métodos de análise histórica tradicionais, não esquecendo de sublinhar a deslocação histórica do poder predominante de oriente para ocidente desde o primeiro império do Mundo.
Ao papel capital que atribuía a Portugal tinham de corresponder acrescidas exigências e responsabilidades: eram exigidas acções políticas e diplomáticas audaciosas.
O que faz do Padre António Vieira um "caso exorbitante", na feliz expressão de João Mendes, é "a conjunção em partes iguais do visionarismo e da acção", que o afastou da utopia e do puro sonho intelectual.
Foi, como se sabe, membro ilustre da Companhia de Jesus, que já tinha dado ao Mundo, entre outros gigantes, Francisco Xavier e Manuel da Nóbrega, Matteo Ricci e João de Brito, Luís Fróis, João Rodrigues e Roberto Nobili, e que tinha estendido a sua acção do Brasil à China, do Canadá à índia, do Paraguai ao Japão.
Mas Vieira foi singular por ter sido com igual intensidade doutrinador, missionário, visionário, diplomata e político, no sentido em que lançou mão de todos os recursos para realizar no concreto o seu ideal. Os obstáculos não o desiludiam, antes o estimulavam.
Assim, se prega. pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, também presta serviços no cerco da Baía até à retirada dos holandeses.
Se, chegado a Lisboa, em 1641, como membro da embaixada de fidelidade do Brasil a D. João IV, defende no púlpito a independência restaurada, vai, como embaixador, lutar por ela na Holanda, em França e em Roma. Faz tudo o que é humanamente possível para ajudar à consolidação da Restauração. Os seus princípios e valores e as dificuldades da hora levam-no a defender a necessidade de admitir de novo os judeus dispersos pela Europa e a propor a criação de companhias de comércio com capitais dos cristãos novos.
Volta ao Maranhão em 1652, pára em Cabo Verde, a cuja população presta rasgados elogios. Chegado ao destino prega aos peixes, como Santo António, contra os injustos cativeiros dos índios e actua em consequência. Vem a Lisboa para tratar da liberdade desses povos e consegue a Lei da Liberdade dos índios em 1655. De regresso ao Brasil teria possivelmente encarado, numa genial antecipação de século e meio, o alojamento em Pernambuco da família real, no caso de ocupação do território europeu pela Espanha, de modo a salvaguardar a independência do poder político nacional.
É apupado e expulso por causa da sua defesa dos perseguidos. Em Lisboa, acabada a regência de D. Luísa de Gusmão e ascendendo os seus adversários políticos ao poder, é vítima de um processo e posto em custódia pela Inquisição como suspeito de judaísmo e erros contra a Fé.
Condenado em 67 a reclusão numa casa da Companhia e libertado, em 68, após a queda dos seus adversários, vai a Roma onde deslumbra o Papa e a Cúria Pontifícia, obtendo, em 1675, uma decisão do Sumo Pontífice louvando a sua doutrina e isentando-o da Inquisição Portuguesa. Em Lisboa, é escutado no Conselho de Estado e obtém nova lei favorável à liberdade dos índios, regressando à Baía em 1681.
Até à morte não pára de pregar, agir e escrever. Como afirma o grande Afrânio Peixoto, "esses últimos anos seriam para o mais a imortalidade que iria glorificar o maior dos prosadores portugueses, na acção e na escritura".
Ele, que tudo ousava, até escrever a História do Futuro, acabou por deixar inacabada a obra em latim, que considerava maior, a Clavis Prophetarum. É mais que tempo de finalmente a traduzir e publicar.
Conheceu, portanto, os píncaros da fama e da influência, mas também os cárceres e os insultos. Na síntese de Afrânio, viveu "uma vida de triunfos e tribulações".
Mesmo doente, agiu sempre para maior glória de Deus, por amor ao próximo e em defesa da Pátria luso-brasileira. Por isso, criticou fortemente os erros do seu tempo: a cobiça, a ostentação, a incompetência, a violência, os atentados à liberdade dos povos. Foi severo para os que só zelam pelos seus interesses mundanos ou cometem roubos e homicídios.
A sua luta contra os colonos no Brasil funda-se na defesa intransigente dos direitos dos índios, condenando sem apelo as atrocidades cometidas. Vieira sustenta que os detentores do poder, os legisladores, os reis não criam o lícito e o justo, pois as leis divina e natural são anteriores e superiores ao poder, por este têm de ser respeitadas e com elas tem a lei positiva de se conformar. Também hoje as escolas dominantes do pensamento, a diverso título críticas do positivismo, lhe voltam a dar razão.
O direito das gentes é superior ao dos reis. Por consequência, para Vieira a soberania das nações índias é de direito natural, os seus chefes são legítimos, as comunidades que se submetem a Portugal devem conservar a sua identidade e organização próprias. Qualquer sujeição não voluntária é nula, por contrária àquele direito. Não só a conversão nunca pode ser imposta pela força, como o poder temporal deve ser usado para protecção dos convertidos, perspectiva original que vai mais longe que Las Casas e Francisco de Vitória, como sublinha Pulido Valente. Por isso, "quem tem por ofício a pregação e a conversão dos gentios há-de ter o livro numa mão e a espada na outra: o livro para os doutrinar, a espada para os defender."
Espantosa antecipação! Só nas mais avançadas Convenções do Conselho da Europa e das Nações Unidas, na segunda metade do nosso século, se viu consagrado tal respeito pelos direitos dos povos, a sua liberdade e a sua identidade!

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Sendo o direito das gentes superior aos reis, Vieira teria de criticar com veemência a legislação nacional perseguidora dos judeus e cristãos-novos, violadora do direito das gentes. E fê-lo. O legislador não pode impedir que eles vivam, criem instituições, façam contratos ou testamentos, pois tudo isso " é de direito das gentes sobre o qual não deu Deus poder aos príncipes".
Fê-lo, em primeiro lugar, no plano dos princípios e dos valores. Mas fê-lo também pela consciência clara que o afastamento e perseguição dessa elite, eram altamente nocivos para a comunidade e só beneficiavam uma maioria parasita e imobilista detentora do poder político e económico.
Mal poderia ele adivinhar que, neste ponto, os portugueses, a que tanto queria, continuariam por mais de um século a perseguir aquelas elites criadoras e empreendedoras e depois varias vezes reincidiriam, expulsando até ao século XX outras elites, entre outros, os seus próprios irmãos inacianos e os que depois lutariam pela liberdade e pelos direitos da pessoa. Neste aspecto, só muito tarde a consciência colectiva lhe veio reconhecer
razão..

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