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Quinta-feira, 24 de Junho de 2004 I Série - Número 99

IX LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2003-2004)

REUNIÃO PLENÁRIA DE 23 DE JUNHO DE 2004

Presidente: Ex.mo Sr. João Bosco Soares Mota Amaral

Secretários: Ex. mos Srs. Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco
Ascenso Luís Seixas Simões
Henrique Jorge Campos Cunha
António João Rodeia Machado

S U M Á R I O


O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas.
Procedeu-se a um debate de urgência, requerido pelo BE, sobre a Constituição Europeia e o referendo em Portugal, tendo usado da palavra, a diverso título, além da Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (Teresa Patrício Gouveia) e do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus (Carlos Costa Neves), os Srs. Deputados Luís Fazenda (BE), Assunção Esteves (PSD), Alberto Costa (PS), Miguel Anacoreta Correia (CDS-PP), Bernardino Soares (PCP), Francisco Louçã (BE), Álvaro Saraiva (Os Verdes), Almeida Henriques (PSD), Guilherme d'Oliveira Martins (PS), Honório Novo (PCP) e Isabel Castro (Os Verdes).
No encerramento do debate, usaram da palavra a Sr.ª Ministra e o Sr. Deputado Francisco Louçã (BE).
Foi apreciada, na generalidade, a proposta de lei n.º 123/IX - Define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita, tendo-se pronunciado, a diverso título, além do Sr. Secretário de Estado da Justiça (Miguel Macedo), os Srs. Deputados Odete Santos (PCP), Francisco Louçã (BE), António Montalvão Machado (PSD), Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP) e Osvaldo Castro (PS).
Foi também apreciada, na generalidade, a proposta de lei n.º 127/IX - Estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, tendo-se pronunciado, a diverso título, além do Sr. Secretário de Estado da Justiça, os Srs. Deputados Carlos Pinto (PSD), Miguel Paiva (CDS-PP), Maria de Belém Roseira (PS), Alda Sousa (BE) e Odete Santos (PCP).
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 18 horas e 25 minutos.

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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a sessão.

Eram 15 horas.

Srs. Deputados presentes à sessão:

Partido Social Democrata (PSD):
Abílio Jorge Leite Almeida Costa
Adriana Maria Bento de Aguiar Branco
Ana Maria Sequeira Mendes Pires Manso
Ana Paula Rodrigues Malojo
António Alfredo Delgado da Silva Preto
António Carlos de Sousa Pinto
António Edmundo Barbosa Montalvão Machado
António Fernando de Pina Marques
António Henriques de Pinho Cardão
António Joaquim Almeida Henriques
António Manuel da Cruz Silva
António Maria Almeida Braga Pinheiro Torres
António Pedro Roque da Visitação Oliveira
Bernardino da Costa Pereira
Bruno Jorge Viegas Vitorino
Carlos Alberto da Silva Gonçalves
Carlos Alberto Rodrigues
Carlos Jorge Martins Pereira
Carlos Manuel de Andrade Miranda
Carlos Parente Antunes
Daniel Miguel Rebelo
Diogo de Sousa Almeida da Luz
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco
Eduardo Artur Neves Moreira
Elvira da Costa Bernardino de Matos Figueiredo
Eugénio Fernando de Sá Cerqueira Marinho
Fernando Jorge Pinto Lopes
Fernando Manuel Lopes Penha Pereira
Fernando Pedro Peniche de Sousa Moutinho
Fernando Santos Pereira
Francisco José Fernandes Martins
Francisco Manuel Coelho Ferreira Pimentel
Gonçalo Dinis Quaresma Sousa Capitão
Gonçalo Miguel Lopes Breda Marques
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva
Hugo José Teixeira Velosa
Isménia Aurora Salgado dos Anjos Vieira Franco
Joaquim Carlos Vasconcelos da Ponte
Joaquim Miguel Parelho Pimenta Raimundo
Joaquim Virgílio Leite Almeida da Costa
Jorge Tadeu Correia Franco Morgado
José Alberto Vasconcelos Tavares Moreira
José António Bessa Guerra
José António de Sousa e Silva
José Eduardo Rego Mendes Martins
José Luís Campos Vieira de Castro
José Manuel de Lemos Pavão
José Manuel de Matos Correia
José Manuel dos Santos Alves
José Manuel Ferreira Nunes Ribeiro
José Manuel Álvares da Costa e Oliveira
José Miguel Gonçalves Miranda

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João Bosco Soares Mota Amaral
João Carlos Barreiras Duarte
João Eduardo Guimarães Moura de Sá
João José Gago Horta
João Manuel Moura Rodrigues
Judite Maria Jorge da Silva
Luís Cirilo Amorim de Campos Carvalho
Luís Filipe Alexandre Rodrigues
Luís Filipe Montenegro Cardoso de Morais Esteves
Luís Filipe Soromenho Gomes
Luís Maria de Barros Serra Marques Guedes
Luís Álvaro Barbosa de Campos Ferreira
Manuel Alves de Oliveira
Manuel Filipe Correia de Jesus
Manuel Joaquim Dias Loureiro
Manuel Ricardo Dias dos Santos Fonseca de Almeida
Marco António Ribeiro dos Santos Costa
Maria Assunção Andrade Esteves
Maria Aurora Moura Vieira
Maria Clara de Sá Morais Rodrigues Carneiro Veríssimo
Maria da Graça Ferreira Proença de Carvalho
Maria Goreti Sá Maia da Costa Machado
Maria Isilda Viscata Lourenço de Oliveira Pegado
Maria João Vaz Osório Rodrigues da Fonseca
Maria Natália Guterres V. Carrascalão da Conceição Antunes
Maria Ofélia Fernandes dos Santos Moleiro
Maria Teresa da Silva Morais
Melchior Ribeiro Pereira Moreira
Miguel Fernando Alves Ramos Coleta
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas
Miguel Jorge Reis Antunes Frasquilho
Mário Patinha Antão
Paulo Jorge Frazão Batista dos Santos
Pedro Filipe dos Santos Alves
Pedro Miguel de Azeredo Duarte
Rodrigo Alexandre Cristóvão Ribeiro
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva
Salvador Manuel Correia Massano Cardoso
Vítor Manuel Roque Martins dos Reis
Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto

Partido Socialista (PS):
Alberto Arons Braga de Carvalho
Alberto Bernardes Costa
Alberto Marques Antunes
Ana Catarina Veiga Santos Mendonça Mendes
Ana Maria Benavente da Silva Nuno
Antero Gaspar de Paiva Vieira
António Alves Marques Júnior
António Bento da Silva Galamba
António de Almeida Santos
António Luís Santos da Costa
António Ramos Preto
Artur Miguel Claro da Fonseca Mora Coelho
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos
Ascenso Luís Seixas Simões
Augusto Ernesto Santos Silva
Carlos Manuel Luís
Eduardo Arménio do Nascimento Cabrita

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Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues
Elisa Maria da Costa Guimarães Ferreira
Fernando dos Santos Cabral
Fernando Manuel dos Santos Gomes
Fernando Pereira Cabodeira
Fernando Pereira Serrasqueiro
Fernando Ribeiro Moniz
Guilherme Valdemar Pereira D'Oliveira Martins
Jaime José Matos da Gama
Jamila Bárbara Madeira e Madeira
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira
Jorge Lacão Costa
José Adelmo Gouveia Bordalo Junqueiro
José António Fonseca Vieira da Silva
José Augusto Clemente de Carvalho
José Carlos Correia Mota de Andrade
José Eduardo Vera Cruz Jardim
José Manuel Lello Ribeiro de Almeida
José Manuel Santos de Magalhães
José Maximiano de Albuquerque Almeida Leitão
José Miguel Abreu de Figueiredo Medeiros
José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa
João Barroso Soares
João Cardona Gomes Cravinho
João Rui Gaspar de Almeida
Júlio Francisco Miranda Calha
Laurentino José Monteiro Castro Dias
Leonor Coutinho Pereira dos Santos
Luiz Manuel Fagundes Duarte
Luís Afonso Cerqueira Natividade Candal
Luís Alberto da Silva Miranda
Luís Manuel Capoulas Santos
Luís Manuel Carvalho Carito
Luísa Pinheiro Portugal
Manuel Alegre de Melo Duarte
Manuel Maria Ferreira Carrilho
Maria Amélia do Carmo Mota Santos
Maria Celeste Lopes da Silva Correia
Maria Cristina Vicente Pires Granada
Maria Custódia Barbosa Fernandes Costa
Maria de Belém Roseira Martins Coelho Henriques de Pina
Maria do Carmo Romão Sacadura dos Santos
Maria do Rosário Lopes Amaro da Costa da Luz Carneiro
Maria Helena do Rêgo da Costa Salema Roseta
Maria Isabel da Silva Pires de Lima
Maria Manuela de Macedo Pinho e Melo
Maximiano Alberto Rodrigues Martins
Miguel Bernardo Ginestal Machado Monteiro Albuquerque
Nelson Madeira Baltazar
Osvaldo Alberto Rosário Sarmento e Castro
Paula Cristina Ferreira Guimarães Duarte
Paulo José Fernandes Pedroso
Renato Luís de Araújo Forte Sampaio
Ricardo Manuel Ferreira Gonçalves
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz
Rosalina Maria Barbosa Martins
Rui António Ferreira da Cunha
Sónia Ermelinda Matos da Silva Fertuzinhos
Teresa Maria Neto Venda

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Vicente Jorge Lopes Gomes da Silva
Victor Manuel Bento Baptista
Vitalino José Ferreira Prova Canas
Vítor Manuel Sampaio Caetano Ramalho
Zelinda Margarida Carmo Marouço Oliveira Semedo

Partido Popular (CDS-PP):
António Herculano Gonçalves
Diogo Nuno de Gouveia Torres Feio
Henrique Jorge Campos Cunha
Isabel Maria de Sousa Gonçalves dos Santos
João Nuno Lacerda Teixeira de Melo
João Rodrigo Pinho de Almeida
Manuel de Almeida Cambra
Manuel Miguel Pinheiro Paiva
Paulo Daniel Fugas Veiga
Telmo Augusto Gomes de Noronha Correia
Álvaro António Magalhães Ferrão de Castello-Branco

Partido Comunista Português (PCP):
António Filipe Gaião Rodrigues
António João Rodeia Machado
Bernardino José Torrão Soares
Bruno Ramos Dias
José Honório Faria Gonçalves Novo
Maria Odete dos Santos
Ângela Ricardo Carriço Sabino

Bloco de Esquerda (BE):
Alda Maria Botelho Correia Sousa
Francisco Anacleto Louçã
Luís Emídio Lopes Mateus Fazenda

Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV):
Isabel Maria de Almeida e Castro
Álvaro José de Oliveira Saraiva

O Sr. Presidente: - Sr.as Deputadas e Srs. Deputados, vamos dar início aos trabalhos com o debate de urgência, requerido pelo Grupo Parlamentar do BE, sobre a Constituição Europeia e o referendo em Portugal.
Na segunda parte, discutiremos, na generalidade, as propostas de lei n.os 123/IX - Define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita e 127/IX - Estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses.
Está inscrito o Sr. Deputado que vai introduzir o debate, por parte do Bloco de Esquerda, mas falta o Governo, pelo que vamos aguardar breves instantes até que esteja presente.

Pausa.

Srs. Deputados, estamos em condições de iniciar o debate, uma vez que já se encontra presente a Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, a quem cumprimento.
Para uma intervenção, de abertura deste debate de urgência, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Fazenda.

O Sr. Luís Fazenda (BE): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, Sr.as e Srs. Deputados: O Bloco de Esquerda exerce o seu direito potestativo convocando o Parlamento e o Governo para o debate de urgência sobre a mais importante questão política: a aprovação, no final da semana passada, do Tratado que institui uma Constituição Europeia, de que importa

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considerar todas as consequências políticas.
Do debate de hoje o País deveria sair com a certeza tranquila de que teremos um referendo até à Primavera de 2005, com uma pergunta viável, clara e esclarecedora. O Governo não pode evitar dar hoje aos portugueses estas respostas.
Entretanto, o Governo já manifestou a sua concordância e satisfação em relação a este Tratado. Não partilhamos a satisfação - nem pela Europa nem por Portugal.
O Tratado Constitucional é uma bíblia do liberalismo, na exposição de princípios, na exiguidade da componente social, nas regras financeiras. É o Tratado que invoca a subordinação à NATO e que dá prioridade ao armamento. Corresponde a uma construção política cujo método decisório reforça a componente inter-governamental em detrimento do método comunitário, em detrimento dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu. Institui um directório de geometria já pouco variável, quer pelo apuramento da minoria de bloqueio quer pelo crescimento do factor população no sistema de dupla maioria.
Portugal perde duplamente: por um lado, enfrenta um conceito de sociedade em que o direito ao trabalho deixa de ser pedra angular para a responsabilidade social do Estado e da segurança social; por outro lado, apesar do diáfano princípio da igualdade dos Estados, as instituições acentuaram a desigualdade e o país vale ainda menos nas decisões do que valia em Nice.
As leituras do Tratado Constitucional serão seguramente contraditórias e as posições das forças políticas já conhecidas. O centro deste debate não será, por isso, a avaliação do nosso enquadramento europeu mas, sim, a forma de ratificação deste Tratado.
Ao exigirmos o referendo, tomamos partido pela única forma de ouvir a opinião dos eleitores e de dar voz à democracia. Por isso, insistimos: o Governo tem de nos dizer quando aceita fazer o referendo e com que pergunta, porque seria bizarro que o Governo tivesse finalmente aceite o princípio do referendo mas sem saber ainda qual a pergunta. E é indispensável este esclarecimento porque de há muito os principais partidos nacionais têm prometido um referendo ao Tratado europeu, referendo nunca realizado, adiado sob vários pretextos, ou marcado para morrer no Tribunal Constitucional.
Este facto tem privado os portugueses e as portuguesas de um autêntico debate sobre as questões europeias e o peso da União Europeia na nossa vida colectiva. A ausência desse debate tem permitido a simplificação de posições sobre o rumo europeu, nada acrescentando às escolhas internas, nada trazendo como indicações à estratégia portuguesa em Bruxelas.
A posição do Sr. Primeiro-Ministro tem sido de permanente oscilação: primeiro defendeu a realização de um referendo acerca do Tratado, querendo em dada altura a sua coincidência com as eleições europeias; depois, refugiou-se na posição de que só advogaria um referendo caso existissem alterações significativas no novo Tratado. Ao ter avançado antes com a proposta já sabia que as alterações eram significativas - são mesmo alterações de monta!
A projecção política deste Tratado revela uma alteração de grau na integração política da União. As alterações materiais são evidentes: o fim das presidências rotativas, a modificação da composição da Comissão Europeia, o novo método decisório, a extensão das maiorias qualificadas, o avanço das cooperações reforçadas, a inclusão da Carta dos Direitos Fundamentais no corpo do Tratado - tudo isto, e muito mais, demonstra a existência de alterações de fundo. Os parlamentos nacionais perdem competências legislativas e fiscalizadoras, que não são sequer compensadas por um acréscimo de competência do Parlamento Europeu, na defesa e na política externa, nos direitos fundamentais, na política orçamental, nas leis penais, entre outras matérias.
A acomodação da Constituição Portuguesa ao Tratado Constitucional europeu, por antecipação na última revisão constitucional, demonstrou que os maiores partidos têm clara consciência do alcance das modificações da União, que agora se dota de personalidade jurídica autónoma.
Ao Governo e à maioria parlamentar não se pode exigir menos do que essa constatação.
Estamos crentes de que o Sr. Presidente da República, a quem compete a convocação do referendo, tirará ilações semelhantes, na linha do seu apelo sistemático ao esclarecimento e à participação dos cidadãos, factor que reforçou com oportunidade nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Quem se mobiliza contra a abstenção dos cidadãos não poderá preconizar a abstenção do Estado.
Naturalmente, as forças políticas apresentarão as suas propostas para o referendo. Contudo, incumbe à maioria uma especial responsabilidade: a de sancionar questões a referendo que sejam constitucionalmente compatíveis, exigência acrescida quando justificou na revisão constitucional recente que as alterações europeias na Constituição Portuguesa permitiriam mais facilmente a realização do referendo.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados: Temos por certo que a efectivação de um referendo sobre o Tratado Constitucional não elimina o défice democrático na construção europeia, mas dá uma oportunidade ao povo soberano de se pronunciar e é a única oportunidade democrática.
Esperamos que o Governo e a maioria, depois de tanta hesitação, dêem esse passo em frente. Mas também cabe ao Governo e à maioria esclarecer quais as consequências políticas do referendo, em qualquer

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das hipóteses, com qualquer dos resultados. Caso contrário, não enfrentaremos um genuíno referendo mas uma tentativa de plebiscito de factos consumados.
Chegou o momento de clarificações. As opções são inadiáveis. Ninguém mais pode fazer de conta. As contas da política europeia estão submetidas ao juízo dos portugueses. Os que querem o reforço da democracia e querem dar a palavra às portuguesas e aos portugueses sobre as escolhas europeias exigem, hoje, respostas claras. O pântano da indecisão é inaceitável. Não podemos permanecer na indecisão. O Bloco de Esquerda, como certamente a grande maioria do povo, exige hoje ao Governo uma resposta a esta pergunta: aceitam finalmente o referendo em tempo útil e com que pergunta constitucionalmente viável e politicamente esclarecedora? Esperemos que este debate traga a resposta e essa certeza.

Aplausos do BE.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, em nome do Governo, tem a palavra a Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas.

A Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (Teresa Patrício Gouveia): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: No passado dia 18, os Chefes de Estado e de Governo concluíram um acordo sobre o Tratado Constitucional, numa ocasião de particular significado para Portugal e para a União Europeia.
Foi o culminar de um longo processo de contornos e dimensão sem precedentes na história da integração europeia que propiciou um debate amplo e transparente e envolveu os mais variados actores, das instituições europeias aos parlamentos nacionais, aos parceiros sociais europeus e à sociedade civil.
Procedeu-se ao debate mais alargado de sempre. Pela parte portuguesa pudemos contar com os valiosos contributos de Deputados da Assembleia da República, do Parlamento Europeu, membros do Comité Económico e Social, do Comissário António Vitorino e ainda de vários representantes da sociedade civil.
Portugal pode orgulhar-se de ser parte desse consenso e de para ele ter contribuído de forma activa. Decisivo foi o contributo de todos os participantes nacionais. Aos que, de entre estes, aqui estão presentes, quero expressar uma palavra de grande apreço.
A União Europeia pode orgulhar-se da conclusão do Tratado que virá a responder aos novos tempos em que vivemos.
Trata-se de um bom acordo, justo, equilibrado, em nome do qual todos os Estados-membros fizeram compromissos.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: - Com este Tratado a União será mais transparente, democrática, eficaz e mais apta a aprofundar o seu desígnio político.
Neste momento de balanço, gostaria de sublinhar que Portugal sempre manteve nesta negociação um espírito aberto e construtivo. Procurámos cooperar com os parceiros com quem partilhamos objectivos idênticos e conciliar a defesa dos nossos interesses com os da União no seu conjunto.
As nossas linhas negociais foram anunciadas pelo Governo, aqui, neste Parlamento, com clareza, logo no início dos trabalhos da Conferência, e defendidas com consistência ao longo de todo o processo negocial.
Recordo que Portugal insistiu na defesa de três princípios fundamentais: o princípio da igualdade entre os Estados-membros; o princípio da coesão e da solidariedade; e o princípio do respeito pelo método comunitário.
Estes princípios estão plenamente consagrados no texto final que acordámos em Bruxelas. Destaco, a título exemplificativo: a consagração explícita do princípio da igualdade; a versão final do artigo sobre a coesão, cuja redacção final resulta da uma insistência portuguesa; as soluções para as várias questões institucionais - o processo de tomada de decisão no Conselho, a dimensão e a composição da Comissão e a repartição de lugares no Parlamento Europeu reflectem um equilíbrio em que nos revemos. Por exemplo, o sistema de dupla maioria previsto no Tratado baseia-se numa fórmula bem mais clara e compreensível do que a aprovada em Nice. Este novo artigo facilita a tomada de decisão, satisfazendo também um dos principais critérios por que nos pautávamos.
Mais genericamente, a preservação do método comunitário, através da confirmação do direito de iniciativa exclusivo da Comissão, do alargamento da co-decisão entre o Conselho e o Parlamento.
Por outro lado, como também sempre defendemos, não se verificou a "renacionalização" das competências da União.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Este foi um passo importante para a Europa e para Portugal. Mas esta

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proposta traz alterações significativas à ordem política da União e à relação política entre os Estados e, também, no plano interno de cada Estado-membro.
No início deste processo o Governo afirmara que se requeriam duas condições para que um refendo europeu tivesse lugar: primeiro, que se chegasse à aprovação de um novo Tratado europeu; segundo, que este contivesse matérias políticas relevantes e mudanças significativas na arquitectura europeia.
Por isso, o Governo entende que, feito um longo caminho para a Europa desde 1985 e dado este novo e relevante passo, será bom que esta caminhada possa ter uma clara legitimação popular.
Para além da legitimação política da aprovação deste Tratado pelo Governo e da decisão que sobre ele venha a ser tomada pelos restantes órgãos de soberania competentes nesta matéria, entende o Governo que é chegado o momento de os portugueses se pronunciarem, através de referendo,…

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

… de serem confrontados com esta opção e assumirem a sua responsabilidade na vinculação de Portugal ao Tratado e ao projecto europeu que ele traduz.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - Assim, no início da próxima sessão legislativa, apresentaremos a esta Assembleia uma proposta concreta com vista à realização de um referendo europeu, durante 2005.

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Muito bem!

A Oradora: - Devemos ser coerentes com aquilo que sempre prometemos. A participação e a decisão dos portugueses neste processo é essencial.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Muito bem!

