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Sábado, 2 de Julho de 1994

II Série-A — Número 51

DIÁRIO

da Assembleia da República

VI LEGISLATURA

3.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1993-1994)

2.° SUPLEMENTO

SUMÁRIO

Proposta de lei n.° 92/VI (Autoriza o Governo a rever o Código Penal):

Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais. Direitos, Liberdades e Garantias......................... 9O2-Í150)

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PROPOSTA DE LEI N.8 92/VI (AUTORIZA 0 GOVERNO A REVER O CÓDIGO PENAL)

Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias

Nota preliminar

A proposta de lei n.° 92/VI deu entrada na Assembleia da República em 21 de Fevereiro de 1994 e baixou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias em 24 de Fevereiro de 1994.

Foi decidido por proposta do Grupo Parlamentar do PSD — a qual, aliás, recebeu o bom acolhimento de todos os outros grupos parlamentares —, que a sua trajectória até discussão e votação em Plenário lograsse proporcionar intenso debate e reflexão. Assim cumpria a Assembleia da República a missão de procurar o seu auto-esclareci-mento, mas também a de fomentar o esclarecimento da opinião pública acerca da natureza das alterações que vão ser introduzidas no Código Penal de 1982, e bem assim, sobre o significado das opções político-criminais que lhes estão subjacentes.

De modo a concretizar estes objectivos, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, incumbiu um grupo de trabalho de orientar o trânsito parlamentar da Proposta. Presidiu a esse grupo de trabalho o presidente da Comissão, Deputado Guilherme Silva (PSD), e integraram-no também os Deputados Braga de Macedo (PSD), Margarida Silva Pereira (PSD), Fernando Condesso (PSD), José Vera Jardim (PS), Alberto Costa (PS), Odete Santos (PCP) e Narana Coissoró (CDS).

Existem actas de todas as reuniões deste grupo de trabalho.

Deliberou o grupo de trabalho, em 16 de Março de 1994, que a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias procedesse a audição parlamentar sobre a proposta de reforma do Código Penal das entidades seguintes, indicadas por ordem cronológica:

Ministro da Justiça, (6 de Abril de 1994);

Membros da Comissão que o Ministério da Justiça incumbiu de rever o Código Penal de 1982 (Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e presidente da Comissão Revisora; Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Dr. Cunha Rodrigues, Pro-curador-Geral da República; Dr. Lopes Rocha, procurador-geral-adjunto; Dr. Ferreira Ramos, pro-curador-geral-adjunto; Dr. Sousa Brito, juiz do Tribunal Constitucional) (12 de Abril de 1994);

Ordem dos Advogados (17 de Maio de 1994);

Conselho Superior da Magistratura (18 de Maio de 1994);

Associação Sindical dos Juízes Portugueses (24 de

Maio de 1994); Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (24

de Maio de 1994); Associação para o Planeamento da Família (24 de

Maio de 1994); Grupo de Trabalho de Psiquiatria Forense (24 de

Maio de 1994); Sindicato dos Jornalistas (25 de Maio de 1994 e 14

de Junho de 1994);

Associação Portuguesa dos Direitos do Cidadão (25

de Maio de 1994); Fórum Justiça e Liberdades (14 de Junho de 1994)..

As audições foram integralmeme gravadas, dada a sua relevância como trabalhos preparatórios da reforma.

O grupo de trabalho sistematizou as sugestões de alteração à proposta formalmente apresentada pelos intervenientes nas audições parlamentares.

Em 16 de Março de 1994 incumbiu o Deputado Braga de Macedo (PSD) de coordenar a realização de um Colóquio Parlamentar sobre a Reforma do Código Penal, que veio a ter lugar em 27 de Maio de 1994 com o patrocínio do Presidente da Assembleia da República e no qual intervieram como oradores os Srs. Drs. Anabela Miranda Rodrigues, da Faculdade de Direito de Coimbra, Rui Pereira, da Faculdade de Direito de Lisboa, Euclides Dâmaso, subinspector da Polícia Judiciária e membro da Comissão Revisora do Código de Processo Penal, Rodrigues Maximiano, procurador-geral-adjunto, António Cluny, procurador-geral-adjunto, Miguel Machado, da Faculdade de Direito de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa. Foi moderador do Colóquio o Sr. Prof. Germano Marques da Silva, da Universidade Católica Portuguesa.

O Colóquio Parlamentar foi aberto a personalidades exteriores à Assembleia da República e à comunicação social.

Tal como das audições parlamentares, existe gravação integral deste Colóquio.

Em 12 de Abril de 1994 deliberou o grupo de trabalho que fosse feito um relatório/parecer sobre a proposta, em razão da vantagem de textualizar os principais aspectos da reflexão parlamentar sobre as matérias da reforma e de melhor os vincar no momento da subida a Plenário. E incumbiu a Deputada Margarida Silva Pereira (PSD) da sua elaboração.

A Deputada Margarida Silva Pereira (PSD) apresentou em 19 de Abril de 1994 um plano de relatório que obteve a aceitação do grupo de trabalho e beneficiou das sugestões ali recolhidas.

O relatório da Comissão divide-se em três capítulos.

O primeiro capítulo aprecia os princípios de política criminal que a reforma acolhe, curando de aferir a sua compatibilidade com o direito penal constitucional. Averigua, pois, da legitimidade constitucional dos princípios da culpa, da proporcionalidade, da vinculação à defesa de bens jurídicos e da reintegração social, recebidos pelo artigo 40."

O segundo capítulo aborda as alterações ao sistema de penas e de medidas de segurança que a reforma introduz, colocando especial ênfase nas penas de substituição, nas modificações ao regime da liberdade condicional, na aplicação da proporcionalidade às penas acessórias e às medidas de segurança.

O terceiro capítulo dedica-se à parte especial, que veio a sofrer modificação muito mais profunda do que a própria Comissão Revisora concebera e por isso merece destaque autónomo. A relatora seleccionou tipos penais cuja criação ou alteração se sublinham particularmente. Incluem-se neste cervo tipos já existentes mas que aoarecem modificados, como acontece com o homicídio qualificado, por via da nova moldura penal que lhe foi cometida, a ofensa à integridade física qualificada, os crimes sexuais (agora entendidos como crimes contra a liberdade), as alterações às dosimetrías aplicadas aos crimes contra o património, a estrutura do furío qualificado e os novos tipos de crimes informáticos c ecológicos.

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Muitas disposições vertidas na proposta suscitaram críticas dos Deputados que intervieram nos trabalhos da Comissão, em vários casos acerbas. Mas foi sempre patente um juízo de favorabilidade sobre as traves mestras ido trabalho que a reforma produziu, bem como sobre a sua excelência técnica. .. . .... .

O relatório foi aprovado, por unanimidade, pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liber-dades é Garantias em 27 de Junho de 1994. .

I

Apreciação do artigo 40.5 com base nos seus referentes jurídico-constitucionaís

A) Tomado pela proposta tal. qual o presidente da Comissão Revisora o concebeu .e ,esta lhe daria acolhimento ('), o artigo 40." reflecte portanto, íntegras* as pre-. ocupações que através da sua entradaem cena se procurou enfrentar e superar.

Quais elas foram, dizem-no os trabalhos, preparatórios e manifesta-o uma intensa apreciação da jurisprudência posterior ao Código Penal de 1982.

Dizem-no os trabalhos preparatórios.;Quando da última leitura do preceito adjectivá-lo-ia Figueiredo Dias de «artigo caracterizador da reforma» (2).iE justificava-se o seu aparecimento:

A determinação da medida da pena, matéria; de extrema dificuldade, vinha-se operando quase sempre à revelia das concepções do Código sobre as finalidades das penas,'e o imperativo de aplicar penas alternativas à pena curta de prisão não-lograva im-por-se (3). • .

Era esta a circunstância que titulava a reforma para tentar inverter a situação. Do que essencialmente se tratava era de explicitar tanto os critérios de determinação judicial da pena como os critérios de aplicação cie penas dè substituição. " ...

A bem de tal desiderato, optou-se pela criação de uma norma que melhor sulcasse o propósito qué em 1982 se tivera com a introdução dos artigos 71.° e 72.° - ;

Na verdade, fora a vigência de ambos atribulada. ' '

Quanto ao primeiro, que inovara no direito português impondo opção judicial por uma pena não privativa da liberdade, sempre que uma tal pena estivesse prevista e se mostrasse satisfatória no plano da prevenção (especial e' geral), podia dizer-se que se tornava quase semântico. Sucedia ficar a preferência pela sanção não detentiva neutralizada, sempre e só em nome de um juízo de censurabilidade sobre a pessoa do agente (4).

Do segundo, que articulava a culpa, enquanto fundamento da pena, com a prevenção geral e especial, sugerindo a não preponderância da primeira face às outras no processo de determinação da medida judicial da sançãVcri-minal, podia afirmar-se padecer da mesma inoperacionalidade. Na prática, não acontecia essa articulação e era ainda a culpa que primava, fazendo cair por terra qual-

quer ensaio de ênfase das finalidades preventivas, pois que vingara a ideia de que de um «ponto médio» entre o limite mínimo e máximo daquela se havia de partir, operando de seguida o julgador.com circunstâncias agravantes e atenuantes — processo que obscurecia o importante e vincado alcance da prevenção nas suas duas modalidades referenciadas.

Esta situação não era incólume ao juízo crítico da doutrina e ao critério de alguma jurisprudência. Como paradigmas de tal contracorrente haviam de marcar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 1990 e o comentário que mereceu a Anabela Miranda Rodrigues:

Considerações de culpa não devem ser levadas em conta no momento de escolha da pena. Na verdade, o juízo de culpa já' foi feito: antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir, é sabido, sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua medida concreta, para o que foi decisivo um «juízo (concreto) sobre a culpa do agente. Ora, esse juízo não importa agora referi-lo, sendo completamente irrelevante para decidir da escolha da pena (5).

Não era, porém, como se salientou, a maré jurisdicional dominante.

Deve, pois, dizer-se que o argumento crucial, decisivo para o surgimento deste novo artigo 40.° foi a precisão de um reforço normativo para regras das quais se pretendera jáem 1982 que cumprissem os escopos referidos, mas que sé tinham revelado malogradas nessa incumbência.

Sucede que tal ponto de partida, relevante por si só, teve outras não menos relevantes implicações.

De facto, o que o artigo 40.° vem afirmar tem a virtualidade de produzir outras consequências para além desse já de si pujante intuito. Porque as finalidades de escolha de uma pena e os critérios de determinação da sua medida não podem divorciar-se das finalidades da criação das normas penais, da própria opção por punir ou por não punir certos comportamentos — o que seria artificioso e contraditório —, é o fundamento do jus puniendi que agora se revela com mais precisão, sendo certo afirmar que o legislador verteu no Código as linhas mestras que o devem orientar.

• E este vazamento legislativo das finalidades da punição, que se produz na reforma através de conceitos como o de culpa, de proporcionalidade, de bem jurídico e de reintegração social (fi), imprime à norma vocação e dinâmica determinantes. Dizendo do fundamento do jus puniendi, ela diz também do fundamento e limites das normas penais. Tem desta sorte o artigo 40.° óptimas condições para funcionar a grande benefício do intérprete da reforma, tal como a benefício do criador de direito penal avulso, já que esclarece sobre as razões a que obedeceu o aparecimento dos tipos penais da parte especial e que portanto os legitimaram. Dito por outras palavras: o Código irá assumir a partir de agora os princípios rectores da criação das normas incriminadores, princípios cuja clarificação é inestimável, adquirido que o rigor da lingua-

(') Cf. Código Penal. Actas e Projecto da Comissão Revisora, Ministério da Justiça, 1993, p. 461. . • . . (:) Idem, Actas, cit., p. 459. (') Idem, p. 13.

