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Quinta-feira, 11 de Março de 2004 I Série - Número 61

IX LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2003-2004)

REUNIÃO PLENÁRIA DE 10 DE MARÇO DE 2004

Presidente: Ex.mo Sr. João Bosco Soares Mota Amaral

Secretários: Ex. mos Srs. Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco
Ascenso Luís Seixas Simões
Henrique Jorge Campos Cunha
António João Rodeia Machado

S U M Á R I O


O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conta da entrada na Mesa da interpelação n.º 10/IX e da apresentação de requerimentos.
A propósito do Dia Internacional da Mulher, que se comemorou no passado dia 8 de Março, as Sr.as Deputadas Leonor Beleza (PSD), Alda Sousa (BE) - que respondeu a um pedido de esclarecimento da Sr.ª Deputada Cristina Granada (PS) -, Isabel Castro (Os Verdes), Sónia Fertuzinhos (PS) - que respondeu a um pedido de esclarecimento da Sr.ª Deputada Teresa Morais (PSD) -, Isabel Gonçalves (CDS-PP) e Odete Santos (PCP) abordaram diversos problemas com que se debatem as mulheres.

Ordem do dia. - Procedeu-se ao debate, na generalidade, da proposta de lei n.º 112/IX - Estabelece o Estatuto do Administrador da Insolvência. Intervieram, a diverso título, além do Sr. Secretário de Estado da Justiça (Miguel Macedo), os Srs. Deputados Francisco Louçã (BE), Isilda Pegado (PSD), Osvaldo Castro (PS), Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP) e Odete Santos (PCP).
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 16 horas e 55 minutos.

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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a sessão.

Eram 15 horas.

Srs. Deputados presentes à sessão:

Partido Social Democrata (PSD):
Abílio Jorge Leite Almeida Costa
Adriana Maria Bento de Aguiar Branco
Alberto Pedro Caetano
Ana Paula Rodrigues Malojo
António Alfredo Delgado da Silva Preto
António Carlos de Sousa Pinto
António da Silva Pinto de Nazaré Pereira
António Edmundo Barbosa Montalvão Machado
António Fernando de Pina Marques
António Henriques de Pinho Cardão
António Joaquim Almeida Henriques
António Manuel da Cruz Silva
António Maria Almeida Braga Pinheiro Torres
António Pedro Roque da Visitação Oliveira
António Ribeiro Cristóvão
Bernardino da Costa Pereira
Bruno Jorge Viegas Vitorino
Carlos Alberto da Silva Gonçalves
Carlos Alberto Rodrigues
Carlos Jorge Martins Pereira
Carlos Manuel de Andrade Miranda
Daniel Miguel Rebelo
Diogo de Sousa Almeida da Luz
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco
Elvira da Costa Bernardino de Matos Figueiredo
Eugénio Fernando de Sá Cerqueira Marinho
Fernando António Esteves Charrua
Fernando Jorge Pinto Lopes
Fernando Manuel Lopes Penha Pereira
Fernando Pedro Peniche de Sousa Moutinho
Fernando Santos Pereira
Francisco José Fernandes Martins
Gonçalo Dinis Quaresma Sousa Capitão
Gonçalo Miguel Lopes Breda Marques
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva
Henrique José Monteiro Chaves
Hugo José Teixeira Velosa
Isménia Aurora Salgado dos Anjos Vieira Franco
João Bosco Soares Mota Amaral
João Carlos Barreiras Duarte
João Eduardo Guimarães Moura de Sá
João José Gago Horta
João Manuel Moura Rodrigues
Joaquim Carlos Vasconcelos da Ponte
Joaquim Miguel Parelho Pimenta Raimundo
Jorge Manuel Ferraz de Freitas Neto
Jorge Tadeu Correia Franco Morgado
José Alberto Vasconcelos Tavares Moreira
José António Bessa Guerra
José António de Sousa e Silva
José Luís Campos Vieira de Castro
José Manuel Álvares da Costa e Oliveira

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José Manuel de Lemos Pavão
José Manuel de Matos Correia
José Manuel dos Santos Alves
José Miguel Gonçalves Miranda
Judite Maria Jorge da Silva
Luís Álvaro Barbosa de Campos Ferreira
Luís Cirilo Amorim de Campos Carvalho
Luís Filipe Alexandre Rodrigues
Luís Filipe Montenegro Cardoso de Morais Esteves
Luís Filipe Soromenho Gomes
Luís Maria de Barros Serra Marques Guedes
Manuel Alves de Oliveira
Manuel Filipe Correia de Jesus
Manuel Ricardo Dias dos Santos Fonseca de Almeida
Marco António Ribeiro dos Santos Costa
Maria Aurora Moura Vieira
Maria Clara de Sá Morais Rodrigues Carneiro Veríssimo
Maria da Graça Ferreira Proença de Carvalho
Maria Goreti Sá Maia da Costa Machado
Maria Isilda Viscata Lourenço de Oliveira Pegado
Maria Leonor Couceiro Pizarro Beleza de Mendonça Tavares
Maria Natália Guterres V. Carrascalão da Conceição Antunes
Maria Ofélia Fernandes dos Santos Moleiro
Maria Paula Barral Carloto de Castro
Maria Teresa da Silva Morais
Mário Patinha Antão
Melchior Ribeiro Pereira Moreira
Miguel Jorge Reis Antunes Frasquilho
Pedro Filipe dos Santos Alves
Pedro Miguel de Azeredo Duarte
Rodrigo Alexandre Cristóvão Ribeiro
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva
Salvador Manuel Correia Massano Cardoso
Sérgio André da Costa Vieira
Vasco Manuel Henriques Cunha
Vítor Manuel Roque Martins dos Reis

Partido Socialista (PS):
Alberto Arons Braga de Carvalho
Alberto de Sousa Martins
Alberto Marques Antunes
Ana Catarina Veiga Santos Mendonça Mendes
Antero Gaspar de Paiva Vieira
António Alves Marques Júnior
António Bento da Silva Galamba
António de Almeida Santos
António Luís Santos da Costa
António Ramos Preto
Artur Miguel Claro da Fonseca Mora Coelho
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos
Ascenso Luís Seixas Simões
Augusto Ernesto Santos Silva
Carlos Manuel Luís
Eduardo Arménio do Nascimento Cabrita
Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues
Elisa Maria da Costa Guimarães Ferreira
Fausto de Sousa Correia
Fernando dos Santos Cabral
Fernando Manuel dos Santos Gomes

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Fernando Pereira Cabodeira
Fernando Pereira Serrasqueiro
Guilherme Valdemar Pereira D'Oliveira Martins
Jaime José Matos da Gama
Jamila Bárbara Madeira e Madeira
João Cardona Gomes Cravinho
João Rui Gaspar de Almeida
Joaquim Augusto Nunes Pina Moura
Jorge Lacão Costa
Jorge Manuel Gouveia Strecht Ribeiro
José Adelmo Gouveia Bordalo Junqueiro
José António Fonseca Vieira da Silva
José Apolinário Nunes Portada
José Augusto Clemente de Carvalho
José Carlos Correia Mota de Andrade
José Manuel Lello Ribeiro de Almeida
José Manuel Pires Epifânio
José Manuel Santos de Magalhães
José Maximiano de Albuquerque Almeida Leitão
José Miguel Abreu de Figueiredo Medeiros
José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa
Júlio Francisco Miranda Calha
Laurentino José Monteiro Castro Dias
Leonor Coutinho Pereira dos Santos
Luís Afonso Cerqueira Natividade Candal
Luís Alberto da Silva Miranda
Luís Manuel Capoulas Santos
Luiz Manuel Fagundes Duarte
Manuel Alegre de Melo Duarte
Manuel Maria Ferreira Carrilho
Manuel Pedro Cunha da Silva Pereira
Maria Amélia do Carmo Mota Santos
Maria Celeste Lopes da Silva Correia
Maria Cristina Vicente Pires Granada
Maria Custódia Barbosa Fernandes Costa
Maria de Belém Roseira Martins Coelho Henriques de Pina
Maria do Carmo Romão Sacadura dos Santos
Maria do Rosário Lopes Amaro da Costa da Luz Carneiro
Maria Helena do Rêgo da Costa Salema Roseta
Maria Isabel da Silva Pires de Lima
Maria Manuela de Macedo Pinho e Melo
Maximiano Alberto Rodrigues Martins
Miguel Bernardo Ginestal Machado Monteiro Albuquerque
Nelson da Cunha Correia
Nelson Madeira Baltazar
Osvaldo Alberto Rosário Sarmento e Castro
Ricardo Manuel Ferreira Gonçalves
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz
Rosalina Maria Barbosa Martins
Rui António Ferreira da Cunha
Rui do Nascimento Rabaça Vieira
Sónia Ermelinda Matos da Silva Fertuzinhos
Teresa Maria Neto Venda
Vicente Jorge Lopes Gomes da Silva
Victor Manuel Bento Baptista
Vitalino José Ferreira Prova Canas
Vítor Manuel Sampaio Caetano Ramalho
Zelinda Margarida Carmo Marouço Oliveira Semedo

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Partido Popular (CDS-PP):
Álvaro António Magalhães Ferrão de Castello-Branco
António Herculano Gonçalves
Diogo Nuno de Gouveia Torres Feio
Henrique Jorge Campos Cunha
Isabel Maria de Sousa Gonçalves dos Santos
João Guilherme Nobre Prata Fragoso Rebelo
João Nuno Lacerda Teixeira de Melo
João Rodrigo Pinho de Almeida
Manuel de Almeida Cambra
Manuel Miguel Pinheiro Paiva
Narana Sinai Coissoró
Paulo Daniel Fugas Veiga
Telmo Augusto Gomes de Noronha Correia

Partido Comunista Português (PCP):
António Filipe Gaião Rodrigues
António João Rodeia Machado
Bernardino José Torrão Soares
Bruno Ramos Dias
Jerónimo Carvalho de Sousa
Lino António Marques de Carvalho
Maria Odete dos Santos

Bloco de Esquerda (BE):
Alda Maria Botelho Correia Sousa
Francisco Anacleto Louçã

Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV):
Isabel Maria de Almeida e Castro

ANTES DA ORDEM DO DIA

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Sr. Secretário vai proceder à leitura do expediente.

O Sr. Secretário (Duarte Pacheco): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, deu entrada na Mesa, e foi admitida, a interpelação n.º 10/IX - Debate de política geral centrado no balanço da execução dos compromissos programáticos assumidos pelo Sr. Primeiro-Ministro (PS).
Entretanto, foram apresentados na Mesa, nos dias 1 e 2 de Março, os seguintes requerimentos: ao Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro, formulados pelo Sr. Deputado Laurentino Dias; ao Ministério da Segurança Social e do Trabalho e ao Instituto Português do Património Arquitectónico, formulados pelo Sr. Deputado Miguel Paiva; e ao Ministério da Economia, formulado pelo Sr. Deputado João Rebelo.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Leonor Beleza.

A Sr.ª Leonor Beleza (PSD): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: 30 anos depois do 25 de Abril, o Dia Internacional da Mulher, que aqui evoco, representa uma ocasião em que faz todo o sentido que nos perguntemos o que trouxe, às mulheres portuguesas, a democracia.
Para quem, como eu, acha que poucos processos terão tido um significado tão profundo - e, ao mesmo tempo, tão positivo e até imediato - na situação das mulheres, fazer este balanço adquire também o sentido de uma homenagem ao 25 de Abril.
Sendo um processo revolucionário, este continha, à partida, características que favorecem alterações nos domínios determinantes para o estatuto das mulheres. Mas as mudanças não teriam sido tão imediatas, nem tão acertadas, se um conjunto de actores com capacidade de escolher e de influir não tivesse sabido utilizar as circunstâncias para formular o discurso necessário, mudar as leis e ir alterando as políticas.
Um punhado de homens e mulheres, os partidos e os governos, na ausência ainda de movimentos

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sociais que exigissem e empurrassem, souberam aproveitar as ocasiões e forçar as alterações.
Muitos e muitas, antes, tinham preparado o caminho. E permitir-me-ão, quando se aproxima também a celebração dos 30 anos do PSD, que saliente a acção do Dr. Francisco Sá Carneiro.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

Ainda na então Assembleia Nacional, tinha-se já particularmente empenhado na atribuição de direitos iguais às mulheres, propondo, por exemplo, que a magistratura lhes fosse imediatamente aberta. Logo no primeiro grande comício do então PPD, quis que ficasse marcado que esses direitos têm um destaque especial no âmbito dos nossos compromissos partidários.
A luta pela democracia e a sua instauração foram determinantes para a promoção dos direitos das mulheres. Sem liberdade de expressão, de informação e de manifestação - o estatuto daquelas é "dado", decidido por alguém que concede -, os direitos não têm condições de ser discutidos e vigiados e não podem desenvolver-se.
Acresce que a própria situação de democracia e de liberdade é propícia ao estabelecimento e ao fortalecimento de regras que põem de pé a igualdade, ao nível do direito, para a generalidade dos cidadãos e das cidadãs, e que tornam mais fácil a adopção de políticas correspondentes. O que de particular aconteceu foi o nível de exigência e de pressa que foi posto nas transformações e que nos fez, em alguns domínios, saltar etapas.
Com o 25 de Abril, as mulheres votaram pela primeira vez em igualdade com os homens, só então justificando a nossa primeira democracia política.
Um conjunto de grandes reformas legislativas, iniciadas ainda antes da Constituição, com o acesso das mulheres à magistratura e à diplomacia e com o fim da proibição do divórcio para os casamentos católicos, seguiu-se imediatamente à Revolução e durou, no essencial, cerca de 10 anos.
Refiro-me, em primeiro lugar, à Constituição, que, de uma penada, determinou a cessação da vigência de todo o direito discriminatório.
Refiro-me também, grosso modo, por ordem cronológica, à criação da valência de planeamento familiar nas instituições de saúde, ao alargamento e à generalização da licença por maternidade, à fundamental reforma do Direito da Família, ao estabelecimento das regras de igualdade de remuneração, de formação profissional e de acesso e promoção no emprego, à introdução da igualdade na aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, com o fim da possibilidade de perda automática para a mulher, à reforma do Direito Penal e à consagração dos direitos em matéria do que hoje chamamos saúde sexual e reprodutiva.
Determinante para todos nós, e também para a situação das mulheres, tem sido a integração na Europa, podendo, hoje, com propriedade, dizer-se que a União é hoje muito exigente em relação à promoção da igualdade pelos Estados-membros.
Ao nível dos mecanismos de promoção da igualdade, houve também entre nós a institucionalização e a actuação da então chamada Comissão da Condição Feminina, onde um conjunto de mulheres, de que tive a sorte de fazer parte, eram, mais do que funcionárias do Estado, militantes da causa - empurraram, propuseram, participaram e promoveram activamente o planeamento familiar, a diversificação no acesso ao ensino, sobretudo ao ensino superior, a protecção contra a violência, a informação generalizada, a mudança das leis e das "mentalidades", os estudos de género. Tanta coisa que hoje se generalizou no discurso e na prática, que muitos e muitas fizeram sua e multiplicaram, com uma participação cada vez mais visível das ONG de mulheres e de múltiplas instituições.
A educação feminizou-se por todo o lado, o mesmo tendo acontecido no domínio do emprego, e as mulheres passaram a deter um domínio da sua fertilidade, inimaginável em 1976, data do lançamento do planeamento familiar.
Mas não estou a falar do "céu". Não é aí que estamos.
Aliás, é verdade que, se suportamos metade do "céu", continuamos a suportar muito mais de metade das tarefas e uma percentagem muito superior da pobreza, da exclusão e da violência.