A Oradora: - Estamos empenhados nesta nova fase do processo de construção europeia, mas julgamos fundamental que ele se faça com os cidadãos, de forma aberta, transparente, responsável e não sem a sua empenhada participação.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

É este o melhor contributo que podemos dar para uma União Europeia verdadeiramente democrática, uma União de Estados e de cidadãos.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho plena consciência de que o acordo agora alcançado acontece num tempo de aparente pouca confiança de muitos no projecto europeu. É muito fácil nos dias de hoje ser-se céptico de tudo e, por isso, também quanto ao futuro da Europa. É nestes momentos que quem governa, ou quem estiver na oposição e aspire a governar, deve avançar com visão e determinação. Foi isso que aconteceu em Bruxelas.
Contra os derrotismos foi dada mais uma oportunidade à Europa, à sua civilização, ao seu progresso económico e político, ao seu desenvolvimento numa atmosfera de paz e de afirmação face a outras áreas do Mundo em crescimento acelerado.
Respeitando a história, é nosso dever, todavia, construir o futuro à luz dos nossos ideais, das nossas convicções e dos nossos legítimos interesses. Foi isso que fizemos!

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, aberto o debate, a primeira intervenção cabe à Sr.ª Deputada Assunção Esteves, a quem concedo a palavra.

A Sr.ª Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Srs. Deputados: Chamemos os nomes às coisas. Este debate não é suscitado em nome de um princípio de participação que todos defendemos. Este debate é suscitado pelas razões daqueles a quem a História nunca deu razão e que por isso dela desconfiam.
Este debate é um debate entre os partidos do arco europeu que em sucessivas eleições legislativas pela Europa têm ganhos da sua ideologia e os partidos que se auto-marginalizaram do processo de evolução

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europeu.

Vozes do PSD: - Muito bem!

Risos do BE e do PCP.

A Oradora: - Por isso, o PSD saúda a emergência de uma Constituição para a Europa. Saúda-a, porque a Constituição concretiza uma nova arquitectura jurídica e política, fundada num contrato de representação de Estados e cidadãos de legitimidade inequívoca, uma Constituição estruturada segundo o sistema de valores que tem no centro a dignidade humana.
Não se tratando de uma Constituição em sentido clássico - pois que o que verdadeiramente daqui resulta é uma rede constitucional em que a Constituição Europeia se articula com as constituições nacionais - nem se tratando de um processo constituinte em sentido clássico, é, no entanto, com a Constituição Europeia que porventura se realiza mais intensamente o ideal constitucional - esse mesmo que diz que a soberania dos direitos se sobrepõe à importância relativa dos poderes. Esse o significado essencial da Constituição Europeia!
Mas também no plano político há que assinalar que o essencial de emergência de uma Constituição consiste em que as normas passaram a substituir a negociação permanente e contingente, passaram a substituir a força da negociação. É por isso que eu erigiria, em conquista fundamental da Constituição o facto de ela ser norma, o facto de vencer a força sistemática da força negocial, o facto de ela realizar verdadeiramente, em si, a igualdade entre os Estados e o equilíbrio do alargamento.
Por outro lado, a Constituição tem um outro significado que está para além de si própria: ela concretiza uma forma de integração que será exemplar perante o mundo inteiro. Como dizia, há dias, Chris Patten, num artigo do jornal El Pais: "O exemplo da integração europeia é um exemplo endémico: comunicar-se-á necessariamente ao resto do mundo. A ordem constitucional europeia induz, por isso, uma nova ordem mundial".
É verdade que a Europa é um processo e muita coisa há nisto para resolver: a intensificação da relação entre os parlamentos nacionais e as instâncias de decisão europeia, a vivência pelos cidadãos de um diálogo político e cultural com um espaço de decisão mais alargado. Mas essa é a tarefa importante que se dá aos agentes políticos, essa é a nossa incumbência fundamental.
É por isso, Sr.ª Ministra, que o PSD saúda a atitude do Governo em concretizar a ideia de um referendo à Constituição da Europa. E saúda por duas razões: porque o referendo representa um acréscimo de legitimidade, e porque ele concretiza o aprofundamento de um debate imprescindível à dinâmica europeia.
É claro que há alterações de fundo. Ainda bem que há alterações de fundo. Se não houvesse alterações de fundo, todo este trabalho seria em vão.
O que importa é que, com o referendo, se discuta verdadeiramente o significado de uma Europa nova, de uma Europa que se autoconstrói, mas que também ajuda a construir uma ordem mundial diferente, e que nesse debate haja esclarecimento, não o pretexto de um pessimismo não democrático. O optimismo em relação à Europa é também o sentido mais profundo do agir político, segundo o qual os problemas de todos são vividos como os problemas de cada um.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Sr.as e Srs. Deputados: Chega ao fim a primeira parte de um processo que se orienta no sentido de dotar a União Europeia de uma Constituição. Entramos, agora, na fase deliberativa. Nós, socialistas, congratulamo-nos por esta primeira fase ter sido vencida.
Estivemos, e estamos, séria e profundamente empenhados neste processo: estivemos em Nice, aprovando a Declaração sobre o Futuro da Europa; estivemos em Laeken, convocando a Convenção sobre o Futuro da Europa; estivemos na Convenção Sobre o Futuro da Europa (e agradecemos a manifestação de apreço da Sr.ª Ministra); estivemos nesta Assembleia, aprovando uma resolução que avaliou os resultados da Convenção e adoptou recomendações ao Governo sobre a maneira de conduzir as negociações subsequentes.
A Assembleia da República irá avaliar detalhadamente, no futuro, o documento extenso e complexo que resulta desta primeira fase, e tudo o que se deve dizer hoje é rigorosamente preliminar. Mesmo assim,

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diria que a nossa primeira grande impressão é a de que o que há de melhor e quase tudo o que há de bom neste documento final é o que resulta do trabalho da Convenção,…

A Sr.ª Maria Santos (PS): - Muito bem!

O Orador: - … e à frente de tudo vem a Carta dos Direitos Fundamentais, com força vinculativa, uma grande e democrática reforma da função legislativa na União Europeia e um considerável reforço do papel do Parlamento Europeu e, sobretudo, dos parlamentos nacionais, nomeadamente com o controlo da repartição de competências entre a União e os Estados-membros.

O Sr. Guilherme d'Oliveira Martins (PS): - Muito bem!

O Orador: - E o que há de menos bom e, às vezes mesmo, de pior é aquilo em que há mais afastamento do resultado dos trabalhos da Convenção.
Esta Assembleia deliberou no sentido de que o Governo seguisse determinadas recomendações, nomeadamente em matéria de maioria qualificada, estabelecendo um limite para as posições a aceitar, e também em relação à reforma do Conselho, contemplando o Conselho Legislativo, configurações do Conselho e consequências nas presidências rotativas. E também aqui o que há de pior é o afastamento. Onde o Governo seguiu o que esta Assembleia recomendou, os resultados são aceitáveis, mas isso já não acontece quando o Governo se afastou do que foi aqui aprovado, nomeadamente pela maioria e pelo partido a que pertence a Sr.ª Ministra.
Sr.ª Ministra, que uso fez o Governo destas recomendações e com que resultados? Como explicar esta divergência entre o produto que agora nos chega e as recomendações que foram aqui aprovadas, nomeadamente pela maioria? Nós precisamos de inquirir sobre isto antes de aprovarmos o Tratado e não seria correcto que magnificássemos os resultados deste compromisso antes de os medirmos, antes de apurarmos com rigor o seu alcance.
Compreendemos que é por compromissos que a Europa avança, pela nossa parte estamos orientados para defender e sustentar compromissos, mas precisamos de conhecer exactamente o conteúdo, a explicação, deste percurso negocial que se afasta de alguns importantes precedentes.
Quero congratular-me com a posição do Governo no sentido de concretizar a proposta de um referendo, abandonando-se, assim, uma anterior concepção, com um timing que, felizmente, foi ultrapassado, e quero também, se me permite, Sr.ª Ministra, felicitar o Bloco de Esquerda por ter criado a oportunidade parlamentar que nos permitiu conhecer o ponto de vista do Governo…

Risos do PSD e do CDS-PP.

É que, no passado, uma proposta de resolução sobre esta matéria não chegou a este Parlamento da parte do Governo.
De todo o modo, felicito-a por esta posição, que ontem não pudemos da sua parte conhecer, e diria que nós, socialistas, partido europeu de Portugal, estamos dispostos a dizer "sim" a compromissos como este a favor da Europa e a dizer "sim" não uma mas duas vezes: no referendo e na Assembleia da República!

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Anacoreta Correia.

O Sr. Miguel Anacoreta Correia (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, a Europa conseguiu um acordo histórico quando alcançou um consenso sobre o Tratado Constitucional, que substitui os vários tratados europeus e adequa o processo de decisão ao facto de passarmos a ser 25 países.
Na opinião do meu partido, a Constituição Europeia é um acordo justo e equilibrado.

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - Portugal vê os seus interesses fundamentais serem salvaguardados.
Felicito o Governo pela maneira como conduziu as negociações, sempre com o estímulo e o apoio desta Câmara, o que penso ser bom lembrar aqui.

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Portugal esteve sempre no núcleo dinamizador das políticas e das posições europeias, numa postura construtiva e não de contestação ou de protesto, o que nos tem valido sermos um país escutado e que personalidades portuguesas surjam frequentemente citadas como hipóteses para altos cargos da União e como capazes de ultrapassarem situações de impasse.

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - Este acordo permite à Europa continuar o seu caminho e demonstra aos eurocépticos que, graças à forma europeia de discutir e de decidir, será possível à União Europeia tomar tantas ou mais decisões do que quando tinha 6, 9, 12 ou 15 Estados-membros.

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - Não deixo de achar estranho que este debate tenha sido pedido de forma "premonitória" pelo Bloco de Esquerda, que quer saber se o Governo apoia ou não a ideia do referendo, se sim, quando se realizará e qual a pergunta ou questões que serão submetidas ao povo português.
Não quero deixar de, nesta primeira intervenção, clarificar que o meu partido entende que a realização de um referendo é benéfica…

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - … e congratulo-me com a posição anunciada pela Sr.ª Ministra há momentos.
Quanto à data e quanto às perguntas a formular, trata-se de questões que merecem reflexão, consultas e ponderação. Nestas situações a pressa é sempre má conselheira. É óbvio que a data deve ser a mais favorável para a realização de um profundo debate, que esclareça de forma honesta, repito, de forma honesta, os cidadãos portugueses sobre o que é e o que não é este Tratado Constitucional. Esperamos que seja um verdadeiro debate e que, devido à sensibilidade e complexidade da temática europeia, não seja um debate feito de fait divers, confundindo a opinião pública e embrulhando-a com questões internas, "luso-portuguesas".
Os Deputados do Bloco de Esquerda vão, com certeza, explicar-nos por que é que este é, em sua opinião, um mau acordo.
Pela nossa parte, deixamos aqui expressas as razões principais pelas quais achamos consistente e conforme esta nova fase da construção europeia: os esquemas de decisão parecem-nos adequados à consideração simultânea dos factores Estado e cidadania europeia. Consideramos útil a unificação institucional, a fusão dos tratados e a consequente definição de princípios e atribuições. Vai na boa direcção o reforço de poderes do Parlamento Europeu, o qual deve ser conjugado com maiores poderes de controlo dos parlamentos nacionais. Consideramos que é positivo ter um Presidente do Conselho Europeu em vez de uma presidência rotativa, que, hoje, seria de 13 em 13 anos, amanhã, de 15 em 15 anos e, no futuro, sabe-se lá de quantos em quantos anos, sendo, portanto, preferível um Presidente do Conselho Europeu do que ter uma presidência rotativa por geração. Consideramos indispensáveis o desenvolvimento e o reforço da Política Externa e de Defesa Comum, porque será possível à Europa dar uma maior contribuição à paz e à segurança mundiais. E, finalmente, um ponto a que a minha bancada é muito sensível: consideramos extremamente importante a inclusão da Carta de Direitos Fundamentais.
A Europa, esta Europa, e não outra Europa virtual ou a anti-Europa, não aceita lições de quem quer que seja em matéria de defesa dos direitos humanos e do primado da lei e da procura de soluções num quadro multilateral.

Vozes do CDS-PP e do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Atestam-no a inclusão desta Carta no novo texto fundamental, o facto de sermos subscritores e activos nas questões do meio ambiente a nível global, particularmente no Protocolo de Quioto, a posição europeia sobre o Tribunal Penal Internacional e muitas outras posições, que servem de forma autêntica, e não de forma retórica, a causa da paz e da cooperação internacional.

Aplausos do CDS-PP e do PSD.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.

O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das

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Comunidades Portuguesas, este debate é oportuno e não é, de facto, um debate sobre um facto consumado. Aliás, os proponentes, quando discutimos um projecto de referendo nesta Assembleia, defendiam que o referendo devia fazer-se antes da aprovação em Conselho Europeu, dizendo que, se fosse depois, se trataria de um facto consumadíssimo. Nós estamos hoje, aqui, a debater um facto que não está consumado, como sempre defendemos. É agora o momento de avançar para a consulta aos portugueses em matéria europeia.
De resto, bom teria sido que a maioria e o Partido Socialista tivessem aceite a proposta de revisão constitucional do PCP, que permitiria fazer um referendo sobre a vinculação do Estado português aos tratados da União Europeia.

O Sr. Honório Novo (PCP): - Muito bem!

O Orador: - Porque essa é que seria a forma de, de um modo claro, cristalino e inequívoco, referendar junto do povo português esse passo tão decisivo, tão importante e de consequências tão grandes como poderá ser a vinculação ao Tratado da União Europeia. Infelizmente, a maioria e o Partido Socialista não quiseram que fosse assim e quiseram continuar a manter o regime das perguntas concretas mais limitadas sobre aspectos que, porventura, não são a consideração global do problema do novo Tratado agora proposto.
É preciso, em relação a esta questão do referendo, garantir que esta abertura do Governo, que é de saudar, não é uma falsa abertura, que ele se vai, em primeiro lugar, realizar-se efectivamente, mas, mais do que isso, que ele é um verdadeiro referendo.
E a que é que chamamos um verdadeiro referendo? A um referendo que, em primeiro lugar, tenha uma pergunta clara e que seja sobre um aspecto fundamental ou sobre aspectos fundamentais do que está em causa neste Tratado e, em segundo lugar, e, porventura, ainda mais importante, que este referendo tenha claros, para os portugueses que nele participam, os efeitos concretos de qualquer resultado, isto é, os efeitos do "sim" e os efeitos do "não", por forma a que os portugueses saibam que, votando "sim", querem que Portugal se associe a este Tratado e que, votando "não", não querem que Portugal se associe a este Tratado.
As palavras da Sr.ª Ministra suponho que vão nesse sentido, mas é preciso confirmar isso. A Sr.ª Ministra disse que era dar ao povo a responsabilidade na vinculação de Portugal ao Tratado. Ora, essa responsabilidade implica que o resultado do referendo tenha consequências directas na vinculação de Portugal a este Tratado.

O Sr. António Filipe (PCP): - Muito bem!

O Orador: - Este referendo não pode ser, apesar de tudo, o ponto único do debate e da análise desta dita (mal dita) Constituição Europeia, este debate tem de ser feito em vários dos seus aspectos antes do próprio referendo, não resumindo ao referendo o esclarecimento que é preciso fazer sobre esta questão, na certeza de que o PCP estará no esclarecimento sobre esta questão e estará, como esteve até agora, na posição de rejeitar esta nova proposta de Tratado, que significa uma maior perda de soberania, uma maior centralização hoje de poderes de decisão dos povos europeus e não só do povo português, um maior federalismo, uma maior militarização da União Europeia e a consagração do neoliberalismo como matriz da construção europeia, que não aceitamos…

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o seu tempo esgotou-se.

O Orador: - … e que combateremos neste debate e nesse referendo.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Francisco Louçã.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, na sua intervenção V. Ex.ª disse-nos que tínhamos tido o debate mais alargado de sempre. Ora, na imprensa de hoje mesmo, um constitucionalista do PSD, Jorge Bacelar Gouveia, explica que o resultado foi "profundamente decepcionante" porque "a discussão na dita Convenção foi tudo menos democrática, nomeadamente com o respectivo praesidium a condicionar as votações, impedindo a adopção de soluções".
O facto, no entanto, é este: agora começa o debate em que o povo tem de se pronunciar. E, Sr.ª Ministra,

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este debate já tem uma enorme vantagem: conduziu-a, convidou-a a vir aqui e acabar definitivamente com uma ambiguidade que não podíamos viver na política portuguesa.
De facto, o Governo teve três posições sobre a questão do referendo: em primeiro lugar, disse que só haveria referendo se houvesse alterações importantes, embora, ao mesmo tempo, dissesse que a Constituição, de per si, era muito importante; em segundo lugar, disse que o referendo só se poderia fazer se fosse numa data impossível, no dia 13 de Junho; e há dois dias - veja bem, Sr.ª Ministra…! - o Dr. Durão Barroso recua no referendo à Constituição Europeia dizendo a um jornal o seguinte: "Compete à Assembleia da República, e não ao Governo, decidir se quer um referendo e eu aceitarei essa decisão, mas, em termos de calendário, é muito difícil encontrar uma data".
Portanto, ainda bem que a Sr.ª Ministra aqui veio e que acabaram as ambiguidades. Tem de haver um referendo e esse referendo tem três consequências:
Em primeiro lugar - e entendamo-nos hoje sobre isto, Sr.ª Ministra -, um referendo é uma opção prática em que o voto "sim" significa autorização da ratificação do Tratado Constitucional e o voto "não" significa a impossibilidade da ratificação desse Tratado. Deve ficar tão claro como isto, porque é assim que a lei impõe num referendo, que seja vinculativo, e mesmo o referendo que não tenha 50% dá o sinal político, como foi interpretado em relação a outros referendos no passado.
Em segundo lugar, é preciso que o referendo seja em tempo útil. O Primeiro-Ministro, há dois dias, não sabia, mas hoje a Sr.ª Ministra já sabe, o Governo já sabe e nós também já sabemos que tem de ser no princípio de 2005, e é muito bom que nos entendamos sobre isto.
Em terceiro lugar - questão que não é inocente e é decisiva -, temos a questão de saber para que é que se faz o referendo. O referendo não é um favor aos portugueses, um referendo é o direito fundamental de a democracia poder decidir sobre uma questão europeia que é central para os portugueses e para os europeus.
É por isso que a questão da pergunta é incontornável, Sr.ª Ministra. Já aconteceu, como bem sabe, em 1998, uma trapaça política, quando foi apresentada uma pergunta com o único objectivo de inviabilizar o referendo, de roubar o direito democrático de os portugueses e de as portuguesas se pronunciarem. É por isso que a questão da pergunta não é uma questão anónima mas, sim, uma questão decisiva. A Sr.ª Ministra tem de ter pensado na filosofia, no objectivo e no sentido da pergunta, caso contrário não poderia propor-nos o que propõe aqui, por isso queremos a sua resposta sobre esta matéria.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Álvaro Saraiva.

O Sr. Álvaro Saraiva (Os Verdes): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, Os Verdes sempre disseram que, a haver acordo quanto ao Tratado Constitucional da União Europeia, era preciso haver um referendo depois desse acordo e, necessariamente, antes da sua ratificação pela Assembleia da República, por forma a que os portugueses se pudessem pronunciar sobre esta matéria.
Se é verdade que o Tratado foi aprovado pelos 25 representantes dos 450 milhões de europeus que vivem na União Europeia, não é menos verdade que estes mesmos 450 milhões de europeus pouco ou nada conhecem sobre esta matéria e sobre tantas outras inerentes à União Europeia, o que pudemos avaliar pela participação no acto eleitoral do passado dia 13 de Junho.
Reafirmamos que somos a favor de um referendo, mas, para tal se realizar, tem de haver um amplo debate e esclarecimento sobre a matéria em causa, ou seja, o Tratado Europeu. Os portugueses precisam de ter consciência daquilo que está realmente em causa, precisam de exigir esclarecimentos e formas de participação nesse processo.
Pelo que já foi dito, o referendo merece o apoio, na generalidade. No entanto, quero deixar reforçado que este referendo tem de ser sobre o conteúdo do Tratado.
Sr.ª Ministra, pelo que vem publicado na comunicação social, e é confirmado pela Sr.ª Ministra, o Governo vai avançar com o referendo. Na audiência havida com o Sr. Primeiro-Ministro, faz hoje uma semana, na qual a Sr.ª Ministra estava presente, o Sr. Primeiro-Ministro (leia-se o Governo) disse que não tomaria a iniciativa do referendo; hoje, somos confrontados com o oposto.
A pergunta muito simples que coloco é a seguinte: o que levou o Governo e o Sr. Primeiro-Ministro a alterarem a sua posição?

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra a Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, que dispõe de 10 minutos.

A Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, começo por agradecer a todos os Srs. Deputados as perguntas que me formularam sobre

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esta questão da maior importância para Portugal e para a Europa.
Em primeiro lugar, quero concordar com as considerações expendidas pela Sr.ª Deputada Assunção Esteves e pelo Sr. Deputado Miguel Anacoreta Correia. Partilhamos essa visão sobre o alcance desta Constituição, em que a norma prepondera efectivamente sobre a força na negociação, livrando-nos da negociação contingente dos mais fortes, cuja força negocial não teria, de outra maneira, uma moderação nem um enquadramento que garantissem a equidade a todos os Estados-membros.

O Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares (Luís Marques Mendes): - Muito bem!

A Oradora: - Congratulamo-nos também com a originalidade da nova arquitectura que este Tratado agora oferece; congratulamo-nos ainda com a nova relevância que é dada a algumas instituições europeias, nomeadamente às referências que o Tratado prevê relativamente à importância do Parlamento Europeu e ao desenvolvimento dos Parlamentos nacionais.
Agradeço e congratulo-me pelo facto de esta questão ter sido suscitada pelo Sr. Deputado Miguel Anacoreta Correia e pelo Sr. Deputado Alberto Costa.
Com isto, entramos aqui numa clara contradição relativamente às posições, porque justamente uma das recriminações feitas pelo Bloco de Esquerda, penso eu, era a da diminuição das competências do Parlamento. Portanto, penso que essa pergunta está respondida. Foi o que me pareceu entender da intervenção inicial.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Como é que se vota "sim" sem saber a pergunta?

