I SÉRIE — NÚMERO 23
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ainda que sob o pretexto dos mais louváveis motivos, poderá ter como consequência correr o risco de vir a
condescender na determinação do combate às formas de governação contra as quais ele foi erigido…
Quanto à densificação prática do princípio da presunção de inocência, como a melhor doutrina recorda, ela
traduz-se num duplo plano: por um lado, o acusado de um crime deve ser presumido inocente até que se
prove que seja culpado; por outro lado, quem acusa é quem terá de provar. A presunção de inocência fica,
assim, indissociavelmente relacionada com o ónus da prova que impende sobre a acusação e com o standard
of proof que, enquanto corolário da presunção de inocência, implica a exigência de que a culpabilidade fique
provada beyond reasonable doubt.
Significa isto que, para merecer um juízo de conformidade constitucional, será sempre à acusação que,
para obter a condenação do arguido, competirá a prova de ter este praticado um facto típico, ilícito e culposo.
Dizem os proponentes da criminalização do enriquecimento ilícito que será ao Ministério Público que
competirá sempre a prova dos dois elementos constitutivos do tipo legal de crime proposto, a saber, a
existência de rendimento desproporcionado e a proveniência ilícita desse desvio patrimonial.
Tal, porém, não corresponde à verdade e é claramente infirmado pela redacção dos tipos legais que vêm
propostos.
Na verdade, para a consumação do crime, só na aparência se manteria a necessidade de preenchimento
cumulativo desses dois patamares. Efectivamente, só a necessidade de provar a existência de rendimento
desproporcionado se manteria. A esta somar-se-ia já não a prova da proveniência ilícita desse rendimento
mas tão-só a prova de um facto negativo.
Ou seja, para ser punida como crime, a detenção desse património não teria de advir de um ilícito, que se
teria de provar à semelhança dos demais elementos constitutivos dos tipos legais de crime, mas, ao contrário,
bastar-se-á com um desconhecimento da sua natureza lícita.
Eis, pois, um caso, o único do sistema penal, em que, do desconhecimento, da dúvida, resultaria a
condenação do arguido (!!)
O acusador não faz a prova da proveniência ilícita, bastando-se com a prova de um facto negativo.
Parafraseando os celebrados versos do cântico negro (de José Régio), a trilhar-se tal caminho, o acusador,
para obter a condenação de alguém, bastar-se-ia com dizer «não sei de onde o património veio, só sei (?) que
não veio dali…»
No nosso direito penal, tal não é, nem pode vir a ser, permitido.
Até os defensores à outrance desta proposta reconhecerão que, a vingar, estaríamos aqui, no mínimo,
perante uma redistribuição do ónus da prova… parte para o acusador, parte para o acusado.
Ora, num Estado de direito é a quem acusa que compete fazer a prova do preenchimento do tipo legal de
crime. Doutro modo, resultará inapelavelmente violado o princípio in dúbio pro reo e, consequentemente, o
artigo 32.º, n.os
1 e 2 da Constituição.
E aqui chegados, convém recordar que a lei penal existe para punir condutas, não resultados dessas
condutas (estes podem ser ponderados para agravar, ou não, a punição daquelas).
Compreender-se-á melhor, assim, o alerta que o Conselho Superior da Magistratura deixou aquando da
audição efectuada a 4 de Fevereiro de 2010, no âmbito da Comissão Eventual para o Acompanhamento do
Fenómeno da Corrupção e para a Análise Integrada de Soluções com vista ao seu Combate, durante a XI
Legislatura, «[É que] o enriquecimento não é uma conduta, é o resultado de uma conduta. Ora, das duas,
uma: ou a montante deste enriquecimento, que é um resultado, existe já uma conduta penalmente censurável
e penalmente punível, e portanto existe já um enquadramento legal que dá resposta a estas preocupações, ou
não existe. O enriquecimento em si não é uma conduta penalmente censurável, mas sim o acto que estará na
base desse enriquecimento, aquilo que provoca o enriquecimento.»
E ainda, o mesmo Conselho Superior da Magistratura, recordando o óbice constitucional à pretensão de
criminalizar o chamado enriquecimento ilícito ou injustificado: «Aquilo que se pretende — e por isso nós
estamos aqui a discutir um pouco no âmbito da inversão do ónus da prova e, portanto, na violação de um
princípio constitucional que me parece ser um índice da nossa civilização e que é a presunção de inocência —
é tentar retirar do acto ilícito a sua consequência e querer penalizar ou criminalizar a consequência, o que me
parece não fazer muito sentido.»