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Quarta-feira, 9 de setembro de 2015 II Série-A — Número 184
XII LEGISLATURA 4.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2014-2015)
S U M Á R I O
Decretos (n.os 369 e 426/XII): N.º 426/XII [Regime jurídico do Sistema de Informações da N.º 369/XII [Enriquecimento injustificado (Trigésima sétima República Portuguesa (revoga as Leis n.os 30/84, de 5 de alteração ao Código Penal, sétima alteração à Lei n.º 34/87, setembro, e 9/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis de 16 de julho, terceira alteração à Lei n.º 93/99, de 14 de n.os 225/85, de 4 de julho, e 254/95, de 30 de setembro)]: julho, vigésima quarta alteração ao Código de Processo — Mensagem do Presidente da República sobre a devolução Penal, quinta alteração à Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, sem promulgação do Decreto. sexta alteração à Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, terceira alteração à Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, quarta Resoluções: alteração à Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, e sexta alteração
— Deslocação do Presidente da República aos Estados à Lei n.º 4/83, de 2 de abril)]:
Unidos da América. — Mensagem do Presidente da República sobre a devolução sem promulgação do Decreto. — Deslocação do Presidente da República a Roma.
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DECRETO N.º 369/XII
[ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO (TRIGÉSIMA SÉTIMA ALTERAÇÃO AO CÓDIGO PENAL,
SÉTIMA ALTERAÇÃO À LEI N.º 34/87, DE 16 DE JULHO, TERCEIRA ALTERAÇÃO À LEI N.º 93/99, DE 14
DE JULHO, VIGÉSIMA QUARTA ALTERAÇÃO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, QUINTA
ALTERAÇÃO À LEI N.º 36/94, DE 29 DE SETEMBRO, SEXTA ALTERAÇÃO À LEI N.º 5/2002, DE 11 DE
JANEIRO, TERCEIRA ALTERAÇÃO À LEI N.º 101/2001, DE 25 DE AGOSTO, QUARTA ALTERAÇÃO À
LEI N.º 49/2008, DE 27 DE AGOSTO, E SEXTA ALTERAÇÃO À LEI N.º 4/83, DE 2 DE ABRIL)]
Mensagem do Presidente da República sobre a devolução sem promulgação do Decreto
Junto devolvo a Vossa Excelência, Sr.ª Presidente da AR, nos termos do artigo 279.º, n.º 1, da Constituição,
o Decreto da Assembleia da República n.º 369/XII — “Enriquecimento injustificado (Trigésima sétima alteração
ao Código Penal, sétima alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, terceira alteração à Lei n.º 93/99, de 14 de
julho, vigésima quarta alteração ao Código de Processo Penal, quinta alteração à Lei n.º 36/94, de 29 de
setembro, sexta alteração à Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, terceira alteração à Lei n.º 101/2001, de 25 de
agosto, quarta alteração à Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, e sexta alteração à Lei n.º 4/83, de 2 de abril)” —
uma vez que o Tribunal Constitucional, através de Acórdão cuja fotocópia se anexa, se pronunciou, em sede de
fiscalização preventiva, pela inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 1 do artigo 1.º e do artigo 2.º,
do mesmo Decreto.
Lisboa, 30 de julho de 2015.
O Presidente da República,
Anexo: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 377/2015.
Anexo
Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 377/2015
Processo 658/2015
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1 - O Presidente da República requereu, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição da República
Portuguesa e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição das normas constantes
do n.º 1 do artigo 1.º, na parte em que adita o artigo 335.º-A ao Código Penal, e do artigo 2.º, na parte em que
adita o artigo 27.º-A à Lei 34/87, de 16 de julho, que aprova o regime dos crimes de responsabilidade dos titulares
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de cargos políticos, alterada pelas Lei n.os 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de
3 de setembro, 4/2011, de 16 de fevereiro, 4/2013, de 14 de janeiro, e 30/2015, de 22 de abril, do Decreto 369/XII
da Assembleia da República, recebido na Presidência da República no dia 30 de junho de 2015 para ser
promulgado como lei.
O pedido de fiscalização de constitucionalidade apresenta a seguinte fundamentação:
1.º
Pelo Decreto 369/XII, a Assembleia da República aprovou o regime que institui o crime de enriquecimento
injustificado.
2.º
Este novo tipo criminal é aditado ao Código Penal, na formulação adotada pelo Decreto, sendo aplicável a
todas as pessoas, singulares e coletivas (artigo 335.º-A, conjugado com o artigo 11.º).
3.º
Semelhante tipo criminal é aditado à Lei 34/87, de 16 de julho, que aprovou o regime dos crimes de
responsabilidade dos titulares de cargos políticos.
4.º
É a seguinte a formulação dada pelo Decreto ao n.º 1 do artigo 335.º-A do Código Penal: "Quem por si ou
por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os seus
rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de prisão até 3 anos".
5.º
De acordo com o Decreto, é a seguinte a redação do crime de enriquecimento injustificado aditado à Lei
34/87, de 16 de julho: "O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de
funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa,
singular ou coletiva adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os seus rendimentos e bens
declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de prisão até 5 anos".
6.º
O tratamento legislativo do crime de enriquecimento injustificado não é matéria desconhecida no
ordenamento jurídico português.
7.º
Com efeito, já durante a presente legislatura o Parlamento havia aprovado o regime do então designado
"enriquecimento ilícito", através do Decreto 37/XII.
8.º
O mencionado Decreto veio a ser objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade, por requerimento
do Presidente da República, tendo o Tribunal Constitucional decidido pronunciar-se, em 4 de abril de 2012, pela
inconstitucionalidade das normas requeridas, através do Acórdão 179/2012.
9.º
Tratando-se de uma matéria com elevada sensibilidade e, além do mais, em face de um Acórdão muito
recente - sublinha-se, emitido já no decurso da presente legislatura -, a análise a que se procede no presente
requerimento não deve deixar de reportar-se às normas constitucionais ali invocadas bem como à sua
jurisprudência.