A Oradora: - Em relação à intervenção do Sr. Deputado Alberto Costa, quero congratular-me por várias razões: em primeiro lugar, pelas posições que o PS aqui assumiu, de apoio ao Tratado Constitucional, de apoio à realização de um referendo e, mais importante ainda, saber que o Partido Socialista estará ao nosso lado, a votar "sim", em relação a este referendo, ao contrário do que outros partidos aqui expressaram relativamente a esta questão.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Mas qual referendo?…
Como é que se pode falar em referendo se não se sabe qual vai ser a pergunta?

A Oradora: - Também me congratulo pelo facto de o Partido Socialista ter estado ao nosso lado na resolução, há cerca de dois meses atrás, no âmbito da revisão constitucional, no sentido de resolver também alguns aspectos importantes, com incidência neste projecto europeu.

O Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares: - Muito bem!

A Oradora: - Sr. Deputado Alberto Costa, naturalmente que quero dizer-lhe que nos reconfortou sempre, no plano negocial e durante o período negocial, a partilha de informação de orientações políticas que recebemos da Assembleia da República, sobretudo dos partidos que tiveram uma posição mais interventiva, quer na Comissão quer na próprio acompanhamento do Tratado, numa posição pró-europeia. Confesso que esse respaldo político foi reconfortante em momentos difíceis da negociação.
Mas compreenderá, Sr. Deputado, que, entre aquilo que foram as posições negociais, que também nós defendemos, e o resultado final haverá eventualmente algum afastamento em determinados casos.
Não nos podemos esquecer de que estivemos num processo negocial. A Europa representa o Tratado Europeu e o processo de uma negociação complexa entre 25 Estados-membros. E só porque nesse Tratado se podem rever 25 Estados-membros é que ele é um bom Tratado. É natural, pois, que nem absolutamente todas as orientações, ou todos os desideratos, que tínhamos relativamente ao detalhe pudessem ter sido totalmente contemplados.
Mas os princípios foram religiosamente seguidos nesta negociação e congratulo-me por estar convencida de que eles foram consagrados no Tratado, que agora aprovámos.
Quanto ao Sr. Deputado Francisco Louçã, penso que o Bloco de Esquerda ficou um pouco incomodado com o resultado e o encaminhamento deste debate…

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Pelo contrário!… Está enganada!!

A Oradora: - Penso que aquilo de que o Sr. Deputado e o Bloco de Esquerda teriam gostado, sinceramente, não era que houvesse referendo nem que deixasse de haver referendo, mas era que o Governo chegasse aqui sem posições claras sobre esta matéria. Na realidade, foi isso que não aconteceu, de maneira

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que o Sr. Deputado, neste momento, já quer transformar este debate não já num debate sobre se há ou não referendo mas num debate sobre se vai haver pergunta, sobre qual será a pergunta, qual será a data, ou se calhar a pergunta não vai ser clara…

Vozes do PSD: - Bem lembrado!

A Oradora: - Já estaríamos aqui a liquidar o referendo, antes de começar sequer a ser debatido.

O Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares: - Mas não vão liquidar!

A Oradora: - Ó Sr. Deputado, não vai liquidar este referendo pela simples razão de que a grande maioria dos partidos nesta Câmara querem o referendo, o Governo quer o referendo e, portanto, esse referendo vai realizar-se. O Sr. Deputado e o Bloco de Esquerda terão é de dizer se estão do lado do "não" ou se estão do lado do "sim".

Vozes do PSD: - Muito bem!

A Oradora: - Aparentemente, pelo que é dado entender, por aquilo que já sabíamos, estarão do lado do "não", juntamente com o Partido Comunista. Foi isto o que pudemos deduzir destas palavras.

Risos do Deputado do BE Luís Fazenda e de Deputados do PCP.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - É extraordinário!…

A Oradora: - Compreendo a sua incomodidade, mas a verdade, Sr. Deputado Francisco Louçã, é que o nosso objectivo, aqui, não é uma corrida de obstáculos, para ver quem chega em primeiro lugar à questão do referendo ou à questão das perguntas. Para nós, não é! É um processo de formação da vontade muitíssimo complexo.
Por isso, Sr. Deputado, como é evidente, não trazemos aqui perguntas para o Sr. Deputado as liquidar no mesmo instante. Queremos que esse processo seja participado e partilhado com todas as forças políticas.
A formulação das perguntas é essencial para a clareza que queremos que estas perguntas tenham para o povo português poder efectivamente participar. Não é nada que se ofereça ao povo português, é o desejo de que ele partilhe e assuma uma responsabilidade nesta questão essencial.
Não descuramos a legitimidade representativa, nem a dos órgãos representativos, que é própria da democracia, como a consideramos ao longo destes anos todos de integração europeia. Agora, que a Constituição o permite, julgo ser o momento de confrontar os portugueses, como eu disse há pouco, com a responsabilidade e a partilha da responsabilidades neste projecto do maior alcance político e constitucional.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

Bem, Sr. Deputado, se quer ficar "pirandelianamente" com a sua verdade de que chegou primeiro, e se isso o faz feliz, fique! Nós queremos efectivamente uma grande partilha na discussão deste ponto, queremos que as datas sejam consentâneas com aquilo que a norma legal diz, e é essa norma que vai orientar-nos em todo este processo.
A competência da marcação da data, como sabe, é do Presidente da República; a ocasião, naturalmente, será depois das eleições regionais, em Outubro, pelo que haverá tempo para depois se realizar o referendo.
Quanto à formulação das perguntas, penso que, em função deste calendário, temos a maior disponibilidade e o tempo necessário para - espero que também com a participação do Bloco de Esquerda, que seria com certeza bem vinda, como a de todos os partidos - podermos chegar à elaboração de perguntas claras, que, no fundo, é aquilo que todos queremos relativamente a este referendo.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar à segunda ronda de perguntas deste debate de urgência.
Em primeiro lugar, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Henriques.

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O Sr. Almeida Henriques (PSD): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, o Sr. Primeiro-Ministro considerou o texto do novo Tratado Constitucional como um bom acordo para Portugal, justo e equilibrado, e constituindo uma excelente notícia para a Europa.
De facto, foram dois anos de trabalho intenso e os nossos colegas convencionais também trouxeram a este Parlamento, nos diferentes momentos, a discussão daquilo que era a temática do novo Tratado Constitucional - e só não participou nesta discussão no Parlamento, nas várias reuniões realizadas, quem efectivamente não quis.
Na verdade, tivemos aqui uma participação alargada, tratando-se seguramente do Tratado com maior participação procedimental. Não foi, de facto, "cozinhado" à pressa. Eu diria que foi antes um exercício genuíno de construção europeia com total empenho dos 25 Estados-membros, o que levou a que todos os países se revejam neste texto que foi aprovado. Prova-se que é possível trabalhar numa Europa alargada, que é possível tomar decisões, que os "eurocépticos" não têm efectivamente razão e que houve vontade política e empenho em relação a esta matéria.
Considero fundamental que se tenha gerado um acordo, porque era grande a expectativa em todos os cidadãos europeus. Foi, de facto, fundamental ter-se concluído esta CIG, alcançando efectivamente as regras para o funcionamento de uma Europa alargada.
É, portanto, um acordo de 25 Estados soberanos em torno dos objectivos comuns e é a afirmação da Europa dos Estados e dos cidadãos.
Não vou enfatizar os vários aspectos já enumerados pela Sr.ª Ministra, os aspectos positivos que comporta este Tratado; vou cingir-me estritamente a duas questões.
Por um lado, à participação e ao défice de participação dos cidadãos.
Apesar de não ir tão longe, como desejaríamos, reforça claramente os poderes dos Parlamentos nacionais, assim como os do Parlamento Europeu, que fica com os poderes reforçados, nomeadamente em matéria orçamental e na lógica da co-decisão.
Os próprios cidadãos passam a ter um direito de petição. Portanto, penso ser um bom passo que deverá ser aprofundado com o nosso funcionamento diário, e aqui compete também à Assembleia encontrar novas formas de fazer um acompanhamento mais eficaz das questões que tenham a ver com a construção europeia.
Saúdo também - e não posso deixar de o fazer - o Governo, na pessoa da Sr.ª Ministra, pela coerência da posição do anúncio do referendo à Constituição Europeia. Ao contrário do que se disse, há aqui uma coerência clara do Governo em todo este processo, porque o Sr. Primeiro-Ministro sempre afirmou que se houvesse alterações de fundo estaria aberto à existência do referendo.
Indo agora a duas questões concretas, eu gostava de dizer o seguinte: tem-se discutido muito a questão do Tratado Constitucional, mas este é somente um momento de "chegada" e, ao mesmo tempo, um momento de "partida", porque é a partir de agora que estão criadas as condições para aprofundar outros aspectos de importância para a União Europeia.
A questão que coloco ao Sr. Secretário de Estado é esta: uma vez aprovadas estas situações e este texto, o que é que vai acontecer agora no processo da construção europeia?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o seu tempo esgotou-se. Agradeço que conclua.

O Orador: - Termino já, Sr. Presidente.
A outra questão é esta: no aspecto da coesão e solidariedade, em que medida é que Portugal fica bem posicionado para a defesa das suas regiões que estão claramente sem coesão e também em relação às regiões ultraperiféricas, como são os Açores e a Madeira?

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme d'Oliveira Martins.

O Sr. Guilherme d'Oliveira Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Ministros, Sr. Secretário de Estado, antes de mais, quero dizer muito brevemente que é a democracia europeia que está em causa e, como a democracia é sempre exigente, temos muito trabalho para realizar, designadamente, neste Parlamento e no que se refere à nossa relação com a opinião pública, uma vez que é necessário percebermos o que está em causa.
E relativamente ao que está em causa, o Partido Socialista toma uma posição muito clara: é o partido dos dois "sim" - "sim" a um referendo e "sim" ao Tratado Constitucional Europeu.

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O Sr. Eduardo Ferro Rodrigues (PS): - Muito bem!

O Orador: - É nesse contexto que se torna indispensável respeitarmos escrupulosamente a Constituição no que se refere ao referendo. Hoje, de manhã, o Dr. Eduardo Ferro Rodrigues teve oportunidade de dizer que é indispensável respeitarmos o artigo 115.º, n.º 7, da Constituição, sugerindo concretamente uma data, que deverá corresponder ao mês de Janeiro do ano 2005.
Mas estamos disponíveis para trabalhar seriamente no sentido de termos uma consulta popular clara, oportuna, inequívoca e constitucional.

O Sr. Eduardo Ferro Rodrigues (PS): - Muito bem!

O Orador: - Por outro lado, Sr. Presidente, é indispensável percebermos que, ao contrário do que muitas vezes se tem dito, a verdade é que a Convenção foi um passo enorme e positivo, pois antes da Convenção as conferências intergovernamentais eram preparadas no segredo dos gabinetes ou no silêncio das alcatifas…

Vozes do PS: - Exactamente!

O Orador: - … e agora houve um debate claro, um debate transparente, onde constam as propostas e as intervenções de todos os diferentes membros desta Convenção.
O óptimo é inimigo do bom! Naturalmente, não estamos satisfeitos com tudo, mas entendemos que este Tratado Constitucional é uma boa base para avançarmos na democracia europeia.
"Constituição" significa limitação de poderes.
"Constituição" significa clarificação das competências, designadamente das competências da União e das competências partilhadas com os Estados.
"Constituição" significa salvaguarda da soberania originária dos Estados.
"Constituição" significa salvaguarda inequívoca de uma soberania partilhada da União.
"Constituição" significa método comunitário e menos directório.
Por isso, entendemos que é indispensável percebermos que, junto dos cidadãos, o que temos de dizer, claramente, é que este é um passo positivo, é um passo que acrescenta algo à soberania nacional portuguesa e também acrescenta e melhora a soberania europeia. Daí que o Parlamento nacional, e o Sr. Presidente tem salientado, em vários momentos, a importância dos parlamentos nacionais, saia reforçado nesta Constituição Europeia. E é indispensável que os cidadãos o percebam, porque, ao sair reforçado o Parlamento nacional, os cidadãos também saem reforçados.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para formular perguntas, tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Anacoreta Correia.

O Sr. Miguel Anacoreta Correia (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, gostaria de me referir, nesta segunda ronda de perguntas, justamente ao ponto com que o meu colega, Deputado Guilherme d'Oliveira Martins, terminou: o reforço dos Parlamentos nacionais.
Com efeito, tem sido frequentemente citado o facto de, hoje, mais de 50% da legislação dos países europeus ser de proveniência comunitária. Embora a maioria destas normas diga respeito a novas áreas de intervenção, em boa parte decorrentes da evolução científica e tecnológica e da evolução da própria natureza do mercado, a verdade é que o balanço entre a legislação existente (que rege tradicionalmente as nossas vidas) e a que vai surgindo é crescentemente positivo no sentido da legislação com um "código genético", digamos assim, comunitário.
O novo Tratado Constitucional reforça o papel do Parlamento Europeu, no sentido de os cidadãos terem um acesso mais fácil à legislação comunitária, desde a fase da sua discussão até à da sua aprovação. Hoje, essa legislação é adoptada quase de forma "fechada" pelos representantes dos governos, mas, no futuro, os cidadãos poderão controlá-la, através do Parlamento Europeu, e eles próprios, por iniciativa popular, poderão convidar a Comissão europeia a apresentar propostas legislativas.
Mas o Tratado Constitucional prevê ainda que os parlamentos nacionais tenham também um papel acrescido, por um lado, no controlo do princípio da subsidiariedade - e, é bom lembrar, a soberania proclama-se, mas também se deve praticar! Não devemos ficar apenas nas declarações proclamatórias - e, por outro, no controlo da adequação da legislação comunitária à ordem legislativa nacional, sobretudo

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no que diz respeito a direitos, liberdades e garantias, dado o precedente de alguns conflitos que já surgiram.
Por várias vezes, tive ocasião de referir que o nosso Parlamento terá de se adequar, reformar e, provavelmente, alterar rotinas e métodos de trabalho, a exemplo de mudanças efectuadas noutros parlamentos, para poder satisfazer os requisitos práticos da nossa soberania.

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Exactamente!

O Orador: - Sabemos que o Sr. Presidente da Assembleia da República está atento a esta questão e esperamos que a sua vontade de reforçar esta Câmara, para a pôr em condições de responder aos difíceis desafios, não depare com obstáculos intransponíveis.
Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, quero agradecer-lhe a si e ao Sr. Secretário de Estado a frequência com que têm vindo à Assembleia, prestar informações e esclarecimentos, e a forma como o têm feito. É mutuamente conveniente reforçar esta forma de trabalhar, em que o Governo e o Parlamento cooperam - pelo menos, eu penso, o País agradece este tipo de cooperação.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

O Orador: - Assim, pergunto à Sr.ª Ministra como pensa incrementar esta relação entre o Governo e o Parlamento, por forma a que o Parlamento, através da sua Comissão de Assuntos Europeus e Política Externa e das diversas comissões especializadas, possa acompanhar a evolução de cada dossier e não apenas a fase final da sua ratificação.
O novo…

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, esgotou-se o tempo de que dispunha. Peço-lhe que conclua.

O Orador: - É a última frase, Sr. Presidente, se me permite.
O novo Tratado Constitucional obriga a uma posição muito mais activa por parte dos parlamentos nacionais e o meu partido - é bom lembrá-lo! - apresentou, oportunamente, um projecto de lei relativo ao acompanhamento e apreciação, pela Assembleia da República, da temática comunitária. Os factos vieram demonstrar ser urgente discutir e decidir sobre esse projecto de lei.

Aplausos do CDS-PP e do PSD.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Honório Novo.

O Sr. Honório Novo (PCP): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, na sua intervenção inicial, constatei, mais uma vez, aquilo que, do meu ponto de vista, não é nenhum fundamentalismo, nem eurocepticismo, mas, sim, um exercício virtual de retórica sobre uma situação que não tem tradução na realidade.
De facto, este não foi um processo amplo, plural e transparente. E o que temos perante nós é, de um lado, esta retórica virtual e, do outro, a dura realidade de um país que desconhece o que se está a passar. É bom que, depois, Sr.ª Ministra, de cinco em cinco anos, não continuemos a abrir a boca e a admirarmo-nos com os níveis de abstenção nas eleições europeias, porque uma das razões reside exactamente nisto: na diferença entre a intenção de auto-satisfação, que está inerente àquilo que disse, e a dura realidade de um país que não se revê no que acabou de dizer.

O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Muito bem!

O Orador: - A Sr.ª Ministra enunciou como objectivos deste Tratado, do ponto de vista do Governo, dois, que eu gostava de comentar: a igualdade e a coesão. "Palavras, leva-as o vento!", mesmo que elas estejam escritas, Sr.ª Ministra, mesmo que elas estejam escritas!
A coesão está assegurada, do ponto de vista do Governo?! E as disposições que permitam que essa coesão se traduza em actos práticos, Sr.ª Ministra, se a proposta da Comissão para recursos próprios, para um novo orçamento, é inferior à actual, num quadro de alargamento?!

Vozes do PCP: - Muito bem!

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O Sr. Rodeia Machado (PCP): - Bem lembrado!

O Orador: - E, quanto à igualdade, Sr.ª Ministra, quais são as disposições que existem, além daquelas que afectaram, em relação ao passado precedente, a composição da Comissão e as presidências rotativas?! Quais são as disposições que asseguram, de facto, que os Estados são iguais?! É o facto de haver quatro países - os maiores - que podem bloquear qualquer decisão e o de Portugal ter abdicado, por iniciativa própria, de poder bloquear, ele próprio, com base no princípio da igualdade, decisões que lhe dizem respeito e que podem ferir os seus interesses?! Isto é que é igualdade?! Sr.ª Ministra, quanto a nós, isto não é igualdade.
Registo que a Sr.ª Ministra não respondeu à pergunta formulada pelo Sr. Deputado Bernardino Soares sobre quais serão as consequências de um eventual resultado negativo do referendo em Portugal. Não vai Portugal ratificar o Tratado?!

O Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares (Luís Marques Mendes): - Veja a lei! Não conhece a lei?!

O Orador: - É que, ao nível europeu, Sr.ª Ministra, o Governo assinou uma declaração anexa que permite que a ratificação do Tratado seja feita, ou possa vir a ser feita, por quatro quintos dos Estados-membros! O que é isto, Sr.ª Ministra?! É colocar um Tratado em vigor antes de ele ser ratificado?! É ameaçar os Estados com a eventual expulsão, caso não ratifiquem o Tratado que acabaram de assinar no passado fim-de-semana?! O que é isto?! Isto é uma atitude e uma declaração subscrita pelo Estado português que, em face do Tratado de Nice, em vigor, é ilegal e procura influenciar, à partida, os resultados dos referendos, e não apenas em Portugal mas em toda a União Europeia.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para formular perguntas, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Fazenda.

O Sr. Luís Fazenda (BE): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, nós exprimimos satisfação com o avanço para um referendo, aliás, temos batalhado muito por ele, pensamos que todos ganharemos com ele e que isso é benéfico para a democracia e para a participação dos cidadãos. Nós até teríamos desejado um referendo que pudesse condicionar a negociação do Governo, quanto mais querê-lo e desejá-lo agora. É por tudo isto que consideramos que a Sr.ª Ministra faz uma alusão de mau gosto, quando diz que lhe parece que havia aqui uma competição, no sentido de alguém querer chegar primeiro.
Se me permite, Sr.ª Ministra, um pouco mais de humildade política não faria mal. De ontem para hoje o Governo tomou uma decisão! De ontem para hoje!

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Exactamente!

O Orador: - Ontem, o Primeiro-Ministro ainda dizia que o Governo não tomaria a iniciativa; a Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros, ontem, aqui, neste Parlamento, não tinha posição sobre o referendo; portanto, o Governo chegou ao referendo nas últimas 24 horas. Ainda bem que chegou ao referendo, mas é cedo para daí retirar lições de coerência política, porque, na semana passada, o Governo dizia que não iria tomar a iniciativa e que respeitaria aquilo que viesse a ser adoptado na Assembleia da República.
Mas, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros, quando invocamos os cenários do referendo, eles foram, com certeza, sopesados em relação a uma filosofia de pergunta ou de perguntas. Portanto, a nossa questão não é inócua, tem a ver com uma experiência anterior, de um referendo sobre um tratado europeu que ficou frustrado.
É por isto que, exprimindo satisfação pelo avanço para um referendo, temos ainda reservas do ponto de vista de qual vai ser a filosofia adoptada. É neste momento, e ainda - e presume-se que, afinal, até Setembro -, um referendo "à condição". Vamos verificar como é que ele se desenvolve e qual será a sua filosofia geral.
Além do mais, também não sabemos a dimensão do referendo. Vão perguntar-se algumas coisas muito em concreto, que uns até poderão considerar secundárias, na Constituição?! Vai perguntar-se o quê?!
Portanto, o debate, a partir do momento em que é vencida a etapa da realização do referendo, centrar-se-á, inevitavelmente, na filosofia daquilo que estará em referendo. E foi esta a questão que aqui colocámos.
A Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros fez um hosana muito geral em relação às aquisições deste

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Tratado da União Europeia. No entanto, há uma pergunta à qual era importante que respondesse. Segundo a nossa leitura, no actual sistema decisório, a influência da votação de Portugal baixa em relação a Nice e nós gostávamos que o Governo se pronunciasse sobre isto. Se baixa ou se não baixa?! É que, deste ponto de vista, a nossa opinião é a de que Portugal passou a valer menos no conjunto da União Europeia, e esta é uma questão muito importante para que os portugueses possam saber exactamente o que saiu do Conselho Europeu.

O Sr. Presidente: - Para formular o seu pedido de esclarecimentos, tem a palavra a Sr.ª Deputada Isabel Castro.

