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652 I SÉRIE - NÚMERO 20 

Em De Profundas, Valsa Lenta, tal como José Rodrigues Migueis, em circunstâncias paralelas, brinca muito a sério com a morte. E no intervalo de vitalidade que a morte lhe permitiu, deixou-nos essa fabulosa aguarela de palavras que é Lisboa-Livro de Bordo. Essa Lisboa que ele viveu e amou como ninguém. Amou-a como escreveu: à sua maneira. Sorvendo cada canto, cada rosto, cada noite.
Quem pessoalmente o conheceu, recorda um ser humano simples, despojado de vaidades, em quem o talento era tão natural como ele próprio.
Os que apenas o leram recordam decerto um escritor original, que escrevia como quem respira e coleccionava prémios como quem «vai ali e já vem».
José Cardoso Pires deu luta à morte física. Ela encontrou nele um adversário à altura. A sua obra vai dar luta, muita luta, à morte literária.
A Assembleia da República, na sua sessão plenária de 12 de Novembro de 1998, aprova um sentido voto de pesar e de solidariedade na dor à família enlutada, à qual este voto vai ser comunicado.
Para se pronunciar sobre este voto, tem a palavra a Sr.ª Deputada Teresa Patrício Gouveia.

A Sr.ª Teresa Patrício Gouveia (PSD): - Sr. Presidente, dizia José Cardoso Pires: «Fazer da literatura um regulem é uma coisa triste.». E tinha razão! Por isso, hoje, gostaria que saudássemos o privilégio de o termos tido por companheiro de viagem e o facto de podermos continuar a fazer caminho na companhia da obra que nos deixou, mais do que mencionar a sua morte.
Aliás, do convívio com ela, com a sua morte branca, deixou-nos, ele próprio, com suprema lucidez e humor, um assombroso relato de como a olhou nos olhos, a fintou e a levou a melhor. Penso mesmo que foi disso que ela agora se quis vingar.
Gostaria que invocássemos José Cardoso Pires em Lisboa, onde sempre viveu, a cidade que conhecia por dentro e por fora, a cidade que nos ofereceu nos seus romances, nas suas crónicas jornalísticas e no nobilíssimo livro, que, por fim, lhe dedicou.
José Cardoso Pires era, de facto, um citadino. Como ele mesmo disse, pertencia à geração que deu uma sintaxe citadina à prosa portuguesa. Da cidade, como também disse, veio tudo o que nós temos de liberdade. Foi assim a liberdade que ele levou para a escrita que, no entanto, nunca deixou de ser amarrada à realidade. Nas palavras certeiras de António José Saraiva: «A sua prosa, não fez concessões, nem à infusão lírica, nem à demagogia. Com mão vigorosa e rédea curta, corta cerce, todo o abandono, distracção ou comprazimento a que a prosa é, naturalmente, sujeita».
José Cardoso Pires foi um artesão meticuloso da escrita. Para ela levou a sua diversificada experiência da vida e da convivialidade com os outros e com o seu tempo. De tal maneira o fez que podemos afirmar que nenhum outro escritor dos nossos dias foi, como ele, testemunho do seu tempo. Como alguém disse, não é possível e não será possível conhecer e compreender a sociedade portuguesa dos anos 60 e 70 sem recorrer aos seus romances, que ficarão connosco como o que de melhor se escreveu na literatura portuguesa contemporânea.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Reis.

O Sr. António Reis (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Portugal perdeu um grande escritor, sem dúvida, podemos afirmá-lo, um dos maiores deste século. Lisboa perdeu um dos grandes cultores da sua boémia e da sua beleza. Pessoalmente, perdi um grande amigo, um conversador admirável, um crítico mordaz das mediocridades que nos rodeiam, alguém com quem pude estar, em Abril, quando recebeu o prémio D. Dinis, na Fundação da Casa de Mateus, e onde mais uma vez fez prova da sua ironia cáustica, pelo modo como comentou a recepção desse mesmo prémio.
Convém dizer que Cardoso Pires revolucionou a arquitectura do romance português nesta segunda metade do século, a partir, sobretudo, de uma obra admirável como foi O Delfim. A partir de O Delfim, nunca mais se pôde continuar a escrever um romance como se escrevia dantes. Esta é a melhor homenagem que se pode prestar a um escritor: reconhecer essa revolução na forma de construir a arquitectura de um romance.
A sua obra é uma obra de alguém que sempre viveu empenhadamente a sua relação com o País e com o mundo, questionando tudo e todos sem qualquer preconceito de carácter dogmático. Ele foi também, como sabemos, um cidadão profundamente empenhado em todas as lutas cívicas.
Lembro-me como ele me estimulava, muitas vezes, a prosseguir uma obra de estudo sobre o nosso Portugal contemporâneo, precisamente para que as novas gerações não esquecessem o que houve de aviltante na história do período ditatorial que atravessámos ao longo deste século.
Cardoso Pires distinguiu-se pela sua ironia cáustica e pelo seu estilo despojado e hoje verá, com certeza, a sua obra mais lida e ainda mais apreciada. É através desta sua obra que ele permanecerá vivo no coração dos seus leitores, que, estou certo, serão cada vez mais, sobretudo agora com as novas gerações, que não deixarão de o apreciar.
Estamos profundamente comovidos com a evocação da sua morte. Em nome do Grupo Parlamentar do PS, quero também associar-me a esta homenagem e dizer quanto sentimos a perda desse grande escritor que foi também um grande amigo.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Luísa Mesquita.

A Sr.ª Luísa Mesquita (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Aos dois dias do mês de Outubro de 1925, no acto do registo de nascimento do cidadão José Cardoso Pires, foi celebrado um contrato pelo governo português no qual se obrigava o novo súbdito nacional ao cumprimento de determinadas regras individuais e colectivas e se lhe garantiam direitos de cidadania, de trabalho, subsistência e liberdade. Passados 46 anos, o declarante, que agora exerce o ofício de escritor, verifica que nunca o Estado respeitou as obrigações a que se comprometeu para com ele. E esclarece mais: que no exercício da sua profissão, tal como acontece com a maioria dos escritores portugueses, lhe têm sido impostas discriminações, dificuldades materiais, dificuldades políticas e psicológicas que o impedem de comunicar em liberdade. Esta declaração foi feita por Cardoso Pires, em 20 de Dezembro de 1971, quando Abril ainda se moldava nas mãos de homens e mulheres que quotidianamente recusavam a sintaxe dos compromissos e escreviam, com a vida e a morte, os testemunhos do presente e os dias com alvorada.

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