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II SÉRJE-A — NÚMERO 44

Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre o projecto de lei n.° 473/V (lei orgânica do regime do referendo).

(A)

1 — O artigo 118.° da Constituição consagra hoje, após a revisão de 1989, o referendo, instituto através do qual os cidadãos eleitores podem ser chamados a pronunciar-se directamente, a título vinculativo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei.

Trata-se de uma das mais relevantes inovações da 2." revisão constitucional. Com efeito, estamos perante uma questão organizatória importante que faculta um instrumento de intervenção directa, ou semidirecta, se se quiser, na vida pública.

E, ao abordarmos esta problemática, logo pressentimos que, de iege ferenda, ela se afigura controversa.

Com o que se reafirma a todo o momento a indispensabilidade da mediação dos mecanismos da democracia representativa num estado moderno e com a nossa concreta escala.

Só que é patente a complementaridade do instituto do referendo — o seu previsível papel de aperfeiçoamento da sociedade democrática —, com pleno respeito pelos órgãos de soberania e pelo estatuto dos partidos políticos.

Daí que se nos afigure igualmente impreterível a adopção pela futura «lei orgânica» do referendo de um conjunto de cautelas de natureza processual, aliás na esteira do próprio articulado constitucional.

Dir-se-á, é certo, que, ao menos em tese, sempre permanecerá um risco de conversão em instrumento de poder pessoal, de pressão política, ou mesmo de «perversão plebiscitária».

Como escreve Maurice Duverger, o referendo «é censurado tradicionalmente em França por se transformar em «plebiscito» [... ] o risco é real e a prática do Primeiro e do Segundo Impérios e depois a da V República ilustram-no». E diz ainda que, apesar de tudo, «o referendo apresenta também a grande vantagem de permitir ao conjunto dos cidadãos resolverem eles próprios os problemas importantes e evitar que os seus «representantes» açambarquem todo o poder político (in Os Grandes Sistemas Políticos, edição de 1985, vol. I, pp. 68 e 69).

2 — Por outro lado, o referendo constitui um instituto comum no direito comparado.

Nascido de dentro da Revolução Francesa, o referendo moderno inspira-se na evocação das democracias antigas e nas ideias de Rousseau.

Mas, num primeiro plano, surge a Suíça, onde, a partir da Constituição de 1848, o mecanismo é utilizado nos seus vários níveis: iniciativa popular, referendo constitucional obrigatório, e referendo legislativo prévio e derrogatório.

Também os países escandinavos e a Austrália conhecem o referendo desde o fim do século xix.

Por sua vez, a Itália, desde a Constituição de 1947, é já tradicionalmente apontada como favorável ao instituto, tendo-o consagrado a título de veto popular resolutivo.

O mesmo se diga da França e da Espanha, que consagraram o referendo constitucional, sendo certo que a lei fundamental espanhola de 1978 fixou ainda o instituto no nível da iniciativa popular.

3 — No direito português, a ideia do referendo de âmbito nacional aparece em 1872 num projecto de lei de reforma da Carta Constitucional, da autoria de José Luciano de Castro, o qual não vingou.

Com o advento da República, a Constituição de 1911 consagraria, no n.° 4 do seu artigo 66.°, o referendo ao nível das «instituições locais administrativas», embora com remissão para a lei ordinária.

Já no consulado de Salazar, Portugal assistiria à experiência «perversa» do «plebiscito nacional» sobre o projecto da Constituição de 1933.

Finalmente, com a experiência constitucional precipitada pela Revolução de 1974, desde logo em sede de elaboração da actual lei fundamental a problemática do referendo seria objecto de propostas partidárias, bem como de profunda discussão.

Todavia, só com a revisão de 1982, a Constituição de 1976 viria a fixar-se, no n.° 3 do artigo 241.°, a possibilidade de serem efectuadas «consultas directas aos cidadãos eleitores» por parte dos órgãos das autarquias locais. Aliás, esta faculdade acabaria por não'conhecer até à data o necessário e consequente desenvolvimento legislativo.

(B)

4 — O legislador constituinte (derivado) fez, assim, consagrar em 1989 na lei fundamental, como justificadamente escrevem os autores do projecto de lei n.° 473/V, «o referendo facultativo, de âmbito nacional, de eficácia vinculativa, de incidência legislativa e de iniciativa parlamentar ou governativa».

E, com as margens constitucionais plasmadas no novo artigo 118.°, não deixaram os constituintes de efectuar uma prevenção geral no que concerne a eventuais abusos de utilização do instituto, embora, de facto, muito venha a depender daqueles que em cada momento histórico protagonizarem os órgãos de soberania co-envolvidos.

O artigo 118.° da nossa Constituição consagrou, assim, o referendo deliberativo e tão-só como incidente facultativo prévio à aprovação «de convenção internacional ou de acto legislativo».

Mais se refere, como se adverte na exposição de motivos do projecto de lei em causa, que ficam excluídas do objecto do referendo «as matérias incluídas na competência político-legislativa e na reserva absoluta da Assembleia da República, bem como os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro» (cf. n.° 3 do artigo 118.° da Constituição).

Contudo, no tocante à delimitação do objecto do referendo, o projecto de lei do Partido Socialista limita--se a repetir literalmente o estipulado no n.0 2 do mencionado artigo 118.° da lei fundamental, designadamente no que respeita à imprecisa fórmula «questões de relevante interesse nacional».

Poderá, é certo, aduzir-se que o legislador ordinário nada deverá acrescentar quanto à desmontagem daquela «cláusula geral». Todavia, somos de parecer que, embora exemplificadamente, deveria o legislador, por uma fundamental razão de segurança jurídica, arrolar algumas «questões de relevante interesse nacional», o que poderá ser prosseguido através de sucessivas aproximações densificadoras daquele conceito indeterminado, face à ausência de tradição do referendo no direito público português.