A Sr.ª Isabel Castro (Os Verdes): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, registamos positivamente a evolução da atitude do Governo em relação à Constituição e à possibilidade de o Tratado ser objecto de consulta. Não era esta a sua opinião há dias, mas é, há muito, o princípio que Os Verdes defendem e que, num marco que foi, do nosso ponto de vista, decisivo, o de Maastricht, foi negado, razão pela qual isto é positivo. Mas este facto, só por si, não determina o entusiasmo do Governo em relação ao Tratado. E penso que seria interessante que a Sr.ª Ministra e o Governo dessem uma explicação, uma vez que a Constituição vai eliminar os Tratados. Como se explica que um Tratado com uma importância nuclear como o EURATOM tenha, pura e simplesmente, de forma escandalosa, sido colocado à margem deste texto? Esta é uma explicação que, a meu ver, tem de ser dada neste Parlamento e aos europeus, tal como, aliás, tem de ser dito quais as iniciativas que terão de ser tomadas para ultrapassar este escândalo.
Também não partilhamos, naturalmente, o enfoque militarista que é dado às questões da segurança e defesa comum.
Sr.ª Ministra, há uma pergunta que tem de ser colocada. É evidente que os calendários dependem de razões que, desde logo, têm a ver com os processos eleitorais e com o diálogo e ordenamento de todas estas questões, mas não é com certeza indiferente saber - e a Sr.ª Ministra considera que cada coisa tem o seu tempo -, independentemente de se conhecer a pergunta em concreto, já que ela tem de ser feita de forma a que o Tribunal Constitucional a não rejeite (seria uma fraude, se não houvesse o cuidado de acautelar esta questão), que opinião e que ideia tem o Governo sobre as matérias que procura colocar à discussão.
Por último, Sr.ª Ministra, gostaria de dizer que não partilhamos, como outros partidos fazem, do entusiasmo de que os parlamentos nacionais tenham salvaguardado o seu espaço de intervenção no novo quadro.
Há, de facto, registos pontuais em termos de uma maior intervenção, mas esta está muito aquém daquilo que é retirado efectivamente e daquilo que os Estados deixam de, com autonomia, poder decidir.
Portanto, neste domínio, no balanço entre perdas e ganhos, é com grande inquietação que vemos a subalternização dos parlamentos nacionais neste novo quadro.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

O Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus (Carlos Costa Neves): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por agradecer as questões colocadas e por fazer minhas as palavras e os agradecimentos da Sr.ª Ministra em relação ao envolvimento que a Assembleia da República sempre teve, desde o momento em que foi convocada a Convenção sobre o Futuro da Europa, no processo de elaboração do Tratado Constitucional para a União Europeia. Foi sempre um trabalho conjunto, tendo como base a procura das melhores soluções e dos melhores caminhos para o nosso país e para a União Europeia, e que me apraz muito registar.
Foi, aliás, um trabalho sempre pautado por uma total abertura, por uma franca troca de todas as informações, por um envio de todos os documentos (todas as informações e todos os documentos foram partilhados), e é por isto que, a meu ver, é hoje possível dizer que temos condições para analisar o texto que nos é agora proposto para posterior ratificação. Estes entendimentos cultivam-se, e penso que foram cultivados de todos os lados, quer do Parlamento quer do Governo.
De entre as perguntas que foram formuladas - o que, mais uma vez, agradeço -, o Sr. Deputado Almeida Henriques fez uma que dá muito o tom da forma como nos posicionamos perante as situações, que foi perguntar: "E agora?" Ora, quando o Sr. Deputado pergunta "E agora?" está também a dar o tom de que toda esta discussão foi importante. É certo que temos ainda um processo até à ratificação, que passa por um referendo, mas este esforço teve sentido porque é ele que prepara a União Europeia para fazer face aos tempos que aí estão.
Este novo Tratado Constitucional coloca a União Europeia em condições de responder aos desafios

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do tempo presente, de responder à conjuntura decorrente do alargamento e de responder ao ponto da situação em termos de globalização. Não basta dizer que temos uma aldeia global, é preciso reconhecer que temos, decorrentes daí, não só grandes vantagens como também desafios e problemas a resolver. E há problemas e desafios a resolver que serão resolvidos com mais facilidade, para os cidadãos europeus e concretamente para os portugueses, se estivermos juntos, se partilharmos os nossos esforços com outros.
Logo, a União Europeia, quando reafirma não só as suas políticas no campo da coesão e no campo da solidariedade mas simultaneamente a possibilidade de criar as condições para avançar nos campos da justiça e assuntos internos, do combate à fraude e à criminalidade organizada, com melhores respostas nos domínios do ambiente e da política externa e segurança comum, está a criar condições para dizer "presente" aos desafios da actualidade.
Portanto, é tudo isto que este Tratado Constitucional vai conseguir trazer; era para isto que este Tratado Constitucional era necessário. Temos agora melhores instrumentos, competências mais claras e melhores possibilidades de responder às necessidades do tempo presente e - é sempre bom dizê-lo - às necessidades dos cidadãos.
Reafirma-se simultaneamente a coesão e a solidariedade, e penso que isto está no "código genético" da União Europeia. Não há União Europeia sem solidariedade,…

O Sr. Honório Novo (PCP): - Não há é solidariedade sem meios!

O Orador: - … e essa solidariedade foi algo que nos preocupou desde o primeiro momento.
Preocupou-nos que fosse claramente identificada essa política de solidariedade, aliás, foi dos aspectos que exigiu mais trabalho, mais conjugação de esforços e mais negociação.

O Sr. Honório Novo (PCP): - Isso é retórica!

O Orador: - Finalmente, encontrámos, ao nível do texto, uma boa solução.
Sr. Deputado Guilherme d'Oliveira Martins, agradeço-lhe também as questões que colocou.
No que respeita ao referendo, tal como a Sr.ª Ministra referiu, obviamente que procuraremos, todos, fazer sempre tudo de acordo com a lei, porque o fazemos sempre - nós e vós - mas também porque neste caso concreto todo este processo é de consulta obrigatória, de escrutínio especial do Tribunal Constitucional. Portanto, há não só vontade do nosso lado nesse sentido como também os próprios mecanismos que a lei prevê para assegurar que assim seja.
Quanto à data do referendo, 2005, certamente, mas, neste respeito pelas regras e pelo papel que o Presidente da República tem, e deve ter, neste processo, é obviamente a ele que cabe uma palavra essencial quanto à data da realização do referendo.
Acima de tudo, penso que, decidida a realização do referendo, vai ser preciso assegurar que a resposta seja "sim". E, quanto a este aspecto, gostei de ouvir dos vários intervenientes neste debate que estamos perante um bom texto, que avança, que dá novos passos e que, por isso, merece o nosso apoio. Estamos, portanto, a criar condições para que no debate que se vai seguir e na manifestação de vontade que os portugueses vão realizar a resposta seja "sim".
Sr. Deputado Miguel Anacoreta Correia, devo dizer-lhe que segui com encanto a sua intervenção e que, desde logo, penso que quem acredita na União Europeia, quem entende que esta é necessária para Portugal, para a Europa e para o mundo e que a União Europeia contém em si resposta a questões essenciais dos nossos tempos não pode deixar de desejar que este Parlamento se envolva cada vez mais no processo de acompanhamento da vida da União Europeia e, desta forma, possa assegurar um maior conhecimento dos debates e das questões, um maior envolvimento de todos. Penso que este envolvimento passa muito por esta Casa, como, de resto, tem passado, e, acima de tudo, penso que pode passar cada vez mais, no futuro.
Sr. Deputado Honório Novo, efectivamente, o processo de discussão do Tratado Constitucional foi amplo, plural e transparente.

O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Foi tão amplo que só participaram dois partidos!

O Orador: - E foi amplo, plural e transparente de tal forma que - estou certo - o Sr. Deputado reconhecerá que nunca se soube tanto do que estava em causa, nunca se soube tanto sobre as posições de todos, nunca se soube tanto sobre o texto que aqui vai ser trazido para ratificação como neste caso. É porque realmente houve qualquer coisa de diferente! O Sr. Deputado sabe hoje mais sobre este processo do que alguma vez soube!
Em relação à igualdade entre os Estados, não só o princípio está considerado como o está por grande

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empenho do Governo português, sempre acompanhado por muitos dos Srs. Deputados desta Câmara.
Obviamente, igualdade é ser igual no que é igual; é ser diferente no que é diferente! Portanto, é isto que vai acontecer; é isto que está considerado!

O Sr. Honório Novo (PCP): - O que é que isso significa, Sr. Secretário de Estado?

O Orador: - Pensamos que está perfeitamente assegurada a rotatividade das presidências do Conselho em regime de igualdade; está assegurada a participação na Comissão em regime de igualdade; está assegurada a participação nas políticas em regime de igualdade.
Portanto, igual no que é igual, diferente no que é diferente!

O Sr. Honório Novo (PCP): - O que é que isso significa, Sr. Secretário de Estado?

O Orador: - Em relação à questão dos quarto quintos, porque o tempo se vai escoando e porque o Sr. Deputado teve ontem a resposta na reunião da 2.ª Comissão posso ser muito breve, devo dizer que não se fala neste Tratado em quarto quintos ou em um quinto.

O Sr. Honório Novo (PCP): - Não foi isso o que eu disse!

O Orador: - Há uma declaração, que foi aprovada em paralelo ao texto do Tratado Constitucional,…

O Sr. Honório Novo (PCP): -O que é que ela diz?

O Orador: - … que diz que, passados dois anos, se quarto quintos dos Estados tiverem ratificado o Tratado, o Conselho Europeu reúne para avaliar a situação. Nada mais do que isto é dito!

O Sr. Honório Novo (PCP): - Não significa nada do ponto de vista político!

O Orador: - É o que lá está escrito! Não faz parte do Tratado… É uma declaração o que lá está!

Protestos do Deputado do PCP Honório Novo.

E parece-me de bom senso que, passados dois anos, se o Tratado não estiver ratificado por todos se avalie o porquê dessa não ratificação.
Sr. Deputado Luís Fazenda, a influência de Portugal neste processo faz-se, acima de tudo, pelo conhecimento, pelo envolvimento, pelo empenhamento e pelas propostas que fizemos ao nível das instituições europeias. É nisto que podemos distinguir-nos e afirmar-nos. Para o resto há a matemática, e, segundo ela, o poder divido por 15 é maior do que o poder dividido por 25…

O Sr. Honório Novo (PCP): - Isso já era a União a 25!

O Orador: - … e, portanto, houve, obviamente, acertos na grelha de peso relativo de cada um dos Estados-membros. Mas o importante é sabermos trabalhar na Europa, e estou certo de que o faremos da melhor forma.
Sr.ª Deputada Isabel Castro, passo em claro a questão do enfoque militarista, porque aquilo que uns dizem que é de mais outros dizem que é de menos e, portanto, quanto a isto, a cada um cabe a respectiva conclusão.

O Sr. Presidente: - Sr. Secretário de Estado, peço-lhe que termine, pois já esgotou o tempo de que dispunha.

O Orador: - Termino já, Sr. Presidente.
Em relação ao Tratado EURATOM, devo dizer-lhe, Sr.ª Deputada, que há uma declaração anexa - o anexo 57 - ao documento discutido pelos primeiros-ministros e pelos Chefes de Estado, onde se diz que esta questão será abordada num próximo futuro, tão breve quanto possível, exactamente pelas razões que referiu.
Para terminar, quero dizer que hoje poderá ser o primeiro dia desta 2.ª fase do processo que nos levará a ter um novo Tratado Constitucional. E estou profundamente convencido de que este novo Tratado

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Constitucional será bom para Portugal, para a União Europeia; mas, acima de tudo, é bom porque é bom para os cidadãos.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passamos agora às intervenções de encerramento do debate.
Assim, tem a palavra a Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas.

A Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero concluir este debate dizendo que ele teve a maior oportunidade, antes de mais porque vejo confirmada uma larguíssima maioria de acordo quanto ao projecto de Tratado Constitucional que o Governo negociou e que foi aprovado na passada sexta-feira. Verifico a existência de amplo arco europeu neste Parlamento, que envolve os partidos da coligação e o maior partido da oposição, o que é bom para o País, para a Europa, para o Tratado Constitucional e para o projecto europeu.

Vozes do PSD e do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: - Quero de novo sublinhar o que disse há pouco, ou seja, o modo participado e partilhado como esta negociação foi acompanhada pela Assembleia da República e pelos Srs. Deputados nas suas várias fases.
Quero aqui dirigir uma palavra muito particular aos Srs. Deputados da Comissão de Assuntos Europeus e Política Externa e ao seu Presidente, o Sr. Deputado Jaime Gama, que acompanharam de modo tão próximo, tão envolvido e tão responsável esta questão magna para a Europa e para o nosso país.

Vozes do PSD e do CDS-PP: - Muito bem!

A Oradora: - Ao conduzir estas negociações difíceis e complexas - tratam-se de assuntos complexos que não podem ser simplificados em nome de coisíssima alguma - e ao acompanhá-las foi reconfortante ter o acompanhamento próximo e, por vezes, o respaldo político da grande maioria deste Parlamento em muitas matérias negociais.
Desta experiência, Srs. Deputados, reforço a minha convicção de que no futuro será desejável, a todos os título, que haja um maior envolvimento do Parlamento na discussão destas matérias da União, de que nós somos parte.
Isto contribuirá também, talvez mais do que qualquer outra fórmula, processo ou meio, para uma diminuição do alheamento dos portugueses, aqui representados, das decisões tomadas na Europa e que influem cada vez mais directamente nas suas vidas - um alheamento que aqui foi referido por todos os partidos políticos, sem excepção, e que é motivo de preocupação para todos nós.

O Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares (Luís Marques Mendes): - Claro!

A Oradora: - Portanto, penso que também esta razão, da necessidade de um maior envolvimento dos portugueses, de diminuir o fosso e o défice de participação dos portugueses, sobretudo em matérias europeias, se acrescenta às que tive oportunidade de enunciar na minha intervenção inicial para a oportunidade de auscultar os portugueses através do referendo europeu. Esta é uma questão fundamental, em relação à qual o Governo quer afirmar a sua vontade política e a sua determinação.
Em 1998, tive oportunidade de aqui, nesta Câmara, votar favoravelmente a necessidade ou a oportunidade de um referendo, que infelizmente não pôde ser concretizado. Era este o meu desejo nessa altura e, agora, é também este o desejo do Governo.
Neste sentido, gostaria de reforçar o empenho e a congratulação relativamente à oportunidade que este referendo parece conseguir por parte de todos os partidos políticos.
Sobre a questão da oportunidade e de, ontem, não ter aqui, nesta Casa, anunciado a intenção do Governo, gostaria de dizer que esse anúncio não foi possível, porque, ontem mesmo, o Primeiro-Ministro quis dar conta ao Sr. Presidente da República da sua intenção de promover a realização de um referendo e de trazer a proposta à Assembleia da República. Foi por isto que, ontem, apenas disse que ainda era necessário um período de concertação com os órgãos de soberania envolvidos e não dei esta informação na Comissão.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

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Srs. Deputados, quisemos fazê-lo por uma questão de elegância. Sabemos que a decisão de apresentar a proposta à Assembleia da República poderia ser apenas do Governo, mas - e reitero o que disse -, em todas as matérias europeias, em todas as matérias que foram tratadas no âmbito desta negociação e deste Tratado, queremos envolver cada vez mais e progressivamente o Parlamento.
Gostava, finalmente, de me congratular e de reafirmar a minha convicção de que os portugueses deverão participar, discutir e assumir seriamente, por si e para si, este projecto da União Europeia, este projecto do Tratado Constitucional, que é tão importante para Portugal e para a Europa.
O mais importante no debate sobre este referendo é a posição que cada partido irá assumir.
Pude constatar que existe um alargado arco europeu. Pude constatar que o Partido Socialista e que o Partido Social Democrata irão votar favoravelmente e que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português irão estar do lado do "não".
Gostaria de reforçar a nossa convicção de que o "sim", o duplo "sim", relativamente ao Tratado Europeu, será bom para Portugal.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Para encerrar o debate, tem a palavra o Sr. Deputado Francisco Louçã.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Sr. Presidente, Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, foi preciso chegarmos à sua última intervenção para reconhecer - e fez bem - a maior oportunidade que este debate tinha. O que seria surpreendente e inadmissível é que, na primeira sessão parlamentar depois da aprovação do Tratado, não houvesse aqui uma discussão que permitisse esclarecer os rumos da devolução do poder de decisão aos portugueses e às portuguesas. Ainda bem que é assim.
Percebo, no entanto, que haja um fundo de incomodidade nessa constatação, porque foi só por que o Bloco de Esquerda tornou obrigatório esta discussão que o Governo vem aqui reconhecer que mudou de posição.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Vejam lá a força do Bloco de Esquerda…! "Presunção e água benta…!".

O Orador: - Tem o nosso aplauso, porque o Governo começou por dizer que não sabia se queria referendo; depois, que não queria referendo; a semana passada, que nem sabia se queria; segunda-feira, disse o Primeiro-Ministro a um jornal que não havia data disponível; e terça-feira foi propor ao Presidente da República - e ainda bem! - que haja referendo em 2005.
Tem o nosso acordo e tomáramos nós que em todos os problemas que a oposição aqui suscita pudesse haver uma tão sensata mudança de posição do Governo. É uma grande alegria, é muito raro, e continuaremos a insistir. Haja referendo, e que ele permita que, nas melhores condições democráticas, os portugueses participem, como temos de participar, como europeus que somos, na construção da Europa e nas suas escolhas.
Mas ficou aqui um problema e não é um problema menor. A Sr.ª Ministra, aliás, referiu-se a isso, ao facto de ter votado, como Deputada, uma resolução impossível e inconstitucional (sabe bem, agora, que era inconstitucional). Foi, Sr.ª Ministra, uma falcatrua política. E por que não podemos admitir, sequer, essa possibilidade, é que insistimos na clarificação da data, cuja decisão será tomada, naturalmente, pelo Presidente da República, e sobre duas outras matérias: a consequência política,…

O Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares: - Está na lei!

O Orador: - … conformando-se com o que a lei estabelece acerca dos efeitos do referendo - obviamente, será a ratificação ou não, consoante o voto seja "sim" ou "não" a uma pergunta com esse objectivo -, e a pergunta, porque, Sr.ª Ministra, foi esta a questão que impediu que os portugueses, em 1998, se pronunciassem.
Aliás, aconteceu algo de muito cómico neste debate: a Sr.ª Ministra disse sucessivamente que sabia quem votava "sim" e "não", mas recusou-se a dizer qual era a pergunta.
Sr.ª Ministra, imagine que o Ministro Luís Marques Mendes vai casar-se. Entra na igreja triunfalmente, com o cachecol "Força Portugal" ao pescoço…

Risos.

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… e, dirigindo-se ao altar, sabe que tem de responder "sim"… Porém, ele não sabe quem é a noiva.

Risos do BE, do PS e do PCP.

Protestos de Deputados do PSD.

Os senhores sabem quem vai responder "sim", mas não admitem que se discuta, sequer, a pergunta.
O Sr. Secretário de Estado, num momento de grande entusiasmo, disse-nos: "É preciso garantir que o 'sim' vença!" Agora, se perguntarmos qual é a pergunta, é considerado ofensivo. Que disparate, perguntar qual é a pergunta! Não, o "sim" tem de vencer. Já se sabe que o Partido Socialista vai dizer "sim", não se diz é qual é a pergunta, é um segredo! Ora, isto é inaceitável!
Não lhe pedimos, Sr.ª Ministra, para nos indicar qual é o termo jurídico definitivo da pergunta, mas temos o direito de perguntar ao Governo se na sua competência, ao tomar a decisão de fazer uma proposta desta natureza, não lhe passou pela cabeça, não se preparou para nos dizer qual é o objectivo da pergunta - o que pretende que os portugueses escolham. Isto a Sr.ª Ministra tem de saber! E, como o debate tem de começar agora, porque tem de concluir-se em Setembro o mais tardar, é melhor, em nome da clarificação política, que não faça este jogo de uma resposta sem pergunta, mas que se comece a clarificação, porque dela dependerá termos a certeza sobre se o referendo é ou não viável.
Bizarro seria o Governo discutir o referendo e não pensar que, em 1998, houve um problema, que foi uma falcatrua, e não considerar o problema importante, porque a pergunta não pode ser genérica. O que está em causa não é a ratificação do Tratado, que é um facto consumado - o Tratado escrito, como tal, é um facto consumado; não é possível ratificar o Tratado em termos genéricos. O que é necessário é uma pergunta ou perguntas, concreta ou concretas, sobre as grandes matérias que nos permitam escolher -…

Vozes do PS: - Claro!

O Orador: - … o que não foi feito em 1998, em que a pergunta era "A Europa é fixe?". E isto não é aceitável.
É preciso, Sr.ª Ministra, por respeito para com os portugueses e por consideração para com a democracia e a devolução de poder, que é um referendo, permitir e conseguir que a pergunta ou perguntas sejam absolutamente dirigidas ao núcleo constitutivo da opção constitucional em termos europeus.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o seu tempo esgotou-se. Tenha a bondade de concluir.

O Orador: - Vou concluir, Sr. Presidente.
Só seremos europeus e só seremos fiéis à fundação democrática da Europa se conseguirmos, pela primeira vez, em Portugal, resolver este problema. E não era excedentário pedir-lhe que viesse preparada para dar respostas conclusivas para o começo do debate político sobre esta matéria. O Governo aceitou mudar de posição, mas ainda não sabe qual é a posição que vai tomar.