10.º
No mencionado Acórdão, a pronúncia de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional assentou em três
fundamentos essenciais:
i) A indefinição do bem jurídico protegido;
ii) A indeterminação da ação ou omissão concretamente proibida;
iii) A violação do princípio da presunção de inocência.
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11.º
Relativamente à indefinição do bem jurídico protegido, o Tribunal Constitucional recordou a linha
jurisprudencial nos termos da qual «No que importa ao disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP, enquanto parâmetro
para aferir da legitimidade constitucional das incriminações, o Tribunal pronunciou-se, designadamente, no
Acórdão 426/91, onde, deixou explícito que "o objetivo precípuo do direito penal é, com efeito, promover a
subsistência de bens jurídicos da maior dignidade e, nessa medida, a liberdade da pessoa humana." Nessa
medida, "a imposição de penas e medidas de segurança implica, evidentemente, uma restrição de direitos
fundamentais, como o direito à liberdade e o direito de propriedade, que é indispensável justificar ante o disposto
no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Assim, uma tal restrição só é admissível se visar proteger outros direitos
fundamentais e na medida do estritamente indispensável para esse efeito.", e, igualmente de forma impressiva,
no Acórdão 108/99 em que destacou que "o direito penal, enquanto direito de proteção, cumpre uma função de
ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos - e se não for possível o recurso
a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É,
assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há de limitar-se à defesa das
perturbações graves da ordem social e à proteção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E
enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas
para a proteção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão de constituir sempre o último recurso"».
Para concluir, citando Figueiredo Dias, que «Daqui decorre que "toda a norma incriminatória na base da qual
não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente
inconstitucional"».
12.º
Consciente da dificuldade na delimitação do bem jurídico protegido, o legislador vem agora elencar os bens
jurídicos que considera protegidos pela norma em causa.
13.º
Assim, nos termos do n.º 2 do referido artigo 335.º-A aditado pelo Decreto ao Código Penal, "as condutas
previstas no número anterior atentam contra o Estado de direito democrático, agridem interesses fundamentais
do Estado, a confiança nas instituições e no mercado, a transparência, a probidade, a idoneidade sobre a
proveniência das fontes de rendimento e património, a equidade, a livre concorrência e a igualdade de
oportunidades".
14.º
Uma questão que importa desde logo dilucidar é a de saber se o modo adequado de se divisar o bem jurídico
protegido por uma norma penal é o de o legislador acrescentar, em bloco, um conjunto de valores ou princípios
genéricos ou se, pelo contrário, tal bem jurídico deve resultar inequívoco do recorte feito pelo tipo.
15.º
Esta enunciação é, de resto, singular no contexto do Código Penal Português. A generalidade dos tipos
penais definidos dispensa a enunciação dos bens jurídicos protegidos.
16.º
A própria necessidade sentida pelo legislador de explicitar uma enunciação destes valores já deixa antever
a incerteza que envolve o recorte do tipo aqui em causa.
17.º
Pois não bastará ao legislador elencar tais valores ou princípios se o tipo penal os não proteger autónoma e
especificadamente.
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18.º
Assim, a forma encontrada para superar a dificuldade assinalada na definição dos bens jurídicos protegidos
pela incriminação em causa é suscetível de violar o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
19.º
Do mesmo modo parecem permanecer dúvidas quanto à determinação das condutas concretamente
proibidas.
20.º
Com efeito, como resulta de elementos constantes dos trabalhos preparatórios, não é claro que esta
incriminação incida sobre condutas, parecendo antes incidir sobre situações de facto. Ora, o direito penal deve
incidir sobre e punir condutas ou omissões e nunca estados ou situações de facto uma vez que inexiste um
Direito Penal do facto, assim parecendo violar o princípio da legalidade penal, na sua vertente tipicidade, previsto
no artigo 29.º da Constituição.
21.º
Com efeito, não parece que o Decreto logre ultrapassar as dificuldades inerentes à determinabilidade da
ação ou omissão concretamente proibidas.
22.º
O Decreto mantém a incriminação da aquisição, posse ou detenção de património incompatível com os
rendimentos.
23.º
Ora, como resultava inequívoco do Acórdão do Tribunal Constitucional relativo ao Decreto que aprovava o
regime do enriquecimento ilícito, a punição da mera aquisição, posse ou detenção não parece compatível com
a determinabilidade que deve subjazer a uma norma penal, sobretudo à luz dos princípios constitucionais da
tipicidade e da presunção de inocência.
24.º
Deste modo, o regime agora aprovado também parece violar o princípio constitucional da presunção de
inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição e inerente ao princípio do Estado de direito, previsto
no artigo 2.º.
25.º
Com efeito, mesmo na nova formulação, não se vê como poderá o arguido libertar-se da acusação que sobre
ele impende.
26.º
Ainda que a discrepância se refira apenas aos bens declarados ou que devam ser declarados, uma vez que
a conduta punida é a mera aquisição, posse ou detenção, resulta que a presunção da prática do crime é inerente
ao próprio tipo penal.
27.º
De resto, a norma, tal como desenhada, coloca o arguido em posição de ter de provar a licitude da origem
do património, o que não diverge do que ocorria a propósito do enriquecimento ilícito, em aparente violação da
garantia constitucional contra a auto incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare). Isto agravado pela não
previsão expressa da possibilidade de tal prova.
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28.º
Assim desenhado o tipo criminal, dele parece resultar a presunção da prática do crime bem como a inversão
do ónus da prova, em violação do princípio constitucional de presunção de inocência, tal como interpretado pelo
Tribunal Constitucional no Acórdão 179/2012.
29.º
Poder-se-ia sustentar, é certo, que a norma evoluiu no sentido de a referida incompatibilidade dizer apenas
respeito aos rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados.
30.º
Deste modo, seria punida apenas a discrepância da declaração com o património e não já a sua aquisição,
posse e detenção.