Aplausos do PSD, do CDS-PP e de Deputados do PS.

Hoje, em Portugal, vivemos tempos em que já não há lugares onde as mulheres não possam chegar, mas os lugares de decisão continuam largamente ocupados por homens, e muito poucos estranharam que a discussão sobre o futuro, que os empresários e gestores há dias realizaram no Convento do Beato, fosse uma conversa só entre homens.
Muito mais do que não ser possível chegar a alguns lugares, o problema é o facto de não existir a exigência de que ocupemos, de facto, certas posições e que, ao mesmo tempo, se continue a esperar das

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mulheres que façam muitas coisas ao mesmo tempo.
E, muito pior, não é ainda suficiente nem eficaz o clamor contra a violência, sobretudo a violência escondida, sobretudo a violência praticada por quem está perto, em larga escala suportada e ainda calada.
Tenho a sorte de pertencer a uma geração privilegiada. Tinha 25 anos no 25 de Abril. Fui das primeiras para quem esteve disponível o acesso à educação, ao emprego, ao controlo da fertilidade, à igualdade de estatuto na família e até à participação política. Tive ocasião de participar activamente em muitas dessas mudanças.
É natural que muitas mulheres, mais novas, considerem como um dado adquirido bens inestimáveis como a democracia, a integração europeia e o conjunto de direitos e de acessos que encontram à partida. No entanto, muitos factores, incluindo as liberdades de escolha de que gozam, tornam hoje, seguramente, mais incerto o contexto em que vivem, sendo ainda bem longo o caminho a percorrer.
Parecer-me-ia errado que desvalorizassem ou dessem por definitivamente adquirido o que possa apenas ter essa aparência.
Há múltiplos casos de regressão nos direitos, como aqueles por que nos batemos e que hoje nos parecem tão óbvios.
Deixem-me relembrar que a recente Prémio Nobel da Paz, a iraniana Shirin Ebadi, foi juíza entre 1974 (quando ainda, em Portugal, nenhuma mulher podia ser juíza) e 1979, quando o então novo poder do Irão resolveu que as mulheres não têm discernimento para tal profissão. O mesmo por cá se pensava oficialmente, antes de 1974…

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

Que muitos hoje, no mundo, julguem que a discriminação e a opressão das mulheres são um traço de identidade, a manter a todo o custo, de culturas, nações ou religiões, é uma situação extraordinariamente inquietante. Menosprezar tal facto é, sob uma qualquer capa, subvalorizar de novo uma metade da humanidade, que, a custo, e tarde, conseguiu que os seus direitos fossem oficialmente considerados direitos humanos.
Direitos humanos quer dizer, como muito bem observa o recente relatório da Amnistia Internacional, direitos universais, que são reconhecidos independentemente das latitudes, dos continentes, das culturas, das religiões ou dos direitos positivos.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - Direitos cuja violação ofende a dignidade humana, que todos, em todo o lado, têm obrigação de preservar e de defender.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

Permitir-me-ão as mulheres mais novas que termine sugerindo-lhes que cultivem os direitos que recebem, que nunca julguem que o que quer que seja está garantido, que não aceitem o mundo que ainda divide os sexos por tarefas e por funções, que se revoltem contra a violência e que, sobretudo, nunca pensem, em relação à violação dos direitos das mulheres, onde quer que ocorram, que "só acontece às outras".

Aplausos do PSD, do CDS-PP e do Deputado do PS Augusto Santos Silva.

O Sr. Presidente: - Igualmente para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Alda Sousa.

A Sr.ª Alda Sousa (BE): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: A 8 de Março comemoraram-se 147 anos sobre a data em que centenas de operárias norte-americanas foram barbaramente espancadas quando participavam numa manifestação em defesa da jornada de trabalho de 10 horas diárias. Estas mulheres protagonizavam a primeira greve exclusivamente feminina na história americana. Exigiam, então, um estatuto igual ao dos homens.
Passados 51 anos, a 8 de Março de 1908, outra manifestação exigia o direito de voto para as mulheres e o fim do trabalho infantil. Em 1910, a II Internacional Socialista propunha que este dia passasse a ser celebrado como o Dia Internacional da Mulher, para assinalar a luta das mulheres pela sua emancipação. E assim se faz, desde então.
São quase 100 anos de comemorações para uma luta que nunca termina. Um ano depois da aprovação da iniciativa, em 1911, em Nova Iorque, um grupo de mulheres trabalhava como sempre, trancada nas

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instalações de uma fábrica. A jornada de trabalho era, ali, de 16 horas diárias e as mulheres ficavam fechadas, para que não tentassem sequer sair da fábrica. Um fogo deflagrou e, não podendo escapar, 146 mulheres morreram carbonizadas. O dono da fábrica viria a ser julgado e condenado a pagar 20 dólares de indemnização - 20 dólares pela morte de 146 mulheres! Era isto que valia a vida de uma mulher em 1911: 13 cêntimos!
Muita coisa mudou desde então. Tudo o que mudou foi conquistado a pulso, pela luta de milhares e milhares de mulheres. O direito ao voto, o direito à voz, o direito ao divórcio, o direito ao trabalho, o direito a sair do país, o direito à educação, o direito ao prazer, o acesso a cargos políticos, nada foi oferecido. E basta olhar para a composição de género das instituições políticas para perceber como ainda há tanto para conquistar. Por isso, Sr.as e Srs. Deputados, o dia 8 de Março não foi criado para oferecer flores ou galanteios. O dia 8 de Março nasceu como uma luta e uma luta continuará a ser. 13 cêntimos era quanto valia a vida de uma mulher em 1911. E, hoje, quanto valem as mulheres?
Hoje, nesta mesma Assembleia da República, uma associação de fanáticos e fundamentalistas organizou um debate para defender uma mentira sem qualquer credibilidade: que há uma relação de causalidade entre o aborto e o cancro da mama. Pouco interessa que todos os estudos científicos desmintam tal enormidade; o que interessa é assustar.
Mas o mais extraordinário é que a conferencista que tem hoje o desplante de entrar nas instalações deste Parlamento para divulgar crendices é presidente de uma associação australiana que defende explicitamente a desigualdade de oportunidades entre mulheres e homens no acesso ao emprego, que defende que os homens devem trabalhar e que as mulheres devem ficar em casa, e que defende, por exemplo, que as mulheres não são capazes de exercer funções nas forças armadas ou policiais. Esta mesma conferencista, Babette Francis, causou um escândalo no seu país, obrigando uma câmara municipal a pedir desculpas públicas por ter financiado a edição de um livro seu, onde defendia a tal teoria sobre o cancro da mama. O que uma câmara municipal rejeita e denuncia na Austrália tem honras de púlpito na Assembleia da Republica portuguesa.
São estes os grupos que distribuem folhetos aterrorizadores a crianças, invocando o canibalismo em Taiwan e um perigo asiático associado ao aborto, e são estes grupos de fanáticos que têm a maioria PSD como refém.
Quase um século depois, a vida de uma mulher já não vale 13 cêntimos, mas vale mentiras, perseguições e humilhações. A sua dignidade e os seus direitos, no nosso país, pouco valem. Há uma semana, aqui no Parlamento, voltou a ser negado às mulheres o direito a tomarem decisões sobre a sua maternidade. Com o voto impiedoso da direita, as mulheres continuam a estar confinadas, já não a uma fábrica trancada, mas a clínicas de vão de escada e à humilhação de serem investigadas, devassadas na sua intimidade e julgadas e condenadas por abortar. 100 anos depois, ainda há muitas razões para vos dizer, Sr.as e Srs. Deputados, que o 8 de Março não é um dia para dar flores às mulheres.
E essas razões aumentam, porque há sinais preocupantes de regressão. Há poucos dias, a Conferência Episcopal exigiu ao Parlamento que defina o conceito de vida. Ao que chegámos! Há quem queira que o Parlamento decida sobre os debates religiosos ou espirituais, sobre o sentido da vida. Não faltará muito para que alguém nos venha a exigir a criação de uma comissão parlamentar eventual para estudar a ressurreição.
O Parlamento é um órgão de soberania de um Estado laico. O Parlamento não deve, nem vai, discutir concepções teológicas sobre a vida. Essas são do domínio exclusivamente pessoal de cada um e devem ser respeitadas como tal, mas nunca impostas por lei. Registo que todos os grupos parlamentares, com a excepção do silêncio tumular do CDS-PP, rejeitaram de imediato esta intimação.

O Sr. Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP): - Intimação?!

A Oradora: - Por isso mesmo, tenho uma mensagem para a Conferência Episcopal e para os Srs. Bispos,…

O Sr. Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP): - Srs. Bispos?!

A Oradora: - … que entendem que, sendo o aborto um pecado, portanto merecedor de penitência, pedem ao Estado que transforme essa penitência num processo e numa ameaça de pena de prisão!
Srs. Bispos: chegámos ao século XXI e é direito da mulher escolher livremente a sua sexualidade e maternidade, sem ser vigiada, nem tutelada, nem perseguida, nem humilhada!
O Parlamento deve ser claro, sim, devolvendo aos portugueses o direito de decidir se as mulheres devem ir presas por abortar ou se o Código Penal deve ser modificado; se devem ser julgadas ou não. É para tratar disso, e não do fim e o do princípio da vida, que fomos eleitos: para decidir que leis nos regem

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a todos, independentemente da nossa religião ou de não termos religião.
É por isso que venho aqui denunciar o fanatismo. E que melhor exemplo do que o desse inenarrável cronista, João César das Neves, o "Avelino Ferreira Torres dos jornais", que, no Diário de Notícias, escrevia que a esquerda quer impor o direito ao aborto até aos 18 anos?! É a este ponto que chegou o debate. E deve ser este o sinal de alerta para os que se mantêm reféns dos mais fanáticos entre os fanáticos: é que já poucos dão a cara por tamanho absurdo. Está na hora de acabar com isto e de pôr Portugal na Europa.
Mesmo a Polónia, dominada pelos sectores mais conservadores da Igreja, prepara-se para voltar a legalizar o aborto. Seremos os últimos? Não podemos ser! A menos que, como escrevia há anos um colunista, um ilustre director de jornal, depois Deputado e hoje Ministro da Defesa, Portugal se mantenha com "políticas Cro-Magnon" sobre o aborto, que "rejeitam a Europa moral".

O Sr. João Rebelo (CDS-PP): - Cro-Magnon é o seu discurso!

A Oradora: - Quase um século depois, a vida das mulheres já não vale 13 cêntimos. Mas, em Portugal, as mulheres continuam a ganhar menos e a trabalhar mais; continuam a ser as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pela educação dos filhos e a ser permanentemente penalizadas por isso.
Milhares de mulheres são vítimas de violência doméstica. Dezenas morrem por ano. O Bloco orgulha-se de se ter batido aqui - e foi mesmo a sua primeira iniciativa legislativa -, para que o crime de violência doméstica passasse a ser público, lei essa que teve resultados evidentes.
Continuaremos a bater-nos pela defesa da igualdade de direitos, por salários iguais, pelo fim dessa vergonha nacional que são os julgamentos da Maia e de Aveiro e todos os outros que aí vêm.
O dia 8 de Março não foi criado para oferecer flores. Foi criado para a luta pelos nossos direitos, seguindo o exemplo das operárias americanas, das sufragistas do princípio do século, das feministas das décadas recentes. Para que a vida de uma mulher não seja reduzida a 13 cêntimos, nem mesmo ao preço de uma flor.

Vozes do BE: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra a Sr.ª Deputada Cristina Granada.

A Sr.ª Cristina Granada (PS): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Alda Sousa, atendendo ao que temos assistido recentemente, e estando nós a comemorar mais um Dia Internacional da Mulher, sabemos que, neste momento, vale quase tudo para fazer determinadas intervenções, para afirmar determinadas ideias.
Quanto vale a vida de uma mulher? Quanto vale a sua intervenção cívica? O seu espaço de cidadã? Quanto vale a educação, a educação de todos, para a igualdade e para a cidadania? Como se deve promover, de facto, a reflexão em torno de questões tão importantes que afectam as mulheres, mas não só, como a questão do aborto, que não pode ser banalizada nem vilipendiada, que se quer seja uma questão de reflexão de todos, com respeito por todos, pelas posições de todos, numa sociedade onde essa questão, também em debate, deve promover a tolerância, a cidadania e o respeito pela mulher, pelo ser humano, pelo cidadão?
Será que, na luta de ideias, vale mesmo tudo? Assistimos, recentemente, como disse a Sr.ª Deputada, à difusão de um folheto que, segundo o noticiário a que assisti hoje às 9 horas, era falso e que podemos, portanto, taxar de puro terrorismo visual, puro terrorismo educativo. É absolutamente escandaloso e inadmissível que qualquer movimento que defenda a vida promova, com falsidades, intervenções desta ordem! Esse folheto, que foi difundido nas escolas, chocou pais e pedagogos e as crianças, que, a meio da noite, acordavam - e temos testemunhos disso - aos gritos, porque não sabiam verbalizar o que estava a acontecer.
A meu ver, devemos, aqui, sempre e a todo o momento, pronunciar-nos contra este tipo de atitudes. Gostava, pois, de saber qual a sua posição, Sr.ª Deputada sobre estas questões.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para responder, em tempo cedido pelo Partido Socialista, tem a palavra a Sr.ª Deputada Alda Sousa.