Aplausos do BE.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, concluído o debate de urgência, despedimo-nos da Sr.ª Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas e do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, felicitando ambos pela sua intensa participação nestas negociações que conduziram à elaboração do projecto de Tratado Constitucional para a Europa.
Passamos à discussão, na generalidade, da proposta de lei n.º 123/IX - Define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita.
Peço à Sr.ª Vice-Presidente Leonor Beleza o favor de me substituir na Mesa, porque tenho de ir receber o Sr. Presidente da República do Chipre, que está em visita a Portugal e que esta tarde visita o Parlamento.
Tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça, para apresentar a proposta de lei.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça (Miguel Macedo): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: O Governo entendeu apresentar à Assembleia da República uma proposta de lei que visa definir o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados e solicitadores. Trata-se de uma precisão necessária tendo em vista a melhor salvaguarda dos interesses e direitos dos cidadãos sempre que se manifeste necessário o recurso ao serviço destes profissionais liberais.
Embora, de modo geral, a presente matéria já encontre consagração legislativa, mormente no Estatuto

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da Ordem dos Advogados actualmente em vigor, reputou o Governo essencial impulsionar o presente processo legislativo no sentido de regulamentar com maior precisão o âmbito próprio de actuação destas profissões jurídicas, sem prejuízo das competências atribuídas por lei a outras profissões e actividades.
Com efeito, é do conhecimento geral que, a par dos advogados e solicitadores, outras profissões no exercício de funções regulamentadas por lei praticam também actos próprios dos advogados e solicitadores. Acresce que nos últimos anos o surgimento de novas actividades profissionais, bem como o alargamento das competências de profissões que, devido ao desenvolvimento económico e crescente complexidade das relações socioeconómicas, alargaram a sua área de intervenção, aconselham ainda esta alteração legislativa.
A definição dos actos próprios dos advogados e solicitadores decorre ainda da imperiosa necessidade de garantir aos cidadãos a qualidade dos serviços prestados no âmbito destas profissões, assegurando a observância de regras éticas e deontológicas e salvaguardando e garantindo maior eficácia na administração da justiça.
Neste sentido, a presente proposta de lei constitui igualmente um instrumento legal de combate à procuradoria ilícita, actividade ilegal que tem sido objecto de denúncia por todos os operadores de justiça. É unanimemente reconhecido que da prática de actos ilegais de procuradoria podem decorrer efeitos gravosos e muitas vezes irreparáveis para os cidadãos e empresas, pelo que importa reforçar as cominações legais para quem se dedica a este tipo de actividade ilícita.
Este problema, que não é de hoje, tem sido objecto de crescente preocupação e justifica que o Governo, ao apresentar a presente proposta de lei, assuma frontalmente a sua posição de repúdio com este tipo de práticas, recusando ainda a tolerância comodista com a ilegalidade.
Combater a prática de actos ilícitos de procuradoria pressupõe clarificar e delimitar funções inerentes ao exercício de profissões, cuja regulamentação compete ao Estado no âmbito dos poderes que lhe são próprios. Ao Estado compete, assim, não só o direito mas, sobretudo, o dever constitucionalmente consagrado de regular as associações públicas, mormente as que se ocupam do exercício das profissões liberais, designadamente nos seus aspectos deontológicos e disciplinares.
É, por isso, redutor olhar para a Ordem dos Advogados e para a Câmara dos Solicitadores como meros representantes de interesses particulares ou corporativos das respectivas classes profissionais. Muito mais do que isto, como pessoas colectivas de direito público que são, representam uma forma de administração mediata, consubstanciando uma devolução dos poderes do Estado a uma pessoa autónoma por este constituída expressamente para o exercício de determinadas atribuições e competências.
É, por isso, imperdoável esquecer que a sua verdadeira natureza reside no facto de nos encontrarmos num domínio de soberania do Estado de direito democrático que, acolhendo o princípio da descentralização institucional, tendo em conta razões de interesse público, delega por lei a estas associações públicas o poder de regulamentação desta profissões jurídicas.
A esta luz, compreende-se melhor que não é admissível que o Estado se abstenha de intervir na forma de regulamentação das profissões liberais ou que se demita do seu dever de clarificação das regras orientadoras do exercício destas actividades, sem que tal comprometa o interesse público e a realização da justiça.
Ora, definir o âmbito de actuação das profissões jurídicas e enunciar um núcleo essencial de actos que o Estado entendeu delegar nestas profissões visa primordialmente a protecção dos direitos dos cidadãos e dos consumidores em geral, sem esquecer, contudo, o respeito pelas demais actividades ou profissões também regulamentadas por lei.
De modo a salvaguardar o exercício de outras actividades profissionais, como sejam os revisores oficiais de contas, os técnicos oficiais de contas, os mediadores imobiliários ou as empresas destinadas à cobrança e recuperação de créditos, a presente proposta de lei prevê a possibilidade de, no âmbito destas actividades regulamentadas por lei, se praticarem actos próprios de advogados e solicitadores por quem não seja nem advogado nem solicitador. Fica igualmente salvaguardada a possibilidade de prática de determinados actos próprios dos advogados e solicitadores por quem não exerça tais profissões, designadamente quando praticados pelo próprio interessado ou quando praticados por representantes legais, funcionários ou agentes de pessoas colectivas públicas ou privadas no interesse destas e para prossecução das respectivas atribuições.
A presente proposta de lei traduz um passo firme para a afirmação dos direitos de cidadania numa sociedade democrática em que os cidadãos revelam crescentes exigências em relação à efectiva tutela dos seus direitos, assegurando os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
Reafirmar estes princípios é essencial para não permitir tentativas de confusão sobre esta matéria. Relevamos, por isso, o assinalável consenso e a compreensão de todas as entidades ouvidas neste processo, todas, sem excepção, interessadas em contribuir de forma positiva para uma melhor definição das fronteiras destas actividades e profissões.

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Acresce que as opções agora assumidas conferem especiais responsabilidades a todas as entidades que, por lei, assumem o dever de regular e fiscalizar o exercício das respectivas profissões e actividades.
Sr.ª Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: A análise cuidada da proposta de lei, assim como a sua comparação com outros regimes que vigoram na generalidade dos países da União Europeia cujos sistemas jurídicos se organizam de forma análoga ao sistema português, designadamente os ordenamentos francês e espanhol, permitirá concluir pela bondade e adequação das soluções propostas.
Efectivamente, com a aprovação da presente proposta de lei, pretende-se definir com mais precisão o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores, cujo núcleo essencial se reporta ao exercício do mandato judicial e à consulta jurídica como atribuições específicas destas profissões jurídicas.
Definir legalmente actos próprios dos advogados e dos solicitadores significa, assim, tutelar valores de natureza muito superior aos meros interesses económicos destas classes profissionais.
O interesse público e os valores e princípios constitucionais que se visa acautelar com o presente regime justificam a definição de elementos necessários e essenciais de determinadas actividades, sendo a actual proposta do Governo equitativa, verificando-se acauteladas e excepcionadas todas as situações merecedoras de tutela.
Nesta proposta de lei destacam-se, como alterações mais significativas relativamente ao regime actualmente em vigor, a qualificação da consulta jurídica como acto próprio dos advogados e dos solicitadores quando prestada no âmbito da sua actividade profissional, o que pressupõe adequada contrapartida remuneratória, a solicitação de terceiro e sem prejuízo das competências próprias de outras profissões cujo acesso ao exercício seja regulado por lei.
Admite-se, ainda, um regime excepcional para o exercício de actos de consulta jurídica por quem não é advogado ou solicitador por parte: primeiro, dos juristas de reconhecido mérito que procedam à sua inscrição na Ordem dos Advogados no âmbito de um processo especial a definir nos termos dos estatutos desta associação profissional; segundo, dos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, necessários à prossecução das atribuições ou competências dessas entidades, incluindo todos os licenciados em Direito que trabalhem por conta de outrem, independentemente de inscrição na Ordem dos Advogados; terceiro, dos sindicatos e associações patronais, relativamente aos actos praticados para defesa exclusiva dos interesses comuns que lhes caiba assegurar; e, finalmente, das entidades sem fins lucrativos que requeiram o estatuto de utilidade pública relativamente aos actos praticados para defesa dos interesses comuns que lhes caiba defender, mediante concessão de autorização específica precedida de consulta à Ordem dos Advogados e à Câmara dos Solicitadores.
Assim, a consulta jurídica, enquanto acto próprio dos advogados e dos solicitadores, não conflitua, nem se confunde, com a prática de tais actos por outros profissionais, licenciados em Direito e não só, no âmbito do exercício das atribuições e competências das entidades em representação ou para as quais actuem, independentemente da natureza do vínculo ou da forma jurídica que as mesmas revistam.
O regime ora proposto possui uma amplitude tal que podemos afirmar que abrange todas as realidades que não sejam susceptíveis de ser qualificadas como grosseiramente ilícitas.
Comparativamente, neste domínio, podemos constatar que o regime legal, em França, é significativamente mais restritivo do que a proposta ora apresentada pelo Governo.
Embora o regime francês preveja a possibilidade de serem praticados actos de consulta jurídica no âmbito de profissões ou actividades não regulamentadas por quem não seja advogado, a mesma fica, porém, sujeita a estreitas regras, designadamente só podendo efectivar-se como actividade de carácter acessório e que decorra necessariamente da actividade principal a prosseguir, a qual tem ainda de ser objecto de especial qualificação por parte do Estado ou de certificação por parte de determinados organismos ou profissionais para tal reconhecidos.
Neste âmbito, a legislação francesa exige, ainda, a definição, para cada caso concreto, da qualificação ou da experiência jurídica exigíveis para que cada pessoa possa ser autorizada a exercer tais actos de consulta jurídica mediante parecer prévio de uma comissão nacional para o efeito constituída.
Refira-se ainda, na legislação francesa, a situação dos denominados "juristas de empresa", os quais, desde que exerçam as respectivas funções ao abrigo de um contrato de trabalho, ficam vinculados a um regime de exclusividade às entidades contratantes, podendo praticar actos de consulta jurídica necessários ao exercício das respectivas funções e no interesse exclusivo da entidade empregadora.
Por seu lado, a legislação espanhola reserva exclusivamente o exercício das profissões jurídicas, quer na vertente do mandato judicial quer na da consulta jurídica, a quem se encontre inscrito, com carácter obrigatório, numa das ordens profissionais, apenas exceptuando os casos de juristas que se encontrem ao serviço da administração pública ou de entidades públicas numa relação de dependência funcional ou de vínculo laboral.

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O exercício das profissões jurídicas face à legislação espanhola é ainda caracterizado pela delimitação de competências exclusivas, embora com ressalva de actos de competência concorrente com outras profissões ou actividades, nos termos definidos na lei.
A actuação ou a prática de actos próprios de advogados e de solicitadores é susceptível de sancionamento penal.
De um modo geral, também em Espanha, o exercício das profissões jurídicas encontra-se regulamentado por lei e sujeito a rigorosas regras disciplinares e de responsabilidade civil profissional.
Relativamente ao regime excepcional proposto para a prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores por parte de entidades e associações sem fins lucrativos de reconhecida utilidade pública, como é o caso das associações de defesa dos consumidores ou as associações de defesa e protecção do ambiente, o mesmo encontra idêntico paralelismo no âmbito do ordenamento francês.
Concluindo esta incursão pelo Direito comparado e pelo que nos é mais próximo, o exercício livre da advocacia, sendo a inscrição nas associações profissionais facultativa, apenas se verifica nos Estados Unidos da América, na Suíça, na Noruega e na Finlândia, cujos ordenamentos jurídicos remetem para os juízes o exercício do poder disciplinar a fiscalizador das profissões jurídicas. Pelo contrário, os países que, como Portugal, adoptam o sistema da advocacia colegiada, predominante na Europa, cujas origens dos respectivos ordenamentos remontam ao Direito romano, têm soluções equiparáveis às que, agora, o Governo submete à apreciação desta Assembleia.
Como medida de combate à procuradoria ilícita, a proposta do Governo procede, ainda, à tipificação do crime de procuradoria ilícita como elemento preventivo e dissuasor da prática de actos próprios de advogados e de solicitadores por quem o não seja.
A falsidade funcional põe em causa a administração da justiça, criando sérios riscos para a liberdade e património dos cidadãos e, simultaneamente, colocando em causa o direito dos consumidores.
Embora a prática de actos ilícitos de procuradoria possa ser subsumível no crime de usurpação de funções previsto no Código Penal, a verdade é que resulta, e tem resultado, extremamente difícil o sancionamento destes comportamentos em virtude de a previsão legal do artigo 358.º do Código Penal pressupor a prova de elementos subjectivos, o que tem resultado, na maioria das situações, na impunidade de comportamentos seriamente lesivos dos valores em causa.
Confiantes embora, Sr.ª Presidente e Srs. Deputados, numa apreciação globalmente positiva desta iniciativa do Governo, aceitem, Sr.as e Srs. Deputados, a nossa inteira disponibilidade para um debate sereno e profundo em torno destas questões, expressão da firme convicção do valioso contributo que todos podemos dar na busca de melhores soluções para esta problemática.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

Entretanto, assumiu a presidência a Sr.ª Vice-Presidente Leonor Beleza.

A Sr.ª Presidente: - Srs. Deputados, informo a Câmara que há duas inscrições para pedidos de esclarecimento ao Sr. Secretário de Estado. Porém, antes, vou dar a palavra à Sr.ª Deputada Odete Santos para, na qualidade de relatora, apresentar o relatório sobre esta proposta de lei.
Sr.ª Deputada Odete Santos, tem a palavra para o efeito e dispõe de 3 minutos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr.ª Presidente, no tempo de que disponho, vou proceder à leitura do que foi aprovado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, pois há uma parte do relatório que, sendo pessoal, não foi objecto de votação.
Assim, vou proceder à leitura das conclusões e do parecer, cujo teor é o seguinte:
"a) Existe um generalizado consenso na necessidade de prevenir e combater a procuradoria ilícita;
b) Prevenção e combate que se integram na garantia dos direitos dos cidadãos, nomeadamente do direito ao acesso ao direito e à justiça;
c) Na defesa desse interesse público é importante a melhoria do regime existente relativamente aos actos próprios dos advogados e solicitadores;
d) Na proposta de lei em análise aperfeiçoam-se soluções já constantes do Estatuto dos Advogados e do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, do Código da Publicidade e do Código Penal, soluções a que, de resto, não tem sido dada execução adequada e eficaz;
e) A proposta de lei tem como escopos fundamentais: a definição dos actos próprios de advogados e solicitadores; a tipificação das excepções que tornam possível a prática daqueles actos por determinadas profissões; a proibição de escritórios ou gabinetes de procuradoria que não sejam exclusivamente compostos por advogados e solicitadores, ou que não sejam de sociedades de advogados, de sociedades de solicitadores, ou que não sejam gabinetes de consulta jurídica que prestem serviços a terceiros, compreendendo,

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ainda que isolada ou marginalmente, a prática de actos próprios dos advogados e solicitadores, excepcionando-se, no entanto, situações atendíveis nos termos dos requisitos fixados na proposta de lei; a tipificação do crime de procuradoria ilícita; o regime contra-ordenacional para a publicidade do exercício da procuradoria ilícita; o ressarcimento dos danos da Ordem dos Advogados e da Câmara dos Solicitadores resultantes de procuradoria ilícita, através de responsabilidade civil.
Nestes termos, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias delibera emitir o seguinte parecer:
A proposta de lei n.º 123/IX respeita os preceitos constitucionais e regimentais aplicáveis, encontrando-se em condições de ser apreciada pelo Plenário da Assembleia da República."

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para pedir esclarecimentos ao Sr. Secretário de Estado da Justiça, inscreveram-se os Srs. Deputados Francisco Louçã e Odete Santos.
A fim de poder responder, o Sr. Secretário de Estado vai utilizar 3 minutos cedidos pelo Grupo Parlamentar do PSD e 2 minutos cedidos pelo Grupo Parlamentar do CDS-PP.
Tem a palavra, Sr. Deputado Francisco Louçã.

O Sr. Francisco Louçã (BE): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, a partir do trabalho elaborado pela Ordem dos Advogados, e agora proposto pelo Governo, acompanhámos esta preocupação de combater a procuradoria ilícita. Parece-nos que tal preocupação tem toda a justificação, até porque o negócio de empresas de cobrança de dívidas ou de serviços de apoio jurídico não fundamentado e sem qualificação tem generalizado este problema.
Na especialidade, apresentaremos propostas sobre a definição dos actos próprios de advogados e de solicitadores e sobre o uso do título profissional destas duas profissões, porque nos parece que a actual redacção da proposta de lei pode conter alguma ambiguidade, mas há uma matéria em relação à qual, Sr. Secretário de Estado, pretendia obter resposta da sua parte.
Sobretudo queremos levantar um problema, aliás já suscitado pelo relatório que acabou de ser apresentado, que consiste em saber por que razão o crime de procuradoria ilícita é tipificado autonomamente e não no conjunto das normas que estão previstas para o crime de usurpação de funções. Gostaríamos, pois, de saber por que é que a precisão sobre esta matéria não se inclui no contexto da reforma geral do Código Penal de tal modo que a usurpação de funções, que obviamente abrange estes crimes de procuradoria ilícita, possa ser explicitada para permitir o combate a este crime.
Sr. Secretário de Estado, peço-lhe uma resposta em relação a esta matéria porque ela pode conduzir a trabalhos de ordem diferente na especialidade, sabendo-se que, actualmente, estamos a discutir uma reforma do Código Penal.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado, no relatório, na parte que é pessoal, e que, portanto, não foi submetida a votação - não pude fazer essa referência no tempo de que há pouco dispunha -, é levantada uma questão relativamente à tipificação do crime de procuradoria ilícita, a qual também foi suscitada pelo Sr. Deputado Francisco Louçã.
De facto, parece-me ser no âmbito do artigo 358.º do Código Penal que deverão introduzir-se melhorias, nomeadamente porque a questão dos requisitos subjectivos pode levantar algum problema.
Não penso que seja correcto separar as profissões de advogado e de solicitador e tipificar um crime do qual apenas estas duas serão vítimas, porque há outras profissões que também conhecem problemas gravíssimos da mesma natureza, como, por exemplo, os médicos. Por isso, repito, penso que em sede do Código Penal é que esta questão deveria ser tratada.
Há um outro aspecto que me suscita algumas dúvidas.
É que, tal como é tipificado na proposta de lei, parece-me que este é um crime de habitualidade, isto é, tem a ver com a prática de actos e não com a de um só acto. E, na verdade, não tem o tal requisito subjectivo.
Mas, então, face à redacção da alínea b) do artigo 358.º do Código Penal - alínea b) essa em relação à qual, em 1998, foi aprovada, por unanimidade, uma proposta do Partido Socialista, no sentido de também ser considerado crime de usurpação de funções a prática de um só acto -, coloca-se a questão de esta redacção ter retirado a este crime o carácter de habitualidade.
Pergunto: se é assim, então há um crime que fica tipificado na proposta de lei, que é a prática de actos - é um crime de hábito, como os tribunais superiores, anteriormente à redacção da alínea b), tinham algumas vezes decidido -, e a prática de um só acto continua a ser punida pela alínea b) do artigo 358.º do Código Penal?

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Mas, sendo assim, justifica-se que a prática de vários actos seja punível com uma moldura penal de metade da outra? É que a outra prevê pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias e a prática dos actos que consta da proposta de lei é punível com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias.
São estas as dúvidas que vazei na parte pessoal do relatório e que continuo a ter, agradecendo que V. Ex.ª esclareça se esta questão pode ou não suscitar-se.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para responder, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça: - Sr.ª Presidente, Srs. Deputados Francisco Louçã e Odete Santos, agradeço as questões colocadas. Julgo que não levarão a mal se responder em conjunto, uma vez que as questões se reconduzem exactamente à mesma matéria.
Na minha intervenção, tive oportunidade de dizer que o Governo, se for esse o entendimento da Câmara, está na disposição de contribuir para o trabalho em sede de especialidade, de forma a encontrar-se o melhor texto possível, pelo que todas as propostas, tanto as da bancada do Bloco de Esquerda como as de outras bancadas, são de ponderar e de avaliar. Portanto, todos os contributos são bem-vindos.
Relativamente à questão comum suscitada pelos Srs. Deputados Francisco Louçã e Odete Santos, em torno da matéria da procuradoria ilícita, ou, melhor, da tipificação autónoma do crime de procuradoria ilícita, gostaria de dizer que essa é, de facto, uma matéria controversa - não vale a pena estar aqui a dizer que não é -, em relação à qual há sensibilidades diversas.
O nosso entendimento foi o de que, apesar de tudo, faz sentido, nestas circunstâncias e com o conjunto de problemas que todos sabemos ter entre mãos, autonomizar este tipo legal de crime. Porquê? Sabemos bem que aquela questão para que a Sr.ª Deputada Odete Santos chamou a atenção no relatório da Comissão, a de que o Supremo Tribunal de Justiça requeria a habitualidade na prática deste tipo de actos como condição também essencial para a criminalização de certas condutas ao abrigo do tipo legal de crime de usurpação de funções, ficou resolvida com a proposta anterior que alterou a lei neste particular.
Mas a questão não ficou totalmente resolvida. A verdade é que há um elemento subjectivo que tem sido entendido essencial para que alguém possa ser punido pelo crime de usurpação de funções. Esse elemento subjectivo é o de essa pessoa se arrogar expressamente de uma qualidade que, de facto, não tem. Ora, a prova deste elemento tem sido, na esmagadora maioria dos casos, absolutamente impossível de fazer em tribunal. Todos nós sabemos que, por causa deste elemento subjectivo e da prova deste elemento subjectivo, há uma generalizada impunidade em relação a este tipo de práticas.
Por isso, na ponderação de tudo, o Governo entendeu que fazia sentido a autonomização deste tipo legal de crime. E a autonomização deste tipo legal de crime, nos termos em que a propomos, pode aparentemente parecer que está em contradição com o que é previsto no crime de usurpação de funções, designadamente em relação à moldura penal.
Em nosso entendimento, assim não é, não só porque esse elemento subjectivo é relevante para avaliar a culpa e o dolo com que alguém pratica esse tipo de crime (não é indiferente que alguém se arrogue expressamente de uma qualidade que, de facto, não tem, e isso deve pesar na moldura penal), como, por outro lado, pretendemos que o efeito dissuasor deste tipo legal de crime, em relação às situações que queremos enfrentar com esta nova legislação, seja feito de uma tal forma que - e o interesse não é pôr muita gente na cadeia, a lógica não é essa, e por isso é que temos a moldura penal que aqui temos, de um ponto de vista harmónico com aquilo que o actual Código Penal prevê em termos do tipo de crime que estamos aqui a discutir - esta sanção seja efectivada sempre que este tipo de situações de procuradoria ilícita, às vezes muito gravosas para os cidadãos, aconteçam. Por isso, a nossa opção foi esta.
Há outras opiniões, e compreendemo-las, mas entendemos que para lutar eficazmente contra este tipo de situações, que são graves, é melhor autonomizar este tipo legal de crime.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Montalvão Machado.