C) Cf. Anabela Miranda Rodrigues. Critério de Escolha das 'Penas de Substituição no Código Penal Português. 1988,. pp. 24 e segs.

(5) Cf. anotação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 1990, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Abril--Junho de 1991, p. 256. A autora sublinhava o bem fundado da decisão por si comentada.

• (') Conceitos cuja formulação é muito próxima da do n.° ! e da primeira parte do n.°2 do AUernativ .... de 1966.

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gem sempre fica aquém do desejável e, não obstante, a certeza e a segurança deverão imperar tão sagradamente quanto possível.

Também a inserção sistemática do artigo 40." não é neutra quanto a esta sua vocação. Ele aparece como princípio geral comum à matéria das penas e das medidas de segurança, de todas as consequências de comportamentos rele: vantes em sede penal, portanto. Através da opção por um título único relativo às «Consequências jurídicas do facto», englobaram-se num âmbito comum a principiologia e as vicissitudes das penas e das medidas de segurança, fri-sando-se desta sorte a unidade da matéria e da sua problemática — unidade que reforça a sintonia dos critérios de estatuição criminal, correspectivo de uma também requerida sintonia dos critérios de previsão.

São quatro as linhas de força inseridas no artigo 40.° que devem ser retidas:

Princípio da culpa;

Princípio da proporcionalidade;

Princípio da vinculação à defesa de bens jurídicos;

Princípio da reintegração social do condenado.

Trata-se de princípios de política criminal. Trazendo-os para o seio da lei, a reforma explicita o papel que comete à articulação entre política criminal e direito penal: sintonia entre os princípios estruturais de ambos, unidade funcional. «Não mais tem sentido a manutenção da aparelhagem conceituai dogmático-sistemática quando ela não seja traçada em termos tais que funcionalmente se adeqúem às exigências político-crimináis, tal como hoje se fazem sentir», fora afirmado por Figueiredo Dias, ao que acrescentava:

Uma ciência jurídico-penal que nada lenha a oferecer às necessidades correctamente entendidas da política criminal não só se torna em peça decorativa, como é falsa (7).

Aberto estava, portanto, no pensamento dos pais da reforma, o caminho à consagração que ela tomou.

O que nesta sede importa é verificar o modo como se articulam os princípios enunciados com a Constituição, seu indiscutível referente. Ou seja: com o modelo de sociedade que ela pressupõe e intenta desenvolver e com o direito penal constitucional contido na lei fundamental (7).

B) Em primeiro lugar, o princípio da culpa. Relativamente à sua formulação mais genérica, ou seja, no sentido de que toda a pena se funda na culpa e assim a pressupõe inexoravelmente, há consenso na doutrina portuguesa quanto ao étimo constitucional: são o princípio da dignidade da pessoa humana e também o direito à liberdade, incrustados nos artigos 1.°, 13.°, n.° 1 e 27.°, n.° 1 (8), e dos artigos B e F do Tratado da União Europeia.

Indefectível a relação entre o modelo social pressuposto e sugerido pela lei constitucional e este princípio da dignidade que impõe a culpa penal.

De facto, o reconhecimento da dignidade decorre histórica e teoricamente da afirmação do respeito pela opi-

(') Cf. «Os novos rumos da polílica criminal c o direito penal português do futuro». Revista da Ordem dm Advogados, Janeiro-Abril de 1983, p. 12.

(") «As opções axiológicas constitucionais», escreve Sousa Brito, «devem se respeitadas pelas normas penais e orientar a sua interpretação. Mais: s3o elas que definem os valores fundamentais da vida em sociedade que o direito penal visa proteger » (Cf. «A lei penal na Constituição». Estudos sobre a Constituição. 2° vol., Lisboa. 1978. p. 198.)

nião individual, que Locke teorizou num contexto inspirador muito forte, o das lutas religiosas inglesas e eurocontinentais f9)- Ter-se-á gerado aí o conceito sócio--político de tolerância, tão caro ao modelo de sociedade aberta. < ■ •■

Sociedade aberta ou pluralista entendida, como o é dominantemente, como sociedade portadora de um conteúdo democrático positivo e preciso: tendo por escopo essencial viabilizar o maior número de ideologias e de atitudes vitais ou mundividências, na consideração axiológica de que essa pluralidade é um factor de enriquecimento da personalidade e, nessa medida, portanto, corolário do respeito péla dignidade. Põe-se, pois, de lado qualquer veleidade de uniformizar ideias ou comportamentos e evidencia-se ao direito de opção por uns ou por outros como critério de convivência e como-valor comunitário, já que condição de desenvolvimento. E sublinha-se o carácter excepcional de qualquer limitação que lhes seja aposta, apenas legitimada por imperativos de interesse público.

E esta atitude tão neutra quanto possível face a costu-mes e valores^ pretende-se viabilizadora de um ambiente social em que ò desenvolvimento da personalidade não seja encarado na perspectiva de uma (ainda que generosa) concessão sócio-política, mas como imperativo da legitimidade da estruturação social pelo distrito e pela política.

Um tal entendimento tem ínsito que a privação da liberdade de pessoas imputáveis não pode ocorrer à margem de um comportamento grave e censurável; e, do mesmo modo, não pode alhear-se de uma adequação à gravidade dessa censura.-. ...

Vejamos que implicações tem isto sobre a culpa penal.

E, por comodidade de análise, estratifiquem-se duas ordens de implicações: as implicações negativas e as implicações positivas.

Reportemo-nos às primeiras. O princípio da culpa que parte deste equacionamento não tem de fazer profissão de fé metafísica na aceitação do intrincado livre-arbítrio. A culpa, enquanto fundamento ,da pena, pode muito bem passar à margem de opção dessa natureza. Assim acontece, de resto, em quase todo o. pensamento inspirador das constituições é das leis penais adeptas nos nossos dias da relevância da culpa penal. Di-lo Roxin de modo lapidar: ao falar em culpa, está o legislador a fazer coisa muito diferente de «pronunciar um juízo, que não lhe compete, sobre a liberdade da vontade humana. Não se trata neste caso de uma afirmação sobre o ser, mas de um postulado de política criminal dirigido, ao juiz: deves tratar o cidadão pela sua inclinação para a liberdade como um homem capaz de decisão autónoma e responsável, desde que. a. «.via motivação normal não esteja excluída por perturbações espirituais. É um princípio regulador e normativo, e os princípios não devem ser ajuizados de acordo com os critérios do verdadeiro ou do falso, mas com os da sua fecundidade social ou danosidade» (l(l).

Negar o livre-arbítrio não será, deste modo, neutralizar a culpa penal. É algo perfeitamente compatível com um sistema juriscriminal que a admita plenamente no seu seio.

Disso dá testemunho eloquente a doutrina alemã, mátria da culpa ancorada no livre-arbítrio. O projecto de Código

(') Cf. este propósito, o interessante ensaio de Paul Popper, «Em que acredita o Ocidente?», publicado pela primeira vez em 1959 e inserido na colectânea Em Busca de Um Mundo Melhor. Lisboa, 1988, pp. 185 c segs.

(I0) Cf. Klaus Roxin. «La culpabilidad como criterio limitativo de te pena». Revista de Ciencias Penales, enero-abril de 1973. pp. íO-'iV

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Penal de 1962, raiz da lei vigente, não a faz a partir de importações metafísicas. O que essencialmente pretendeu com ela foi dar força de lei. a um lastro, de revinculação com a moral e os seus princípios por que a doutrina do pós-guerra se batera e o nazismo .naturalmente ignorara.

É essa revinculação ética que, aliás, explica várias deciT soes jurisprudenciais que-marcaram o tema. da culpa nas décadas de SO e 60. Assim, em 1952 pronunciava-se o Grande Senado Penal do Tribunal Federal nestes termos:

A pena pressupõe culpabilidade. Culpabilidade é censurabilidade [...] o fundamento interior da censura de culpabilidade consiste "em que o homem dispõe de uma capacidade livre, responsável e moral de autodeterminação ç que, portanto, pode decidir-se pelo Direito contra a sua negação.....

E em 1966 concebia a pena sem culpa cpmo «uma retribuição incompatível com o princípio do Estado de,direito que lesaria o condenado no seu direito fundamental emergente (...] da Constituição». E vincava: "

É isto que exprime o. § 48 do STGB: a culpabilidade do autor é o fundamento da individualização da pena ("). . . ...

Não era, pois, do livre-arbítrio que aqui se curava, mas de apagar de uma vez por. todos os resquícios da divisão do III Reich — o direito útil ao povo alemão era o direito legítimo, e a culpa, um pressuposto prescindível..

Atentando no conteúdo positivo a cometer.à culpa, sublinha-se a. função de garantia jurídico-estatal: ela'fundamentará sempre a aplicação da pena (não há pena sem culpa, não há crime sem culpa) mas não terá a incumbência de influenciar inexoravelmente o seu'limite máximo. Pode muito bem a pena, em nome de outras considerações', ficar aquém do grau que atingiria tendo-a exclusivamente por padrão.

Afirma o artigo 40.° que a pena não pode nunca «ultrapassar a medida da culpa» (n.°2). Trata-sé da consagração inequívoca pela lei ordinária do sentido do princípio constitucional. A dignidade da pessoa- humana impõe que a sanção criminal encontre na medida da culpa o seu tecto de aplicação e, por maioria de razão, que se fundamente na culpabilidade. . , .. •'. . ;! •'. ;

A articulação entre o sentido atribuído-à culpa penal pela reforma e a Constituição afirma-se total, por isso que:

1.° A reforma não vincula o princípio da culpa a uma opção filosófica ou metafísica sobre o' livré-afbí-trio. Comete-lhe uma função político-criminal de garantia dos cidadãos, e não mais do que isso — o que é adequado a um modelo dè sociedade pluralista, que não amarra todos a uma. unívoca profissão de fé; - • :

2.° Entende que a pena.não pode exorbitar a culpa, do mesmo modo que não pode privãr-se.dela como seu.pressuposto; -

3.° Abre a possibilidade de a medida da pena tomar em conta outras considerações, desde que se encontrem ao serviço de uma infra-incriminação.

Q Princípio da proporcionalidade.;— Para as medidas de segurança, aplicáveis a inimputáveis perigosos ou a pes-

(") Citados por C. Stratenwerth, El Futuro del Principio Jurídico Penal de Culpabilidad. Madrid, 1980. p. 90. ,.

soas capazes de determinação pelo direito, mas destinatários de um juízo de perigosidade produzido com base num comportamento ¡licito-criminal, vale este outro princípio, também, .decorrente da dignidade humana. A medida de segurança, seja detentiva. ou de outro tipo, não pode furtar-se. à adequação ao modelo de comportamento, analisado na perspectiva do perigo social que o agente representa; não será legítimo que consubstancie a medida de segurança num castigo gratuito. Há um paralelismo nítido entre a proporcionalidade no direito penal das medidas de segurança e o princípio da culpa que preside à pena. Assim como a culpa se pré-ordena face à sanção penal, e lhe impõe uma adequação própria, também a perigosidade condiciona a medida de segurança e o seu quantum. Por certo que contrariava o respeito pela dignidade pessoal um direito de medidas de segurança não condicionado pelo perigo que o agente demonstrou representar através da-sua conduta, e pelo objectivo de neutralizar esse perigo perante a sociedade e de envidar esforços para o diminuir ou apagar, através da pedagogia ou tratamento adequado.