O Sr. Alda Sousa (BE): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Cristina Granada, agradeço-lhe o seu pedido de esclarecimento.

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Sr.ª Deputada, partilho da sua preocupação evidente em relação a esse folheto, do chamado "SOS Vida", distribuído no final da semana passada, em várias escolas. É um folheto que revela um fanatismo sem nome e um autêntico terrorismo educativo. Evidentemente, estamos consigo e compartilhamos essa sua preocupação - é uma coisa que não pode continuar a acontecer em Portugal.
Mais recentemente, deparámo-nos com outro tipo de fanatismo, pseudo-científico, com a discussão sobre a possível relação entre o aborto e o cancro da mama, coisa que é completamente desmentida por qualquer investigação científica séria. Basta consultar o site do National Cancer Institute, dos Estados Unidos, para verificar que toda a evidência científica, todos os estudos não referem rigorosamente nada dessa Associação, bem antes pelo contrário. Julgo, pois, que não nos devemos deixar tolher e que devemos protestar veementemente contra esse tipo de fanatismo que vem surgindo.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Isabel Castro.

A Sr.ª Isabel Castro (Os Verdes): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Asseguram o bem-estar das crianças e dos mais idosos; harmonizam espaços; ordenam territórios; planeiam recursos; concertam vontades; inventam de novo para não desperdiçar; reciclam, transformando na criatividade dos seus gestos quotidianos o que outros dizem, mas não fazem. São mulheres!
Representam mais de 50% da humanidade; produzem dois terços do total do total do trabalho realizado; ganham 10% dos salários; detêm 1% da propriedade; são a esmagadora maioria dos analfabetos, as principais vitimas da guerra e a maioria dos refugiados.
Na crueza dos números, esta é a telegráfica revelação do traço dominante do estatuto das mulheres a nível planetário.
Uma discriminação que o inconformismo das mulheres tem, em diferentes latitudes e em todo o mundo, enfrentado e obrigado, ao longo de várias gerações de intervenção e luta, a alterar gradualmente.
Uma mudança que, embora lenta, se reflecte na evolução do direito e em importantes documentos aprovados, em vários fora, a nível internacional.
Um património de direitos paulatinamente alicerçado em documentos, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, em 1989, um instrumento fundamental para o desenvolvimento dos direitos das mulheres, ou a Declaração para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, em 1993. Alicarçado também em documentos estratégicos, que se articulam com programas essenciais, como a Agenda 21, aprovada na Conferência Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, no Rio do Janeiro; o Programa de Acção adoptado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em 1994, no Cairo, este, decisivo para o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e da maternidade enquanto direito e liberdade de escolha responsável e consciente do momento de cada uma ter os seus filhos.
Programas de acção e linhas orientadoras essas, como as definidas na Plataforma de Acção, saída da 4ª Conferência Mundial Sobre as Mulheres, em Pequim, em 1995, todas elas decisivas para a plenitude dos direitos das mulheres, cuja concretização continua, porém, muitíssimo longe de ser concretizada. Ou, dito de outro modo, direitos que são determinantes para o desenvolvimento da sociedade humana, mas que são ignorados em muitos países.
O relatório do Fundo das Nações Unidas para a População assinala relativamente a Portugal um falhanço em relação à corporização dos direitos das mulheres, concretamente aos seus direitos sexuais e reprodutivos, confrontando-nos com a realidade amarga que há poucos dias, aliás, tivemos a hipótese de testemunhar neste mesmo Parlamento ao confirmar a situação altamente preocupante em termos de gravidez adolescente em Portugal, segundo esse relatório de 17%, apenas ultrapassada pelo Reino Unido. Um sinal de que Portugal não cumpre, como devia, os seus deveres em matéria de educação sexual e reprodutiva.
Estas são, pois, para nós, razões acrescidas para que se assinale o dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Um dia que não se esgota nos rituais litúrgicos dos discursos com hora aprazada; um dia que não resulta da pretensa tolerância daqueles que, mesmo dentro desta Câmara, ousam afirmar em relação às mulheres que elas podem estar, que ficam bem, que elas até são simpáticas. Um dia que não é, tão-pouco, uma benesse generosa, um dia que nunca será pretexto para que a sociedade consumista dele se possa apropriar, sempre ávida de novos mercados e transformando-o até naquilo que alguns pretendem patrocinar.
O 8 de Março, que hoje e sempre se assinala, é um dia de luta, é um dia de intervenção, é um dia de inconformismo, é um dia que, hoje e cada vez mais, tem de voltar à sua matriz inicial por razões acrescidas no nosso país. Uma luta imperiosa que convoca mulheres e homens que, bem mais do que a linear lógica de igualdade, reclamam, num registo historicamente inédito, o direito do exercício pleno da cidadania pelas mulheres e, desse modo, uma outra redefinição para a democracia. Uma necessidade

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tanto mais necessária quão dramático se revela o retrocesso vergonhoso que, a este nível, estamos a viver no nosso país.
Um 8 de Março pleno de sentido num País no qual, mais de duas décadas após a aprovação de leis que consagram o direito à educação sexual e ao planeamento familiar e de uma primeira lei que, embora de modo muito limitado, permitia o aborto em determinadas situações, se está a assistir ao retrocesso e à persistência de toda uma pesada cortina de cumplicidades, de silêncios, de intolerâncias e de obscurantismo em torno da sexualidade.
Um 8 de Março que faz sentido num País em que o corpo das mulheres é tratado como objecto de delito, em que o obscurantismo se instalou no poder, a sexualidade é tratada como um tabu e o aborto clandestino é mantido como sinónimo da negação de facto às mulheres de um direito essencial: o direito de terem e de escolherem o momento de terem os seus filhos.
Um 8 de Março pleno de significado num País em que movimentos fundamentalistas ousam e não hesitam, para defesa das suas opiniões e da manutenção da criminalização, em utilizar materiais obscenos e com eles confrontar crianças nas escolas.
Um 8 de Março pleno de sentido perante um poder intolerante que, totalmente à margem dos seus parceiros europeus, não sé nega às mulheres a auto-determinação intelectual e a capacidade de tomarem decisões conscientes e responsáveis como a própria vivência da sexualidade. Uma negação que não é, seguramente, estranha ao próprio olhar estigmatizante de alguns que discriminam a orientação sexual de cada um e que tratam a homossexualidade como se de um comportamento desviante se tratasse.
Um 8 de Março, ainda, que, do nosso ponto de vista, se assinala e faz pleno sentido em nome das mulheres portuguesas que, estando por sua conquista, pela sua vontade, pela sua determinação, em massa nas escolas e no mercado de trabalho, sendo nas primeiras já hoje a maioria dos licenciados, continuam a ser discriminadas no acesso ao emprego, nos salários e na promoção da sua carreira em função da sua maternidade.
Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Falar hoje do 8 de Março poderia ser falar do muito que se transformou na nossa sociedade, mas falar do 8 de Março, falar das mulheres, daquelas que "mergulham" o seu quotidiano na realidade não pode deixar de ser, sem hipocrisias, de falar do todo muito que está por fazer e dos enormes retrocessos que, a este nível, no nosso país, lamentavelmente se estão cada vez mais a verificar.

O Sr. Jerónimo de Sousa (PCP): - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Também para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Sónia Fertuzinhos.

A Sr.ª Sónia Fertuzinhos (PS): - Sr. Presidente, Sr.as. e Srs. Deputados: Os diagnósticos estão todos feitos e há muito tempo. A nossa sociedade não avança, o mundo não avança se não soubermos promover a participação equilibrada e com qualidade das mulheres e dos homens. Porque que é que continua, então, a ser tão difícil dar visibilidade pública e política às questões da igualdade de género? Porque é que persiste o entendimento generalizado de que estas são questões de mulheres e, logo, de pouca importância?
Não quero com isto fazer o discurso da desgraça e muito menos o choradinho das coitadinhas. Antes pelo contrário, quero sim dizer que a promoção da igualdade de género tem que ser uma prioridade política. Quero sim dizer que, mais do que medidas de discriminação positiva, precisamos, Portugal precisa, de introduzir as bases da mudança na concretização de uma organização social verdadeiramente democrática.
O impacto das leis é diferente na vida das mulheres e dos homens. Se assim não fosse, o nosso quadro legal, que muitos consideram dos mais evoluídos da União Europeia, já teria resolvido as persistentes desigualdades entre mulheres e homens há muito tempo.
É verdade que temos uma elevada participação das mulheres no mercado de trabalho. Mas também é verdade que ganham, em média, menos 30% do que os homens, que são a maioria do trabalho precário e que têm duas vezes mais probabilidades de perder o emprego do que os homens. A maternidade continua a ser dos factores mais importantes na discriminação das mulheres.
Portugal é o país da União Europeia com menos infra-estruturas de apoio à família. A elevada taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho é, assim, feita à custa da acumulação das tarefas. As mulheres trabalham, em média, mais de duas horas por dia. As mulheres portuguesas assumem quase sozinhas a conciliação das vidas privada e profissional.
E as novas gerações? É comum ouvirmos dizer que com a juventude tudo isto, no futuro, será apenas lembrança do passado. Quando olhamos os resultados do inquérito aos usos do tempo percebemos que há

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um avanço na partilha das tarefas domésticas, mas é quase insignificante. E quando pensamos nos jovens universitários devemos ter presente que se são as jovens que acabam mais depressa os cursos e com melhores médias também são as jovens que demoram mais um ano que os rapazes a conseguir emprego, que continuam a ser mais mal remuneradas e que mesmo com melhores qualificações não acedem aos melhores empregos. O êxito escolar não garante por si só o êxito social!
É com este quadro que queremos, e garantimos, competitividade, produtividade e crescimento económico? É com este quadro que vamos convergir com a Europa e vamos estar dentro de 10 anos, como diz o Sr. Primeiro Ministro, entre os melhores dos melhores? É obvio que não!
Sabemos que este é um problema estrutural; sabemos que é um problema que tem na base os estereótipos que definem papéis sociais exclusivos para homens e para mulheres; sabemos que é um problema também de mentalidades, mas também sabemos que os estereótipos não são de inspiração divina, nem são definidos naturalmente, resultam da construção humana ao longo do tempo.
E perante isto fazemos o quê? O que faz a sociedade? E a Assembleia da República que consequências retira para a sua acção política?
Nestes tempos de crise as mulheres têm sido o rosto do inconformismo. Teimam em não aceitar o desemprego como uma fatalidade, que já vai em quase 0,5 milhão de pessoas, na sua maioria mulheres. Qual é a resposta do actual Governo e da maioria parlamentar de direita?

O Sr. António Costa (PS): - Bem perguntado!

O Orador: - Quatro exemplos definem este Governo e esta maioria na relevância que dão à igualdade das mulheres e dos homens na sua acção política.
Primeiro: violência doméstica. O Governo PSD/CDS-PP acabou com o Projecto Inovar que, entre outras coisas, permitiu formar os agentes de segurança nesta área, criar espaços de atendimento às vítimas de violência nas esquadras e incluir nos currículos dos cursos de formação dos agentes a área da violência doméstica.
Por incrível que pareça, a acção governativa nesta matéria resume-se ao apelo do Sr. Ministro Morais Sarmento à denúncia pelos cidadãos de casos de violência doméstica que conheçam, como a grande medida para uma maior eficácia no combate ao que reconheceu ser um flagelo, tendo a coordenadora do 2.º Plano Nacional contra a Violência Doméstica vindo anunciar há uns meses, como novidade, a formação de agentes de segurança já realizada, prevista e garantida pelo Projecto Inovar que referi.
Segundo exemplo: Código do Trabalho. É inacreditável que as mulheres sejam definidas, em pleno séc. XXI, como um grupo socialmente desfavorecido, e, no entanto, é o que se pode ler num artigo do Código do Trabalho sobre igualdade, que para além desta aberração inclui outra, que é a de misturar no mesmo plano mulheres, deficientes, minorias e tudo o resto.
Grande parte do que diz respeito à promoção da igualdade de género foi remetido para regulamentação e não consta como princípio estruturante do Código do Trabalho, como é o exemplo flagrante da conciliação. E como se não bastasse, Srs. Deputados, o actual Governo não tem vergonha de, tendo apresentado um projecto inicial que excluía direitos como a licença para internamento hospitalar, os quinze dias de licença de paternidade no final dos quatro meses ou a irrenunciabilidade da licença de paternidade, reclamar estes mesmos direitos que já estavam na lei anterior e que tinha excluído do projecto de lei inicial, como sinal da defesa intransigente da igualdade e, pasme-se, da família.

Aplausos do PS.

Terceiro exemplo: a proposta de lei de bases da família, que está neste momento a ser discutida na Comissão de Trabalho e dos Assuntos Sociais. Se dúvidas houvesse de que este Governo defende e aposta num modelo de sociedade que não serve a nossa realidade social esta proposta seria a prova evidente.
A maioria aparenta repetir preceitos constitucionais, mas o que objectivamente faz é reescrever para menos o que já garante hoje a nossa Constituição. O PSD, amarrado ao conservadorismo do CDS-PP, alinha na ideia de criar as condições sociais que remetam as mulheres para os cuidados à família e os homens para a garantia do sustento familiar. Este Governo não só não combate os estereótipos que estão na base da desigualdade entre as mulheres e os homens como os promove e agrava.
Quarto exemplo: proposta de aumento da licença de maternidade de mais um mês para as mães, com redução do subsídio. À pergunta de se esta medida não fragilizaria a situação das mulheres no mercado de trabalho, aumentando a discriminação das mulheres em função da maternidade, o Sr. Ministro Bagão Félix respondeu que "inevitavelmente que sim", mas contra-argumentou dizendo que, mesmo assim, a sociedade beneficiaria com a medida.