O Sr. António Montalvão Machado (PSD): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Srs. Deputados: A proposta de lei que o Governo hoje submete à apreciação desta Assembleia é aparentemente simples, mas tem, na sua essência, um valor fundamental num Estado de Direito democrático, qual seja o reforço da garantia dos direitos dos cidadãos no acesso ao direito e à justiça.
A proposta visa moralizar e dignificar o exercício das funções judiciais e extrajudiciais dos advogados e dos solicitadores, esclarecendo, com precisão, quais são os actos próprios que estes profissionais do

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foro, e só eles, podem realizar e criminalizando autonomamente quem, não preenchendo os requisitos legais, realiza esses actos, por isso, ilicitamente.
Não caiamos, por isso, na insensatez de supor que estamos perante um diploma, digamos, proteccionista de determinadas classes profissionais. Esse pensamento é erradíssimo.
Estamos perante uma lei rigorosa, séria, proteccionista, isso sim, dos direitos dos cidadãos, de todos os cidadãos que carecem do recurso ao tribunal para resolver os seus diferendos, que carecem de aconselhamento jurídico para o seu quotidiano, que carecem de uma voz técnica e sabedora para resolver os seus problemas.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Há alguns anos, quando estudei Direito Processual pela primeira vez, um professor meu explicava a razão de ser da obrigatoriedade do patrocínio judiciário: por um lado, dizia, por um motivo de natureza privatística, pois que só os profissionais forenses, com os seus conhecimentos técnicos e específicos, podiam bem conduzir os interesses das partes, peticionando, contestando, recorrendo, reclamando e, não menos importante, aconselhando.
Eles, os profissionais, devem actuar sempre com independência, com a chamada "serenidade desinteressada", naturalmente boa conselheira para a defesa dos interesses dos cidadãos.
Mas não apenas por razões de ordem privatística. Também por razões de natureza pública, porque os mandatários judiciais (os advogados e os solicitadores) têm o dever de colaborar com o tribunal na justa composição dos litígios, cooperando, assim, com a boa administração da justiça em geral e, finalmente, com a própria paz social.
Curiosamente, Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça e Srs. Deputados, este ensinamento ainda é, hoje, actualíssimo.
A que propósito, portanto, é que essas honrosas funções podem ser, sem punição e sem rigor, exercidas por quem não está habilitado, por quem não está autorizado, por quem não está disciplinarmente "controlado" por instituições credíveis e credibilizadoras dessas actividades?
A que propósito é que temos de continuar a suportar, tácita e ineficazmente, a procuradoria ilícita que todos sabemos que existe e que, ainda por cima, é feita à frente de toda a gente e sem o mais pequeno pudor?

O Sr. Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - É, pois, Sr.ª Presidente e Srs. Deputados, de uma oportunidade indiscutível a aprovação deste diploma, mais a mais num momento em que se assiste a um multiplicado aumento do número de litígios e, por que não lembrá-lo, ao conhecido fenómeno da desjurisdicionalização da acção executiva.
Os cidadãos têm, pois, de estar protegidos, e bem protegidos, no que diz respeito ao acesso ao direito e ao acesso à justiça.
É justamente por isso que o Partido Social Democrata votará a favor desta proposta de lei, porque ela representa, além do que já foi dito, um passo decisivo na moralização da actividade judiciária em si mesmo.
A prática de actos próprios de uma profissão só pode ser realizada, como regra, pelos respectivos profissionais, não apenas para bem da própria actividade, mas também - e isso é que releva - para bem daqueles que dela beneficiam, ou seja, os cidadãos.
Sr.ª Presidente e Srs. Deputados: Como suponho que VV. Ex.as sabem, profissionalmente sou advogado, e a minha modesta experiência permite-me conhecer bem o problema contra o qual, hoje, tentamos lutar.
Daí, suponho que não me levarão a mal - e vem isto a propósito, justamente, da autonomização deste ilícito penal - se lhes der conta de um pequeno, mas exemplar, episódio a que assisti no meu próprio escritório, por coincidência na semana passada.
Na pendência de determinada acção em tribunal, um jovem advogado estagiário (meu estagiário) recebeu um telefonema de alguém que se propunha, em nome da chamada "parte contrária" (ainda sem mandatário constituído), chegar a um acordo, um acordo que fosse vantajoso para os litigantes (dizia), vantajoso para o advogado (certamente seria eu) e vantajoso para ele (claro), autor do telefonema.
Perguntei, então, ao jovem estagiário: "Quem falou, em concreto?"
A resposta do jovem estagiário foi a seguinte: "Quem falou disse que era uma espécie de procurador do réu".
Ora, aí está essa figura sombria da "espécie de procurador", que ninguém sabe bem quem é, que prejudica

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os cidadãos e a justiça, que lucra fazendo o que não sabe e que actua, manifestamente, sem vergonha.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - E, neste caso concreto, a pessoa que está cometendo o ilícito jamais dirá que é advogado, advogado estagiário ou solicitador. Daí a justeza e a mais que certa razoabilidade da autonomização deste ilícito penal, para não continuarmos a assistir tacitamente a esta pouca vergonha da procuradoria ilícita, que tanto prejudica os cidadãos e a justiça nacional.
Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Srs. Deputados: Definir com maior clareza os actos próprios dos advogados e dos solicitadores, tipificar as excepções que tornam possível a prática desses actos por determinadas profissões, tipificar autonomamente o crime da procuradoria ilícita, tudo isto equivale a reforçar a certeza e a segurança jurídicas, a enobrecer o patrocínio judiciário e a combater uma ilegalidade.
Bem fez, pois, o Governo, ao apresentar esta proposta. Bem fará a Assembleia se vier a aprová-la.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Também para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Nuno Teixeira de Melo.

O Sr. Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: A proposta de lei em discussão cumpre um triplo desígnio. Em primeiro lugar, reforça a garantia constitucional do acesso ao direito; em segundo lugar, demarca a actuação destas profissões jurídicas de outras profissões regulamentadas por lei; e, em terceiro lugar, passa a constituir, sendo aprovada, um instrumento decisivo no combate à procuradoria ilícita, através da criação do crime de procuradoria ilícita.
A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 20.º, atribui aos advogados especiais responsabilidades e deveres na concretização do Estado de Direito e no serviço aos restantes cidadãos.
No entanto, nem sempre a interpretação da lei é coincidente no que respeita aos actos que integram a actividade que o advogado deve exercer, com exclusão de qualquer outro profissional. Esta ambiguidade, não raras vezes, também paira sobre a delimitação dos poderes de intervenção, nesta matéria, da própria Ordem dos Advogados, ou até da Câmara dos Solicitadores, já que tais considerações podem, com toda a propriedade, estender-se à classe dos solicitadores.
A necessidade de uma legislação definidora dos actos próprios dos advogados foi reclamada pelo actual bastonário, pela primeira vez, quando estava em preparação a legislação sobre o notariado, com a consequente criação de uma nova profissão liberal de juristas, reclamando a Ordem, então, a clarificação dos actos próprios dos advogados, de forma a evitar-se a ocorrência de situações em que cada uma das profissões não saiba com rigor as suas próprias fronteiras.
Mas não apenas. O facto de nos encontramos integrados num espaço de livre concorrência e de livre prestação de serviços, por outro lado, também reclama essa clarificação, dado que se tem assistido ao desenvolvimento de novas formas de procuradoria ilícita, sendo necessário tomar medidas no sentido de evitar que o consumidor dos serviços próprios destas duas categorias profissionais inadvertidamente se socorra de apoio jurídico junto de quem não está legalmente ou tecnicamente habilitado a prestá-lo.
Tal como se refere na exposição de motivos da proposta de lei, existem outras profissões, regulamentadas por lei, que praticam actos próprios dos advogados e solicitadores.
É o caso dos revisores oficiais de contas, que, no âmbito dos seus deveres estatutários de fiscalização da gestão das empresas com vista à observância das disposições legais e estatutárias, exercem consultoria, inclusivamente jurídica, sujeita embora ao princípio da independência profissional e sob controlo da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas.
É o caso dos técnicos oficiais de contas, que, no âmbito das suas funções, assumem a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das contabilidades sob sua responsabilidade, bem como a consultoria nas respectivas áreas e a representação fiscal, actividades que implicam, naturalmente, a interpretação e aplicação de normas legais.
É o caso, enfim, das empresas e empresários, que, muitas vezes, delegam nos seus próprios colaboradores a negociação dos seus créditos, com vista à respectiva recuperação.
Conhecendo esta realidade, o Governo excepcionou tais situações no n.º 7 do artigo 1.º da proposta de lei, ao prever que, no âmbito de outras profissões regulamentadas por lei, se pratiquem determinados actos próprios dos advogados e solicitadores por quem não seja advogado ou solicitador.

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Salvaguardou igualmente o Governo a situação da prática de determinados actos próprios dos advogados ou solicitadores por quem não seja advogado ou solicitador, quando praticados pelo próprio e no seu interesse, ou no interesse de terceiros, em determinados casos especificamente previstos, e, em geral, por representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas.
Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: Esta proposta de lei é particularmente inovadora no que concerne à procuradoria ilícita e sabemos com que preocupação, nomeadamente nesta Assembleia, esta questão vem sendo discutida há já muitos anos.
E já se disse que a mesma assume várias e cada vez mais sofisticadas formas, que vão desde a organização caseira, praticamente de vão de escada, até à organização que ultrapassa, já hoje, as próprias fronteiras do nosso país (e podia deixar aqui muitos outros casos concretos, que não apenas aquele que nos foi aqui trazido pela experiência do Sr. Deputado Montalvão Machado).
É ou não procuradoria ilícita a actividade desenvolvida pelo indivíduo que faz profissão da marcação de escrituras, da requisição de certidões, da requisição de registos (mesmo que se limite a preenchê-los e a fazê-los assinar pelos interessados) e que, quantas vezes, porque tem experiência adquirida em escritórios de advogados ou solicitadores, se abalança a elaborar contratos de natureza vária, e, mesmo, a dar consulta jurídica?
É ou não procuradoria ilícita a actividade - quantas vezes solicitada até pelos próprios clientes! - da empresa de contabilidade que presta consultoria, que não se limita ao âmbito fiscal e contabilístico, que aconselha sobre assuntos societários e que chega mesmo, por vezes, a tomar partido entre sócios desavindos, agindo a favor de uns e contra os outros?
É ou não procuradoria ilícita a actividade de aconselhamento jurídico e elaboração de contratos, desenvolvida pelas ditas empresas de gestão de condomínios, que não raro ultrapassam a ténue linha que separa a mera preparação de uma acta de uma reunião de condomínio daquela que, nessa mesma acta, leva o condomínio ou o condómino a nomear formalmente um mandatário forense indicado pela própria empresa?
Estes são apenas alguns exemplos, de entre muitos outros que poderíamos dar, daqueles que, do nosso ponto de vista, traduzem casos de procuradoria ilícita.

Vozes do CDS-PP: - Muito bem!

O Orador: - Entendemos, assim, dirigidas a estas realidades, em particular, as medidas de definição do conceito de escritório ou gabinete de procuradoria ilícita e de tipificação do crime de procuradoria ilícita.
A primeira destina-se a permitir à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores exercer o direito de requerer, junto das autoridades judiciais competentes, o encerramento dos escritórios e gabinetes que prestem a terceiros serviços que compreendam a prática de actos próprios de advogados ou solicitadores, ainda que de forma isolada ou marginal relativamente à sua actividade principal.
Quanto à tipificação do crime de procuradoria ilícita, a intenção do Governo é que o mesmo funcione como elemento preventivo ou dissuasor da prática de acto próprios dos advogados ou solicitadores por quem não seja advogado ou solicitador, punindo quem, mesmo sabendo que comete infracção à lei, se conforma com a prática de tais factos e deles retira benefício económico.
Muito mais haveria a dizer, mas infelizmente apenas me restam 42 segundos para dizer ao Sr. Secretário de Estado, e na pessoa do Sr. Secretário de Estado ao Governo, que em boa hora acautelou legislar sobre esta matéria, que terá a nossa aprovação.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Igualmente para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Osvaldo de Castro.

O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado, Srs. Deputados: A proposta de lei em apreço é o corolário de uma longa luta de advogados e solicitadores contra a concorrência desleal, contra a trapaça por parte de pessoas que abusam da ingenuidade e credulidade dos cidadãos mais desfavorecidos e é parte integrante do combate à opacidade, à falta de transparência e ao compadrio, que, infelizmente, ainda campeiam em certos serviços públicos.
Reconheça-se que a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores desencadearam, ao longo dos anos, também neste contexto, uma luta sem tréguas e são, também por isso, credores dos maiores encómios. Mas é um facto indiscutível que nem sempre dispuseram da adequada cobertura legal ou, pelo

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menos, da força suficiente para fazer conter e recuar os fautores e organizadores da verdadeira chaga em que se veio a tornar a procuradoria ilícita.
É também por isso que daqui saúdo as iniciativas da Ordem dos Advogados e da Câmara dos Solicitadores que, desde Março do presente ano, se vêm batendo em campanhas publicitárias e na celebração de protocolos com entidades ligadas à defesa dos consumidores, sempre visando pôr cobro à acção criminosa dos que usam e abusam da conivência de certos funcionários e serviços públicos e dos que se servem de anteriores posições no aparelho de Estado para lograr instituir a normalidade e o facilitismo da "cunha", assim obtendo privilégios e favores que a lei e a ética não consentem e não podem continuar a possibilitar.
E reitero as minhas saudações tanto mais quanto é sabido que coube à Ordem dos Advogados a iniciativa de um anteprojecto de lei que, no fundo, é a verdadeira "parteira" da presente iniciativa legislativa.
É facto evidente que os agentes de actos de procuradoria ilícita, para além da intrínseca violação das regras e usurpação dos actos das profissões regulamentadas, põem frequentemente em causa e defraudam as expectativas e interesses de consumidores e utentes dos serviços públicos.
Não apenas pela irresponsabilidade deontológica de que se revestem, mas também pelo desconhecimento ou, no mínimo, pelo defeituoso e inadequado conhecimento que possuem dos procedimentos adjectivos e regras substantivas próprias do sentido e alcance dos actos próprios de advogados e solicitadores.
O mesmo é dizer: o procurador ilícito defrauda gravemente o cidadão e o Estado; lesa os interesses dos cidadãos quando, a coberto da ilegalidade funcional, lhes promete resolver assuntos para que não dispõe de adequada competência habilitante, assim abusando da boa fé crédula dos que supõem estar perante pessoa idónea e legalmente competente, para a resolução dos problemas que se pretendem ver solucionados.
Mas os procuradores ilícitos lesam também, de forma inarredável, o Estado. Desde logo, evadem-se a impostos, até pelo carácter de obscuridade das suas ilegais acções, mesmo quando se trata de empresas legalmente constituídas que se atrevem a pisar terrenos que lhes são vedados.
Mas, por outro lado, todos sabemos das actuações de certos ex-funcionários públicos que se tornaram especialistas em obter documentos pelas portas dos fundos ou a fazer parar a normal marcha de um processo tornando-o esquecido nos fundos de uma gaveta de uma repartição de finanças ou mesmo de um tribunal. Questão é a de conhecer as pessoas certas que, incrustadas em alguns sectores do aparelho de Estado, se disponham a corromper-se para benefício de outrem e para seu próprio benefício. E os exemplos poderiam encher páginas e páginas de horrores!
É por tudo isto que queremos aqui realçar a importância da iniciativa legislativa ora em apreço. E, não temos dúvidas, na sua área de intervenção a presente lei pode dar uma primeira machadada na economia paralela e ser mais um contributo na luta contra a fraude económica e fiscal.
Mas para alcançar tal desiderato é urgente que o Governo aperfeiçoe os mecanismos de controlo que, de algum modo, plasmou nas instruções de serviço que a este propósito dirigiu aos serviços externos da Direcção-Geral dos Registos e Notariado, no âmbito do combate à procuradoria ilícita e que, aliás, já decorrem do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Creio, também, Sr. Secretário de Estado, que foi uma iniciativa sua, mas que tem inteiro acompanhamento. A sua iniciativa é excelente, porque esta lei só terá, de facto, a sua intrínseca validade se conseguirmos impor na prática que os serviços correspondam àquilo que é o objectivo do diploma.
Ou seja, na esteira do modo de actuação do Ministério da Justiça, designadamente do Secretário de Estado da Justiça, aqui presente, urge que idênticas medidas sejam tomadas, nomeadamente no âmbito do Ministério das Finanças e da Economia para salientar tão-só aqueles onde a acuidade dos problemas consabidamente mais se suscita.
Por último, entendemos adequada e necessária a tipificação do crime de procuradoria ilícita e igualmente adequadas as medidas tendentes a facilitar o direito de encerramento de escritórios ou gabinetes que violem as previsões do presente diploma, não sem deixar uma palavra de atenção para alguns dos problemas suscitados pela Deputada relatora, Sr.ª Deputada Odete Santos, quanto à clarificação e aperfeiçoamento de alguns detalhes da presente proposta de lei, como aliás sabiamente referiu, quanto ao enquadramento e moldura penais, o que, naturalmente, e o Sr. Secretário de Estado já o admitiu, deverá ocorrer em sede de especialidade.
Sr.ª Presidente e Srs. Deputados, o Partido Socialista está genericamente de acordo com o ora proposto e congratula-se com uma iniciativa que, além de necessária, se consubstancia num verdadeiro imperativo ético na defesa dos valores da transparência, na administração de uma justiça responsável e na salvaguarda do interesse público, muito para além de quaisquer interesses corporativos.

Aplausos do PS.

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A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado, Srs. Deputados: Pensamos que é importante o combate à procuradoria ilícita. E utilizo as palavras que o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados proferiu no dia em que foi aberta a campanha nacional que a Ordem organizou com a Câmara dos Solicitadores contra a procuradoria ilícita: "O combate é importante contra o biscate como forma de vida, contra a economia paralela, contra a evasão fiscal, contra o abuso da boa fé e falta de informação dos consumidores, contra a corrupção, contra o favoritismo, contra a opacidade".
Pensamos que o que está em causa neste combate é, efectivamente, a defesa de um interesse público, a defesa de um direito fundamental dos cidadãos, a defesa do acesso ao direito e à justiça. Por isso, é importante aperfeiçoar as normas já existentes por forma a que o combate possa ser eficaz.
Recordando os antecedentes, a luta da Ordem dos Advogados contra a procuradoria ilícita já é muito antiga, mas esta proposta de lei surge depois da abertura da campanha nacional de comunicação do combate à procuradoria ilícita, realizada em 3 de Março de 2004, campanha essa que foi da iniciativa, como disse, da Ordem dos Advogados e da Câmara dos Solicitadores, com o apoio da DECO - e é isto que é importante salientar - e da Associação das Mediadoras Imobiliárias, a AMIPE.
Aliás, também anteriormente à apresentação da proposta de lei já tinham sido elaborados protocolos entre a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores, por um lado, e a DECO, por outro, e entre aquelas entidades e a Associação das Mediadoras Imobiliárias também foi elaborado outro protocolo em que todos acordaram no combate à procuradoria ilícita. E destaco também outras palavras do Sr. Bastonário: "(…) combate que não é só dos advogados, dos solicitadores e das associações de defesa dos consumidores, é a luta (…)" - e por isso penso que uma das perguntas que fiz tem toda a razão de ser - "(…)de todas as profissões contra os que exercem ilegalmente actividades regulamentadas". Estas palavras foram proferidas pelo Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados no dia 3 de Março de 2004, pelo que penso ter razão de ser a pergunta que coloquei em relação à questão da autonomização do crime.
Já aqui foi destacado, e do relatório também consta, que, na sequência do início desta campanha, o Sr. Secretário de Estado da Justiça emanou instruções de serviço para as conservatórias e os cartórios, pelo que, tendo já isso vindo a ser cumprido, já se poderia ter avançado mais no respectivo combate.
Não obstante, continuo a ter dúvidas - não em relação à questão da autonomização, porque acho que este é um combate de todas as profissões contra os que as exercem ilegalmente - no que diz respeito à alínea b) do artigo 358.º do Código Penal e ao que fica subsistente, porque essa alínea refere-se àqueles que tacitamente convencem que têm as condições para exercer um determinado acto. E isso já não será tão difícil de provar.
Uma outra questão, que também é levantada no relatório, tem a ver com as entidades que requeiram a utilidade pública. Parece-me que a redacção do respectivo número não é feliz, porque está lá um "nomeadamente" que não tem razão, e que em relação a esses requisitos tudo deve ser melhorado na especialidade. Mas o PCP, pelas razões invocadas, votará, na generalidade, a favor da presente proposta de lei.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Srs. Deputados, chegámos ao fim da apreciação da proposta de lei n.º 123/IX.
Segue-se a apreciação, na generalidade, da proposta de lei n.º 127/IX - Estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses.
Para apresentar a proposta de lei, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça: - Sr.ª Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: A actual estrutura do modelo organizativo dos serviços médico-legais procura alcançar melhores níveis de eficácia, eficiência, racionalização e participação da medicina legal portuguesa no âmbito da administração da justiça, tendo o regime jurídico da organização médico-legal e o respectivo âmbito material e territorial de actuação sido objecto de recentes alterações legislativas, designadamente o Decreto-Lei n.º 96/2001, de 26 de Março, que aprovou o Estatuto do Instituto Nacional de Medicina Legal.
Não obstante, as normas que regulam os procedimentos e a realização das perícias médico-legais mantêm-se em vigor desde 1998, após a aprovação do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro. Volvidos seis anos desde a definição do regime jurídico de realização de perícias médico-legais em vigor, verifica-se imprescindível proceder a alterações e aperfeiçoamentos no sentido de dotar este sistema de maior operacionalidade e flexibilidade, tendo em consideração que tratamos de um domínio particularmente sensível por respeitar a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos com envolvência em matéria de