O princípio da proporcionalidade vertido no artigo 40.° (segundo cujo n.°3 «a .medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do lacto e à perigosidade do agente») arlicula-se com a lei. fundamental, pois que:

1." Explicita á fundamentação das medidas de segurança na gravidade do facto e na perigosidade do J • agente e recusa a sua existência para além daquelas;

f 2.° Sustenta que o grau da medida de segurança se adequa à perigosidade do agente e à defesa da ordem jurídica.

D) Princípio da. vinculação à defesa de bens jurídicos.— A encimar o acervo de finalidades das penas que enuncia, coloca o artigo 40.° a protecção de bens jurídicos. Subjaz ao princípio vertente a ideia de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, também, do n.°2 do artigo 12.° da Constituição, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão «ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

O princípio tem um,lastro doutrinário abundante e ancestral.

De facto, já na Alemanha do século xvni, Hommel, um autor pouco referido nos nossos dias mas nem por isso menor, ousou tornar o bem jurídico como factor de separação de águas políticas conflituantes então. «Os conceitos de pessoa, cristão e cidadão», escreveu na altura, «são três coisas diferentes». Os bens jurídicos sob tutela estatal eram os que ao cidadão importavam, c não já aqueles de que a religião curava, bu sequer aqueles outros que se "poderiam reportar a um mítico estado de natureza. Eram os bens jurídicos aqueles que se revelassem portadores dc importância social indefectível, banidas a metafísica e a fé do seu núcleo impregnante.

Assim fez Hommel arrancar a matriz do conceito, que é filho da época iluminista e tributário da doutrina do contrato social. Provindos agora o Estado e o poder não de Deus mas de um pacto entre os cidadãos, e sendo esse pacto um contrato de liberdade e de convivência em paz, muito mais modestos se tornavam os horizontes fundadores do poder punitivo, e desaparecia a sua ligação a concepções religiosas ou a estritos aspectos morais.

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Diz-se que Hommel dissertou sobre tudo isto mesmo antes de ler Beccaria e a sua advertencia: consequência da origem das leis penais no contrato social é o favorecimento daquelas «virtudes benéficas que são eféito' de uma fazão iluminada, que prefere mandar em hornería livres dó1'que num contingente de escravos» O2). Caracfet-rísticas';dal leis penais provindas da cidade eram, portarVro, a humanidade e o respeito pela liberdade pessoal. r"J

A benefício do significado histórico da tese, pouco lYá-de importar qual dos dois autores detém a bandeira da primazia. U

O qué importa é que estavam lançadas assim, por ambos, as bases políticas do bem jurídico, de que ele nãorse apartaria" ¡no essencial na evolução que depois teve, pes^m as tentativas episódicas de neutralização ou de desvirti^-mento de .que foi vítima. ,t

Tentativas de neutralização. A Escola Histórica e,¿o Positivismo, em nome de assumida crítica às teses da Ilustração, ignorá-lo-iam, reintroduzindo os crimes contra a,religião e os bons costumes — crimes lesivos de valores e interesses em que o Estado desta forma se intrometia.de novo. Aconteceu durante os movimentos políticos da primeira metade do século xix, os quais, como é sabido, esbateram a pureza fisionómica do liberalismo e concederam a ideias e práticas conservadoras (").

Tentativas de desvirtuamento, também. Depois de uma primeira rejeição do conceito, procuraria em pleno nacional-socialismo a Escola de Kiel afeiçoá-lo à ideologia do III Reich.

Disseram-no Schaffstein e Dahm. Num primeiro momento, ainda se renderam ao antagonismo patente entre um conceito que tão bem vincava a autolimitação do Estado e os interesses jurídico-políticos nazis e preferiram bani-lo. Mais tarde — e decerto por razão estratégica —, reconheceram a dificuladade de pôr de parte um conceito que tão fundamente sulcara o património do direito e da cultura política e tomaram-no expurgado de substância, como um puro nomen júris (l4).

Não poderá afirmar-se, portanto, que ao bem jurídico, cuja ideia a ciência jurídico-penal toma de Hommel e de Beccaria e dogmatiza a partir do século xix (l5), tenha ine-rido uma sempre assumida finalidade limitadora do poder punitivo do Estado. Nalguns momentos, ele revelou-se mesmo refractário a esse escopo (,0). Mas é bem certo que a parte mais representativa dos trabalhos a si dedicados caminham por aí, e de tal modo que a sua feição de limite político-criminal do jus puniendi é de longe a mais importante.

O bem jurídico assim entendido, limite e fundamento da criação de normas penais, tem suporte constitucional — também a Constituição concebe a entrada em cena do direito penal como ultima ratio, e estritamente reportado a lesões importantes dos fundamentos da convivência social.

Este entendimento possui várias e importantes consequências.

Em primeiro lugar, indefere uma visão «ontologista» do bem jurídico. Não é credível retirar dos objectos do mundo empírico o conjunto de bens penalmente tuteláveis. Nenhum objecto empírico limita, só por si, o legislador.

Igualmente está prejudicado um entendimento do bem jurídico que o identifique com a esfera espiritual, o estrito mundo dos'valores (l7). Colidiria uma tál tese o relativismo axiológico próprio da sociedade aberta.

Á protecção jurídico-penal há-de reportar-se àquilo que se entenda relevante para a subsistência da comunidade ou, dito por outras palavras, há-de reconhecer a natureza social do bem jurídico. Ele tem indefectível conexão com a ideia de que nada é tão desval ioso como praticar «lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada homem» (n).

A aferição do bem jurídico assim entendido reporta-se aos limites próprios do Estado democrático: tal como Hommel e Beccaria preconizavam, este não está legitimado para castigar ataques a valores puramente morais, mas tão-só para criar e assegurar condições de existência ao agregado social. Assim cai a punição de condutas imorais não lesivas de bens jurídicos (como será o caso da homossexualidade entre adultos ou de práticas sexuais que não importunem ninguém em concreto).

/Hão-de caber no conceito de bem jurídico, ainda, aquelas prestações que o Estado realiza porque se afiguram necessárias para a existência humana. Assim entendido, ele estará apto a incluir certos aspectos da administração da justiça, prestações de natureza social, enfim, tudo aquilo a que se reporta a função social do Estado de direito ('*).

A estes aspectos acresce a relevância da participação pessoal e do fomento dessa participação, imprescindíveis componentes do núcleo duro do conceito de bem jurídico O9). Deste modo, não será a mera «disfunção» de um comportamento, o representar ele uma «ameaça à subsistência do sistema; dos valores que o sustentam e os factos que permitem o seu desenvolvimento» (Jl>), a fundamentar a entrada em cerca do direito de punir. Será preciso mais: para além deste objectivo, pretende-se que incida a lesão do bem jurídico sobre as possibilidades de intervenção social de cada pessoa latamente concebidas — possibilidade de direito das pessoas e de protecção de vida na comunidade de todas as pessoas. . E) Reintegração social. — As sanções penais orientam-se também no sentido da recuperação do delinquente. A aplicação de penas e de medidas de segurança, di-lo ainda o n.° 1 do artigo 40.°, visa a, reintegração do agente na sociedade.

A expressão que a reforma introduz («reintegração») não provém da Constituição, ao contrário do que a comparação jurídica mostra acontecer noutras leis fundamentais (21). É, aliás, uma omissão tanto mais curiosa quanto é funda a marca preventista nas leis penais portuguesas.

('•) Cf. De tos Delitos y de las Penas, p 30.

(") Cf., a este propósito, Mir Puig, Introducción a las bases dei Derecho Penal. Bosch, 1976.

(,J) Idem, Mir Puig, op. e página cits.

(,5) É a Birnbaum que a expressão se deve.

('*) De facto, o Estado de direito liberal acantonava-o ao conjunto dos direitos subjectivos carentes de protecção penal, sem urdir nenhum critério material de delimitação.

(") Cf. Figueiredo Dias, «Os novos rumos ...», cit., p. 13.

(") A tese foi avançada por Roxin. Cf. «Sentido y limites de la pena estatal», in Problemas Básicos dei Dereclui Penal. Madrid, 1976, p. 24.

(") Cf. Calltess. Theorie der Strafe im demokratischen und sozialen Rechtsstaat. 1974, pp. 143 e segs.

C) Assim S. Mir Puig, Imroducción .... eil., p. 140.

(J1) É o caso das Constituições espanhola e ilaUana.

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Excluído o hiato da nova reforma penal de 1884, que poria o acento tónico nos principios ético-retributivos (22), os códigos e toda a legislação inclinam-se entre nós, desde meados do século passado, para ideias de prevenção especial (23). Ideias cuja enfatização Beleza dos Santos faria de modo muito, particular. «A acção preventiva dás penas»; advertiu, «é de alto interesse público» (w).

Mas a omissão constitucional não tem significado especial. O facto de não ter expressa referencia na Constituição não retira à «reintegração social» matriz na lei fundamental; por certo que as preocupações que subjazem ao princípio têm estreita articulação com a ordem dos valores constitucionais.

Esta realidade eclode facilmente quando se precisa o significado da reintegração social — ao qual não corresponde, na doutrina, um significado unívoco, e demanda por isso clarificação.

De facto, a reintegração social é. um conceito que se reporta à prevenção especial, mas sem. a pretensão de concretizar o exacto alcance de tal prevenção e o modo pelo qual ela poderá atingir-se.

É, pois, um conceito normativo.

A sua compatibilidade com a dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade preclude um entendimento por assim dizer maximalista da reintegração social. Ou seja: a tese de que a prisão é um benefício absoluto, pela sua vocação reeducadora e pela virtualidade de trazer o condenado à absorção dos princípios dominantes da sociedade, cai por terra. Tomar por essenciais, legitimadoras do modelo social, a liberdade de opções axiológicas e um espaço de convivialidade entre elas exclui a tese da sanção penal como escola de bem, e a da sua aplicação como virtuosismo jurídico para obter a virtude moral e social.

De facto, compete dar por adquirido que a pena estigmatiza, traz sofrimento, potencia desadaptação e é-lhè por isso inerente uma elevada dose de irracionalidade C25);

O sentido da prevenção reintegradora social é portanto outro. Tratar-se-á de tornar o objectivo de retirar da sanção o melhor efeito possível, assumida a representação maléfica com que ela surge aos olhos do condenado. Tratar-se-á de assumi-la como um mal inevitável, mas dirigido para a produção do maior número possível de efeitos úteis.

É no domínio da execução das penas que mais faciU mente se evidenciam as principais consequências da reintegração social.

E há duas nucleares. A primeira sublinha o conteúdo positivo do processo de reintegração. Este processo não terá por missão induzir o condenado a assimilar contra a sua vontade os valores e os princípios do ordenamento jurídico a que manifestou, pela actuação criminosa, não aderir. Ao condenado, como a qualquer outra pessoa, reconhece-se o direito de rejeitar esse ideário. É um direito sub-

(:¡) Cf. «Relatório da proposta de lei da nova reforma penal». Revista de Legislação e Jurisprudência, anno 18, 1885, pp. 321 e segs.