31.º
Fosse tal o caso e sempre se afiguraria inconstitucional a norma por violação do princípio da legalidade penal
na sua vertente tipicidade na medida em que, ao referir a aquisição, posse ou detenção, estaria a conferir à
norma uma indeterminação, como já sublinhado, inconciliável com aqueles princípios.
32.º
Acresce que a incriminação da incompatibilidade entre a declaração e o património já existe no ordenamento
jurídico português, pelo que seria incompreensível - e inconstitucional - esta redundância normativa por violação
do princípio da necessidade, previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
33.º
Na verdade, uma tal interpretação conduziria o intérprete para o domínio dos crimes fiscais como a fraude
fiscal. Ou, no limite, para o domínio de crimes como o crime de branqueamento de capitais (artigo 368.º-A do
Código Penal), perda de vantagens (artigo 111.º do Código Penal) e perda de bens/confisco (artigo 7.º da Lei
5/2002, de 11 de janeiro – Medidas de Combate à Criminalidade Organizada), tal como expressamente referido
pelo Tribunal no Acórdão citado.
34.º
Assim, das duas uma: ou o crime de enriquecimento injustificado ganha autonomia relativamente a crimes
fiscais e padece das dificuldades assinaladas ou não se distingue de outros crimes, inexistindo razão substancial
para a sua manutenção, o que sempre violaria, entre outros princípios, o da proporcionalidade na vertente
necessidade.
35.º
Numa área com a sensibilidade do Direito Penal, onde estão em risco valores máximos da ordem jurídica
num Estado de direito como a liberdade, não pode subsistir dúvida sobre a incriminação de condutas, tanto mais
que a matéria em causa foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional tendo, então, merecido uma
pronúncia de inconstitucionalidade.
O Presidente da República requer o pedido de fiscalização de constitucionalidade nos seguintes termos:
Ante o exposto, requer-se, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do artigo
51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das
normas do n.º 1 do artigo 1.º, e do artigo 2.º constantes do Decreto 369/XII da Assembleia da República, por
violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º e 32.º, n.º 2 da Constituição.
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2 – Notificada para o efeito previsto no artigo 54.º da Lei do Tribunal Constitucional, a Presidente da
Assembleia da República veio apresentar resposta na qual ofereceu o merecimento dos autos.
3 – Discutido o Memorando a que se refere o artigo 58.º, n.º 2, da LTC, cumpre formular a decisão em
conformidade com a orientação definida.
II – Fundamentação
A. As normas impugnadas e o seu contexto
4 – São objeto do pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade a norma constante do n.º 1 do
artigo 1.º do Decreto 369/XII da Assembleia da República, na parte em que adita o artigo 335.º-A ao Código
Penal, bem como a norma constante do artigo 2.º do mesmo Decreto, na parte em que adita o artigo 27.º-A à
Lei 34/87, de 16 de julho, que aprova o regime dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos,
alterada pelas Leis 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, 4/2011,
de 16 de fevereiro, 4/2013, de 14 de janeiro e 30/2015, de 22 de abril.
As referidas disposições têm o seguinte teor:
Artigo 1.º
Alteração ao Código Penal
1 – É aditado à secção II do capítulo I do título V do livro II do Código Penal [...] o artigo 335.º-A, com a
seguinte redação:
"Artigo 335.º-A
Enriquecimento injustificado
1 – Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património
incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de
prisão até 3 anos.
2 – As condutas previstas no número anterior atentam contra o Estado de direito democrático, agridem
interesses fundamentais do Estado, a confiança nas instituições e no mercado, a transparência, a probidade, a
idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património, a equidade, a livre concorrência e a
igualdade de oportunidades.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se por património todo o ativo patrimonial líquido existente no
país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de
sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos,
contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas
com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
4 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens declarados, ou que devam ser
declarados, todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que
delas devessem constar, bem como os rendimentos e bens objeto de quaisquer declarações ou comunicações
exigidas por lei.
5 – Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 350 salários mínimos mensais a conduta
não é punível.
6 – Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 500 salários mínimos mensais o agente é punido
com pena de prisão de 1 a 5 anos."
Artigo 2.º
Aditamento à Lei 34/87, de 16 de julho
É aditado o artigo 27.º-A à Lei 34/87, de 16 de julho, sobre crimes de responsabilidade dos titulares de cargos
políticos [...], com a seguinte redação:
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"Artigo 27.º-A
Enriquecimento injustificado
1 – O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas
ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva
adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam
ser declarados é punido com pena de prisão até 5 anos.
2 – As condutas previstas no número anterior atentam contra o Estado de direito democrático, agridem
interesses fundamentais do Estado, a confiança nas instituições e no mercado, a transparência, a probidade, a
idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património, a equidade, a livre concorrência e a
igualdade de oportunidades.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se por património todo o ativo patrimonial líquido existente no
país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de
sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos,
contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas
com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
4 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens declarados, ou que devam ser
declarados, todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que
delas devessem constar, bem como os rendimentos e bens objeto de quaisquer declarações ou comunicações
exigidas por lei.
5 – Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta
não é punível.
6 – Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido
com pena de prisão de 1 a 8 anos."
5 – As normas sob apreciação incluem-se numa medida de política legislativa criminal consistente em aditar
um novo tipo legal de crime, com a designação «enriquecimento injustificado», ao Código Penal (artigo 335.º-A)
e a uma lei avulsa – Lei 34/87, de 16 de julho, que aprova o regime dos crimes da responsabilidade dos titulares
de cargos políticos ou de altos cargos públicos [doravante, e por razões de brevidade, referir-se-á apenas à
«responsabilidade» de titulares de cargos políticos, incluindo-se nesta genérica categoria também os titulares
de altos cargos públicos] (artigo 27.º-A).