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Como é que consegue este Governo beneficiar a sociedade com medidas perfeitamente contrárias à sua evolução? É diminuindo os direitos de paternidade e maternidade que o Governo promove a família e promove, por exemplo, o aumento da natalidade? É não criando condições que promovam a partilha das responsabilidades profissionais e familiares, antes pelo contrário, que o Ministro Bagão Félix promove a família? É não apresentando uma única medida de combate ao desemprego das mulheres, que são a maioria dos desempregados, que este governo espera combater o desemprego, se algum dia for essa a sua prioridade? É não promovendo a qualidade do emprego das mulheres, que são quase metade da mão-de-obra do País, que este Governo e esta maioria parlamentar de direita esperam aumentar a produtividade e a competitividade?
É inadmissível, Sr.as e Srs. Deputados, que o actual Governo e a maioria de direita comprometam de forma tão despudorada o nosso futuro, o futuro das portuguesas e dos portugueses, por manifesta incapacidade de se libertarem da sua retrógada ideologia conservadora que teimam impor à nossa sociedade.

Aplausos do PS.

Se os quatro exemplos que referi não fossem suficientes para tornar evidente que este Governo e esta maioria de direita não atribuem relevância, não servem, não têm soluções adequadas para os problemas do dia-a-dia das pessoas, das famílias e das mulheres em particular, a recente posição que assumiram sobre a despenalização do aborto acaba com quaisquer dúvidas.
Para esta maioria os interesses da coligação estão à frente dos direitos das mulheres, da sua dignidade, da sua saúde. A coligação é quem mais ordena, mesmo perante a humilhação pública das portuguesas nas perseguições, inquéritos, acusações e julgamentos que decorrem da aplicação da lei que a maioria impede que seja alterada.
No passado dia 8 de Março recebi de uma educadora de infância o resultado de um questionário a crianças de 4 e 5 anos sobre o que é ser mulher ou homem. Não resisto a ler o resultado: "O que é ser mulher? É ser trabalhadora, é lavar o carro, é limpar a casa, é ser grande, é estender a roupa, é lavar a loiça, é varrer o chão, é lavar a roupa, é aspirar a casa, é passar a ferro, é cozinhar, é tomar conta dos filhos, etc. O que é ser homem? É jogar playstation, é passear, é ir ao café ver televisão, é estar sentado a ver televisão, é ver futebol, é levar os filhos ao barbeiro, é comer e dormir, é berrar com a mãe."

O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP)(: - É tão ridículo!

A Oradora: - Sr.as e Srs. Deputados, termino, fazendo a mesma pergunta com que comecei esta intervenção: porque é que a igualdade das mulheres e dos homens continua tão invisível no plano da discussão pública e política se a essa invisibilidade correspondem, proporcionalmente, as dificuldades de desenvolvimento social e económico do nosso país?

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra a Sr.ª Deputada Teresa Morais.

A Sr.ª Teresa Morais (PSD): - Sr. Presidente, começava por fazer dois ou três breves comentários à intervenção da Sr.ª Deputada Sónia Fertuzinhos.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer-lhe que são sempre bem-vindas intervenções que apelam para os direitos das mulheres e para a sua defesa, mas não são bem-vindas quando são injustamente agressivas para com quem também defende os direitos das mulheres. E o Partido Socialista não é o único a fazer isso e a fazê-lo bem!

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

Aliás, a Sr.ª Deputada Sónia Fertuzinhos teve hoje o grande mérito de transformar aqui em polémica uma questão que é consensual para todas as bancadas,….

Vozes do PS: - Não é, não!

A Oradora: - … que é a da defesa dos direitos das mulheres, independentemente da maneira como essa defesa é feita. E fê-lo agredindo, pelo que quero dizer-lhe duas ou três coisas.
Em primeiro lugar, o Projecto Inovar, como a Sr.ª Deputada saberá, era, desde o início e pela sua

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natureza, um Projecto provisório, uma experiência-piloto, feita restritamente numa área do País, cuja avaliação seria feita de forma positiva e continuada. E está a ser continuada: não terminou a formação especial de agentes, não terminou o atendimento especial a vítimas de violência doméstica nas esquadras, o 2.º Plano contra a Violência Doméstica, como a Sr.ª Deputada sabe muito bem, continua a prever tudo isso e está ser feito.
Aliás, ainda ontem a Presidente da CIDM me dizia que, no final do mês de Março, vai ser feito um novo ponto de situação relativamente à aplicação do Plano e que se está a fazer um levantamento das casas-abrigo, que, neste momento, não estão a funcionar em perfeitas condições, estando em elaboração o regulamento-geral e um regulamento-tipo relativamente ao funcionamento dessas casas. Está, portanto, a ser desenvolvido muito trabalho no âmbito do combate à violência doméstica, pelo que não é justo que a Sr.ª Deputada faça a observação que fez quanto à formação dos agentes porque não é verdade.

Vozes do PSD e do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: - Gostaria também de dizer-lhe que, naturalmente, é lamentável que os alunos tenham os estereótipos tão assumidos que respondam que "ser mulher é estender roupa, é lavar roupa, é lavar loiça…" e que "ser homem é ler o jornal, é ver televisão, é pôr chinelos…" Todas nós lamentamos isso - todos nós, atrevo-me a dizer.

Aplausos do PSD.

Mas a pergunta que lhe coloco, Sr.ª Deputada, é a seguinte: a quem é que a Sr.ª Deputada atribui a culpa disso? Também é ao Governo e à maioria?!

O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP): - Muito bem!

A Oradora: - Provavelmente, tal deve-se a muitos anos de passagem de estereótipos através da educação, e esses muitos anos não começaram há dois anos atrás.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra a Sr.ª Deputada Sónia Fertuzinhos.

A Sr.ª Sónia Fertuzinhos (PS): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Teresa Morais, não foi capaz de desmentir uma única coisa do que eu disse em relação à inacção deste Governo em muitas áreas.

Aplausos do PS.

Portanto, Sr.ª Deputada, caso se tenha sentido agredida, foi eventualmente por eu estar a dizer muitas verdades que têm implicações concretas no dia-a-dia das pessoas, nomeadamente das mulheres.
Nesse sentido, o dia 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher, não serve para o consenso se desse consenso nada advier.

O Sr. José Magalhães (PS): - Muito bem!

A Oradora: - No momento em que o País atravessa uma crise grave, em que as mulheres são das mais afectadas por essa crise, e a que o Governo não dá resposta,…

O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP): - Não tem resposta?! Isso é demagogia barata!

A Oradora: - … a Sr.ª Deputada não esperava que um partido da oposição, o segundo maior partido de Portugal, viesse aqui dizer que estava tudo bem e que tudo era óptimo porque as mulheres, coitadas, precisam de rosas no dia 8 de Março. Não é isso, Sr.ª Deputada.

Aplausos do PS.

A Sr.ª Deputada diz que lamenta… Também nós lamentamos imensas situações da nossa sociedade, mas do lamento nada vem. O que é preciso, para além de lamentar, é agir.

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O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP): - Olha quem fala!

A Oradora: - Ora, este Governo não só não age no sentido certo como cria condições para retrocessos em muitos dos direitos que já estavam garantidos e que, aliás, vieram do 25 de Abril, da tal Revolução de que este Governo parece ter medo…

Vozes do PS: - Muito bem!

A Oradora: - Sr.ª Deputada, o exemplo que dei das respostas dos meninos e das meninas ao questionário não é para atribuir culpas, Sr.ª Deputada.

A Sr.ª Teresa Morais (PSD): - Ah!

A Oradora: - Aliás, a Sr.ª Deputada pensa que tudo o que eu disse foi para culpar a maioria, mas não foi. Nós não temos o comportamento que vocês têm em relação aos governos do PS. Há uma pequena diferença, Sr.ª Deputada.

Protestos da Deputada do PSD Teresa Morais.

Eu não atribuo culpas, até porque "a culpa morre sempre solteira". Quero é garantir que há resultados, que há progresso na sociedade portuguesa, mas não é com este Governo.
Aliás, o Código do Trabalho, em matéria de igualdade, foi defendido, por parte do Grupo Parlamentar do PSD, por Deputados independentes que têm as posições mais radicais e mais conservadoras dentro do próprio Grupo. É natural que esta situação vos incomode, mas a culpa não é nossa. Os senhores é que escolhem os vossos porta-vozes. Esse é um sinal que dão à sociedade.

Aplausos do PS.

Protestos do PSD.

Sr.ª Deputada, se o dia 8 de Março serve para algo é para tentarmos dar uma resposta ao inconformismo das mulheres. Elas merecem a nossa resposta. Não merecem a nossa pena e muito menos o nosso lamento. Foi esse o sentido da intervenção que fiz.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Isabel Gonçalves.

A Sr.ª Isabel Gonçalves (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: O mundo assinalou, no passado dia 8, o Dia Internacional da Mulher.
Os acontecimentos motivados pelas reivindicações das operárias de têxteis em Nova Iorque, há 147 anos, estiveram na origem da comemoração do Dia Internacional da Mulher.
Apesar de comemorado desde 1909, o Dia Internacional da Mulher só veio a ser proclamado pelas Nações Unidas em 1975 e somente em 1979 foi aprovada a Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Hoje existem ainda cerca de 90 Estados que não ratificaram esta convenção.
As mulheres têm vindo assim, numa luta de muitos anos, a conseguir fazer valer a sua igualdade perante uma sociedade tradicionalmente masculina e aos poucos vão-se tornando aos olhos do mundo mais iguais.
Apesar desta luta e segundo as Nações Unidas, as mulheres não atingiram ainda a igualdade real em nenhum país do mundo. Isto porque a igualdade não se concretiza pela simples criação de leis ou convenções anti-discriminatórias.
Quando falamos de igualdade entre mulheres e homens falamos de igualdade na plenitude dos direitos, das responsabilidades e das oportunidades entre as mulheres e os homens.

A Sr.ª Isménia Franco (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - Esta igualdade na perspectiva do género não significa assim que as mulheres e os homens se venham a identificar mas, sim, que seus os direitos, as responsabilidades e as oportunidades de

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todos e de cada um não dependam do facto de terem nascido mulher ou homem. Mulheres e homens são iguais, isso sim, na medida em que partilham todos a mesma condição: a condição humana.

O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP): - Muito bem!

A Oradora: - A igualdade é, então, uma questão de direitos humanos e é também uma questão prévia e primordial para a concretização de um desenvolvimento sustentável centrado no ser humano.
Com a comemoração de mais um Dia Internacional da Mulher ocorre, então, reflectir sobre os avanços que as mulheres nessa luta diária têm vindo a conseguir ao longo dos tempos, luta essa sempre norteada pelos ideais de igualdade, de justiça e de liberdade.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: - Em Portugal, também neste domínio se tem vindo a registar, nas últimas décadas, uma notória evolução.
Nesta evolução registam-se o aumento da taxa de actividade feminina, o aumento do nível de instrução das mulheres e o aumento do nível de instrução da população portuguesa, que é derivado do facto do número de mulheres que possuem quer o ensino básico, quer o secundário, quer o superior ter aumentado e do facto da diminuição do número de mulheres que não possuem qualquer nível de ensino completo.
A importância das mulheres relativamente à população activa total cresceu nas últimas décadas, enquanto que a proporção de população activa masculina decresceu nesse mesmo período.
Mas a evolução da taxa de participação feminina nos lugares de decisão não acompanhou a evolução de Portugal nos últimos anos, nem tão pouco a evolução do papel da mulher na sociedade portuguesa.
As universidades já formam mais mulheres do que homens, mas continua a haver poucas mulheres no desempenho de cargos públicos.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: -No quadro da participação política é também notória a limitada presença feminina neste Parlamento, no Parlamento Europeu, em autarquias e não resulta, com toda a certeza, de qualquer menor competência ou incapacidade específica. No entanto, e todos nós sabemos, a Constituição da República Portuguesa dispõe que "A participação directa e activa dos homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação dos sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo, no acesso a cargos públicos".
Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Há as leis e há os factos, e a proclamada igualdade só é real se consideramos que a existência de uma lei é uma realidade prática. Assim, e apesar dos muitos avanços verificados, continua a constatar-se uma grande distância entre uma situação ideal e a situação real.
Os ganhos são consideráveis se nos contentarmos com um reconhecimento formal dos direitos, mas são muito diminutos se pensarmos no grau de participação que as mulheres têm na condução da nossa sociedade, designadamente na gestão da vida pública.
A igualdade de tratamento entre mulheres e homens é um princípio fundamental no direito português e no direito comunitário. No entanto, nem a igualdade constitucional legalmente estabelecida nem a presença das mulheres no mercado de trabalho têm sido suficientes para a realização de uma efectiva igualdade entre mulheres e homens. Nem as mulheres nem os homens têm tido, de facto, as mesmas oportunidades.
Portugal é um dos países da União Europeia em que as mulheres mais trabalham a tempo inteiro, mas também são as mulheres as mais atingidas pelo desemprego e as que auferem salários mais baixos.
Mas a eliminação das formas de discriminação requer de todas as partes implicadas esforços e políticas deliberadas, orientadas e coerentes durante um período de tempo que acaba por resultar sempre maior do que seria desejável e a luta contra as formas de discriminação não é só um dever dos governos mas, sim, uma responsabilidade de todos nós. Uma responsabilidade que reconhece a identidade de cada ser humano e o respeito de cada um por si próprio e pelos outros. Uma responsabilidade que reconhece e consagra a proibição de todas e quaisquer formas de discriminação contra as mulheres, nelas se incluindo, naturalmente, a eliminação da violência.
Preocupados com a defesa dos direitos das mulheres e neste pressuposto de luta contra qualquer forma de violência, apresentámos nesta Câmara uma iniciativa que visa a penalização das práticas de mutilação genital feminina. Porque a prática de mutilação genital feminina só é comparável à tortura e

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esta forma de tortura tem a agravante de, na maioria dos casos relatados, ainda que não no nosso país, ser praticada quase sempre em crianças que amanhã serão mulheres mutiladas para o resto das suas vidas.
A violência doméstica é um outro problema dos nossos dias, cuja prática tem vindo a ser uma realidade ao longo dos tempos e que ocorre muitas vezes independentemente do grau de instrução ou da cultura dos povos, do seu maior ou menor grau de desenvolvimento.
O II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica 2003-2006 foi apresentado por este Governo e pretende sensibilizar os cidadãos para esta problemática e comprometer toda a sociedade no combate a um crime público com proporções inaceitáveis.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: - No pressuposto da defesa da igualdade entre as mulheres e os homens e numa perspectiva de integração do género em todas as políticas com impacto na vida das mulheres e dos homens, foi ainda apresentado por este Governo o II Plano Nacional para a Igualdade 2003-2006.
Participemos, então, na construção de um mundo mais igual, em que todos os seres humanos, independentemente da sua natureza de homem ou mulher, reconhecendo e aceitando as suas diferenças, contribuam para uma sociedade mais justa, mais humana, mais igual.
Termino citando as palavras sábias de Madre Teresa de Calcutá: "Continua quando todos esperam que desistas (…) Quando não consigas correr através dos anos, trota. Quando não consigas trotar, caminha. Quando não consigas caminhar, usa uma bengala. Mas nunca te detenhas!"