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processo penal.
Entendeu, assim, o Governo ser oportuno apresentar a presente proposta de lei, a qual visa corrigir as fragilidades entretanto constatadas do regime vigor, clarificar as regras que presidem à realização dos actos periciais em causa, adequando-os às exigências actuais neste domínio, pelo que, em face da reestruturação orgânica operada no Instituto Nacional de Medicina Legal, designadamente no que concerne à instalação e funcionamento de uma rede nacional de gabinetes médico-legais, verifica-se necessário dotar estes novos serviços de meios que garantam a sua capacidade de resposta às cada vez maiores e extensas competências.
Trata-se de um domínio instrumental, mas nem por isso de menor importância, da administração da justiça, pois é da cabal e eficaz realização das perícias médico-legais que depende o êxito da investigação criminal, bem como a celeridade processual já que a fase de produção de prova resulta, nestes casos, da actividade pericial.
Convém, contudo, sublinhar que a actividade pericial do Instituto Nacional de Medicina Legal não se limita ao âmbito do processo penal, mas tem particular incidência no domínio do direito laboral e civil, porquanto a avaliação do dano corporal pressupõe igualmente o exercício de funções médico-legais.
A definição de novos critérios e regras que devem presidir à actividade pericial surge também da imperiosa necessidade de conformar a medicina legal em Portugal à evolução das condições tecnológicas e científicas, cuja dinâmica moderna, poderá afirmar-se, atinge uma velocidade cada vez maior.
Tratando-se de uma área técnico-científica especializada, pressupõe conhecimentos não acessíveis à generalidade dos cidadãos, entidades ou profissionais, pelo que se revela particularmente importante acautelar a imparcialidade da actividade pericial, por um lado, e garantir a qualidade e rigor científicos por outro.
Pretende o Governo com a presente proposta assegurar a dignidade e a qualidade das perícias médico-legais e forenses, cometendo ao Instituto Nacional de Medicina Legal atribuições e responsabilidade no domínio da creditação e controlo da realização de perícias médico-legais.
Assim, a proposta de lei do Governo não introduz alterações significativas relativamente ao actual regime vigente no que respeita às regras que se articulam com as disposições do Código de Processo Penal. Neste âmbito, apenas se esclarecem ou clarificam alguns dos procedimentos que decorriam já da interpretação de normas em vigor.
A proposta de lei concretiza diversas alterações ao nível da requisição das perícias essenciais para a promoção de uma maior celeridade processual; consagra-se expressamente que a requisição de perícias médico-legais por parte das autoridades judiciárias ou judiciais, devem ser imediatamente acompanhadas das informações clínicas disponíveis a fim de evitar burocracias e demoras na realização das mesmas.
Consagra também, expressamente, a possibilidade de os serviços médico-legais, no âmbito da actividade pericial que desenvolvam, poderem receber a denúncia de crimes, podendo de imediato praticar os actos cautelares necessários e urgentes a assegurar os meios de prova, procedendo ao exame, colheita e preservação de vestígios que, de outro modo, irremediavelmente se perderiam, remetendo de imediato tais denúncias à autoridade judicial competente para promover o respectivo procedimento criminal. Esta é, de resto, uma matéria muito sensível e muito importante nesta proposta de lei.
Consagra expressamente um princípio que decorre da interpretação da lei do processo vigente, no que respeita ao direito à informação relevante, nomeadamente a constante dos autos, bem como o acesso às instalações onde decorre a investigação por parte dos funcionários envolvidos em investigação pericial, desde que em missão de serviço, por forma a assegurar eficazmente a obtenção dos meios de prova.
Atente-se que o Instituto Nacional de Medicina Legal consiste numa instituição com natureza judiciária, encontrando-se os peritos abrangidos pelo segredo de justiça bem como por um especial dever de sigilo profissional. Quanto ao regime de prestação de esclarecimentos complementares posteriores à realização da perícia e comunicação do respectivo relatório, estipula-se a regra que a presença do perito em acto ou diligência processual, deverá ser, sempre que existam meios para tal, substituída por inquirição por teleconferência ou outros meios técnicos processualmente previstos, com vista à simplificação e celeridade processuais com diminuição de custos.
Mas, para além da articulação do regime de realização de perícias médico-legais e forenses com as normas e regras constantes no Código de Processo Penal, a proposta que o Governo hoje apresenta introduz significativas alterações ao regime vigente das quais se destacam as seguintes: a definição clara, nos casos em que por manifesta impossibilidade dos serviços médico-legais, designadamente por falta de meios técnicos adequados ou inexistência de peritos com formação médica especializada, de quais as entidades terceiras que poderão ser contratadas ou indicadas para a realização dessas perícias.
Nestes casos, e como garantia da transparência de procedimentos, determina-se que, em circunstâncias equivalentes, será dada preferência nesta colaboração aos serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde.

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A proposta de lei propõe a definição das regras que presidem à realização de exames periciais complementares que se mostrem necessários ao esclarecimento dos factos decorrentes de perícia efectuada, ou em curso, ou de exames complementares de diagnóstico.
Estipula-se a possibilidade de o Instituto Nacional de Medicina Legal celebrar contratos com instituições públicas ou privadas - com preferência pelas públicas em circunstâncias equivalentes -, ou celebrar contratos com médicos ou outros técnicos, com vista à realização de exames requeridos no âmbito das perícias efectuadas nos seus serviços. Tal medida visa garantir independência e rigor científico das perícias realizadas pelos serviços médico-legais.
É definido o âmbito da responsabilidade pela realização de perícias médico-legais e pareceres solicitados às delegações e gabinetes médico-legais, bem como às instituições ou técnicos contratados ou indicados pelo Instituto Nacional de Medicina Legal para tal fim.
A responsabilidade decorrente da actividade pericial desenvolvida ao abrigo das atribuições legais cometidas aos serviços médico-legais preserva a autonomia técnico-científica dos peritos, mas determina a obrigatoriedade de respeito pelas normas, modelos e metodologias periciais em vigor a nível nacional, assegurando desta forma a harmonização pericial do ponto de vista técnico e procedimental.
Na perspectiva da delimitação de competências do Instituto Nacional de Medicina Legal face aos demais operadores judiciários, a presente proposta de lei, em relação ao enquadramento vigente, vem definir com maior precisão as situações enquadráveis no regime de realização de perícias médico-legais urgentes, bem como definir as regras e funcionamento dos serviços médico-legais por forma a assegurar a efectiva realização urgente dessas perícias. Esta definição criteriosa pressupõe que o objectivo primordial da realização de perícias urgentes consiste em assegurar os meios probatórios necessários ao êxito da investigação criminal, a descoberta da verdade material e a realização da justiça.
Acautelam-se, essencialmente, as competências próprias e reservadas à Policia Judiciária, evitando a concorrência de competências ou a duplicação de meios e procedimentos inúteis, com fundamento no respeito pelas atribuições legais de cada instituição e no princípio da cooperação entre os operadores judiciários que actuam em vista à realização do interesse público e de objectivos comuns.
A proposta de lei define também novos procedimentos a seguir nas situações de óbito fora de instituições de saúde, nomeadamente no que respeita à previsão do regime excepcional de remoção de cadáveres, o que irá pôr termo às substanciais perturbações repetidamente verificadas na sequência de óbitos na via pública. Dispõe o n.º 8 do artigo 16.º que, excepcionalmente, por impossibilidade de atempadamente contactar o perito médico, a autoridade de saúde, ou a autoridade judiciária competente, e sempre que existam significativos prejuízos decorrentes da permanência de cadáveres em locais públicos, a autoridade policial pode determinar a sua remoção para os locais legalmente previstos.
A proposta de lei introduz ainda alguns novos procedimentos de natureza administrativa relacionados com o regime de contratação de médicos para o exercício de funções periciais, tendo em consideração a instalação de uma rede de gabinetes médico-legais, os quais não podem funcionar sem pessoal com a qualificação específica necessária. Prevê-se a abertura de concursos para este efeito, bem como o cumprimento efectivo das atribuições legais já cometidas ao Instituto Nacional de Medicina Legal por esta forma.
Esta matéria é orientada por critérios, preocupações e razões de racionalização dos meios e optimização dos recursos financeiros.
Concluindo, a proposta de lei ora apresentada pelo Governo permitirá modernizar e flexibilizar um importante sector da administração da justiça, contribuindo desta forma para uma significativa melhoria do funcionamento do sistema judicial português.
Quero apenas sublinhar, em jeito de conclusão última, que esta não é uma matéria que possa e deva ser desvalorizada naquilo que tem a ver com o conjunto do sistema judiciário. São milhares os processos que estão parados nos tribunais, muitas vezes por falta de capacidade de resposta deste sistema de perícias.
A necessidade de termos um sistema de perícias capaz, tecnicamente avançado, competente, independente e isento é fundamental para melhorar a qualidade do conjunto do sistema judicial. E o investimento que estamos a fazer neste domínio, que de resto já estava a ser feito desde há algum tempo, é crucial, neste particular, para melhorar de forma efectiva aspectos essenciais do conjunto do sistema de justiça.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Pinto.

O Sr. Carlos Pinto (PSD): - Sr.ª Presidente, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Secretário

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de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: O Governo apresenta hoje à Assembleia da República a proposta de lei n.º 127/IX, que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses.
Relevamos aqui a importância desta matéria, alvo de especial preocupação da legislação portuguesa, pelo menos desde os finais do século XIX, no que diz respeito à estruturação da actividade dos serviços públicos de medicina legal de modo a assegurar aos tribunais o apoio técnico-científico necessário ao esclarecimento pericial dos factos, assim como em providenciar pela investigação, o ensino e a formação no âmbito das ciências médico-forenses.
Foi a partir de 1899, com a Carta de Lei de 17 de Agosto e com o regulamento dos serviços médico-legais de 16 de Novembro do mesmo ano, que, pela primeira vez e de forma sistemática, se legislou sobre a realização de perícias médico legais no nosso país, criando-se então os Institutos de Medicina Legal de Lisboa, Porto e Coimbra, que nesses moldes permaneceram até 1987, altura em que, fruto de uma grande alteração legislativa, se reorganizou a estrutura interna dos Institutos de Medicina Legal e se previu a criação de gabinetes médico-legais em áreas com grande movimento pericial.
Dez anos depois, face à experiência de aplicação e funcionamento do modelo médico-legal vigente e à instalação e funcionamento pelo País de diversos gabinetes médico-legais, procedeu-se à reavaliação do sistema em vigor, de que resultou nova regulamentação e clarificação dos procedimentos que antecedem a realização de perícias médico-legais, em articulação com os princípios e normas consagradas no Código de Processo Penal.
São resultado desta reavaliação: o novo regime jurídico da organização médico-legal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro; a nova Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho; e a criação do Instituto Nacional de Medicina Legal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 96/2001, de 26 de Novembro, com a consequente extinção dos três Institutos de Medicina Legal existentes, de Lisboa, Porto e Coimbra). Tudo, com o objectivo último de alcançar maior flexibilidade e operacionalidade dos serviços médico-legais, acompanhado do indispensável rigor técnico-científico da actividade pericial.
É, pois, neste quadro de objectivos bem definidos, de obtenção de melhores níveis de eficácia, eficiência, racionalização e participação da medicina legal no âmbito da administração da justiça que o Governo apresenta hoje à discussão a presente iniciativa legislativa.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Esta não pretende ser apenas mais uma lei. Tão-pouco pretende revogar recente legislação criada sobre esta matéria. Louva-se, até, o esforço iniciado num passado recente. Acrescenta-se apenas aperfeiçoamento, melhoramentos e correcções ao funcionamento do sistema, disciplinando a realização das perícias médico-legais e forenses.
É uma proposta de lei de "evolução". A evolução que se justifica pela importância da matéria, pela progressiva instalação de gabinetes médico-legais enquanto "guardas avançadas" dos Institutos de Medicina Legal no terreno e com o desejo de que se mantenha o reconhecimento internacional da qualidade da actividade desenvolvida pelo núcleo central da organização médico-legal do nosso país.
Sr.ª Presidente, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: A proposta de lei apresentada influenciará significativamente, estamos certos, a eficácia dos serviços que pretende regulamentar. Com ela pretende o Governo autonomizar o regime jurídico das perícias médico-legais, revogando para o efeito diversos artigos do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro, por tal corresponder a uma necessidade de actualização da legislação em vigor e decorrente, ainda, da reforma do Instituto Nacional de Medicina Legal, encetada com a aprovação dos seus estatutos em 2001.
Como resulta da exposição de motivos, procede-se à reformulação dos procedimentos relativos à verificação e certificação de óbitos ocorridos fora de instituições de saúde bem como às indicações respeitantes à obrigatoriedade de autópsias médico-legais.
Assim, refere o artigo 16.º da proposta de lei que "quando o óbito ocorra fora de instituição de saúde, compete à autoridade policial a preservação do local, a comunicação do facto, no mais curto espaço de tempo, à autoridade judiciária competente e providenciar, no caso de crime doloso, ou em que haja suspeita de tal, pela comparência do perito médico da delegação do Instituto ou do gabinete médico-legal, que se encontre em serviço de escala para as perícias médico-legais urgentes, o qual procede à verificação do óbito, se nenhum outro médico tiver comparecido previamente".
Com a formulação destes procedimentos, de forma tão exaustiva quanto possível, evita-se a duplicação de funções das entidades e a existência de dúvidas quanto à competência de cada um dos intervenientes. Evita-se ainda o prolongamento de situações que atrasam a remoção do cadáver do local da ocorrência, assegurando, desta forma, o respeito pelos sentimento dos familiares do falecido e a dignidade que a este também é devida.

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Por outro lado, estabelece-se a regra da obrigatoriedade de as perícias médico-legais serem realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal e as situações em que, excepcionalmente, as perícias poderão ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto de Medicina Legal.
Por fim, é intuito desta proposta de lei proceder a alterações ao regime de realização de perícias urgentes, tendo em vista a preservação de indícios e elementos probatórios indispensáveis à investigação criminal, nos casos de suspeita da prática de crime; estabelecer um regime de livre-trânsito e direito de acesso por parte dos funcionários envolvidos em investigação pericial; e uma maior colaboração entre as diversas entidades com competências no âmbito da investigação pericial, consubstanciado no direito de acesso à informação disponível e na prestação de esclarecimentos complementares posteriores à realização da perícia.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Sr.ª Presidente, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: A presente proposta de lei explicita de forma clara o sentido e extensão das alterações apresentadas, num evidente reforço da importância dos serviços públicos de medicina legal. A sua aprovação contribuirá, estamos certos, para a melhoria de todo o sistema médico-legal em Portugal, para uma clarificação dos procedimentos e uma melhor investigação pericial. Uma investigação pericial que todos desejamos mais célere e eficaz, a bem da justiça.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Paiva.

O Sr. Miguel Paiva (CDS-PP): - Sr.ª Presidente, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: No seu Programa, o XV Governo Constitucional elegeu quatro áreas prioritárias de intervenção no domínio da justiça: tribunais, sistema prisional, registos e notariado e investigação criminal. E, neste particular, é inegável a importância das perícias médico-legais e forenses para a investigação criminal, não sendo de todo descabido afirmar que apenas com um regime jurídico que assegure melhores níveis de eficiência, eficácia, racionalização e participação da medicina legal e forense na administração da justiça haverá verdadeira justiça. É disso que cuida a proposta de lei n.º 127/IX, que hoje discutimos na generalidade.
Recorde-se que a reorganização do sistema médico-legal foi concretizada pelo Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro, que não só estabeleceu o regime jurídico da organização médico-legal como estabeleceu, igualmente, o âmbito material e territorial de actuação dos serviços médico-legais.
No âmbito deste diploma, o território nacional foi dividido em três circunscrições médico-legais (Lisboa, Porto e Coimbra), consagrando-se, igualmente, uma estrutura orgânica que compreendia os seguintes serviços médico-legais: o Conselho Superior de Medicina Legal; os conselhos médico-legais; os institutos de medicina legal; e os gabinetes médico-legais.
Com a nova Lei Orgânica do Ministério da Justiça (Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho), é criado o Instituto Nacional de Medicina Legal, organismo sujeito aos poderes de superintendência e tutela do Ministério da Justiça, cuja lei orgânica é aprovada pelo Decreto-Lei n.º 96/2001, de 26 de Março.
Visando dar cumprimento aos objectivos definidos na nova Lei Orgânica do Ministério da Justiça para a participação da medicina legal no âmbito da administração da justiça, este decreto-lei extinguiu os três institutos de medicina legal existentes, reunindo-os num único - o Instituto Nacional de Medicina Legal -, com delegações em cada uma das circunscrições médico-legais em que aqueles tinham sede.
Fundiram-se, igualmente, os anteriores conselhos médico-legais num único - o Conselho Médico-Legal -, órgão executivo do Instituto, e o anterior Conselho Superior de Medicina Legal foi redenominado para Conselho Nacional de Medicina Legal, com a categoria de órgão consultivo do Instituto.
A toda esta refundação, por assim dizer, sobreviveram apenas os gabinetes médico-legais, com a sede e a área de jurisdição definidas no mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 11/98, citado.
Feita toda esta reorganização, cumpre agora tratar do regime das perícias médico-legais e forenses no intuito de conferir maior operacionalidade e flexibilidade ao sistema, particularmente reclamada pela progressiva instalação de gabinetes médico-legais em todo o território nacional.
Em primeiro lugar, preconiza o Governo uma mais rigorosa delimitação territorial de competências e da responsabilidade pela realização das perícias médico-legais e forenses, além de uma alteração das regras para a realização de perícias por entidades terceiras, públicas ou privadas.

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Assim, estabelece-se a obrigatoriedade de realização das perícias nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal, admitindo-se, a título excepcional, e quando ocorra manifesta impossibilidade dos serviços, a realização de perícias médico-legais e forenses de natureza laboratorial por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas pelo Instituto.
Quando a perícia deva ser efectuada em comarca não compreendida na área de actuação das delegações e dos gabinetes médico-legais em funcionamento, podem as mesmas ser realizadas por médicos a contratar pelo Instituto, nos termos previstos nos artigos 28.º, 29.º e 30.º.
As perícias solicitadas às delegações e gabinetes médico-legais do Instituto, ou às entidades que excepcionalmente podem realizar perícias médico-legais e forenses, são da responsabilidade dos peritos designados pelos dirigentes e coordenadores dos respectivos serviços. Já as perícias que devam ter lugar em comarcas não compreendidas nas áreas de actuação das delegações ou dos gabinetes médico-legais em funcionamento são da responsabilidade dos médicos contratados a que atrás se aludiu, devendo a respectiva nomeação, da responsabilidade da autoridade judiciária competente, recair sobre os médicos constantes da lista referida no n.º 2 do artigo 28.º.
Em segundo lugar, entendeu o Governo reformular o regime das perícias médico-legais urgentes no intuito de obviar à perda, por prolação no tempo da realização da perícia, de indícios e elementos probatórios indispensáveis à investigação criminal, nos casos de suspeita da prática de crime.
É de aplaudir quer a intenção quer a sua concretização.
Primeiro, a intenção, porque não é desconhecida para muito dos Srs. Deputados (e, em particular, para os juristas e, de entre estes, os advogados) a situação em que uma vítima de agressão recorre a um hospital para observação e tratamento, mas o exame médico, no âmbito do processo-crime, ocorre vários meses depois dos factos - de resto, a esta circunstância aludiu já o Sr. Secretário de Estado. Assim, é óbvio que se tem de limitar à análise dos elementos constantes do processo hospitalar, porque todos, ou a maior parte, dos sinais visíveis no corpo já desapareceram.
Depois, a concretização, porque, por um lado, fornece o conceito de perícia médico-legal urgente que faltava no Decreto-Lei n.º 11/98, citado, e, por outro, consagra não só a obrigatoriedade de organização de escalas diárias, mesmo em horário de funcionamento dos serviços, mas também a possibilidade, embora restrita às perícias a realizar fora do horário de funcionamento dos serviços médico-legais, de tais perícias serem realizadas nos serviços de urgência de hospitais públicos ou noutros estabelecimentos oficiais de saúde, mediante protocolo.
Em terceiro lugar, considerou o Governo necessária a reformulação dos procedimentos relativos à verificação e certificação de óbitos ocorridos fora de instituições de saúde, bem como os casos em que deve haver lugar obrigatoriamente à realização de autópsias médico-legais.
Quando a morte se verifique fora de instituição de saúde e haja suspeita de crime doloso, competirá ao perito médico da delegação ou ao perito de escala no gabinete para perícias urgentes proceder à verificação do óbito e ao exame do local. A não ser que se trate de óbito violento ou de causa ignorada em comarca fora da área de actuação das delegações do Instituto ou de gabinetes médico-legais em funcionamento, caso em que é à autoridade de saúde local que compete proceder à verificação do óbito e providenciar pela comunicação do facto à autoridade judiciária, em caso de suspeita de crime doloso.
A autópsia médico-legal tem lugar, obrigatoriamente, em situações de morte violenta ou de causa ignorada, podendo ser dispensada quando existirem informações clínicas que apontem no sentido da inexistência de suspeita de crime, com excepção das mortes violentas imediatamente subsequentes a acidente de trabalho ou de viação; e nos casos em que a realização da mesma possa facilitar o contacto com factores de risco particularmente significativo, susceptíveis de comprometer de forma grave as condições de salubridade ou afectar a saúde pública.
Sr.ª Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Estas são as principais inovações do presente diploma, às quais se aliam outras de menor relevo e que aqui já foram referidas.
Pensamos que a presente iniciativa legislativa traz uma série de benfeitorias importantes ao regime das perícias médico-legais que, certamente, lhe conferirão a eficácia e eficiência desejada pelo Governo e por todos os que trabalham mais de perto com as questões da justiça, em particular com as questões relacionadas com a investigação criminal.
Eventualmente, alguns ajustamentos serão ainda de introduzir em sede de especialidade, como é natural, comprometendo-se, desde já, o Grupo Parlamentar do CDS-PP a prestar o seu contributo nessa sede para que o diploma final corresponda integralmente às necessidades que visa satisfazer.

Aplausos do CDS-PP e PSD.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria de Belém Roseira.