Tal medida de política legislativa criminal não é nova. Decorre da estrutura e do conteúdo do Decreto da
Assembleia da República n.º 369/XII, bem como dos trabalhos preparatórios, que a mesma se situa em linha de
continuidade com uma outra, constante de anterior deliberação parlamentar (Decreto da Assembleia da
República n.º 37/XII, DAR 2.ª série-A n.º 128/XII/1 2012.02.27, págs. 2-8). As normas contidas neste decreto
foram objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade. Tendo, nessa ocasião, através do Acórdão
179/2012, emitido o Tribunal uma pronúncia de inconstitucionalidade, foi o referido decreto devolvido ao
parlamento, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 279.º da Constituição (DAR 2.ª série-A n.º
165/XII/1 2012.04.18, pág. 3).
Retira-se ainda da leitura da «Exposição de Motivos» que acompanhou o Projeto de Lei 798/XII (4.ª) (DAR
2.ª série-A n.º 87/XII/4 2015.02.28, págs. 14-22, págs. 14-16), que esteve na origem do Decreto da Assembleia
da República n.º 369/XII, que, tendo o legislador mantido medida de política legislativa criminal análoga, na sua
inspiração, à que já tinha sido objeto do Decreto 37/XII, foram agora introduzidas modificações cujo principal
desiderato terá sido o de ultrapassar a anterior pronúncia de inconstitucionalidade.
Basta atentar no seguinte excerto da «Exposição de Motivos»:
«Considerando, ainda, que o Tribunal Constitucional na douta jurisprudência do Acórdão 179/2012,
fundamentou a pronúncia por inconstitucionalidade do decreto da Assembleia da República n.º 37/XII, com base
nas seguintes conclusões fundamentais:
1 – A impossibilidade de discernir na base da incriminação um bem jurídico claramente definido (com
dignidade penal);
2 – A impossibilidade de discernir a conduta concretamente proibida;
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3 – A violação da presunção da inocência do arguido decorrente da estrutura típica das normas aprovadas
pelo parlamento conduzir à presunção da origem ilícita da incompatibilidade entre o património e o rendimento;
4 – Tratar-se de crime subsidiário.
Cumpre-nos dar resposta às questões de inconstitucionalidade apreciadas na jurisprudência citada, razão
pela qual promovemos uma mais detalhada identificação dos bens jurídicos tutelados, bem como caracterizamos
com maior precisão o comportamento censurado e garantimos que a prova dos elementos do crime compete
exclusivamente ao Ministério Público.
Por outro lado, e como é constitucionalmente exigido, tratando-se da aplicação de uma pena criminal, os
acusados pela prática do crime que se prevê gozarão de todas as garantias de processo criminal, perante os
tribunais».
6 – Assim, e sem pretender sobrevalorizar o elemento histórico na interpretação da lei, poderá ter utilidade,
para efeitos da apreciação da conformidade constitucional das normas impugnadas, confrontar, na parte
relevante, o teor do Decreto 369/XII com o teor do Decreto 37/XII.
Muito sucintamente, verifica-se existirem, essencialmente, cinco diferenças.
Em primeiro lugar, enquanto através do Decreto 37/XII o legislador pretendia introduzir na ordem jurídico-
penal três tipos legais de crime, no Decreto 369/XII apenas se prevê a introdução de dois tipos legais de crime,
tendo o legislador abandonado a incriminação autónoma do crime em questão quando praticado por funcionário
(cf. artigo 1.º, n.os 2 e 3 do Decreto 37/XII).
Em segundo lugar, enquanto no Decreto 37/XII se previa a incriminação do «enriquecimento ilícito», sendo,
esta, aliás, a designação correspondente à epígrafe dos preceitos legais introduzidos, no Decreto 369/XII prevê-
se o crime de «enriquecimento injustificado».
Em terceiro lugar, e confrontando o recorte do tipo legal do crime de «enriquecimento injustificado» com o do
«enriquecimento ilícito», verifica-se que:
a) foi eliminado o elemento referente à ausência de origem lícita determinada;
b) foi eliminada a expressão «se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal»;
c) o conceito «bens legítimos» deu agora lugar ao conceito «bens declarados ou que devem ser declarados»,
com a correspondente eliminação da disposição que concretizava aquele conceito (cf. artigos 335.º-A, n.º 3,
386.º, n.º 3, do Código Penal e 27.º-A, n.º 3, da Lei 34/87, de 26 de julho, tal como o Decreto 37/XII os propunha
aditar/alterar).
Em quarto lugar, a respeito do crime de «enriquecimento injustificado», o legislador vem enunciar os bens
jurídicos que visa proteger (cf. artigos 335.º-A, n.º 2, do Código Penal e 27.º-A, n.º 2, da Lei 34/87, de 26 de
julho, tal como o Decreto 369/XII os propõe aditar).
Por último, o artigo 10.º do Decreto 37/XII, com a epígrafe «Prova», o qual dispunha que «[c]ompete ao
Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de
enriquecimento ilícito», não tem correspondência em nenhum preceito do Decreto 369/XII.
7 – Ao contrário da avaliação que o próprio autor da norma terá feito, entende o requerente que, não obstante
as assinaladas modificações, persistem, quanto à incriminação do «enriquecimento injustificado» prevista no
Decreto 369/XII, os fundamentos que, no Acórdão 179/2012, determinaram a pronúncia de inconstitucionalidade
da incriminação do «enriquecimento ilícito».
7.1 – No que respeita ao problema da indefinição do bem jurídico protegido, entende o requerente que não
resulta claro, considerando o recorte feito pelo tipo, qual o bem jurídico protegido pela incriminação, sendo,
assim, duvidoso que o tipo penal proteja autónoma e especificamente os bens jurídicos enunciados nos termos
referidos (cf., supra, ponto 6).
Assim, na perspetiva do requerente, o problema da indefinição do bem jurídico protegido, identificado no
Acórdão 179/2012 (cf. penúltimo e último parágrafos do ponto 8.1. e do ponto 8.2.), não seria resolúvel com a
supressão do tipo da expressão «se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal»,
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anteriormente integradora da incriminação do «enriquecimento ilícito», nem tão-pouco com a enunciação
expressa dos bens jurídicos protegidos.