Aplausos do CDS-PP e do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr. Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Dia Internacional da Mulher ficou este ano marcado pelo debate sobre a despenalização do aborto, pela rejeição das propostas que iriam debelar a morbilidade e a mortalidade resultante do aborto clandestino.
É preciso recordar que, segundo a Organização Mundial de Saúde, na Europa, 17% das mortes maternas resultam de aborto inseguro.
Desde o dia do debate agendado pelo PCP passaram-se factos muito graves que provam bem o tipo de "argumentos terroristas" usados por aqueles que querem a condenação de mulheres em penas de prisão e que parecem não conhecer limites à sua acção.
Os que se pronunciam contra a educação sexual nas escolas são os que distribuem panfletos nos estabelecimentos escolares para provocar o terror nos adolescentes e jovens. Trata-se da propaganda mais baixa e reles, de acções verdadeiramente terroristas a que nos começámos a habituar no referendo de há seis anos.
Os que defendem a soberania dos pais na escolha da educação sexual distribuem panfletos sobre o aborto à revelia das associações de pais e contra a vontade destas.

O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Muito bem!

A Oradora: - Estas acções, de resto, enquadram-se no quadro geral de actuação dos movimentos pró-condenação das mulheres que noutros países já mataram mesmo e já usaram de outras violências, invadindo clínicas, ameaçando médicos e pessoal de enfermagem.
Não admira, pois, que não se tenham coibido, esses que acham indecente que os adolescentes falem de sexualidade, de ferir a sensibilidade dos adolescentes e dos jovens.
E nós queremos saber o que fez, ou o que está a fazer, o Sr. Ministro da Educação e o que vai fazer o Ministério do Trabalho.
Os subsídios da segurança social também servem para financiar acções contra os jovens? Também servem para culpabilizar mulheres? Para espalhar o terror de uma vigilância inquisitória, tornando ainda mais esconsos os meandros do aborto clandestino? Ou servem para realizar colóquios, como o que hoje aconteceu aqui, num dos edifícios da Assembleia da República, na chamada Casa Amarela, para apresentar como científico o que o não é, realização essa a que se associou, lamentavelmente, a Ordem dos Advogados, na sua página na Internet.
Não está provada qualquer relação entre o aborto e o risco de cancro da mama.

O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP): - Está, está!

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A Oradora: - Não está, Sr. Deputado!
Repito: não está provada qualquer relação entre o aborto e o risco de cancro da mama, diz-nos o Instituto Nacional do Cancro, dos Estados Unidos da América, apoiando-se nalguns estudos, com destaque para um estudo feito na Dinamarca, pela extensão e profundidade do mesmo. Melhor seria se pegassem no estudo dinamarquês que indicia uma relação de causa-efeito entre o trabalho nocturno das mulheres e o cancro da mama, melhor seria que debatessem essa matéria!

O Sr. João Pinho de Almeida (CDS-PP): - É falso!

A Oradora: - Os dados apresentados por militantes anti-aborto são dados acientíficos,…

O Sr. António Pinheiro Torres (PSD): - Não é verdade!

A Oradora: - Sr. Deputado Pinheiro Torres, são dados acientíficos. Toda a sua construção é acientífica!
Como eu dizia, os dados apresentados por militantes anti-aborto são dados acientíficos, apenas destinados a impedir a liberdade de opção das mulheres.
Foi tudo isto que marcou o dia 8 de Março, demonstrando que o Dia Internacional da Mulher é, de facto, um dia de luta e não de pompa e circunstância.
O Governo esforçou-se, através de dois dos seus Ministros, em desvalorizar a importância do debate sobre a despenalização do aborto.
O Sr. Ministro da Presidência desdobrou-se, como já é seu hábito, em declarações sobre a violência doméstica. O PCP já há muito que vem tratando esse problema. A Lei n.º 61/91, de 13 de Agosto, nasceu de um projecto de lei do PCP.

O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Muito bem!

A Oradora: - A alteração do Código Penal relativamente a maus tratos contém, no fundamental, as propostas do PCP. Está pendente uma proposta de resolução, que o meu grupo parlamentar apresentou, propondo medidas para o combate à violência doméstica. Nessa proposta, estão referidos os números conhecidos de vitimização das mulheres.
Mas o Sr. Ministro da Presidência fez uma afirmação que, a ser verdadeira, coloca Portugal, no mundo, na dianteira da violência doméstica. Na verdade, o Sr. Ministro disse que a violência doméstica era a primeira causa da morte de mulheres. Ora, a Organização Mundial de Saúde afirma, num documento divulgado no ano 2000, que aquela violência, no mundo, é a décima causa da morte de mulheres. Mas o que o Sr. Ministro não disse foi em que lugar se encontrava o aborto inseguro como causa de morte materna, nomeadamente em relação às adolescentes.

O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Muito bem!

A Oradora: - O que não referiu foi os factores de risco que estão na base da violência doméstica, que, segundo o relatório da Organização Mundial de Saúde sobre a violência no mundo são a desigualdade entre homens e mulheres e a pobreza. Não se referiu à violência no trabalho; omitiu a alta taxa de risco de pobreza das mulheres portuguesas; a percentagem elevada de contratos temporários existente em Portugal e a degradação dos salários, mais acentuada nas mulheres. Não referiu nenhum dos dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística no Dia Internacional da Mulher, onde constavam todos estes dados.
Aí, nesse estudo, se vê também que as mulheres retardam o momento em que têm o primeiro filho. Por que será, Srs. Deputados? 30 anos depois de Abril, depois das grandes conquistas que a liberdade trouxe às mulheres, nomeadamente no que toca ao seu bem-estar, as mulheres portuguesas sofrem os efeitos da violência promovida pelo próprio Estado. Mas resistem e lutam contra todos os obscurantismos, e ao Estado exigem o respeito pelo direito à vida.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, terminámos o período antes da ordem do dia.

Eram 16 hora e 5 minutos.

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ORDEM DO DIA

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos dar início ao debate, na generalidade, da proposta de lei n.º 112/IX - Estabelece o estatuto do administrador da insolvência.
Para apresentar a proposta de lei, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça (Miguel Macedo): - Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.as e Srs. Deputados: Dando cumprimento a um objectivo do Governo e a uma necessidade da economia nacional, foi aprovado o novo código da insolvência e da recuperação de empresas, reforma desde há muito reclamada por agentes sociais e económicos.
Os objectivos de tal reforma não se esgotam, contudo, com a aprovação do novo código. De facto, na legislação já aprovada, estão plenamente consagradas soluções e medidas que visam permitir a efectiva recuperação das empresas ou, quando tal se revele inviável ou infrutífero, a insolvência em tempo útil e com garantia de defesa dos interesses dos credores, designadamente dos trabalhadores.
Para que assim seja, a legislação já aprovada consagra soluções que privilegiam a melhor preparação e adequação técnica dos diversos intervenientes. Nesse sentido, relevam especialmente as medidas que passarei a enunciar: em primeiro lugar, a reserva dos tribunais de comércio para a instrução e julgamento das questões relativas a empresas, subtraindo-se deles qualquer competência para a instrução e julgamento de questões relativas a pessoas singulares; em segundo lugar, a liberdade de escolha pelos credores do administrador da insolvência, permitindo-lhes assim um mais activo papel na defesa dos seus interesses, ou ainda a possibilidade de escolha de pessoa não incluída na lista oficial, permitindo assim o recrutamento de pessoas altamente especializadas para casos mais complexos.
A par destas medidas, impunha-se, e impõe-se, a adopção de outras medidas necessárias para assegurar a célere e a correcta condução destes processos. Entre essas medidas, avulta o estabelecimento de um verdadeiro estatuto jurídico, completo e rigoroso, para a actividade de administrador da insolvência, ou seja, aquele a quem é confiada a responsabilidade de administrar os patrimónios das pessoas insolventes.
Na verdade, as actuais normas legais que regem a actividade de gestor e liquidatário judicial são reconhecidamente incompletas e insuficientes, deixando de regular matérias de primordial importância, a que acresce uma comprovada falta de previsão de medidas práticas tendentes à efectiva aplicação dos princípios nelas consagrados.
Há falta de rigor na admissão para as listas oficiais e há falta de actualização das listas oficiais, o que, como é conhecido, em muitos casos, é gerador de sistemáticos atrasos nas nomeações pelos tribunais. Tem sido insistentemente reclamado um regime de nomeação que assegure o cumprimento efectivo das regras de transparência e que afaste suspeitas indesejáveis na prática desta relevante actividade. Não há um efectivo controlo disciplinar desta actividade, por ausência de qualquer estrutura permanente com tal função. O regime de remuneração é inadequado, por ser manifestamente imprevisível e sem qualquer conexão clara com os resultados obtidos e com a celeridade imprimida a cada um dos processos.
Deste diagnóstico, que é consensualmente admitido por todos, que é amplamente partilhado por todos, resulta evidente que a evolução do nosso sistema judiciário bem como a experiência entretanto adquirida na aplicação do regime em vigor impõem a necessidade de clareza nas regras e o pragmatismo e eficácia nas soluções, sob pena de perpetuação de eventuais boas intenções sem efectivação prática.
Neste sentido, a proposta de lei ora submetida à apreciação dos Srs. Deputados visa alcançar quatro objectivos centrais e fundamentais: em primeiro lugar, a melhoria do sistema de recrutamento e de selecção dos candidatos a administradores da insolvência com a instituição de critérios mais rígidos e uniformes; em segundo lugar, a eliminação de qualquer desconfiança sobre as nomeações feitas pelos tribunais; em terceiro lugar, a instituição de um sistema que permita aos tribunais o acesso pronto a um corpo de pessoas efectivamente disponíveis para o exercício das funções de administrador da insolvência; em quarto lugar, uma verdadeira regulação da actividade, através da instituição de um sistema que permita o efectivo controlo disciplinar dos actos praticados no exercício das respectivas funções.
São estes os quatro objectivos fundamentais que prosseguimos na proposta que apresentamos, e é nesse sentido que vão as soluções que consagrámos.
Assim, propomos que o recrutamento para as listas oficiais passe a depender de um exame prévio escrito, que comprove a aptidão teórica, sendo ainda exigidos requisitos de idoneidade, até agora inexistentes na lei.
Em segundo lugar, é criada uma única comissão, em regime de permanência, responsável pelo recrutamento dos administradores para as listas oficiais e pela supervisão do exercício das suas actividades, em substituição das actuais quatro comissões distritais, o que resultará num "ponto final" na indesejável situação de dispersão que não facilita a verificação do cumprimento de todas as regras e

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exigências estabelecidas na lei.
É também instituído um adequado regime sancionatório, até agora inexistente ou inadequadamente existente, permitindo o cancelamento imediato das inscrições em caso de negligência grave ou de prática de acto ilícito no exercício destas funções.
São eliminadas importantes restrições ao exercício da actividade. Ao contrário do que está previsto na lei actual, permite-se a inscrição em mais do que uma lista distrital. Propomos ainda o fim do limite temporal de 10 anos a que está sujeita esta actividade nos termos da lei actual e a não restrição a um limite máximo quanto ao número de processos sob a responsabilidade de um administrador da insolvência.
Tudo isto porque pretendemos que esta actividade passe a ser exercida por pessoas com uma estrutura permanente de apoio, estruturada para responder com eficácia e profissionalismo às responsabilidades que, por lei, lhe são cometidas.
São introduzidos meios informáticos na gestão das listas oficiais por forma a assegurar, por um lado, a actualização permanente destas mesmas listas, para que delas não constem pessoas indisponíveis para o exercício das funções e, por outro, garantindo o carácter aleatório das nomeações, o que se traduzirá num claro reforço de regras de transparência.
É ainda definido um regime claro e objectivo de remuneração dos administradores da insolvência, obviando à arbitrariedade actualmente existente, em que a lei não fixa qualquer critério objectivo de que o juiz se possa socorrer.
Assim, estabelecem-se critérios objectivos a que o juiz deve obedecer na fixação da remuneração, critérios esses que têm por base um valor fixo relativamente reduzido, acrescido de um valor variável em função dos resultados efectivamente obtidos para os credores. Ou seja, pretendemos que a remuneração devida seja determinada pelo esforço, pela eficácia, pelo profissionalismo e pelos resultados obtidos na actividade de administração da insolvência.
Por outro lado, permite-se aos credores - e esta é uma importantíssima alteração -, quando sejam estes a proceder à nomeação do administrador da insolvência, que sejam também estes a fixar a respectiva remuneração. Esta faculdade tem especial relevância quando tal ocorra no âmbito da aprovação de planos com a finalidade de recuperação de empresas.
Por último, não poderia deixar de se prever um regime de transição que respeite os direitos e as expectativas daqueles que actualmente se encontram inscritos nas listas oficiais de gestores e liquidatários judiciais. Assim, permite-se aos actuais inscritos o acesso, mediante a prova do efectivo exercício da actividade, às novas listas oficiais de administradores da insolvência que pretendemos criar ao abrigo da lei que ora propomos.
Desta forma, não se frustram as legítimas expectativas de prossecução da actividade, aproveitando-se, simultaneamente, para sanear das listas as pessoas que não exerçam com carácter de efectividade esta actividade.
Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.as e Srs. Deputados: O Governo assume, com a apresentação desta proposta de lei à Assembleia da República, as suas responsabilidades.
Entendemos - aliás, dissemo-lo repetidamente ao longo dos dois anos de mandato que levamos - que é necessário em vários domínios, e também no da justiça, introduzir regras que garantam verdade e transparência na nossa economia e a proposta que hoje apresentamos vai nesse sentido. É uma proposta importante, que complementa de uma forma que entendemos adequada aquilo que já aprovámos em termos do novo código da insolvência e da recuperação da empresa.
É por isso que aqui estamos, prontos para discutir com esta Assembleia as soluções que aqui propomos, é por isso que acreditamos nelas e é por isso que defenderemos as propostas que aqui fazemos.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Francisco Louçã.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado, apresentou aqui a proposta de lei do Governo e quero fazer-lhe uma pergunta sobre o respectivo Capítulo V, não sem antes lhe dizer que tudo o que diz respeito à substituição do regime anterior de gestores e liquidatários judiciais por um regime mais disciplinado, mais organizado, mais eficiente, de administradores da insolvência, que possam ser seleccionados e cuja actividade possa ser verificada, tem naturalmente a nossa simpatia.
Mas o Capítulo V, que fixa a remuneração destes administradores da insolvência, suscita, entre outras, uma questão muito importante, que é a da utilização dos recursos da empresa que está na condição de insolvência para o pagamento dos credores e do administrador.