(") Sobre esta evolução histórica, cf., por todos, A. M. de Almeida Costa, Passado, Presente e Futuro da Liberdade Condicional no Direito Português, Coimbra, 1989, pp. 9 e segs.

O4) Cf. Ensaio sobre a introdução ao Direito Criminal. Coimbra, 1968. p. 153.

(l') Sobre os efeitos desviantes da pena (self-fulfding-prophecy) e sobre a estigmatização que ela comporta, cf.. por todos, Cabo del Rosal-Boix Reig., «Derechos fundamentales del condenado. Reeducación y reinserción social». Comentários a la Legislación Penal, Derecho Penal y Constitución Edersa, 1982, pp. 219 e segs.

jectivo inerente à cidadania na sociedade pluralista. O que se-pretenderá é oferecer-lhe a possibilidade de ter acesso a essa pedagogia, ou, em alternativa, de aprendera conviviera com os valores que a ordem jurídica preserva, sem pfejuízo de manter as suas próprias concepções,. Utilizando-a clássica e clarificadora dicotomia kantiana entre njçplidade e legalidade, dir-se-á que a reintegração procura conduzir o delinquente no sentido da última,, independentemente de uma efectiva adesão à primeira

Jp outro aspecto pretendido com a reintegração social durante a execução da pena tem carácter negativo. Ten-tar-se-á tanto quanto possível neutralizar os efeitos criminógenos da Sanção, que hoje sobretudo se reportam à pena de prisão (27). Usando uma síntese feliz de Cobo déf Rosal-Boix Reig, dir-se-á que o condenado tem o «direito fundamental de exigir do Estado [...] que as penas privativas da liberdade se cumpram de modo a que nãóse fruste aquele direito a reincorporar-se dignamente na! sociedade uma vez cumprida a pena» (2"). O Estado democrático tem assim em conta a participação da pessoa, do condenado,' no processo sancionatório. '■ -A reintegração social é também importante na determinação da medida da pena. Dé facto, não é credível que um sistema penal oriente a execução da pena com objectivos preventistas^ se eles não estiverem já presentes no momento da definição da própria sanção.

A reforma compatibiliza-se com estes referentes constitucionais da reintegração social, por isso que:

1.° Não a concebendo, como ficou visto, como um bem absoluto, porque como tal colidente com o direito à liberdade e com pressupostos da sociedade aberta, prejudica qualquer ancoramento seu numa «ideologia do tratamento» (Jy), ou mesmo • numa tese de evolução positiva da sociedade exclusivamente .através de um direito «pedagógico» C0);-

2." Pressupõe, contudo, uma valoração positiva da .. ■:• sociedade no seu conjunto, pois só esta legitima um qualquer propósito reintegrador. E por isso . aparta-se das teses segundo as quais a sanção penal.ganha alcance na sociedade presente apenas num .contexto de estratégia de direcciona-mento político para um modelo social alternativo ao vigente.'

- 3.° Não tem subjacente um programa de .assimilação pelo condenado dos valores ético-culturais dominantes;

4.° Reconhece o direito à diferença como único coe-. rente com a sociedade aberta;

(M) Neste sentido, cf., por todos, Abin Eser, que afirma: «A execução da pena náo pode orientar-sé no sentido dc modificar a personalidade ou as convicções do condenado», c conclui: «Na ideia dc resso-cializaçào de adultos não cabe mais do que uma chamada à manutenção da legalidade sem ulteriores exigências morais.» (Resnziatisierung in der Krise? Gedanken zum Sozialisalionsziel.des Strajvollzugs. Festschrift fur Karl Peters. 1974, pp. 509-511.)

.(") O modo de cumprimento da pena de multa e as alternativas que a lei lhe admitia, e, sobretudo, os pressupostos da sua aplicação esbatem fortemente os seus virtuais efeitos criminógenos.

(») Cf. op. cit., p. 222.

(B.) O chamado «tratamento social pedagógico» tem no seu étimo um perfil criminal eminentemente patológico, que hoje começa a ser objecto-de críticas sistemáticas.

(w) Tese desenvolvida por Luderssen, e segundo a qual o direito penal «concreto».será o Direito de uma sociedade capaz de aulocontrolar e dirigir, o seu próprio processo de mudança (Plannungsrecht) (cf. Handbuch zur Rechlswissenscluift. 1972. pp. 474 e segs.)

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5° Neste sentido-, orienta a execução da pena de modo a fornecer ao condenado modelos de comportamentos alternativos ao crime, descomprometidos de fundamentação ética, ou seja, independente da sua aculturação.

II

0 novo regime das penas e das medidas de segurança

A) Introdução

Dos principios-áncoras do sistema penal referenciados no capítulo anterior (culpa, proporcionalidade, vinculação à defesa de bens jurídicos e reintegração social) arrancam as alterações vertidas na reforma sobre a determinação judicial das penas e das medidas de segurança e sobre os pressupostos e os critérios da sua aplicação. Estas alterações obedecem às linhas mestras do modelo penal vertido na Constituição, e que subordina as sanções à legalidade, pessoalidade, igualdade, proporcionalidade, certeza, e determinação; mantêm a destrinça entre penas principais e acessórias, oriunda do Código de 1982; e procuram não desvirtuar a filosofia tolerante sobre a definição dos seus limites máximos, tradicional, no direito português (').

Et) Penas principais 1 — Alterações ao regime da pena dc prisão

Ela continua a ser'a linha dorsal do sistema sancionatório, dando-se por ceno queé insubstituível como resposta à criminalidade mais grave. E de igual modo, opta-se pela permanência da prisão de pequena duração para aqueles outros crimes médios òu de pequena gravidade em que, não produzindo a prisão um óbvio efeito dessocializador sobre o delinquente, exerça um «choque» benéfico ou tenha uma vantajosa eficácia intimídatória.

Os limites mínimo e máximo da prisão são, respectivamente, um mês e 25 anos. A reforma vem estabilizar o limite máximo de 25 anos, já possível no Código de 1982. Assim, enquanto até agora a sua entrada em cena acontecia no genocídio e discriminação racial (artigo 189.*, caso em que o limite máximo de 25 anos integrava a moldura penal), nos crimes de guerra contra civis, feridos, doentes e prisioneiros de guerra (n.° 2 do artigo 190.°, que o permitia por via do mecanismo de agravação da pena) no terrorismo (artigo 289.°, também por agravação) e era ainda possibilitado pelo regime da pena relativamente indeterminada (n.° 2 do artigo 83.°), a reforma aplica-a como limite máximo também da moldura do homicídio qualificado.

Este horizonte mais alargado dos 25 anos de prisão tem repercussões sobre as regras da parte geral que se referem

(') Escreve a este respeito, de modo lapidar, José António Veloso: «O Direito português tem uma tradição de leniência que remonta ao Antigo Regime e o singulariza notavelmente no contexto dos ordenamentos do continente europeu. N3o foram em geral utilizados entre nós os suplícios mais cruéis a que a partir do século xvi se recorreu abundantemente noutros países, mau grado a frequente aplicação — mas essa ainda na menos cruel das formas históricas — da morte pelo fogo, rios crimes contra a religião. Da benigna cultura penal a que se chegara já no período das Ordenações nada testemunha melhor que o assombro com que se gravaram na memória colectiva as terríficas execuções da época pombalina, cujo modelo o despótico ministro teve de ir buscar, por trafica ironia, às admiradas nações civis.» Cf. «Pena criminal» {Enciclopédia Polis. vol. ih, p. 1110.)

à punição do concurso. Assim, nos termos do n.° 2 do artigo 77.°, a pena aplicável a tais casos possuirá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, podendo atingir os 25 anos.

Não é também impunemente que o tipo de homicídio qualificado tenha sido aquele que sofreu um aumento para 25 anos no seu limite máximo. É o mais grave dos crimes contra as pessoas, e a proporcionalidade entre crimes e penas compatível com um Estado constitucional que se ergue sobre o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.° da Constituição da República Portuguesa) passa pela opção de fazer dele um paradigma de que nenhum outro o ultrapasse em desvalor.

O aspecto mais saliente da proposta é o reforço do carácter de ultima ratio cometido à pena de prisão, e que se espelha em várias alterações ao regime vigente.

Assim, nos casos de gravidade menor (prisão até 3 meses) define-se a possibilidade de aplicar novas penas de substituição: para além de conversão da prisão em multa, surgem outras penas não privativas de liberdade, e, no limite, de formas descontínuas de prisão: prisão por dias livres ou semidetenção. Nos casos de prisão até 6 meses consagra-se a possibilidade da sua substituição por multa ou por outras penas não privativas da liberdade.

A prisão por dias livres, provinda do Código de 1982, aparece agora temporalizada de forma a permitir o cumprimento integral da pena curta de prisão aplicada (subiu-se o número de períodos de 15 para 18, c fez-se corresponder a cada período 5 dias de prisão contínua, de modo a perfazer os 90 dias correspondentes ao limite máximo possível).

O carácter de última instância punitiva cometido à pena de prisão até 6 meses influencia, por coerência, os pressupostos da reincidência (artigo 75.°), que passa a depender da comissão de novo crime doloso punido com prisão efectiva superior àquele período, após ter havido lugar a condenação com trânsito em julgado por pena de prisão efectiva também superior a 6 meses. Entende a reforma que a gravidade da reincidência não justifica a aplicação do seu regime àquelas situações em que a multicriminalidade mereça, por razões de prevenção, sanções menos duras. Do mesmo modo, a pena relativamente indeterminada (que a lei aplica a delinquência especialmente perigosa — artigo 83.°) pressupõe a prática pluricriminal de comportamentos a que deverá corresponder prisão efectiva, deixando assim expressamente de fora os casos de suspensão da pena (artigo 50°) ou de aplicação de penas de substituição.

O critério de aplicação de penas substitutivas é claro: o juiz recorrerá a elas obrigatoriamente, a menos que logre demonstrar na sentença que a substituição não satisfaz as exigências de prevenção (:).

Z — A pena dc multa

Reforçada na proposta, a multa faz justiça ao modo como o Projecto Alternativo alemão de 1968. e com ele todo o pensamento da prevenção penal, que hoje se inscreve em significativa legislação europeia, a concebem: uma autêntica arma de arremesso conira as penas privativas da liberdade de curta duração

0) Neste sentido. J. Figueiredo Dias. Actus da Comissão Revisora. p. 19. E é o regime consagrado no artigo 44.°

(•') Na liderança desse objectivo, encontramos, já no final do século passado. Franz Von Liszt na Alemanha e Bonneville de Marsangy em França.

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A proposta mantém-lhe a natureza de pena pública, de dever pessoalíssimo do condenado, por um lado, e determina, por outro, a sua aplicabilidade não só aos crimes de menos importância como à média criminalidade, em prol da maior eficácia do sistema penitenciário, assim mais vocacionado para receber a criminalidade mais grave e sobre ela agir eficazmente.

Que a multa é uma verdadeira pena, acentua-o a virtual substituição por pena de prisão, que ocorrerá sempre que o condenado a não pague e não procure contrapor a esse não pagamento a alternativa, que a lei lhe confere, de prestar trabalho a favor da comunidade (artigos 48." e 49.°).