Em seu entender o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, seja ele um ou vários de todos aqueles
que vêm elencados no n.º 2 do artigo 335.º-A ou qualquer outro, não tem correspondência na estrutura do tipo.
7.2 – No que respeita à determinação das condutas concretamente proibidas, entende o requerente que não
é, desde logo, claro se a incriminação do «enriquecimento injustificado» incide sequer sobre uma conduta,
parecendo antes incidir sobre situações de facto.
Ao manter-se a incriminação da aquisição, posse ou detenção de património incompatível com os
rendimentos, a construção do tipo continua a não permitir a identificação da ação ou omissão que é proibida,
não tendo o legislador logrado ultrapassar o problema previamente identificado relativamente à incriminação do
«enriquecimento ilícito» (cf. ponto 8.3. do Acórdão 179/2012).
7.3 – Por último, e no que respeita ao princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo
32.º da Constituição, entende o requerente que, não obstante a construção do tipo não pressupor agora, ao
contrário do que se verificava relativamente à incriminação do «enriquecimento ilícito» (cf. penúltimo e último
parágrafos do ponto 9 do acórdão 179/2012), a demonstração positiva da ausência de toda e qualquer causa
lícita - na medida em que se eliminou o elemento «sem origem lícita determinada» -, subsiste o problema de a
norma incriminadora presumir a origem ilícita da incompatibilidade entre o património e os rendimentos e bens
declarados, imputando ao agente um crime de enriquecimento injustificado. Nas palavras do requerente (ponto
26.º do requerimento), «[...] resulta que a presunção da prática do crime é inerente ao próprio tipo penal».
B. Da política criminal em Estado de direito: enquadramento constitucional
8 – Através do Decreto 369/XII deliberou a Assembleia da República instituir um novo tipo de crime ao qual
conferiu o nome de enriquecimento injustificado. Na sequência desta deliberação, decretou que fosse aditado
ao Título V do Livro II do Código Penal (relativo aos «crimes contra o Estado») um artigo 335.º-A, que, contendo
a formulação do novo tipo, se acrescentará ao elenco dos crimes já previstos na Secção II do Capítulo I daquele
título, e que, segundo o Código, se identificam como sendo os «crimes contra a realização do Estado de direito».
Do mesmo modo, e ainda na sequência daquela sua deliberação, decretou ainda a Assembleia que fosse
aditado um artigo 27.º-A à Lei 34/87, de 16 de julho (crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos),
de modo a incluir uma previsão especial do crime de enriquecimento injustificado quando perpetrado por quem
seja titular de cargo político ou de alto cargo público, durante o período do exercício das suas funções ou nos
três anos seguintes à cessação dessas funções. São estas duas medidas, incluídas respetivamente no artigo
1.º e no artigo 2.º do Decreto 369/XII, que o requerente impugna junto do Tribunal Constitucional.
9 – Tratando-se ambas de medidas de política criminal, tomadas pela Assembleia no exercício da sua
competência para a definição de [novos] crimes e penas, deverá antes do mais dizer-se que não caberá ao
Tribunal resolver ou aprofundar as questões de dogmática jurídico-penal que a interpretação de normas
incriminadoras (estas novas, como quaisquer outras) eventualmente coloque, uma vez que esta é função que,
naturalmente, aos tribunais comuns competirá exercer.
Ao Tribunal cabe todavia averiguar de uma específica e diferente questão, que é precisamente a de saber
se foram ou não cumpridos no caso os padrões legitimadores da constitucionalidade das novas incriminações.
Com efeito - e como o Tribunal sempre tem dito, em jurisprudência ininterrupta, desde o início da sua
fundação - ao legislador ordinário deve ser reconhecida larga margem de liberdade de conformação na
prossecução do que entenda dever ser a política criminal adequada, em cada momento histórico, às exigências
de subsistência de bens coletivos fundamentais. Não sendo a Constituição um código detalhado de relações
sociais ou sequer do modo de organização do Estado, «o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios
penais cabe, em primeira linha, ao legislador» (Acórdão 634/93, ponto 6), enquanto titular da função de primeiro
mediador, ou concretizador, da ordem jurídico-constitucional (Acórdão 347/86, ponto 7). Todavia, nem por isso
chegará a concluir-se que, em Estado de direito, é isenta de vínculos constitucionais a definição legislativa de
medidas de política criminal. Nenhum poder o é; e muito menos o será o poder de definir novos crimes e de
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prever novas penas, o qual, pela sua especial natureza, não dispensará naturalmente a condição de poder
constitucionalmente vinculado. Assim, e não obstante a larga margem conformadora que, neste domínio, deve
ser reconhecida ao legislador, haverá sempre que concluir que a Constituição surge como o horizonte no qual
há de inspirar-se, e por onde há de pautar-se, qualquer programa de política criminal.
10 – A jurisprudência tem definido, de modo constante, os princípios que dão corpo e sentido a este horizonte.
10.1 - Nos acórdãos n.os 25/84, 85/85, 347/86, 634/93, 650/93, 83/95, 211/95, 527/95, 1142/96, 274/98,
480/98, 108/99, 604/99, 312/00, 95/01, 99/02, 22/03, 295/03, 376/03, 494/03, 403/2007, 605/2007, 595/2008,
577/2011, 128/2012 e 105/2013, por exemplo, o Tribunal enunciou o (logicamente) primeiro de todos eles: o
princípio da necessidade de pena, sediado, textualmente, no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Implicando a previsão
de penas restrições a liberdades fundamentais (o requerente indica a liberdade, tout court, e a propriedade), a
decisão da sua definição ex novo não pode deixar de ser reveladora de uma ponderação acertada quanto à
indispensabilidade do meio para a «salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos».