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A Sr.ª Maria de Belém Roseira (PS): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Sr.as e Srs. Deputados: Fui relatora desta proposta de lei n.º 127/IX no âmbito da 1.ª Comissão e, portanto, remeto para o relatório alguns aspectos que já aqui foram enunciados quer pelo Sr. Secretário de Estado quer pelos colegas Deputados que me antecederam, no que se refere, designadamente, ao objectivo desta proposta de lei, que vem contido na "Exposição de motivos", e ao conjunto de diplomas legais que a partir de 1899 deram corpo a toda esta estrutura da medicina legal, através de serviços próprios e de uma ciência médica própria, até às mais recentes alterações a partir de 1991, nomeadamente os diplomas de 1998 e de 2001 do governo anterior e a actual proposta de lei, que visa, essencialmente, autonomizar e densificar o regime jurídico das perícias médico-legais em diploma próprio.
A autonomização desta matéria corresponde a uma necessidade de actualização da legislação em vigor, atento sobretudo o facto de as perícias médico-legais constarem de um diploma amplamente revogado, e surge como concretização da reforma encetada pelo anterior governo com a aprovação dos Estatutos do Instituto Nacional de Medicina Legal e as alterações introduzidas no Código de Processo Civil.
Sabemos que o objectivo prosseguido com esta reforma se prende com o reconhecimento de que a medicina legal, pelo diversificado leque de actividades que envolve (tanatologia, toxicologia forense, genética forense, clínica médico-legal e psiquiatria forense), existe fundamentalmente em função dos vivos e para os vivos. O Sr. Deputado Miguel Paiva falou muito na questão dos óbitos, mas é preciso salientar - e refiro isto no relatório - que nos dias de hoje os vivos representam a maior parcela do âmbito e objecto (as autópsias, tão associadas à medicina legal no imaginário popular, representam somente cerca de 10% das perícias efectuadas).
Se estamos de acordo com a economia geral do diploma, não podemos deixar de reconhecer que se requerem alterações a nível de especialidade, não só na clarificação da redacção de algumas disposições como na indispensabilidade de adoptar procedimentos de salvaguarda da compatibilização de actividades, sempre que haja recurso a peritos com vínculo principal a outras estruturas. Designadamente, aqueles cujo regime de trabalho seja o da dedicação exclusiva deverão ser objecto de gestão cuidadosa, na medida em que é importante garantir que a realização das perícias, designadamente as solicitadas a peritos em regime de dedicação exclusiva, não interfira com a sua actividade nos lugares de origem e, portanto, com as suas obrigações principais. Uma vez que a proposta de lei em análise não pretende ser um diploma regulador de carreiras, não deve com estas interferir. Faço esta alusão, porque considero essencial que sejam feitos protocolos com as instituições de origem dos trabalhadores com este regime de trabalho, de modo a garantir que tudo seja feito de acordo com os interesses de ambas as entidades.
Especial delicadeza, porém, assumem, em meu entender, as questões relativas à autonomia e independência técnico-científica dos peritos, sem prejuízo da obrigatoriedade de respeito pelas normas, modelos e metodologias periciais em vigor no Instituto Nacional de Medicina Legal, bem como as relativas ao direito de acesso à informação, que não a do direito à informação, como se refere na proposta e que é matéria diferente.
Vou ater-me a este último aspecto numa acepção mais vasta, que tem que ver com o conteúdo da própria informação, o seu livre trânsito, bem como o direito de acesso e o destino dos produtos e objectos examinados.
A delicadeza que envolve a matéria em causa está ligada à questão das bases de dados genéticos. Matéria relativamente recente mas de potencialidades extraordinárias, no seguimento da sequenciação do genoma humano, ela vem levantar questões, designadamente de natureza ética, que raramente têm sido discutidas em Portugal.
O recente colóquio promovido pela 1.ª Comissão permitiu a ligeira abordagem desta temática, que encontra uma expressão importantíssima na construção do espaço europeu de liberdade, justiça e segurança comuns. Aliás, estranhamente, em meu entender, a proposta nunca se refere à cooperação judicial e judiciária, designadamente no âmbito do EUROJUST, nem às especiais obrigações decorrentes da constituição de equipas de investigação conjunta, já objecto de decisões do Conselho Europeu e de legislação aprovada e que implicam a troca de informação e, no âmbito desta, da informação genética.
A genética forense é uma disciplina médico-legal que conheceu um desenvolvimento espectacular nos últimos anos graças à descoberta dos polimorfismos de ADN hipervariáveis e aos avanços das técnicas moleculares. Isto permite produzir a chamada "impressão digital de DNA", que pode ser obtida através do sangue, de fluidos corporais e muitos tecidos, incluindo o osso, e é relativamente estável, muitas vezes por larguíssimos anos, e que, por estas razões, se transformou num poderoso instrumento na medicina forense. Actualmente, a tecnologia de bioship pode permitir, a breve prazo, uma nova revolução neste campo.
De salientar, no que especificamente toca ao intercâmbio de resultados de análises de ADN, a Resolução do Conselho de 25 de Junho de 2001, que estabelece uma lista mínima de marcadores de ADN utilizados

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nas análises de ADN para fins judiciais nos Estados-membros. Esta matéria é tão delicada e ainda tão desconhecida em toda a sua dimensão que se refere expressamente no n.º 1 do capítulo III desta resolução o seguinte: "Solicita-se aos Estados-Membros que, ao proceder ao intercâmbio de resultados de análises de ADN, limitem os referidos resultados às zonas do cromossoma sem expressão genética, ou seja, que, ao que se sabe, não contenham informação sobre características hereditárias específicas", porque podemos vir a saber mais sobre esta matéria.
Estas resoluções têm vindo a ser aprovadas sem qualquer consulta prévia à Assembleia da República, o que levanta sérios problemas. Temos que reequacionar esta matéria e a 1.ª Comissão deve, urgentemente, debruçar-se sobre este assunto. Até porque se se constata a enorme preocupação de natureza ética com que as estruturas científicas ligadas à genética no âmbito do Ministério da Saúde permanentemente se debatem, designadamente nos aspectos relacionados com o consentimento informado e a confidencialidade da informação genética, já não assiste a esse debate no âmbito da investigação para efeitos civis ou criminais, e é fundamental que ele se faça.
Impõe-se, pois, também aqui, a avaliação dos riscos potenciais dos eventuais prejuízos e das questões éticas ligadas à informação genética.
Não podemos esquecer o intercâmbio de informação no âmbito da cooperação judicial e judiciária, que tem tendência a alargar-se. Veja-se o recente acordo entre a Comissão Europeia e os Estados Unidos da América relativo os dados pessoais de cidadãos europeus que pretendem entrar nos Estados Unidos da América, sendo que o próprio FBI já utiliza uma poderosa ferramenta, o CODIS (Combined DNA Index System), que combina a genética forense com a informática, a qual já tem aplicação nos 49 Estados, à excepção do Estado do Mississipi.
Termino, citando Fukuiama: "Os riscos potenciais e prejuízos não devem nunca ser desprezados. Devem ser completamente escalpelizados e avaliados, deixando que a ciência progrida e que a sociedade colha os seus benefícios mas em total segurança."

Aplausos do PS.

A Sr.ª Presidente (Leonor Beleza): - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Alda Sousa.

A Sr.ª Alda Sousa (BE): - Sr.ª Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça: Gostava de tecer algumas considerações e estou certa de que, na intervenção final, poderá esclarecer-nos sobre alguns aspectos desta proposta de lei.
Várias questões que eu gostaria de suscitar foram agora levantadas pela Sr.ª Deputada Maria de Belém Roseira. Do nosso ponto de vista, é relativamente estranho que a proposta de lei não mencione o facto de terem sido ouvidos o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e a Comissão Nacional de Protecção de Dados, pelo que só podemos deduzir que não o foram. Contudo, é precisamente em relação a algumas destas matérias que se nos levantam as maiores perplexidades.
Na secção IV - Exames e perícias no âmbito da genética, biologia e toxicologia forenses - da proposta de lei, parece-nos estranho que a genética, a biologia e a toxicologia forenses sejam amalgamadas numa mesma secção. As perícias e exames no âmbito da biologia e toxicologia forenses têm, com certeza, um âmbito e uma latitude completamente distintos dos da genética forense e dos aspectos relacionados com a genética forense. Sendo esta uma matéria tão sensível exigiria, com certeza, no capítulo da genética forense, uma outra responsabilização, uma outra adequação da legislação e uma outra reflexão que, penso, não tem sido feita nem na sociedade portuguesa e, por isso, nos parece estranho que possa ser arrumada no artigo 23.º, pelo que só posso entender isto, pelo menos de momento, como uma pressa do Governo em apresentar esta proposta de lei.
Por outro lado, o facto de os exames de genética no âmbito da criminalística biológica poderem ser solicitados ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária abre, evidentemente, campo para que aqui, nesta Polícia Científica da Polícia Judiciária, possa ser criada uma base de dados. E, sendo esta uma matéria tão terrivelmente sensível, parece-nos estranho que isto seja plasmado na lei sem alguma reflexão sobre a importância, o alcance e a complexidade desta matéria, que exigiria, do nosso ponto de vista, uma reflexão autónoma ou a sua conjugação com esta própria proposta.
Estes dois aspectos, com a amplitude desta problemática e com as consequências, ao nível dos direitos, liberdades e garantias, da possibilidade de criação de bases de dados são, do nosso ponto de vista, preocupantes e, penso, deverão merecer uma reflexão posterior adequada, pelo menos na discussão na especialidade. Esperemos que isto se tenha devido mais à pressa do que propriamente em consequência de a questão não ser tida como importante por parte do Governo.
Gostava, ainda, de tecer mais duas considerações, a primeira das quais tem a ver com o facto de a

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proposta atribuir, quase em exclusividade, ao Instituto Nacional de Medicina Legal as perícias médico-legais e forenses. É uma questão muito complexa e, de alguma forma, é estranho que, sendo as perícias obrigatoriamente solicitadas ao Instituto Nacional de Medicina Legal, havendo a possibilidade de excepções, não seja muito claro a quem cabe, então, a capacidade de decisão sobre se uma perícia pode ou não ser realizada por entidades terceiras. Da leitura que fazemos do documento, parece-nos que a possibilidade de requisição pelos tribunais de perícias a terceiros fica dependente da contratação ou da indicação das mesmas ou não pelo Instituto Nacional de Medicina Legal. Ora, é certo e sabido que, pelo menos de momento, há várias entidades que podem vir, eventualmente, a prestar essa colaboração e é um pouco estranho que isso fique dependente do próprio Instituto Nacional de Medicina Legal. Como é que os tribunais vão poder pedir alguma coisa que dependerá de uma outra entidade decidir se é ou não possível fazê-lo, se é ou não possível pedir a terceiros?!
Finalmente, em relação à clareza desta possibilidade de recurso a terceiros, pensamos que é importante que haja também a introdução de mecanismos de avaliação externa periódica de todas as entidades que realizam perícias, no sentido de se poder promover a qualidade dos serviços prestados, que será, com certeza, objectivo e objecto desta proposta. Mas falta aqui introduzir esses mecanismos e aperfeiçoar a proposta desse ponto de vista.
Estas são algumas das considerações que queria fazer, mas, voltando ao início da minha intervenção, a questão da genética forense parece-nos demasiado importante para ser arrumada em apenas um ou dois artigos e, portanto, gostaríamos que fosse tratada com muito mais seriedade e latitude na discussão posterior.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Mota Amaral.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sr. Secretário de Estado da Justiça: O eterno problema das perícias médico-legais tem sido e, penso, continuará a ser a questão de contribuírem para a morosidade da justiça. Aliás, já aqui foi focado esse exemplo.
Mas, além disso e porque, de facto, se arrastam no tempo - que o digam os acidentados de trabalho que esperaram anos pela realização de uma perícia -, não está apenas em causa a questão da morosidade, que é grave só por si, mas também o próprio resultado da perícia, que, decorrido um tempo, é feita muitas vezes apenas perante um relatório médico e sem que se possa fazer o exame directo das consequências.
Penso que foram aqui tratados temas muito importantes relacionados com a genética mas parece-me que, neste momento, já estão a ser feitos estes exames, nomeadamente no âmbito dos processos de investigação de paternidade - estou certa de que já há muitos anos se fazem exames que não os meros exames ao sangue, exames esses que, penso, invadem a área da genética (não sou especialista mas creio que são exames genéticos). Portanto, colocam-se aqui algumas preocupações mesmo sobre o que se passa com esses dados que, entretanto, têm sido recolhidos, pelo que, creio, isto merece uma atenção especial.
Já em 1997, neste Plenário, foram feitas intervenções, de onde se concluía que, com o diploma então aprovado, os problemas iam ser resolvidos. É claro que se avançou alguma coisa, não direi que não, mas a verdade é que isto se tem arrastado morosamente e creio que, nesta proposta de lei, até se reconhece que a morosidade ainda vai continuar. Aliás, é essa a razão de ser de uma disposição, que agora não sei de cor, onde se diz que, sendo preciso pedir esclarecimentos complementares aos peritos, esses esclarecimentos devem ser prestados, em princípio, sem a presença deles, que só em último caso devem estar presentes em tribunal. Há até uma circular de 1994, onde isso é recomendado ao Ministério Público, aos tribunais, a qual é interessantíssima, porque se traduz na confissão de que os peritos médicos existentes não chegavam para as encomendas e era impossível dar resposta atempada aos pedidos.
Por isso, creio que, para além da questão da genética, se devem analisar algumas das questões suscitadas pela Sr.ª Deputada Maria de Belém no seu relatório, as quais me parecem muito importantes, como a da independência técnico-científica dos peritos. E permitam-me destacar a referência que é feita à possibilidade e à necessidade de contemplar a previsão de que, no caso de menores, no caso de pessoas com deficiência e no caso de pessoas idosas, se façam acompanhar a exames médicos, às perícias médico-legais, o que não consta da proposta de lei.
A terminar, diria mais: tendo nós tido alguns processos, alguns dos quais ainda estão em curso, onde houve necessidade de fazer perícias médico-legais a menores, creio que o Governo poderia ter aproveitado para prever um regime específico de perícia médico-legal relativamente a abusos sexuais

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de menores. Penso que se deveria ter previsto, por exemplo, que o menor fosse acompanhado, obrigatoriamente, por um psicólogo ou psicóloga que o estivesse a acompanhar ou que o passasse a acompanhar daí em diante, porque, de facto, são exames que contendem com a intimidade, a privacidade, e muito mais numa criança do que num adulto. Na proposta de lei apenas se prevê que pode ser acompanhado de uma pessoa da sua confiança, mas eu não penso que isso seja suficiente. Aliás, o PCP elaborou um projecto de lei que contém alguma previsão sobre esse aspecto.
Penso que poderia, e deveria, ser aprofundado no âmbito desta proposta de lei um regime específico em relação às perícias médico-legais de menores vítimas de abuso sexual.
Esta é uma matéria bastante vasta e que exige alguns conhecimentos específicos, não só jurídicos - muito mais do que isso. Aliás, estou a lembrar-me das minhas aulas de Medicina Legal, que foi uma experiência interessantíssima, e dos conhecimentos que, de facto, é preciso ter nesta área da Medicina.
Penso que poderemos fazer uma análise muito mais detalhada aquando da apreciação na especialidade e dar resposta quer a algumas das inquietações que constam do relatório quer a outras que aqui foram sendo referidas.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Numa curtíssima intervenção complementar, depois de ouvir os Srs. Deputados, que fizeram intervenções muito interessantes e deram contributos muito relevantes para esta matéria, gostaria de sublinhar alguns pontos que me parecem importantes.
O primeiro ponto a destacar prende-se com uma frase que consta do relatório da 1.ª Comissão, da autoria da Sr.ª Deputada Maria de Belém Roseira, do PS, quando diz que estamos a falar de uma área que tem que ver sobretudo, até do ponto de vista estatístico, com os vivos e não com os mortos, como corresponde ao imaginário das pessoas.
Ora, do conjunto dos actos periciais que a Medicina Legal pratica só 10% têm que ver com autópsias e, portanto, com mortos. No que respeita aos milhares de actos praticados, estamos a falar de actos e perícias em vivos e para os vivos, relativamente a matérias com tanta relevância quanto algumas daquelas que a Sr.ª Deputada Odete Santos aqui destacou, por exemplo, na área de processos e de acidentes de trabalho, em que está em causa a avaliação de danos causados segundo uma tabela que, de resto, tem de ser mexida.

Vozes do PCP: - Exactamente!

O Orador: - Temos de tornar mais expedito todo este processo.
Os Srs. Deputados sabem em que condições eram, muitas vezes, feitas estas perícias, e em que ainda hoje são. Temos feito um esforço enorme, que começou no anterior governo e que nós temos continuado e incrementado, para concluir os tais 32 gabinetes médico-legais que constituem a rede nacional de gabinetes médico-legais.
Sr.ª Deputada Odete Santos, penso no seu círculo eleitoral, Setúbal, onde as autópsias se faziam na casa mortuária do cemitério,…

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Exactamente! Fui lá várias vezes!

O Orador: - … sem quaisquer condições.
Hoje, todo o Norte e Centro do País estão cobertos por esta rede nacional e estamos a caminho de a completar, num esforço enorme que fizemos para, com dignidade e instalações condignas, podermos propiciar este tipo de serviço. Isso é fundamental, pelo que quero destacar os enormes avanços que têm sido feitos neste domínio, tal como a especial sensibilidade que tem sido mostrada pelo Governo quanto a esta matéria.
Há cinco anos que ninguém era admitido para a área da Medicina Legal. Fizemos agora um descongelamento especial para 33 pessoas, 16 das quais médicas, para a área da Medicina Legal e tomámos a decisão, encontrando-nos, neste momento, a trabalhar com o Ministério da Saúde, no sentido de a especialidade de Medicina Legal estar todos os anos presente nos concursos que são abertos em Setembro por aquele Ministério, de forma a que 10 ou 12 profissionais - os que forem necessários ou possíveis - sejam, em cada ano, destacados para esta área.

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Isto é muito importante, porque põe a especialidade de Medicina Legal em concorrência com todas as outras especialidades para efeitos de acesso à carreira e vai permitir que não haja, como tem acontecido no passado (não é o passado de 2 ou 3 anos mas, sim, de há 10, 15 ou 20 anos), hiatos de tempo relativamente longos sem qualquer ingresso de especialistas na área da Medicina Legal, criando dificuldades de rotura, como aquelas que são conhecidas.

O Sr. Presidente: - Sr. Secretário de Estado, o tempo de que dispunha esgotou-se.

O Orador: - Concluo já, Sr. Presidente. Estou a dar informações importantes para saber com que estamos a lidar.
Em 2002, havia, só na área da Delegação de Lisboa, mais de 5000 relatórios por fazer. Não se trata de perícias por fazer - as perícias estavam feitas -, os relatórios é que não estavam concluídos e, por isso, não eram remetidos aos tribunais.
Imaginem os senhores, havendo estes 5000 relatórios por fazer e que estamos a recuperar - com dificuldade, mas estamos a recuperar, num esforço enorme do pessoal do Instituto Nacional de Medicina Legal -, quantos processos em tribunal estão parados à espera que eles sejam enviados! Daí concluímos a enorme importância de termos bons serviços de Medicina Legal, com boas perícias, com qualidade técnica, com isenção e com independência dos seus peritos, por forma a termos, no conjunto, um melhor sistema de justiça.

Aplausos do PSD e do CDS-PP.

O Sr. Presidente: - Não havendo mais oradores inscritos, dou por terminado o debate, na generalidade, da proposta de lei n.º 127/IX, que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses. Amanhã, procederemos à sua votação na generalidade.
Sr.as e Srs. Deputados, quero comunicar à Câmara o seguinte: amanhã, a nossa sessão plenária será preenchida com a discussão, na generalidade, do projecto de lei n.º 464/IX, que regula a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum (um agendamento potestativo do CDS-PP) e este partido tinha aceite que também se agendasse a proposta de lei n.º 128/IX, que estabelece o regime jurídico da formação profissional e cria o sistema nacional de formação profissional, identificando os agentes que o integram, as respectivas atribuições, bem como definindo os princípios que regem a sua coordenação, organização, financiamento e avaliação.
Acontece, porém, que esta proposta de lei, pela sua própria natureza, exige que sejam ouvidos os representantes dos trabalhadores, tendo a 8.ª Comissão chamado a atenção para o facto de esse processo estar ainda muito atrasado. Na realidade, nem sequer foi publicado ainda em separata no Diário (vai ser publicado num destes dias, amanhã ou depois) o dito diploma para se proceder a esta audição.
Nestas condições, ouvido o Governo e comunicada a questão aos diversos grupos parlamentares, entendo que o melhor será "desagendarmos" a discussão deste diploma, que será agendado futuramente, de preferência quando já tivermos o relatório da 8.ª Comissão com o resultado dessas audições.
Como consequência, na sessão plenária de amanhã as votações realizam-se imediatamente depois de terminado o debate, na generalidade, do projecto de lei n.º 464/IX, o que acontecerá, certamente, antes das 18 horas.
Srs. Deputados, chegámos ao fim dos trabalhos de hoje. A próxima sessão plenária realiza-se amanhã, com início às 15 horas, tendo como ordem do dia, como já referi, a discussão, na generalidade, do projecto de lei n.º 464/IX. Haverá ainda lugar a votações regimentais.
Srs. Deputados, está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Partido Social Democrata (PSD):
Arménio dos Santos
Fernando António Esteves Charrua
Henrique José Monteiro Chaves
Jorge Manuel Ferraz de Freitas Neto
Maria Leonor Couceiro Pizarro Beleza de Mendonça Tavares
Rui Miguel Lopes Martins de Mendes Ribeiro
Sérgio André da Costa Vieira

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Vasco Manuel Henriques Cunha

Partido Socialista (PS):
António José Martins Seguro
Fausto de Sousa Correia
Joaquim Augusto Nunes Pina Moura
Jorge Manuel Gouveia Strecht Ribeiro
Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho
José Apolinário Nunes Portada
Manuel Pedro Cunha da Silva Pereira
Rui do Nascimento Rabaça Vieira

Partido Popular (CDS-PP):
José Miguel Nunes Anacoreta Correia
João Guilherme Nobre Prata Fragoso Rebelo

Srs. Deputados não presentes à sessão por se encontrarem em missões internacionais:

Partido Social Democrata (PSD):
António da Silva Pinto de Nazaré Pereira
Maria Eduarda de Almeida Azevedo
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira

Partido Socialista (PS):
Alberto de Sousa Martins
António Fernandes da Silva Braga
José Manuel de Medeiros Ferreira

Partido Comunista Português (PCP):
Maria Luísa Raimundo Mesquita

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Partido Social Democrata (PSD):
José Manuel Carvalho Cordeiro
José Manuel Pereira da Costa

Partido Socialista (PS):
Edite Fátima Santos Marreiros Estrela
Francisco José Pereira de Assis Miranda
José da Conceição Saraiva
Nelson da Cunha Correia

Partido Popular (CDS-PP):
Narana Sinai Coissoró

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.

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