A aplicabilidade da multa à pequena e média criminalidade resulta de a reforma conter um regime segundo o qual a multa é regra alternativa à pena de prisão até três anos.

Todavia, uma excepção importante deve ser vincada. A média criminalidade contra as pessoas, relativamente à qual se pretende lograr uma função preventiva geral mais acerba, não conhece a multa como pena alternativa. Assim, quanto ao homicídio privilegiado (artigo 133.°), punível apenas com prisão de 1 a 3 anos, ao homicídio a pedido da vítima (artigo 134.°), punível com prisão até 3 anos, ao incitamento ou ajuda ao suicídio, punível com prisão até 3 anos ou de 1 a 5 anos, ao infanticídio (artigo 136.°), punível com prisão de 1 a 5 anos, à exposição ou abandono (artigo 138.°), punível com prisão de \ a 5 anos ou de 2 a 5 anos, ao aborto (artigo 140.°), punível com prisão até 3 anos.

Regime que contrasta com o da propaganda ao suicídio (artigo 139.°), em que a multa é alternativa à pena de prisão até 2 anos; com o das ofensas à integridade física simples (artigo 143.°), punível com prisão até 3 anos ou multa; com o das ofensas à integridade física negligentes (artigo 148.°), punível com prisão até 1 ano ou multa; com participação em rixa (artigo 151°), punível com prisão até

2 anos ou multa; com a coacção (artigo 154.°), punível com prisão até 3 anos ou multa; com as intervenções médico-cirúrgicas (artigo 156.°), puníveis com prisão até

3 anos ou multa; com o sequestro (artigo 158.°), punível com prisão até 3 anos ou multa. Em todos estes casos ter-se-á sopesado quer a menor gravidade dos comportamentos (patente sobretudo nos casos de negligência), quer a novidade criminal que representam e suscita moderação incriminatória (como acontece com a propaganda do suicídio), quer, enfim, a menor sedimentação criminal na realidade portuguesa.

As penas mistas de multa e prisão não têm lugar na reforma, em nome da verificação de uma nítida conflitualidade entre ambas. Na verdade, o condenado a prisão terá regra geral a maior dificuldade em angariar durante o cumprimento os meios que lhe permitam suportar o pagamento de uma multa credível — e só o é aquela que inflija penosidade, ou seja, que se traduza em sacrifício financeiro. No limite, o pagamento da multa constituiria factor de perturbação da reintegração comunitária, o que sobretudo se pretendeu evitar.

A reforma fechou as portas à pena de multa como única pena principal, reconhecendo a perturbação que um passo tão significativo (que, aliás, se regista em crescendo nos direitos penais de outros países europeus) provocaria ainda num país ainda algo refractário à cultura penal da multa.

A proposta tenta minimizar o principal óbice que a multa enfrenta: a sua desigual eficácia em razão do estatuto sócio-económico dos possíveis destinatários. É assim

que o limite máximo do número de dias sobe de 300 para 360, ou mesmo para 900 nos casos de concurso de crimes. E pela mesma razão os montantes aplicáveis sofrem alteração determinante, já que o quantitativo máximo é agora de 100 000$, 10 vezes superior ao que vigora.

O não pagamento da totalidade da multa ou, em alternativa, a não prestação da globalidade do trabalho a que o condenado se predispôs poderá dar origem à única situação em que a reforma admite a redução do limite mínimo da pena de prisão. Assim, a prisão subsidiária corresponde a dois terços dos dias de multa que resultam da condenação, o que pode fazer baixar consideravelmente aquele limite (artigo 49.°).

£7) Penas de substituição

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1 — A multa

À multa concebida como pena alternativa à prisão continua a acrescer, como se viu supra, a multa como pena de substituição de uma pena de prisão até 6 meses (artigo 44.°). O critério de substituição é preventivo de reintegração, como resulta do próprio artigo 44.° (aplica-se «excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes»).

A reforma marca o contraste entre a estrita consideração preventiva para que apela na multa enquanto pena de substituição, e os critérios de aplicação da multa alternativa. Nos termos do artigo 70°, esta deverá prevalecer sobre a prisão quando «realizar de forma adequada e suficiente a finalidade da punição». Reitera deste modo o legislador a importância que atribui à multa alternativa, é certo, mas sem prescindir de todo o leque de finalidades da pena que teve em conta no artigo 40." e com o qual a reforma mantém um compromisso de coerência.

2 — Admoestação

Sanção residual, sofre uma inflexão sensível na proposta, frisando que nem a sua quase inaplicação deixou o legislador insensível aos objectivos que pode cumprir: eficácia preventiva especial em casos de criminalidade que provoca danos muito escassos. O novo artigo 60.° prevê-a como alternativa à multa até 120 dias.

O Código de 1982 concebera-a aplicável a qualquer crime a que em concreto correspondesse prisão não superior a 3 meses, com ou sem multa até ao mesmo limite. A reforma contrapôs-lhe o entendimento de que, por isso que a prisão possui os seus próprios substitutos, não se justifica criar-lhe outros indirectamente.

Contrariamente à filosofia que lhe inere na matriz inspi-radora(o Projecto Alternativo alemão de 1968 — o qual a tornava extensiva a todos os delinquentes primários condenados a prisão inferior a um ano ou a multa de igual duração —, a admoestação não se estende, como se viu, à criminalidade até um ano e admite entrar em cena, em princípio, apenas quando o agente, nos três anos anteriores, rião tiver sido condenado em qualquer pena (n.° 2 do artigo '60.°).

3 — Prestação de trabalho a favor da comunidade

Oriundo do Código de 1982, o trabalho a favor da comunidade ganha nova amplitude, pois aplica-se como pena de substituição da prisão até 1 ano e não apenas, como acontecia antes, até 3 meses (artigo 58.°). E seguramente a pena de substituição que mais grava o pendor

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preventista inerente ao novo regime sancionatório e o n." 5 do artigo 58.° honra bem essa natureza: dependerá sempret.o trabalho comunitário da aceitação do condenado.

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rt , C) Liberdade condicional n

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A reforma clarifica relativamente a este instituto vetusto no direito penal português (surgiu em 1893, com o Decreto de 6 de Junho e o Regulamento de 16 de Novembro, embora fosse já preconizada pelo Projecto dç Código Penal de 186), largamentei influenciado pelo correccionalismo de Roeder e de Krause) o problema sempre suscitado da natureza jurídica.

De facto, não era até agora óbvio ser a liberdade condicional um incidente da execução da pena de prisão ou antes iuma verdadeira medida de segurança, pelo que a considerava a doutrina portadora de natureza híbrida. Contra uma fisionomia inequivocamente punitiva apontava-se-lhe o facto de prescindir do consentimento do condenado e a possibilidade de ultrapassar em duração o tempo de prisão que àquele faltava cumprir (").

A proposta apresenta a liberdade condicional como forma ou incidente de execução da prisão e como meio de socialização do delinquente.

É assim que o consentimento do condenado se afirma como imprescindível à sua concretização, e que ela encontra no limite da pena de prisão o seu próprio limite.

Discutida em profundidade pela Comissão Revisora foi a alternativa de conceder a liberdade condicional a metade ou antes a dois terços do cumprimento de prisão.

No sentido da segunda alternativa militava o argumento de que a praxis da execução penal não costuma ser muito rigorosa na aferição dos seus pressupostos (concretamente, as virtualidades de condução de vida pelo delinquente de acordo com o direito), o que se mostrava favorável a uma maior longevidade da prisão em nome da certeza e da segurança.

A favor da tese da concessão de liberdade condicional a metade da pena de prisão argumentava-se que ela sempre seria fruto de uma valoração autónoma, o que permitiria a sua concessão em prazo inferior, desde que estribada em critério seguro.

Numa primeira leitura, a comissão aceitou o regime dos dois terços, mas na segunda leitura preferiu-lhe á concessão a metade da pena de prisão.

A proposta ministerial não deixou incólume esta solução. Na verdade, a liberdade condicional, concedível em regra a metade da pena de prisão, sê-lo-á a dois terços desde que se trate «de condenação a pena de prisão superior a 5 anos pela prática de crimes contra as pessoas ou de crime de perigo comum» (n.° 4 do artigo 61.°).

E tanto a concessão a metade da pena como a dois terços nos casos referenciados obedece a dois requisitos, qúe são a prognose de reintegração pessoal e a compatibilidade com a defesa da ordem e da paz social. Esta dupla exigência é perfeitamente ajustada ao primeiro caso, mas afigura-se redundante no segundo. Na verdade, a «defesa da ordem e da paz social» não tem uma justificação tão evidente uma vez cumprida mais de metade da pena. A proposta ministerial atendeu à especial gravidade dos

(4) Sobre a liberdade condicional, cf. A. M. de Almeida Cosia, Passado. Presente e Futuro da Liberdade Condicionai no Direito Português, Coimbra, 1989, pp. 50 c segs., c Anabela Miranda Rodrigues. A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1982, pp. 65 e segs.

crimes a que se reporta o n.°4 do artigo 61.°, e isso justificará o critério seguido.

O artigo 62.° vem preencher uma lacuna que se fazia sentir no regime da liberdade condicional em caso de execução sucessiva de várias penas. Estipula que a solução a adoptar é diferenciada para cada caso, ou seja, tendo em conta a natureza de cada crime cometido e a pena que lhe foi aplicada.

O) Penas acessórias

O aspecto mais saliente das modificações introduzidas neste domínio dizem respeito à adequação da fisionomia das sanções previstas ao princípio da proporcionalidade. De facto, a crua pena de demissão exibia uma falta de plasticidade tal que impossibilitava a sua adequação à gravidade concreta do comportamento criminoso. A reforma acaba com esta dificuldade, substituindo-a por «proibição do exercício de função» (artigo 66.°) por período graduável de acordo com a gravidade do facto. Não é de excluir que a proibição do exercício de função assim estruturada constitua o embrião de novas tipologias sancionatórias penais, substitutivas da prisão e aplicáveis a criminalidade não violenta, face à qual o seu grau de eficácia se advinha satisfatório e merece ser avaliado com atenção daqui em diante.

£) Medidas de segurança

A proposta introduz alterações importantes na determinação das modalidades que as medidas de segurança comportam, bem como no regime das já existentes.

A Comissão Revisora enunciara, entre as prioridades neste âmbito, adequar o regime das medidas de segurança ao princípio constitucional da proporcionalidade, A sua concretização implicaria, como veio a acontecer, um esforço de adaptação da gravidade da medida aplicada à perigosidade do agente e à necessidade de defender a sociedade da prática de novos factos ilícitos especialmente graves.

A consequência mais importante deste objectivo será a determinação dos limites máximos das medidas de segurança privativas de liberdade a inimputáveis perigosos e potenciais reincidentes.

Assim, nos termos da proposta, o internamento não pode exceder o limite máximo da pena aplicável a facto da mesma natureza. E uma modificação importante do regime em vigor, o qual propende para uma regra de indeterminação latente. De facto, o actual artigo 92.° define como limite do internamento um acréscimo de quatro anos ao limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime praticado pelo inimputável. E, logo a seguir, excepciona deste tecto de mais quatro anos os casos em que uma gravidade superlativa desaconselha «o risco da libertação», sem curar detfazer o recorte desse núcleo de situações.