Esta enunciação do primeiro padrão legitimador da constitucionalidade das novas incriminações, assim
genericamente fundada numa exigência lata de proporcionalidade, carece no entanto de precisão; e a
jurisprudência correspondeu a este repto, concretizando e desdobrando - no que à previsão de novos crimes e
de novas penas diz respeito - o sentido da imposição constitucional em duas vertentes essenciais. De acordo
com a primeira, a decisão de política legislativa que se traduz na previsão de um novo tipo criminal só será
conforme ao previsto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP se o bem jurídico por esse novo tipo protegido se mostrar
digno de tutela penal; de acordo com a segunda, a mesma decisão de política legislativa só passará o crivo da
legitimação constitucional se o bem jurídico protegido pelo novo tipo incriminador se revelar carente de tutela
penal. Em qualquer caso - di-lo também a jurisprudência - a verificação destas duas vertentes, através das quais
se traduz a exigência de proporcionalidade quando aplicada a medidas de política legislativa que se cifrem em
decisões de novas incriminações, deve ser cumulativa: não basta que o «bem jurídico» protegido pelo novo tipo
criminal se mostre digno de tutela penal; é ainda necessário que esse mesmo «bem» se revele dela [da tutela
penal] «carente» ou «precisado».
Assim, tem sido dito que, antes do mais, as sanções penais, «por serem aquelas que em geral maiores
sacrifícios impõem aos direitos fundamentais» (Acórdão 99/02, ponto 5) só serão constitucionalmente legítimas
se através delas se protegerem bens jurídicos que se mostrem dignos de tutela penal. Sustentar esta afirmação
equivale a dizer que toda e qualquer decisão legislativa de política criminal, que se traduza na opção de definir
novos tipos de crimes e de prever para eles novas penas, deve desde logo revelar-se como uma medida
adequada para conferir amparo a interesses, individuais ou coletivos, de conservação ou manutenção de valores
sociais aos quais seja possível reconhecer a máxima relevância jurídica; e que, em Estado de direito
democrático, o critério para a determinação do que seja a «máxima relevância jurídica» de certo valor social que
deva ser preservado há de encontrar-se, não em um qualquer corpus normativo que seja exterior à Constituição,
mas apenas dentro dela e no quadro axiológico que lhe seja próprio. É neste sentido - exigido pelo primado
normativo da Constituição, decorrente do n.º 1 do artigo 3.º da CRP - que se diz que, em cada nova incriminação,
«há de observar-se uma estrita analogia entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens
jurídico-penais» (Acórdão 108/99, ponto 4); e que «toda a norma incriminatória na base da qual não seja
suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente
inconstitucional» (Acórdão 179/2012, ponto 7).
Em segundo lugar, porém, afirmar-se que a decisão de prever novos crimes e novas penas não pode deixar
de ser reveladora de uma ponderação acertada [quanto à indispensabilidade da tutela penal para a realização
de um fim suficientemente valioso que a justifique], equivale ainda a afirmar-se que a pena só será necessária
quando se mostrar adequada para proteger bens jurídicos que se mostrem carentes de tutela penal. Não basta
que, em cada nova incriminação, se divise a intenção de preservar um valor social que, de acordo com a
Constituição, possa ser tido como merecedor do mais elevado grau de proteção jurídica; é ainda necessário que
o fim almejado - a preservação de tal valor - não possa ser realizado por outro meio de política legislativa que
não aquele que se traduz no recurso à intervenção penal. Como se disse no Acórdão 108/99, ponto 4: «o direito
penal, enquanto direito de proteção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha
para proteger bens jurídicos - e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente
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eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais». E isto por, face ao disposto no n.º 2 do artigo 18.º
da CRP, dever ser a intervenção penal sempre subsidiária e fragmentária, a evitar quando não seja certo que
inexistem outros meios, de diversa índole e por isso mesmo menos gravosos, para a realização dos fins que
inspiraram a intervenção do legislador.
Ao enunciar assim o princípio da necessidade de pena, como primeiro princípio orientador das vinculações
a que está sujeito o legislador ordinário no desenho ou definição de qualquer programa de política criminal, o
Tribunal recebeu na sua jurisprudência uma orientação que, por ser fundante da própria ideia de Estado de
direito, ocupou desde sempre um lugar nuclear nos primeiros textos do constitucionalismo. Muitas referências
poderiam a este propósito ser indicadas. Impressiva é, no entanto (e por isso bastará referi-la) a formulação do
artigo 8.º da declaração de direitos francesa de 1789, que influenciou toda a evolução posterior, e que
determinava:
"La loi ne doit établir que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu'en
vertu d'une Loi établie et promulguée antérieurement au délit et légalement appliquée".
10.2 – A formulação deste artigo 8.º da declaração de direitos de 1789 (que, recorde-se, é ainda hoje direito
constitucional positivo na ordem jurídica francesa) deixa já antever que o princípio da necessidade de pena,
primeiro elemento definidor do que se possa entender por «padrões de legitimação da constitucionalidade de
novas incriminações», se apresentou sempre em estreita associação com um outro princípio, textualmente
sediado, na nossa ordem jurídica, no n.º 1 do artigo 29.º da CRP, e cujo conteúdo se resume, habitualmente, a
um aforisma latino: nullum crimen, nulla poena, sine lege praevia et certa. Diversamente da ideia de necessidade
de pena - que atua como vínculo do legislador no momento em que este se decide pelo recurso, que deve ser
de última instância, à criminalização de certos e determinados comportamentos - o princípio da legalidade da
pena (e do crime) vinculam-no, já não quanto ao se da criminalização, mas quanto ao modo pelo qual o poder
legislativo constrói a previsão típica dos comportamentos que entende deverem ser criminalmente relevantes.
Não obstante esta diferença, os dois princípios associam-se estreitamente, integrando afinal o mesmo âmbito
nuclear do que [pode] deve ser a política criminal de um Estado de direito.