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Chamo a atenção do Sr. Secretário de Estado para o artigo 23.º, mas esta questão talvez se possa aplicar a outros artigos e por isso peço-lhe que esclareça qual é o seu entendimento sobre a sua aplicação.
O código da insolvência, de que decorre esta proposta de lei, estabelece que, se dois terços dos credores assim o determinarem, os créditos podem ser preteridos, sendo esta uma disposição muito polémica porque altera uma inclinação da legislação portuguesa no sentido de estabilizar a prioridade do crédito devido aos trabalhadores na gestão da massa falida. Mas é isto que estipula o código da insolvência.
No entanto, estabelece o artigo 23.º da proposta de lei, ao tratar da remuneração pela actuação na determinação de um plano de insolvência, que o administrador da insolvência, uma vez mandatado pela assembleia geral, pode estabelecer o plano de insolvência, e, neste caso, havendo plano de insolvência, serão derrogadas todas as normas do código.
Portanto, o artigo 23.º estabelece que o administrador da insolvência é remunerado em função do seu trabalho no estabelecimento deste plano, que, por sua vez, supera todas as normas sobre o acesso prioritário dos trabalhadores e de outros credores aos créditos que lhes são devidos no caso de falência. Ou seja, o administrador da insolvência é remunerado por um privilégio que decorre de uma função que estabelece a superação de toda a lógica da determinação dos créditos, tal como é estabelecida no próprio código de insolvência. Portanto, actua, em alguma medida, em benefício próprio e em prejuízo directo dos outros credores, em particular dos trabalhadores.
Quero saber, Sr. Secretário de Estado, como é que vê a compatibilidade desta norma com o princípio geral do predomínio do crédito das pessoas que trabalharam na empresa e que fizeram a acumulação da empresa, nestas circunstâncias.
Esta é a pergunta que lhe quero fazer.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça: - Sr. Presidente, Sr. Deputado, muito obrigado pela pergunta que me formulou e à qual quero responder directamente, considerando-a importante e interessante, dizendo que, sobre esta matéria, não faço a leitura da lei que V. Ex.ª fez, e isto por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, porque no código de insolvência que foi aprovado, do nosso ponto de vista, estão suficientemente garantidos os direitos dos trabalhadores, que até são reforçados, na medida em que, como V. Ex.ª sabe, os trabalhadores, nos termos do novo código - o que não acontecia no anterior -, podem ser pagos antes do prazo habitual da lei que ainda está em vigor pelos créditos que, entretanto, já tenham sido apurados no processo. Esta é uma matéria muito importante.
Não são poucas as notícias (algumas delas até recentes) de processos de falência que ocorreram há vários anos e em que os trabalhadores continuam sem receber um "tostão". Portanto, algumas das medidas que consagrámos no código da insolvência que foi aprovado recentemente reforçam nesta parte, por exemplo, mas não só nesta, os direitos dos trabalhadores.
Em segundo lugar, quero dizer que, ao abrigo deste artigo 23.º que V. Ex.ª citou, o administrador da insolvência não estabelece o plano de insolvência, elabora o plano de insolvência. Depois, este administrador da insolvência verá ou não aprovado este plano de insolvência.
Aquilo que pretendemos com a legislação que aprovámos e aquilo que hoje aqui vimos trazer é, para além do mecanismo normal de o tribunal poder designar administradores da insolvência, reforçando - e julgo que todos estaremos de acordo sobre isso - de uma forma adequada regras de transparência e de responsabilização em relação a quem exerça esta importantíssima actividade, introduzindo regras de transparência, que não existem hoje na lei, e regras de incompatibilidades e de impedimentos que são absolutamente cruciais para moralizar este tipo de actividade, devolvendo, mais do que acontecia no passado, ao conjunto dos credores - e assumimo-lo, porque é uma filosofia que tem a ver com aquilo que entendemos em relação a esta matéria - a responsabilidade pelo destino de uma empresa que está em manifesta dificuldade.
Nesse sentido, permitimos na lei, por exemplo, que os credores possam fazer substituir na condução de um processo destes um administrador nomeado pelo juiz por um administrador por que queiram optar.
Aquilo que dizemos no artigo 23.º é que, quando se encarrega o administrador da insolvência de elaborar este plano de insolvência, que tem de ser aprovado, ele deve ser remunerado por este trabalho de elaboração do plano de insolvência, mas isso não significa a preterição de nenhum dos privilégios que existem e que continuam a existir no código da insolvência, em relação a créditos e a credores que são privilegiados nos termos que aí vêm descritos.
Portanto, se me permite, Sr. Deputado, não faço a leitura que V. Ex.ª faz das consequências que resultariam deste artigo 23.º se, de facto, aquilo que aqui estivesse fosse exactamente aquilo que foi o pressuposto da sua pergunta.

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Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Isilda Pegado.

A Sr.ª Isilda Pegado (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Ministro, Sr. Secretário de Estado, Sr.as e Srs. Deputados: A organização do Estado enquanto estrutura capaz de regular as relações entre os homens, de dirimir conflitos e de criar sinergias de bem comum e solidariedade, tem tido, ao longo dos tempos, formas diversas de se apresentar, todas elas com legitimidades temporais que a História tem apresentado e aclarado, mas nem todas com a mesma eficácia e apetência para uma realização tão adequada quanto desejável do homem, enquanto princípio e fim último do Estado.
Nesta viragem de milénio, onde a globalização e as assimetrias caminham lado a lado e a fome e a superabundância vivem de costas viradas, importa que, com realismo, se atente aos recursos existentes, que são, por natureza, escassos, e que em todas as áreas de governação haja um esforço sério para criar uma cultura de responsabilidade, transparência, mérito e risco que possa melhor servir.
O Estado social da segunda metade do século XX trouxe ao pensamento político a solidariedade e a entreajuda comunitária, espelhadas nas funções sociais do Estado, como a grande descoberta das sociedades que se diziam evoluídas e capazes de gerar satisfação de necessidades louváveis.
Para tanto, o Estado chamou a si a execução de um cada vez maior números de tarefas e prestações, o que teve também consequências nefastas, tornando-o uma máquina pesada, sorvedoura de impostos e limitadora da liberdade individual.
Este Estado social substituiu os corpos sociais intermédios, eliminando-os ou reduzindo-os à sua expressão mínima, e está hoje em alguns aspectos à beira da falência (veja-se a segurança social) ou da ineficácia (veja-se a saúde e a educação).
É por isso necessário criar, inventar, um Estado garantia que não se confunda com um Estado liberal, porque, de facto, não se anda para trás na História, e, tal como já referi, a segunda metade do século XX criou na sociedade a consciência de que há um conjunto de funções que implicam solidariedade, entreajuda e organizações de suporte. Falamos de necessidades como a educação e a saúde e o apoio à infância, à velhice ou ao desemprego, a que hoje ninguém nega legitimidade.
Porém, o Estado social, fundamentado no bem comum, essa alavanca e meta da política, tem sido também o meio capaz de justificar páginas de História que, em vez de construir, destruíram o homem.
Em suma, o bem comum é atraiçoado pela política de mercado e pela política estadista, sendo certo que Estado e o mercado mantêm um papel determinante. Mas, a par destes, importa que da sociedade, do homem, nasçam e cresçam corpos sociais intermédios capazes de responder às exigências colectivas de uma forma mais próxima, menos intervencionista e espartilhada e, por isso, com melhor aproveitamento de recursos e de resultados. Esta é a política de subsidiariedade que encontra expressão clara em muitos diplomas da Comunidade Europeia e na nossa própria Constituição.
É fácil e comum dizer-se que Portugal não tem uma tradição de liberdade na economia, na organização social ou no ensino. Para tanto apontamos, historicamente, os monopólios de Pombal, o mercantilismo do Conde da Ericeira e de Costa Cabral ou o Estado Novo. Reconhecemo-nos como "Estado-dependentes" e, nas últimas fases da História, como "subsídio-dependentes". O diagnóstico é fácil de fazer, difícil é o prognóstico.
Há, no entanto, sinais claros na sociedade de aceitação do risco, da responsabilidade e da liberdade que nos permitem ter esperança. Esperança no crescimento da sociedade enquanto motor de um país; esperança num Estado que livremente se despoja de certas tarefas e as entrega à sociedade civil; esperança na capacidade do Estado de fiscalizar a prestação de serviços de interesse público prestados por entes não estatais; e esperança na promoção e criação de meios capazes de fomentar a auto-afirmação de corpos sociais intermédios.
Está nesta linha a entrega a particulares, sejam eles sociedades, IPSS ou fundações, da prestação de serviços como a saúde, a educação e a assistência na infância ou na velhice; está nesta linha a autonomia de determinadas profissões ou a criação de novos ramos de actividade profissional até aqui entregues à função pública.

O Sr. António Pinheiro Torres (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - Meio século chegou para provar que o Estado faz caro e, por vezes, mal. Daí a insatisfação social, cujas consequências políticas estão por determinar. Urge, por isso, mudar.
Sr.as e Srs. Deputados, para que se verifique transferência na execução destas nobres funções é também necessário um Estado de retaguarda, que fiscalize, que regulamente e que afira do cumprimento das funções

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de interesse público. Será, então, um Estado garantia.
Depois do Estado das liberdades, depois do Estado dos direitos, impõe-se o Estado que não negue aqueles direitos e liberdades mas que seja mais do que aqueles, um Estado garantia. E a proposta de lei n.º 112/IX apresenta-se-nos como mais um dos instrumentos capazes de construir esse Estado.
Nesta matéria, não estamos, de todo, a inovar, pois os governos e os políticos que nos antecederam, desde 1993, palmilharam já algum caminho. Porém, o novo estatuto, não negando direitos adquiridos, vem reconhecer aos administradores da insolvência um papel claro de colaboradores com a justiça, sujeitos aos deveres deontológicos e de idoneidade dos agentes da justiça e organizados como classe profissional que assegura à sociedade e à justiça a prestação de um serviço de interesse público.
A transparência com que esta nova classe social vê agora reconhecida a sua actividade e estatuto e o equilíbrio encontrado para uma remuneração que, apesar de tabelada, premeia os que mostram melhores resultados, é, seguramente, um passo paradigmático no sentido do "emagrecimento" do Estado, da autonomia social e de melhor gestão de recursos, que, quando chegados ao processo de insolvência, são, por definição, insuficientes.

O Sr. António Pinheiro Torres (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - Neste sentido, está já a funcionar o solicitador de execução, seguramente com falhas, não o negamos. Mas sem inovação não há progresso e este tem custos.
O diploma que agora estamos a apreciar, sobre o estatuto do administrador da insolvência, entrega a uma comissão nacional independente a aferição da capacidade e a nomeação dos profissionais da administração da insolvência. Quer os agentes quer essa comissão estão devidamente regulamentados e prestam contas à Direcção-Geral da Administração da Justiça.
Sr.as e Srs. Deputados: Há mais de 20 anos que carpimos a falta de um sociedade civil forte, e uma sociedade civil forte não se faz por decreto ou por lei, mas a lei e o decreto podem fazer muito pela sociedade civil,…

O Sr. António Pinheiro Torres (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - … porque também o Estado fica melhor e mais capaz, dedicando-se de forma mais efectiva às funções de soberania, como a segurança, a aplicação da justiça, a elaboração de leis, a defesa nacional e a rede pública viária, e sempre, mas sempre, na retaguarda das funções sociais que não estejam a ser cumpridas pelos corpos sociais intermédios. Também isto se prevê neste proposta de lei; é uma nova cultura política e social.
Uma sociedade civil forte exige a adesão ao risco, não o risco da radicalidade mas, sim, o risco da liberdade.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Osvaldo Castro.