No seio da Comissão Revisora, o Prof. Figueiredo Dias equacionara os valores a atender na decisão legal, e que eram os da liberdade pessoal do inimputável e as necessidades de defesa social. E optou por estabelecer um limite máximo para o primeiro internamento, sujeito, todavia, a prorrogações por períodos de dois anos, verificados com rigor os pressupostos da perigosidade (artigo, 92.° da proposta).

,A liberdade para prova resolve um problema com que q. regime da actual liberdade experimental se defronta: a

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falta de resposta para os casos em que o agente colocado em liberdade condicional demonstra, pelo seu comporta-^ mento, que os objectivos da medida de segurança são inoperantes e se exige, afinal, internamento. Nos termos do artigo 95.° da proposta, a liberdade para prova poderá ser revogada nesses casos.

Por último, consagra a reforma o chamado «sistema de vicariato», dando acolhimento à doutrina que a Comissão Revisora preconiza e é dominante. Assim, quando aplicada cumulativamente pena e medida de segurança a um agente, é a segunda que tem prioridade na execução, a benefício da ressocialização; a duração da primeira é tida em conta no cômputo global (n.° 1 do artigo 99.°). Trata-se daqueles casos em que o agente pratica um facto,em situação de inimputabilidade mas é já imputável quanto a outro ou outros crimes cometidos. -,v..-_

A reforma introduz uma secção iv, relativa a novas modalidades de medidas de segurança, desta feita não priva-; tivas de liberdade e que têm por destinatários.também agentes imputáveis, cujo comportamento revelou, na 'prática de certos factos criminosos, uma perigosidade específica. O primeiro caso surge no novo artigo 100.°, ,e refere-se à interdição de actividades sempre que alguém seja «condenado por crime cometido com grave abuso de profissão, comércio ou indústria que exerça, ou com gròssei-; ra violação dos deveres inerentes» (artigo 100.°). O abuso pressupõe um aproveitamento voluntário, premeditado.de uma certa actividade profissional para cometer factos puníveis. Não bastará, assim, a verificação de um qualquer comportamento infractor dos deveres inerentes à profissão do seu autor, se for praticado fora do exercício da mesma (3) (como é o caso, profusamente referido pela.doutrina alemã, de um vendedor ambulante de produtos farmacêuti-. cos que aproveita as suas viagens de negócios para realizar abortos, puníveis, já que — alegou-se — o aborto assim realizado não tem conexão intrínseca com a sua actividade profissional). • • ■ -

Os casos mais importantes, porque se admite que correspondam a exigências absolutas da eficácia político-crimi-nal, são a cassação da licença de condução de veículo motorizado (artigo 101.°) e a interdição da concessão de licença (artigo 102.°). Reporta-se o primeiro á situações em que tenha ocorrido condução por crime praticado na condução de veículo motorizado ou com ela relacionado, «ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem». A este regime vêm equiparadas, à semer lhança do que acontece para a interdição de actividades, as situações de absolvição com fundamento em inimputabilidade.

O fim da medida é, obviamente, a defesa da segurança do tráfego, procurando-se pô-lo em guarda face a quem não tenha as faculdades físicas, psíquicas ou caracterológicas mínimas para a condução. Da dificuldade de tipificar as múltiplas situações em que. tal possa sucedei, dá conta o n.°2 do artigo 101.° da proposta, quein-troduz a técnica dos exemplos — padrão relativamente aos tipos legais cuja prática é «susceptível de revelar à inaptidão».

A cassação implicará ainda a determinação judicial de interdição de concessão, a qual se aplicará também aos condutores não titulares de uma licença (artigo 102.°). Esta última explicitação normativa vem abranger o infractor que não caia nas malhas duma cassação de licença de condução. ;

(') Cf. lesctecV;. Derecho Penal. Parte General. p:. 1107.; r-

O ajustamento dá medida ao princípio dá-proporcionalidade resulta do artigo 100." da proposta: o período de interdição de-actividades'ou de concessão de licença deicon-dução será fixado entre l"e 5 anos e só pode ser prorrogada até 3 anos Seo Tribunal, findo o prazo fixado na sentença; considerar-que o período cumprido não foi suficiente pára remover ò perigo. - -1

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• ' >' Principais alterações na parte especial x

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1 — Introdução

A,inovação mais. marcante que a..parté' especial:(livro 11), regista sedia-sejno capítulo dos crimes contra pessoas (título 1) e desdobrarse em dois aspectos: aumento "abso-lutoj e .relativo das dosimetrías dos tipos mais significativos e inserção de uma nova ^secção; nos;crimes contra a liberdade; na .qual se incluem todos os chamados crimes sexuais (denominados'agora;«crimes contra a liberdade sexual», e .integrados na secção -j do capítulo :v). •

Aumento absolutoLe^relativo: das dosimetrías penais. É aqui que surge o-tipo-dotado:da moldura mais gravosa que o Código contém a convtnaior, virtualidade de aplica-ção. O crime de homicídio-.qualificado, a que antes se atribuía um limite máximo de 20 anos, de prisão, vê-o subir para.25ianos.' Este-aspecto, que consubstancia um alargamento da aplicação'da pena de 25..anos a que o n.°2 do artigo 41.° abre a porta, resulta da.lógica incriminatória que inspira à'reforma. Sendo o homicídio qualificado o atentado.por excelência cçntráôjser humano, aplicar-lhe o regime anais.¡oneroso,é..coerente com .o. propósito de tomar o princípio da dignidade da pessoa: humana como referente de toda a construção penal. Menos se compreendia que fossem, quaisquer ou tros, crimes a transportar sozinhos õ ónus .da-gravidade suprema,-ainda que eles fossem, ó atentado genocídico contra a.humanidade, a discriminação racial, os: crimes de guerra contra instituições humanitárias óu- o terrorismo, como acontecia desde o Código. Penal dé, 1982 (artigos 189.°, 190.°, n.° 2, e 289.°).

Por outro lado, verificam-se subidas importantes nos limites máximos da generalidade dos tipos atentatórios da vida, da integridade físic&eida liberdade. As ofensas.à integridade; física: simples sobem o. tecto da pena de prisão de 2para.3:anos:(artigo:J'43.°);;as ofensas graves passam esse tecto de Separa, 10 anos (artigo 144.°); a agravação pela causação da. morte sobe de 8 para 12 anos [artigo 145.°, n.° I, alínea ¿7)]; a ofensa à integridade física por negligência passa.o limite máximo de 6 meses para um ano (artigo 148.?);. os mausrtratos:ou sobrecarga de menores, de incapazes'OÚdo/cônjuge passa.de 3 para 5 anos e de

4 para. 8 òu. mesmo...10-anos; havendo agravação pelo resultado (artigo 152.°); a-epacção grave altera de 3 para

5 anos (artigo 155.°); o sequestro sobe de 2 para 3 anos (artigo 158.°); a violação agrava de 8 para 10 anos (artigo.164.°),- . .„

A leitura-destas alterações esclarece melhor os objectivos1 dó legislador quando conjugada com o regime dosimétriçò dos crimes .contra o' património, que agora se infra-qrdena de modo inequívoco. A reforma assumiu de modo. pleno a supremacia dos valores pessoais e rejeitou a eventual oportunidade de, por motivos de prevenção geral, agravar às molduras .doutros crimes, ao arrepio do princípio dai proporcionalidade, como acontecera em 1982.

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;-3—Crimes contra a liberdade sexual -

; Inserção dos crimes sexuais no núcleo dos crimes contra a liberdade, por outra banda, ? :. De. um capítulo titulado «Crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida em comunidade», inserido no título ni da parte especial («Crimes contra.os valores .e interesses da vida em sociedade»), que desaparece, passam, como se disse, para a sede dos crimes contra a liberdade. Muito longe de corresponder a simples formalidade, a alteração tem subjacente uma notável mutação da filosofia jurídica: sobre esta matéria e possui, portanto, implicações na interpretação de todos os tipos penais aqui contidos. - r V -..

A ideia foi depurar os chamados crimes sexuais de referências éticas de: que oi direito penal deve ser alheio e tomar apenas os comportamentos que inequivocamente agridem a chamada.«liberdade sexual». "

Sublinham-se as orientações político-crimináis a que a alteração legislativa obedece.- ■' i . ~;

. Em primeiro lugar, o princípio de que a uma sociedade plural compete assumir a sexualidadecomo manifestação da auto-realização pessoal, e eximir-se por isso de favorecer valorações globais, a seu respeito, antes procurando fomentar a expressão de comportamentos que manifestem opções díspares sobre- esta matéria.

Em segundo lugar — e é esta uma consequência do primeiro aspecto apontado-^-, a consideração de que um com^ portamento só deve .ser considerado criminalmente des valioso nesta sede quando se entenda que a uberdade pessoal de alguém foi lesada. '.- :. •■/. . ' - • »

Em terceiro fugairum.entendimento da liberdade pes^ soai relevante para este efeito que se densifica em: termos muito estritos. Serão atentórias dela as condutas

Deste modo, toma-se a ideia de que o direito penal se limitará à protecção de ataques contra a liberdade sexual quando seja utilizada força, coacção grave ou se, aproveitem situações de menor defesa ou ausência dela no caso de vítimas adultas; e quando atente.contra o livre desenvolvimento da personalidade, tratando-se de menores. ... ' . . '. .. ' '

.Assim se explica que os actos exibicionistas (artigo 171.° da proposta) impliquem agora que outra pessoa seja importunada, e não mero «escândalo» ou. ofensa ao «sentimento geral de pudor ou de moralidade sexual», como acontece por via do artigo 212.°

(') Este reconhecimento e correspectivo respeito pela liberdade e capacidade de decisão do adulto tem sede constitucional no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à liberdade. E ocra a relativa vagueza da norma constitucional obsta.a que se lhe costumem imputar consequências importantes nesta sede. Escreve J. L. Diez Ripoltes sobre a regra congénere da Constituição Espanhola: «A sociedade pluralista nao se desmorona por nela conviverem concepções cépticas, utilitarias ou lúdicas da sexualidade.— nao precisa de uma valoração global da sexualidade para a sua subsistência. Deve adoptar uma atitude neutra perante à conduta sexual no seu conjunto,'portanto.» (Cf. El Derecho Penal ante el Sexo, Bàrcelona,'l98l, p. 137.) . / .', *:',•■"

Por outro lado, a protecção dos menores acontecerá quando os ac^os sexuais ponham em perigo o seu desenvolvimento. Será o caso do abuso sexual de crianças (artigo 172.°) ou dos comportamentos homossexuais com menores (artigo 176.°)..

Dir-se-á nesta situação dos menores que a imaturidade da vítima, a sua menor capacidade para se autodeterminar, releva nesta sede, sem que com esta relevância se pretenda orientar-lhe a evolução da personalidade de acordo com valorações ou necessidades sociais determinadas, mas antes garantir-lhe uma protecção de modo tal que seja o jovem a fixar os seus próprios padrões e valores, à medida que caminhe para a maturidade.

■ Todavia, é sabido que o horizonte da incriminação de comportamentos sexuais com menores não consegue desprender-se por completo de motivações éticas. Em boa verdade, nada garante à partida que um menor se desvie do plano de vida e da construção de personalidade para que se inclina pelo facto de ser sujeito de prática sexual homossexual ou de ser seduzido a ter conduta heterossexual (2).