Como se sabe - e a jurisprudência constitucional tem sido, também quanto a este ponto, ilustrativa: vejam-
se, por exemplo, os Acórdãos n.os 25/84, 264/97, 147/99, 168/99, 179/99, 383/00, 545/00, 93/2001, 236/2002,
449/2002, 338/03, 358/05, 29/2007, 110/2007, 183/2008, 146/2011, 379/2012, 397/2012, 105/2013 - do princípio
constante do n.º 1 do artigo 29.º da CRP decorrem várias obrigações para o legislador, que devem ser cumpridas
aquando da prossecução de medidas de política criminal através da definição de novos crimes e da previsão de
novas penas. Entre essas obrigações encontra-se aquela, que sobre ele impende, de identificar o
comportamento que se considera punível da forma mais precisa possível, evitando portanto - tanto quanto o
consente a natureza da linguagem e a inevitável descrição de «aspetos da vida» por recurso a conceitos com
algum grau de indeterminação - toda e qualquer desnecessária ambiguidade.
Deste dever especial de precisão decorre que, em princípio, a punição deve incidir sobre um comportamento
específico e suficientemente descrito de um determinado agente, comportamento esse que se traduzirá numa
certa e determinada ação ou numa certa e determinada omissão que àquele mesmo agente possam ser
imputadas [como diz o artigo 29.º, n.º 1, da CRP, «[n]inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em
virtude de lei [...] que declare punível a ação ou omissão»]. Todavia, para além disso ou mesmo antes disso, do
princípio da legalidade, nas suas vestes de imperativo de lex certa, decorre para o legislador o dever de
«desenhar» o novo tipo criminal de modo a tornar cognoscíveis para os cidadãos quais os factos voluntários
que são merecedores do juízo de desvalor jurídico-criminal. Na verdade, o princípio nullum crimen sine lege
tornar-se-ia inoperante se ao poder legislativo fosse dada a possibilidade de não determinar com um mínimo de
rigor, através do tipo legal, o facto voluntário a considerar punível. Por isso, e como se disse, por exemplo, no
Acórdão 168/99, ponto 6: «[a]veriguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto
expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal
[aplicável] com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar
condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz
de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima».
A associação estreita entre esta obrigação, que impende sobre o legislador, de definir com suficiente precisão
em que é que consistem os comportamentos aos quais se confere relevância criminal, e aquela outra que para
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ele também decorre de usar o recurso à sanção penal apenas como «recurso de última instância», estará na
garantia de que só assim - só através de uma valoração jurídico-criminal dos comportamentos formulada de
maneira tão precisa quanto possível, de modo a que não restem dúvidas quanto aos valores protegidos e quanto
à clara definição dos elementos de infração - se poderá saber o que é criminalmente censurável, e, portanto,
passível do mais intenso juízo de desvalor que o Estado, através da lei, pode aplicar aos membros da
comunidade. Sem esta cognoscibilidade necessária do que é criminalmente relevante (e das razões por que o
é) não pode em última análise garantir-se a lealdade dos membros da comunidade ao direito, entendida nos
termos em que o Tribunal a descreveu no Acórdão 83/95, ponto 6: «[o] direito penal de um Estado de Direito
tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre para se decidir pelo direito ou contra o direito - de
um homem, por isso mesmo, responsável pelos próprios atos e responsável para estar com os outros».
10.3 – Tanto o princípio da necessidade de pena (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) quanto o princípio da legalidade,
sob a veste de lex certa (artigo 29.º, n.º 1), integram valores nucleares do Estado de direito na exata medida em
que ambos exprimem o valor da liberdade individual. E ambos pressupõem que, em casos de dúvida, prevaleça
essa mesma liberdade: in dubio pro libertate.
Por isso mesmo, no momento em que define o alvo da sua censura, o legislador que escolhe fixar novas
criminalizações - com o intuito de assim prosseguir uma certa política criminal - também não deve construir as
normas penais de tal modo que, através das suas formulações, possa o cometimento do crime presumir-se
(Acórdãos n.os 270/87, 426/91, 135/92, 252/92, 246/96, 604/97 e 609/99). A tal se opõe o n.º 2 do artigo 32.º da
CRP que consagra o princípio da presunção de inocência, princípio esse que - embora protraído nas regras
processuais de proibição de autoincriminação do arguido e de inversão do ónus da prova - não deixa de ter
como o primeiro destinatário, não apenas o legislador das normas de processo, mas antes, como sucede no
caso, o que define substantivamente os novos tipos incriminadores.
10.4 – A necessidade de pena (artigo 18.º, n.º 2 da CRP), a exigência de lei certa (artigo 29.º, n.º 1) e a
presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2) são padrões de legitimação da constitucionalidade de novas
incriminações cuja verificação, em caso algum, se pode dispensar. Em Estado de direito, nenhuma política
criminal, qualquer que seja o seu escopo, se legitima, se através dela se não reunirem as exigências decorrentes
destes três princípios. A possibilidade de decomposição analítica dos seus conteúdos, através da descrição
separada dos diferentes standards de julgamento que deles emirjam, não pode fazer perder de vista a unidade
substancial e valorativa em que todos eles [estes princípios] se encontram, unidade essa que ocupa, numa
ordem constitucional como a nossa, que favorece a liberdade, um lugar primordial.
Com efeito, se, num Estado com as características daquele que o artigo 2.º da CRP institui, o recurso à
criminalização de comportamentos e à previsão de penas deve ser um recurso de ultima ratio, a evitar sempre
que permaneçam incertezas quanto à necessidade da intervenção penal, sempre subsidiária e fragmentária, tal
sucede pelo mesmo fundamento que justifica os limites constitucionais ao modo da incriminação. Ora, quanto
ao modo, não podem também existir em Estado de direito crimes e penas que não sejam previstos em lei que
seja certa, como não podem ser previstos crimes de tal ordem, ou por tal forma, que se presuma o cometimento
do ilícito criminal, devolvendo-se a quem é desse cometimento acusado todo o ónus da refutação da acusação.