O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados, Sr. Secretário de Estado da Justiça, é sempre um gosto vê-lo aqui.
Com a apresentação da proposta de lei n.º 112/IX, que estabelece o estatuto do administrador da insolvência, prossegue o Governo a reforma do direito falimentar, iniciada com a apresentação à Assembleia da República da proposta de lei de autorização legislativa para a aprovação de um novo código da insolvência e a revogação do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência. Como é conhecido, na sequência dessa autorização, o Governo aprovou o código da insolvência, que aguarda a respectiva publicação.
Como então dissemos, em sede de discussão na generalidade, o Governo optou por conferir ao novo código um peso determinantemente falimentar em detrimento do regime vigente, que nem sequer estava ainda devidamente experimentado e sedimentado.
Neste Código, a recuperação de empresas em situação difícil, não obstante com viabilidade económica, desempenhava ainda uma importância relevante para a economia de muitas regiões do País. A opção do Governo - dissemo-lo oportunamente e reiteramos - está à vista: vai acelerar as falências, proteger a voracidade dos credores e, inevitavelmente, lançará para o desemprego cada vez mais trabalhadores.
A presente proposta de lei é, naturalmente, tributária desta concepção do direito da insolvência, daí que as suas formulações se reconduzam ao desenvolvimento inevitável destas ideias centrais. É o caso mais flagrante da introdução da figura do administrador da insolvência como entidade única, resultante da

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unificação e reformulação do estatuto dos actuais gestores e liquidatários judiciais.
Como é do conhecimento geral, o gestor judicial tem sido a entidade designada no âmbito do processo de recuperação, enquanto que o liquidatário judicial é a figura incumbida de proceder à liquidação do património do falido. Ora, como se acentuou, o vezo privilegiante da falência, na resolução das dificuldades das empresas, teria de acarretar, por força das coisas, a unificação das actuais funções numa única entidade.
Dentro desta linha de conformação, a proposta de lei visa, além do mais, proceder à regulamentação do recrutamento para as listas oficiais de administradores da insolvência, ao estabelecimento do regime remuneratório e de reembolso das despesas desta nova entidade e à definição do respectivo estatuto.
Aspecto relevante, no tocante às principais alterações decorrentes desta proposta de lei, consubstancia-se na determinação de elevar o padrão de rigor e qualidade dos administradores, quer no plano da competência técnica quer no da idoneidade, para o exercício das suas funções.
Daí que algumas das formulações propostas sejam de fácil adesão, como, por exemplo, as que visam reforçar os requisitos necessários para o ingresso, quer exigindo que os candidatos estejam habilitados com licenciatura adequada, quer acentuando a idoneidade como elemento estruturante para o exercício da actividade de administrador da insolvência, quer ainda tornando mais rigorosas as condições de impedimento e de incompatibilidade para o exercício da actividade.
Nesta linha, a proposta de lei vem impor a obrigatoriedade de realização de um exame escrito de admissão, que pode eventualmente ser complementado por uma prova oral.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Não deixa de ser uma inovação positiva especialmente tendo em conta que na lei actual se exige tão-somente a "idoneidade técnica dos candidatos", o que diz tudo, e nada, ao mesmo tempo.
Sem embargo do acerto e melhorias em matéria de rigor dos novos administradores, questão é que, por desatenção, "se não deite fora o menino com a água do banho". Ou seja, não podem deixar de ser tidas em conta as legítimas expectativas dos actuais gestores e liquidatários judiciais, que foram admitidos por períodos de cinco anos com hipótese de renovação por mais cinco.
Daí que não se compreenda o preceituado em disposições transitórias, na matéria atinente, especialmente quando se faz depender do número de processos executados a demonstração do exercício efectivo de funções. É que não se pode ignorar que a actual distribuição de processos é da competência dos magistrados, mas sem regras aleatórias, o que, sem pôr em causa a idoneidade de quem nomeia, pode, inadvertidamente, gerar ou ter gerado discrepâncias nas legítimas expectativas, designadamente dos liquidatários e gestores há menos tempo na função. Matéria que, em nosso entender, Sr. Secretário de Estado da Justiça, deve merecer reexame em sede de discussão na especialidade.
Outras alterações propostas impõem igualmente uma maior ponderação, uma vez que a sua bondade não é evidente. De entre estas alterações é de destacar a criação de uma comissão única, de âmbito nacional, com responsabilidade pela admissão à actividade de administrador da insolvência e pelo controlo do seu exercício, deixando, desde modo, de haver as comissões distritais, que estavam anteriormente constituídas.
Esta centralização poderá, por um lado, levar ao estrangulamento dos procedimentos, mercê de previsíveis afunilamentos, e, por outro, ao afastamento da realidade concreta do processo falimentar em causa.
Numa outra vertente, ao ficar na dependência do Ministro da Justiça e sendo coadjuvada por um secretário executivo, nomeado pelo Ministro da Justiça, a citada comissão poderá, eventualmente, perder o carácter de independência que deveria ser elemento estruturante da sua actuação.
Há, no entanto, inovações positivas, sem prejuízo de maior aprofundamento em sede de especialidade, designadamente as que permitem a inscrição dos administradores da insolvência em mais do que uma lista distrital, desde que devidamente temperadas com as regras de incompatibilidades, impedimentos e suspeições.
O mesmo se diga relativamente às opções que põem fim à limitação de processos e à limitação temporal de mandatos, que consubstanciavam verdadeiros afloramentos de regras violadoras da concorrência e da transparência profissional.
Já no tocante à remuneração, a proposta de lei estabelece um regime misto, constituído por uma parte fixa e outra variável, procurando garantir uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objectivos, assim como incentivos ao bom exercício da actividade.
E quanto ao pagamento, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportadas pela massa insolvente, salvo no caso de o processo ser encerrado por insuficiência da massa insolvente, em que a remuneração e o reembolso das despesas são suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais. Trata-se de regras - reconheço - que vão ao encontro às exigências dos actuais gestores e liquidatários judiciais mas que carecem de rápido esclarecimento através de diploma regulamentar adequado.

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No fundo, Sr. Secretário de Estado, a questão em aberto é a da tabela das remunerações, que o Governo ainda não apresentou.
Por último, relativamente ao regime sancionatório, a proposta de lei estabelece sanções que vão desde a repreensão escrita, por falta leve, até à suspensão por um período não superior a cinco anos ou ao cancelamento definitivo da inscrição de qualquer administrador da insolvência por se ter verificado qualquer facto que consubstancie incumprimento dos deveres do administrador da insolvência ou revele falta de idoneidade para o exercício das mesmas. E prevê ainda a aplicação de coimas entre € 500 e € 10 000 pelo exercício de funções de administrador da insolvência em violação do preceituado sobre incompatibilidades, impedimentos, suspeições e idoneidade ou durante o período de suspensão ou o cancelamento da inscrição, se tal não representar infracção criminal.
São, uma vez mais, em nosso entender, afloramentos de uma intenção de rigor que se mostra indispensável em área tão melindrosa como a do direito falimentar.
Tudo para dizer que o presente diploma, sempre tendo em conta as traves mestras de uma opção em sede de insolvência, na qual não nos revemos, parece lograr, não obstante, os desideratos do acolhimento dos princípios de maior rigor, transparência e respeito pelas regras da concorrência, bases estruturantes de uma função profissional de tanta responsabilidade como a da administração de insolvências.
Questão é que o Governo e a maioria se disponibilizem para, em sede de especialidade, acolherem as propostas de correcção e melhoria que aqui fomos ensejando.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Nuno Teixeira de Melo.

O Sr. Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados: A recuperação das nossas empresas tem uma importância fundamental que transcende em muito o mero interesse, apesar de também muito relevante, dos credores.
De empresas saudáveis depende uma economia saudável, o lucro dos investidores, a segurança dos trabalhadores, a previsibilidade da receita dos respectivos agregados familiares e a própria imagem de Portugal no mundo. E, se assim é, óbvio é também que o Estado deve fazer tudo para que a administração de empresas com vista à sua viabilização no âmbito de processos como aqueles que hoje aqui discutimos seja real e não meramente aparente, seja profissional e, principalmente, muito transparente.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): - Exactamente!

O Orador: - Todos sabemos, porque públicos foram os factos, de episódios no passado recente, envolvendo gestores judiciais. Todos verificamos, mais até aqueles que todos os dias trabalhavam junto dos tribunais em processos de recuperação, como processos desta natureza nos demonstravam a necessidade de alterar aquelas que eram as regras do jogo e, desde logo, também as relativas àqueles que tinham a incumbência de administrar as empresas nessa fase. Todos ponderamos nessa conveniência há já muitos anos, mas a verdade é que é agora que a isso se procede. É agora que tal é feito, no mérito que é obviamente deste Governo e que, no Sr. Secretário de Estado da Justiça, gostaríamos de saudar, porque efectivamente, se durante muitos anos reclamamos a introdução da transparência na legislação, é este Governo que a introduz, e fá-lo de uma forma muito mais meritória do que aquela que o Deputado Osvaldo Castro, numa lógica que é estritamente política, aqui quis trazer para a discussão.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): - Exactamente!

O Orador: - Convém desde logo referir - coisa que não fez o Sr. Deputado Osvaldo Castro - que a necessidade desta iniciativa legislativa decorre, é certo, do facto de o código da insolvência e da recuperação de empresas se referir expressamente à figura do administrador da insolvência, que substitui a dos antigos gestores judiciais e liquidatários judiciais, sendo certo que esta iniciativa legislativa tem de ser aprovada, ao menos na generalidade, antes da entrada em vigor do código da insolvência e da recuperação de empresas, porque o administrador existe em função do estatuto e não necessariamente em função daquele código. E o que o diploma, que hoje aqui se discute, visa é proceder à regulamentação do recrutamento para listas oficiais de administradores da insolvência, ao estabelecimento do respectivo regime remuneratório e de reembolso das despesas e à definição do estatuto legal.

O Sr. António Montalvão Machado (PSD): - Muito bem!

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O Orador: - Resumidamente, gostava apenas de salientar algumas das muitas virtudes desta proposta de lei e que vão muito para além daquilo que foi salientado, repito, pelo Partido Socialista,…

Protestos do Deputado do PS Osvaldo Castro.

… numa incomodidade que se releva, e, por outro lado, não deixa de sair prejudicada pelo elogio do essencial do diploma que acabou por fazer.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - Deixo apenas aqui alguns exemplos dessas virtudes. Concede-se, agora, aos credores um papel relevante não só na nomeação do administrador da insolvência, como, porventura, antes acontecia, mas também através da obrigação de o juiz ponderar as indicações, para além da nomeação, para efeitos da substituição daquele que o juiz nomeia, desde que os credores entendam como mais qualificado aquele que sugerem. Ou seja, o sistema permite agora aos credores uma mais activa defesa dos seus interesses e uma maior participação naquilo que será a gestão e a salvaguarda das garantias de pagamento dos seus próprios créditos.
Eliminam-se também eventuais suspeições, e muitas foram levantadas e sabemos quantas vezes injustamente, da nomeação que era feita pelo juiz, porque se prevê agora a aleatoriedade da escolha, mediante a utilização de meios informáticos.

O Sr. António Montalvão Machado (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Permite-se também a escolha de pessoa que não esteja incluída na lista oficial, quando se tratem de casos de especial complexidade, podendo por isso os credores escolher, nestas circunstâncias, pessoas de competência específica e, com isto, permitir a viabilização de uma empresa e também a salvaguarda dos respectivos postos de trabalho.
Eliminam-se limites temporais e quantitativos ao exercício da actividade, permitindo-se assim que esta seja exercida por pessoas com uma estrutura permanente e dimensão adequada para lidar com um número elevado de processos. E lembro aquilo que disse há pouco da necessidade da existência de gestores efectivamente profissionalizados, que tenham destes processos uma lógica de efectiva recuperação e não meramente processual, com vista a uma liquidação que permita o pagamento imediato de créditos e não tanto a recuperação com benefício para a economia nacional, como se passa agora neste diploma.
Relembra-se, a este propósito, que, como se sabe, a actividade só poderia ser exercida por um período máximo de 10 anos e num máximo de sete processos por administrador, o que penalizava os administradores que investiam decisivamente numa estrutura profissionalizada, eficiente e com capacidade para tratar de todos estes processos.
Por outro lado, equipara-se, agora, o administrador da insolvência ao solicitador de execução, o qual, sabemos bem, não é propriamente uma invenção deste Governo, em termos de acesso a secretarias e a repartições públicas, assim se permitindo também um mais eficaz desempenho da sua actividade.
Outro aspecto que nos parece positivo é a possibilidade de inscrição em mais do que uma lista distrital, caso a pessoa entenda dispor de meios para atender a uma área geográfica que não apenas aquela em que se encontra implantado.
Há também lugar a uma actualização permanente de listas, mediante disponibilização das mesmas aos tribunais através de meios informáticos, eliminando-se também incidentes processuais causados por uma constante desactualização das actuais listas e que são publicadas com uma periodicidade apenas anual.
Uma outra medida também fundamental que se realça é o estabelecimento da prova obrigatória de acesso à actividade e de requisitos quanto a habilitações e a idoneidade, que até agora eram, nesta modalidade, inexistentes.
Institui-se uma comissão única, a nível nacional, responsável pela admissão dos candidatos e supervisão dos inscritos nas listas especiais, substituindo-se as comissões distritais actualmente existentes. E, note-se, dois dos cinco membros da comissão serão nomeados por portaria conjunta dos Ministérios da Justiça, da Economia e das Finanças e a comissão será dotada de uma pequena estrutura permanente, com um secretário executivo, de forma a obviar aos problemas verificados no funcionamento das actuais comissões, sem qualquer estrutura que permita o efectivo controlo da actividade, e da falta deste controlo verificaram-se excessos, e foram muitos, muitos mais do que os desejáveis e durante tanto tempo.
Outro aspecto muito importante é o de se instituir um verdadeiro regime sancionatório, com instrução dos processos de averiguações pela comissão e a aplicação de sanções que podem ir desde a suspensão e cancelamento da inscrição nas listas oficiais até à aplicação de coimas.