Será mesmo.o direito penal sexual aquele que menos pode resistir a evidenciar uma inexorável conflituaüdade dè-critérios e de opções, aquele em que a separação entre a zona criminal ea que não merece tal relevo é mais difícil. O espartilho do «bem jurídico», tão eficaz e prestável noutras sedes, afrouxa aqui um tanto. Pois não é tão indiscutível proteger a vida, a integridade física ou o património como será decidir da incriminação da pornografia (delimitando com rigor o conceito) ou mesmo da prostituição. O bem jurídico é aqui mais volátil, e por isso se reconduz'muitas vezes a uma não bem definida «moral pública» ou a um enigmático «sentimento geral de decência» sempre susceptíveis de comportar vários conteúdos. E acresce a esta teia de significados a circunsiância de ser o-mundo da moral sexual um mundo de tendencial insiheeridade, uma terra com zonas de penumbra que não é simples, nem porventura possível, identificar em muitos dos seus .aspectos.

- Daí a concessão a uma certa irracionalidade nas opções incriminatórias, postergando de uma ideal «liberdade de determinação»,.em favor do respeito por sentimentos e valores sociais difusos — concessão a que muitas vezes são sensíveis as leis, e que a reforma assumidamente faz.

Deste modo, raramente ela se arreda em absoluto de conteúdos morais com alguma relevância social. O corte radical com tipificações correspondentes à protecção de valores e costumes durante muito tempo assumidos por boa parte' da consciência colectiva é, como se disse, muito difícil, e disso mesmo faz prova a subsistência na propos-tade dois resquícios do direito penal sexual «antigo».

A demonstração mais evidente de que isso acontece seta a tipificação do estupro, que no entanto sofre na proposta um .importante esbatimento «ético». O estupro (artigo 174.°) aparece como crime ambivalente e a sedução referida no tipo não se concretiza em «promessa séria de casamento» — como acontecia no Código de 1982 (artigo 204.°), que assim integrava uma alusão à provec^ãa da

(5).Paul Bockelmann, pioneiro da dogmatização da parte especial, é peremptório a este respeito: falar em danos ao desenvolvimento do jovem é pôr em causa todo o processo educativo, argumenta. o dano sò existe quando o resultado é digno de reprovação, e essa reprovação, desconhecem-na as normas incriminadoras. e por aqui se conclui que a lei penal não quer apenas garantir a liberdade sexual mas também orientar para comportamentos não marginais (cf. Ztir Reform des Sexualsirafreclils Mäurach Festschrift. 1972, pp. 412-414).

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virgindade feminina ou, pelo menos, a uma certa atitude» sexual antes do casamento. Mas, apesar destas depurações; o tipo do estupro não deixa de provocar alguma :perplexi-dade. Não é compreensível que se incrimine a-sedução com aproveitamento de inexperiência do menor quando; o estuprador tenha idade ou nível intelectual aproximado .da idade ou do nível intelectual da vítima. E é também injustificável, de acordo com o critério da protecção da inexperiência, que apenas a cópula integre o tipo.e não já outros comportamentos (como será o caso do coito oral e anal ou outro «acto sexual de relevo», para chamar a depor a terminologia usada pela reforma noutras sedes de tipos sexuais).

Aliás, a própria Comissão Revisora assumiu a manutenção do tipo do estupro tão-só para casos muito residuais e reconheceu a sua virtual inaplicabilidade (3). • • v? •"•

Nas mesmas águas «eticizantes» parece navegfcr a «fraude sexual» na fórmula originária (artigo 167.°). Pretendia-se com ela incriminar a indução da vítima em erro sobre a pessoa ou qualidades do sujeito com quem, por esse facto, aceitava manter relações sexuais, e o erro reportava-se, nos termos vertidos no próprio tipo,'à situação matrimonial. Essa referência desapareceu depois da revisão ministerial. Clarificou-se então que não é da protecção da honra da vítima, enquanto objecto de especial lesão por erro quanto à pessoa do cônjuge, que -se trata', mas sim de qualquer espécie de fraude por indução erri erro sobre a pessoa (quem quer que seja) .com quem-sé mantenham relações sexuais e, deste modo, provocação de liberdade sexual. Com esta precisão a norma descom-promete-se de intenções tutelares do matrimónio oú'(áin-; da que remotamente) da honra matrimonial feminina; e' abre as portas à aplicação em casos verdadeiramente pertinentes: provocação de erro sobre a' identidade do parceiro-sexual, o que é sempre um modo de restringir à liberdade de determinação. No entanto, o horizonte casuístico que lhe deu vida é por de mais demonstrativo de' uma- índole protectora de certas instituições; ou de pessoas enquanto nelas integradas. " ■>' - <

É todavia de esperar que a nova projecção do'tipo venha a fazer o seu caminho, em detrimento das aplicações tradicionais agora banidas. ' • :

Profundamente inovadora na reforma é a xònfiguração de um tipo de coacção sexual (artigo 163.°) que se;rcon-trapõe à violação (artigo 164.°). A coacção'-sexual"envolve todos os casos de constrangimento à' prática de -«acto sexual de relevo», entendendo-se que o constrangimento implica violência, ameaça grave ou mesmo colocação da vítima em estado de inconsciência. No recurso-aò conceito normativo de «acto sexual de relevo» —que, aliás, se comunica ao abuso sexual de pessoa incapaz de'resistên-cia (artigo 165°), ao tráfico de pessoas (artigo 169."),"ao lenocínio (artigo 170.°), ao abuso sexual de crianças (artigo 172.°), aos actos homossexuais com menores (artigo1 175.°) e ao lenocínio de menor (artigo 176°)—reside'© maior desafio que o legislador propõe. ■! ""•'••

A fórmula tem o grande mérito de-substituir ó anterior «atentado ao pudor» perpassado de sugestões'eticizantes. Em todo o caso são de sublinhar-lhe dificuldades interpretativas, designadamente na concretização-quando

(') O desaparecimento do requisito «promessa séria de.casamento» texviUa.

esteja em causa o tipo de. coacção: sexual. Se o limiar de «relevância» poderá'determinár-se com' menos dificuldade com base nos padrõèsde. comportamento socialmente vigentes, o mesmo não sucede com grande linearidade na representação. do^Vacto sexuab> para esie efeito.-.O. ponto está em saber quais os actos violentos que atinjam o sexo da.vítimaqueestão.aqui.considerados. Os autores da reforma inclinanvse a. entender

'A preservação do tipo de violação face à coacção se^ xual,- num tempo.em que parte da doutrina propende para englobar numa mesma fattispecie as formas de violência, sexual previstas nestes dois casos, obedeceu a uma intenção ..polítice*crimirtal.bem. vincada..Não colhe a ideia de corresponder a. manutenção, da violação a.um processo estigmatizador.de um dos sexos-(4) (o feminino, assim vitimizado, pois que as .estatísticas, mostram que é o principal .destinatário). A verdade é que a .violação, tendencial e avassaladoramenle'praticada por homem, pode ainda ocorrer nos termos da lei quando a.vítima seja.constrangida pelo autor, a ter cópula: «com terceiro», o que-.abre a porta à autoria do crime por uma mulher. Optou-se por autonomizar, a violaçãovtendo sobretudo em conta o peso dó. risco de gravidez nas representações comunitárias.

À proposta ministerial coube alargar o preceito, equiparando à cópula o coi to anal. Não é inequívoco que se tra-tede.inclusão/deste no tipo.da violação, ou de mera equiparação para efeitos de punibilidade. Mas é um passo importante no sentido'.de fornecer, o mesmo7 regime sancionatório a comportamentos cujo desvalor se identifica:

Significativa é a inclusão^ entre :os pressupostos de .agravação da pena dos ^crimes contra-a liberdade de determinação -sexual,-.da gravidez onda transmissão..da.síndroma-de.imunodeficiência adquirida.' A- reforma tipificou assim como, factores, de; agravação casos inequívocos de provocação, de. dano- especialmente grave. . De sublinhar é também-a.opçãode não tipificar o assédio sexual, .sendo

2—'Crimea contra'a vida o a integridade física

'Ficou já dito'que há uma alteração' inîportahté'no tecto supèrio^da* molâurá^do?hbniÍcí9io' qualificado!'Mas outro aspecto-rêlevà-'nó^quVíócà às* dosimetrías qúésè aplicam aos tipos mais -relevantes'por-'qué os crimes contra a vida sé distribuemíí'hómieídio privilegiado' (artigo 133.-°), simples (artigo' l3H°)è qüalifiSadb (artigo 132°).

Na verdade, a'Coníissab Revisora sugerira pena de prisão'de'I a'5'anòs aò'primeiro,'de 5 à 15 anos ao segundo ë dê? 12-'à 25 ;ánosJao terceiro! • '•" •

...... -.? • ..;......-.' / ..,.'■ ; ' ■ . ,-..

(4) No seio da Comissão Revisora. Ferreira Ramos defendeu o tipo de violação nos seguintes termos: abrangendo, para além da cópula, outros actos'sexuats equiparados'(como o sexo anale o sexo oral)-, e tendo por sujeito passivo.e activo qualquer dos .sexos: Também ó novo Código Penal francês, na esteira de legislação avulsa já antes em vigor na\ quele-pais, considera agora.no artigo.-2.12.° que será violação «qualquer forma de penetração». '' Ov '• .".':!: ' , < •

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A ideia fora não criar hiato entre o' limite máximo do homicídio privilegiado e o limite mínimo do homicídio simples; o que melhor quadrava ao princípio da proporcionalidade. •; .....

O sistema veio a mudar pelo receio de que de uma tal opção se retirasse o propósito legislativo de infra--incríminar o homicídio simples, cujo limite mínimo era de 8 anos. Os 8 anos mantêm-se por essa razão. Realça--se neste domínio a introdução da técnica dos exemplos padrão no tipo de ofensa à integridade física qualificada (artigo 146."). A reforma transporta para este caso todas as circunstâncias previstas para o homicídio qualificado (artigo 132.°), o que significa que elas'ou outras com as mesmas características serão agravadoras da moldura penal das ofensas à integridade' física, desde que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente.

A técnica dos exemplos padrão, que a jurisprudência vem considerando compatível com o princípio da legalidade, sempre provocou resistências em vários sectores da doutrina. A reforma emite, através-deste seu reforço, um juízo de favorabilidade que é tanto mais importante quanto a técnica em causa surge no domínio dos crimes contra as pessoas. . i . ,......

Funcionarão assim estes exemplos padrão como'indicia-, dores da censurabilidade acrescida ou da perversidade do comportamento — uma espécie de presunção- ilidível.

Curiosamente a reforma, que em muitos dos seus traços mais vincados se aproxima do Projecto Alternativo alemão, prescinde aqui'da doutrina que ele adoptou. De facto, o Projecto Alternativo rebela-se contra a existência da figura, sendo este mais um dos pontos de discordância' com a lei penal alemã-em vigor. Segundo aquele, «onde o legislador não é capaz de determinar de forma inequívoca ilícito agravado ou culpa agravada através de tipos qualificados, também não deve'entregar aò juiz a cláusula geral dos casos especialmente graves, quer a esclareça ou não através de exemplos da regra sem importância» (5). >

O que aqui importa realçar é a inegável sintonia entre a técnica em questão e o princípio de legalidade. As circunstâncias que integram os exemplos padrão da reforma não são elementos do tipo, mias antes da culpa. É em relação a esta que o princípio da máxima determinação legal afrouxa — o que poderá ser discutível como solução, mas não indicia inconstitucionalidade. Depois de obedecer à legalidade da ilicitude, sucede que «o legislador renunciou expressamente a uma subordinação da matéria da culpa ao princípio da legalidade», como bem sublinha Maria Fernanda Palma (*).'

Da culpa, ,e apenas, dela; se,trata: As palavras usadas pela reforma não são inocentes: arredou-seO; termo «perigosidade» de que outras legislações lançam mão e fala-se antes, como ficou dito, em «censurabilidade» ou «perversidade», fazendo, transparecer que não é ida valoração objectiva do comportamento que se trata, roas do posicionamentado^genteface.a ele (7). '

Ño âmbito dos crimes contra a vida, regista-se que fica intocado o prazo dentro do.qual a interrupção voluntária da gravidez não é punível. A Comissão Revisora optara pelo seu alargamento até 22 semanas, no pressuposto de

(*) Cf. Altemativ-Entwurf Eines Strafgesetzbuches, 1966. p. IU.>. .

(') Cf. «O homicidio qualificado nó novo Código Penal português». Revista do Ministério Público, ànó -4.*, vol. 15,.p. 46. '.<:':'. i .

C) Neste sentido, Teresa Serra, in Homicídio Qualificado — Tipo de Culpa e Medida da Pena. Coimbra, 1990, p. 62. ... • -. ■

que algumas das anomalias do feto que justificam a prática de aborto (por fazerem prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou mal formação) só podem ser detectadas nessa altura. O facto de a proposta reverter ao prazo legal já previsto não se deve a qualquer ponderação dos bens jurídicos a ter em conta nesta sede (designadamente, o acréscimo de perigo para a saúde da mãe, sobre o qual não existe consenso nos meios científicos); A razão foi não tocar a matéria sem discussão alargada que estritamente sobre ela incida.

4 — Crimes contra o património

, É; sabido que da agenda da Comissão Revisora não constava nenhum propósito de significativa reformulação neste.domínio. Ainda assim, verificam-se alterações importantes que se reportam à nova concepção das dosi-metrias penais, à reformulação de tipos de crime nucleares neste âmbito e à introdução de figuras típicas novas.

As modificações que as dosimetrias registam têm proveniência em distintas preocupações. Tratou-se, por um lado, de bem sublinhar a menor desvalia dos crimes contra o património perante os tipos de crime contra as pessoas, que o Código de 1982 em parte obnubila. Critérios de oportunidade, a saber, o aumento da criminalidade patrimonial que por então se registou, deram origem a subidas nas molduras penais que traduziram em distorção perniciosa do princípio da proporcionalidade. A reforma, como foi dito, recentra a gravidade dos crimes no primado da pessoa humana, o que provoca mutação no significado relativo das sanções aplicadas aos crimes contra o património. Eles conhecem agora mais hipóteses de aplicação da pena de multa como alternativa à prisão [assim: artigos 203." (furto); 204.°, n.° 1 (furto qualificado); 205° (abuso de confiança); 217.° (burla); 218.° (burla qualificada); 219.°; ^223.° (extorsão de documento); 225.° (abuso de cartão de crédito); 226.° (usura)]. Opera-se também uma subida nos mínimos de crimes que revestem sensível gravidade, como é o caso do roubo (artigo 210.°), cuja pena mínima passa de 2 para 3 anos nos casos mais graves (artigo 210.°, n.° 2).

. Esta subida tem a ver com duas circunstâncias. Em primeiro lugar, a absorção pelo tipo simples de muitas situações antes integráveis no tipo qualificado, absorção que aliás perpassa toda a reforma. Em segundo lugar, a consciência de que a subida dos mínimos é tendencialmente infra-inçriminatória, pois faz operar o tipo criminal apenas naqueles casos que indiciam gravidade compatível com uma pena de dimensão mais elevada.

Na estruturação típica, o furto qualificado regista alteração de monta. Surgem agora duas formas de qualificação do,crime. .Uma, em termos de modificação do úpo teg&i de crime (agravação ope legis) que se sedia no n.° t do artigo 204.°.A outra, que depende da verificação de um conjunto de circunstâncias, acompanhada da concretização de uma cláusula geral (n.° 2 do artigo 204.°).

.A determinação do valor da coisa furtada opera-se também, diferentemente. Depois de uma proposta inicial de aproximar as definições de «valor elevado», «va^oi çraws»-deravelmente elevado» à noção de alçada, e da definição de «valor diminuto» ao salário mínimo nacional, acabou por vingar outro critério. Adoptou-se a utilização da unidade de conta processual, em nome da uniformidade da linguagem do direito penal adjectivo e substantivo (artigo 202.°).

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5 — Crimes contra a ecologia

Os novos tipos que a reforma consagra neste domínio foram justificados por razões de adequação social e inequívoca dignidade penal. A reforma estruturou um crime de dano (artigo 219°) e um crime de perigo comum (artigo 280.°).

A estes acrescentou a revisão ministerial o tipo de danos contra a natureza (artigo 278.°), cuja vocação é mais genérica e reforma o princípio de que a matéria tem dignidade bastante para estar incluída no diploma penal nuclear.

A relevância criminal de certos atentados contra o ambiente vinha sendo sustentada por Figueiredo Dias desde há muito. «A intervenção do direito penal na manutenção e na restauração de um ambiente sadio justifica-se precisamente à luz da específica função de protecção de bens jurídicos que a este ramo de direito compete», sublinhava em estudo dedicado ao tema em 1978 (8).

O que já não era pacífica era toda a ordem de problemas que emergiam dessa criminalização, a saber, lugar de inserção dos novos tipos penais e a configuração jurídica que deveriam assumir.

Era indiscutível para Figueiredo Dias que a melhor solução seria constarem os crimes ecológicos de legislação extravagante. Não redundava tal opção em menos consideração pelos tipos a criar, e constituiria um factor de ajustamento à sua natureza e ao regime legal que melhor lhes competia.

Dava-se por adquirido que a legislação penal não codificada não sofria prejuízo de relevância e se limitava a afei-çoar-se a realidades carentes de resposta distinta dá que o direito penal codificado pode oferecer.

Não sofria de relevância: um crime grave poderia muito bem ter assento próprio fora dos muros do Código Penal, sem que isso significasse esbatimento do seu desvalor real.

Afeiçoava-se melhor assim o regime aplicável às exigências dos tipos em questão. Isto evidenciava-se principalmente em dois planos, que eram o da eventual responsabilidade de pessoas colectivas por crimes ecológicos e o da natureza da sanção penal que aos mesmos competia.

Sendo regra vigente em larga mancha de códigos penais o carácter pessoal da responsabilidade, e convindo ao bom êxito da incriminação de práticas antiecológicas a responsabilização das pessoas colectivas, a quem se deve uma muito significativa parte de tais condutas, era a legislação não codificada a que melhor se afeiçoava ao cumprimento desse objectivo (*).

Por outro lado, a vantagem em estruturar sanções penais estreitamente ajustadas à índole dos crimes ecológicos deporia no sentido da sua inclusão em leis avulsas, que muito bem estariam em condições de, do mesmo passo, ser aplicáveis a pessoas colectivas.

No plano dogmático,' pronunciava-se a doutrina portuguesa pelo não entendimento dos crimes ecológicos como crimes de dano, em razão da tendencial inoperância daí decorrente: facultando uma'sua aplicação excessivamente frequente e difusa, perderiam a requerida oportunidade e acabariam por cair em descrédito (l0).'

(*) Cf. «Sobre o papel do direito penal na protecção do ambiente», Revista de Direito e Economia, ano iv, n.° I, Janeiro-Junho de 1978, p. 10.

(') «Integrar os delitos ecológicos nos códigos penais significaria pois, as mais das vezes, conceder um tratamento privilegiado às pessoas colectivas perante as pessoas individuais, tanto mais injustificado quanto — como se disse— é sem dúvida entre aquelas que hoje se depara com as maiores responsabilidades pela deterioração ambiental.» (Cf. Jorge de Figueiredo Dias, «Sobre o papel do direito penal...», cit.'. pp.. 12 e 13.)

(10) Cf. Vv{,vie'\teó.o Dias, op. cit.. p. 16.

Enquanto crimes de perigo comum, por sua banda, fale-cer-lhes-ia a susceptibilidade de ser produzida pcó.va de criação da ameaça, caso fossem de perigo concretos e colidiriam possivelmente com o princípio da culpa, rjra^outra hipótese de se tratar de crimes em perigo abstractp.

Por isso, defendia Figueiredo Dias a sua construção como «delitos de desobediência à entidade qsjtadual encarregada de fiscalizar os agentes poluentes c pompe-lente para lhes conceder autorizações ou lhes impor limitações ou proibições de actividade» ("). '].'

Catorze anos volvidos, a reforma lança mão de várias ideias-força contidas nesta reflexão do presidente da Comissão Revisora do Código, mas cura de proceder a uma adaptação que o decurso do tempo tornara inevitável.

Os crimes ecológicos entram no Código Penal, num gesto de importante simbolismo político-legislativo que Figueiredo Dias, ele próprio, explicaria por rápidas e elucidativas palavras: clamor social e matéria cuja dignidade penal já não se contesta (l2). A sedimentação do desvalor dos comportamentos' antiecológicos é um dado adquirido em termos sócio-jurídicos, e à reforma não repugnou trazê-los para o seio do repositório das matérias criminais mais estabilizadas.

São-lhes cometidas sanções clássicas: prisão e multa, que atingem montantes de relevo significativo: prisão até 3 anos ou multa até 600 dias para o crime doloso de poluição (n.° 1 do artigo 273.°) e prisão até I ano ou multa para a poluição negligente com criação negligente de perigo (n.° 2 do artigo 273.°); I a 8 anos de prisão para a poluição com perigo comum negligente [alínea a) do artigo 274.°] e prisão até 5 anos para conduta dolosa com criação negligente de perigo [alínea b) do artigo 274.°].

A reforma não é insensível à responsabilização das pessoas colectivas, embora prefira remetê-la para legislação própria.

Dos novos crimes ecológicos é justo dizer que constituem o primeiro tentame jurídico de formalizar a já bem reconhecida dignidade penal da matéria. Isso acontece de forma bastante próxima daquela que o Projecto Alternativo alemão preconizou. E se é justa a observação de que o arrojo da reforma não foi ainda muito, uma vez que o referente «desobediência» condiciona parte substancial da incriminação, deverá a crítica possível ser temperada pela consideração de que os primeiros passos incriminatórios requerem por princípio um esbatimento ofensivo, em nome da aculturação do desvalor que pretendem frisar o qual demanda no entanto adequada pedagogia, e pedagogia que deverá ser também legislativa.

De todo o modo, encontra satisfação acrescida por esta via penal o desiderato do artigo 66° da Constituição ao construir o direito à protecção do ambiente nos termos enfáticos com que opera.

Parecer

A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades, e Garantias entende, assim, que o texto da proposta de lei n.° 92/VI reúne todas as condições constitucionais e legais-para subir a Plenário.

Palácio de São Bento, 28 de Junho de 1994. — A Deputada Relatora, Maria Margarida Silva Pereira. — O Deputado Presidente, Guilherme Silva.

A DivisAo de Redacção e Apoio Audiovisual.

(") Idem, op. cit.. p. 18.

O2) Cf. Código Penal, fíelas e Projecto da Comissão Revisora, cit.. p. 359.

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