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Não menos relevante é o incentivo permitido através do estatuto remuneratório que, agora, é verificado na base do mérito. Isto porque agora, além do montante fixo, que é diminuto mas que tinha de ser garantido, o administrador terá direito a auferir uma quantia que será variável em função dos resultados obtidos para os credores. E, assim, também se diferenciarão os bons dos maus gestores, os que trabalham dos que nem tanto, os que têm mérito dos que não o conseguiram.
Por último, não só se define o estatuto do administrador da insolvência como se adequa o instituto às necessidades do sistema, ao interesse dos credores e em benefício da economia nacional.
Por todas estas razões, e porque o tempo mais não me permite, saúdo mais uma vez o Governo pela iniciativa, que, naturalmente, aprovaremos, sem prejuízo de, em sede de especialidade, se for caso disso, sugerirmos, num ou noutro ponto, acertos que terão, obviamente, natureza pontual.

Aplausos do CDS-PP e do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Srs. Deputados: Relativamente às insolvências, um dos problemas é a economia estar de tal maneira que empurra as empresas para a insolvência. Mas o grande problema é, de facto, e tem sido até hoje, a morosidade dos processos determina que os trabalhadores só muito tardiamente, passados 20 ou mais anos, venham a recebam, quando recebem, os seus créditos ou parte dos mesmos.
De acordo com o preâmbulo de um diploma aprovado em 1993, sobre os gestores e liquidatários judiciais, há a promessa de que com ele é que os processos vão, de facto, correr de forma célere, mas assim não aconteceu.
Assim não aconteceu e estou com alguma curiosidade em saber o que vai acontecer daqui por diante, porque não há dúvida de que, nesta proposta de lei, há de facto alterações relativamente ao regime vigente que consideramos positivas, as quais já aqui foram destacadas por alguns Srs. Deputados.
Não perfilhamos, no entanto, embora isto tenha sido devidamente explicitado aquando da discussão do Código dos Processos de Recuperação de Empresas e Falências, a alteração relativa à protecção dos direitos dos trabalhadores. Lembro que, aquando da discussão na generalidade, a Sr.ª Ministra até prometeu que depois, em sede de especialidade, os artigos que o meu grupo parlamentar referiu seriam alterados, mas, em nossa opinião, não o foram suficientemente.
De qualquer forma, penso que, em sede de discussão na especialidade, haverá que apurar melhor a protecção dos direitos dos trabalhadores naquilo em que ainda podem ser protegidos, pese embora haja no código, em relação à remuneração do administrador, artigos onde se diz que o administrador será pago pela massa insolvente durante o decurso do processo e que a massa insolvente, quando tiver disponibilidades, restituirá aquilo que pagou aos credores.
Ora, isto significa que a resposta há pouco dada pelo Sr. Secretário de Estado da Justiça não corresponde exactamente ao regime que está previsto, porque eles têm privilégios, mas, entretanto, serão pagos pela massa insolvente e ela restituirá aos credores aquilo que pagou quando tiver disponibilidades. Então, há de facto credores que poderão vir a ser prejudicados nesta matéria. Contudo, penso que esta será uma questão a ver, efectivamente, aquando da discussão na especialidade.
Com este diploma fica o Governo com um apetrecho que não lhe permitirá ter qualquer desculpa relativamente à morosidade dos processos.
A resolução da morosidade da justiça é um objectivo afirmado pela Sr.ª Ministra das Justiça desde que tomou posse e, até agora, ainda não se viram resultados.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não havendo mais oradores inscritos, declaro encerrado o debate, na generalidade, da proposta de lei n.º 112/IX, que será votada na primeira ocasião regimental, que ocorrerá já amanhã.
A próxima sessão plenária realizar-se-á amanhã, pelas 15 horas, tendo, além do período de antes da ordem do dia, como ordem do dia a eleição do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informação e dos vogais do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a discussão conjunta, na generalidade, dos projectos de lei n.os 396 e 399/IX, a apreciação do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro [apreciações parlamentares n.os 66/IX (PCP) e 68/IX (PS)] e o período regimental de votações.
Srs. Deputados, está encerrada a sessão.

Eram 16 horas e 55 minutos.

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Declaração de voto enviada à Mesa para publicação relativa à votação, na generalidade, dos projectos de lei n.os 1/IX - Interrupção voluntária da gravidez (PCP), 89/IX - Despenalização da interrupção voluntária da gravidez (BE), 405/IX - Sobre a exclusão da ilicitude de casos de interrupção voluntária de gravidez (PS) e 409/IX - Sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (Os Verdes) e dos projectos de resolução n.os 230/IX - Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias), 203/IX - Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez realizada nas primeiras 10 semanas (PS), 227/IX - Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (BE) e 225/IX - Sobre medidas de prevenção no âmbito da interrupção voluntária da gravidez (PSD e CDS-PP).

Dada a particular sensibilidade da temática em causa e a total liberdade de voto de que gozaram os Deputados do PS, reconhecida com lucidez pela direcção do respectivo grupo parlamentar, entendo ser meu dever perante os eleitores explicitar, ainda que sinteticamente, o sentido e as motivações da forma como votei as diferentes propostas relativas à temática do aborto.
Votei favoravelmente as propostas de resolução no sentido da realização de um novo referendo sobre a descriminalização do aborto; votei favoravelmente o projecto de lei do PS que, no essencial, visava descriminalizar a prática do aborto em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, desde que efectuado até às 10 semanas e a pedido da mulher, após consulta de planeamento familiar, bem como alargar para 16 semanas a descriminalização do aborto em caso de perigo para a vida ou a saúde física ou psíquica da mulher; votei contra os projectos de lei apresentados pelo PCP, pelo Bloco de Esquerda e por Os Verdes e, finalmente, acompanhei a direcção do Grupo Parlamentar do PS na abstenção face à proposta de resolução da maioria que visava apelar ao Governo no sentido da adopção de medidas efectivas para o cumprimento da legislação vigente, incluindo matéria de educação sexual e de apoio à maternidade.
No que diz respeito ao referendo, considero que se justifica promover uma nova consulta popular pelas razões seguintes: o tempo decorrido desde o referendo anterior; o facto de este não ter alcançado a participação suficiente para se apresentar como vinculativo do ponto de vista jurídico-constitucional; e, sobretudo, os sinais de presumível evolução do posicionamento da sociedade portuguesa face ao problema do enquadramento jurídico-penal do aborto, a que acresce a notória disponibilidade da comunidade para regressar à discussão pública do assunto, como se prova pelos sucessivos pronunciamentos das mais diversas personalidades e instituições, bem como pela impressionante mobilização conseguida pelas campanhas de recolha de assinaturas desenvolvidas, com sinal contrário, nas últimas semanas.
Quanto ao meu voto favorável ao projecto do PS, ele é coerente com o modo como votei no referendo nacional de há uns anos atrás. Entendo que o valor da vida é um valor ético fundamental, inerente ao reconhecimento de um outro valor também fundamental: a dignidade da pessoa humana. Ambos os valores, indissociáveis como são, integram e estruturam a matriz axiológica em que assenta o nosso Estado de direito democrático, independentemente de o seu reconhecimento ter para muitos, como é o meu caso, um fundamento também religioso. Sem dúvida que o reconhecimento do valor da vida, enquanto valor estruturante da organização social, exige do Estado e das instituições um conjunto de respostas efectivas. Todavia, a reacção jurídico-penal é apenas uma de entre outras respostas possíveis e nem sempre será a mais eficaz ou pertinente, reclamando uma prévia ponderação de política criminal e, mesmo em sede de eventual aplicação da lei, nunca dispensando uma cuidada avaliação da situação concreta. É evidente que a incontroversa relevância do valor da vida humana faz dela um bem jurídico de tal modo importante que, por princípio, justifica a sua tutela, e tutela severa, pela lei penal, incluindo quanto à vida intra-uterina, embora o legislador não deva ignorar a ausência de um consenso científico e ético quanto à natureza da vida intra-uterina nas primeiras semanas de gestação. Contudo, mesmo à luz da lei actual, o valor da vida intra-uterina não se impõe ao legislador em sede jurídico-penal de modo a implicar, necessariamente, a criminalização do aborto em todas as situações, como se prova pela descriminalização já consagrada do aborto em casos como o da violação.
Seja como for, não creio que possa dizer-se, sem deliberadamente se insistir em ignorar factos demasiado graves e atentatórios de outros valores éticos também fundamentais, que a lei vigente, tutelando a vida intra-uterina nos termos em que o faz, tem por efeito a sua defesa. Pelo contrário, não só a lei vigente não assegura a efectiva defesa da vida, na medida em que convive hipocritamente com um amplo e florescente circuito comercial do aborto dito "clandestino", como o seu verdadeiro efeito é inviabilizar a prática do aborto nas condições sanitárias e de dignidade pessoal que só um quadro de legalização poderia garantir. Dito de outro modo, a verdadeira consequência prática da lei é remeter para uma viagem tenebrosa à escuridão da marginalidade, com o seu rasto traumático de sequelas físicas e psíquicas, quando não mesmo de risco de vida, as mulheres que, em condições de vida muitas vezes dramáticas, se sentem na necessidade de optar

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pelo aborto e para quem o aborto clandestino surge como se fosse a única alternativa verdadeiramente disponível. Ora, as opções de política criminal, para além de terem em conta o insucesso - aliás desejado - na aplicação da lei, devem ponderar também estes "danos colaterais" que a sua vigência tem implicado para outros valores também importantes para o nosso Estado de direito.
Assim sendo, vejo a descriminalização do aborto a pedido da mulher, até às 10 semanas e realizado em estabelecimento legalmente autorizado, como uma forma equilibrada, contida e pragmática de fornecer uma alternativa que permita combater o flagelo do intolerável aborto clandestino; vejo mesmo na exigência de uma prévia consulta de planeamento familiar uma oportunidade derradeira, hoje inexistente, de evitar a prática do aborto e favorecer a salvaguarda da vida intra-uterina; vejo, finalmente, no alargamento para 16 semanas do prazo para o aborto por razões de saúde física ou psíquica da mulher um ajustamento razoável dadas as situações em causa, embora discorde da explicitação no projecto de que as razões de perigo para a saúde psíquica da mulher podem incluir uma fundamentação socioeconómica, referência que deveria ser eliminada em sede de especialidade por ser desnecessária e correr o risco de ser interpretada como um convite à manipulação do diagnóstico médico para obter um alargamento efectivo do prazo para o aborto a pedido da mulher. Em conformidade, e em consciência, considerei o projecto do PS como merecedor do meu voto favorável.
O meu voto favorável ao projecto do PS significa uma adesão a um elenco concreto de precisas excepções à protecção penal da vida intra-uterina. Ora, esse elenco não me é indiferente. Pelo contrário, dados os valores em causa, cada uma das excepções exige uma cuidada e rigorosa ponderação. Deste ponto de vista, entendo que o meu voto favorável ao projecto do PS só poderia significar o voto contra os projectos do PCP, do Bloco de Esquerda e de Os Verdes que propunham um elenco bem distinto de excepções. Aliás, se a proposta de referendo e o próprio projecto do PS propõem a descriminalização do aborto a pedido da mulher até às 10 semanas, não vejo que faça sentido votar favoravelmente projectos que o admitem até às 12 semanas. Acresce que, nalguns casos, esses projectos admitiam mesmo a descriminalização do aborto desde que praticado até às 24 semanas, ou seja, até aos seis meses, o que se me afigura absolutamente inaceitável. Ora, em matérias desta natureza, as diferenças respeitam a questões de tal modo essenciais que, em bom rigor, os projectos não são apenas diferentes mas contraditórios. Não penso que contribua para confrontar os portugueses com escolhas e alternativas claras votar favoravelmente projectos contraditórios. Por isso votei contra os projectos do PCP, do BE e de Os Verdes.
Finalmente, acompanhei a direcção do Grupo Parlamentar do PS na abstenção face ao projecto de resolução da maioria porque ele não coloca nenhuma questão de consciência, antes suscita questões estritamente políticas onde não vejo vantagem em fazer uso da prerrogativa da liberdade de voto para contrariar a posição assumida pela direcção do Grupo. Acresce que o projecto de resolução, não obstante as suas imprecisões e toda a hipocrisia política que encerra, sempre tem o mérito de sinalizar politicamente a confissão por parte da maioria da inacção do Governo na aplicação das leis em vigor, a ponto de ser necessário que a Assembleia da República produza um apelo nesse sentido.

O Deputado do PS, Pedro Silva Pereira.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Partido Social Democrata (PSD):
Arménio dos Santos
José Manuel Ferreira Nunes Ribeiro
Maria João Vaz Osório Rodrigues da Fonseca
Paulo Jorge Frazão Batista dos Santos

Partido Socialista (PS):
Ana Maria Benavente da Silva Nuno
António José Martins Seguro
Edite Fátima Santos Marreiros Estrela
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira
José Manuel de Medeiros Ferreira
Paula Cristina Ferreira Guimarães Duarte
Renato Luís de Araújo Forte Sampaio

Partido Comunista Português (PCP):
José Honório Faria Gonçalves Novo

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Maria Luísa Raimundo Mesquita

Srs. Deputados não presentes à sessão por se encontrarem em missões internacionais:

Partido Social Democrata (PSD):
Maria Eduarda de Almeida Azevedo

Partido Socialista (PS):
Alberto Bernardes Costa
António Fernandes da Silva Braga
José Eduardo Vera Cruz Jardim
Luís Manuel Carvalho Carito

Partido Popular (CDS-PP):
José Miguel Nunes Anacoreta Correia

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Partido Social Democrata (PSD):
Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto
Ana Maria Sequeira Mendes Pires Manso
Carlos Parente Antunes
Eduardo Artur Neves Moreira
Joaquim Virgílio Leite Almeida da Costa
Jorge Nuno Fernandes Traila Monteiro de Sá
José Manuel Carvalho Cordeiro
José Manuel Pereira da Costa
Maria Assunção Andrade Esteves
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira
Miguel Fernando Alves Ramos Coleta
Rui Miguel Lopes Martins de Mendes Ribeiro

Partido Socialista (PS):
Fernando Ribeiro Moniz
Francisco José Pereira de Assis Miranda
João Barroso Soares
Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho
José da Conceição Saraiva
Luísa Pinheiro Portugal

Partido Comunista Português (PCP):
Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas

Bloco de Esquerda (BE):
Luís Emídio Lopes Mateus Fazenda

Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV):
Heloísa Augusta Baião de Brito Apolónia

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.

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