A unidade valorativa que une estas três exigências está no facto de todas elas emergirem da mesma ideia básica
de favorecimento da liberdade.
Será, portanto, a partir desta unidade valorativa - repercutida num lastro jurisprudencial que conta com três
décadas de afirmação - e tendo-a sempre em conta que se analisará, primeiro, o aditamento ao Código Penal
previsto pelo artigo 1.º, n.º 1, do Decreto 369/XII da Assembleia da República; e, de seguida, o aditamento à Lei
34/87, de 16 de julho, previsto pelo artigo 2.º do mesmo decreto.
C. Do aditamento ao Código Penal
11 – O artigo 335.º-A, cujo aditamento à Secção II do Capítulo I do Título V do Livro II do Código Penal o
decreto da Assembleia determina, contém uma formulação que se estrutura em seis números. No primeiro
enunciam-se desde logo os dois elementos que, reunidos, perfarão o novo tipo criminal - (i) quem por si ou por
interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património; (ii) que seja incompatível com os
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seus rendimentos e bens declarados ou devam ser declarados. De seguida, faz-se corresponder a este crime,
cuja descrição típica se encontra assim perfeita, a pena de prisão até 3 anos. Sendo decisiva para a construção
do ilícito criminal a incompatibilidade entre património adquirido, possuído ou detido pelo agente (qualquer um,
por si ou por interposta pessoa) e aquele outro sujeito a declaração, os n.os 5 e 6 do preceito dedicam-se a
modular a punição, genericamente prevista no n.º 1 (prisão até 3 anos), em função do «valor» a que ascenda
tal incompatibilidade. Assim, não só é excluída a punibilidade se tal «valor» for inferior a 350 salários mínimos
mensais (n.º 5), como se alarga o limite máximo da pena de prisão - 5 anos - em caso de excesso para mais de
500 salários mínimos mensais. Por seu turno, os n.os 3 e 4 dedicam-se a determinar, não só o que se deva
entender por «património», mas também o que se deva entender «por rendimentos e bens declarados ou que
devam ser declarados». Finalmente, o n.º 2 esclarece que as «condutas previstas no número anterior atentam
contra o Estado de direito democrático, agridem interesses fundamentais do Estado, a confiança nas instituições
e no mercado, a transparência, a probidade, a idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e
património, a equidade, a livre concorrência e a igualdade de oportunidades».
12 – Deve começar por dizer-se que o facto de o legislador, neste n.º 2 do artigo 335.º-A, ter decidido
identificar os valores que, em seu entender, justificam a incriminação - por serem aqueles que, ainda segundo
o seu entendimento, as condutas agora puníveis lesam - não dispensa o Tribunal de averiguar se, no caso, se
cumpriram ou não os padrões que legitimam a constitucionalidade das normas incriminadoras.
Na verdade, não se vê que outro alcance possa ser conferido ao esclarecimento prestado pelo legislador
senão esse mesmo - o da identificação dos objetivos que o motivaram, tarefa não raras vezes cumprida pelos
preâmbulos ou «exposições de motivos» que antecedem os diplomas legais. Tal como aí sucede, as explicações
dadas pelo legislador auxiliarão seguramente o intérprete na melhor compreensão do regime legal; mas, não
fazendo parte integrante dele, não relevam elas próprias do domínio do direito instituído, carecendo por isso,
em si mesmas, de eficácia prescritiva. Se assim é em geral, por maioria de razão o será quando a «matéria
legislada» se traduzir na previsão de novas incriminações. Aí, a proclamação, por parte do legislador, das razões
pelas quais entendeu dever criminalizar certa conduta será certamente reveladora da ponderação que ele
próprio - enquanto primeiro mediador e concretizador da ordem constitucional - terá feito, quer quanto à
necessidade do crime e da pena quer quanto ao modo pelo qual procedeu à sua previsão típica. Todavia, nem
por isso a «proclamação» legislativa terá por si só qualquer virtualidade de transformar tal ponderação em coisa
por si mesma justa ou constitucionalmente válida, a dispensar ulterior reexame por parte da jurisdição
competente. Se tal ocorresse, não mais estariam as leis «nas mãos» das normas constitucionais vinculantes;
seriam antes estas últimas, e particularmente aquelas que consagram liberdades fundamentais, a encontrar-se
na inteira disponibilidade das decisões legislativas.
Certo é, no entanto, que à «proclamação» de motivos deste modo feita pelo próprio legislador não poderá o
Tribunal deixar de dedicar atenção especial. Cabendo ao poder legislativo, em primeira linha, o juízo sobre a
necessidade do recurso à intervenção penal, e dispondo por isso o legislador nesta matéria - quer quanto à
decisão de criminalizar, quer quanto ao modo por que o fez - da margem de liberdade conformadora que a
Constituição lhe reconhece, a limitação, por decisão do Tribunal, dessa ampla discricionariedade legislativa só
poderá ocorrer se puder demonstrar-se que foram in casu ultrapassados os limites impostos pelos padrões
constitucionais que legitimam, em Estado de direito, quaisquer decisões legislativas destinadas a instituir novas
incriminações. Sendo este o exato âmbito em que se desenvolve o juízo do Tribunal, para o proferir não pode
deixar de conferir-se especial atenção às razões que foram invocadas pelo próprio legislador para justificar esta
sua decisão de instituir o novo crime do enriquecimento injustificado.
13 – Decretou a Assembleia que o enriquecimento injustificado viesse a acrescer, enquanto novo tipo
criminal, ao conjunto dos «crimes contra o Estado», e, mais especificamente, no quadro desta categoria, aos
«crimes contra a realização do Estado de direito», os quais incluem já a «alteração violenta do Estado de direito»
(artigo 325.º do Código Penal), o «incitamento à guerra civil ou à alteração violenta do Estado de direito» (artigo
326.º), o «atentado contra o Presidente da República» (artigo 327.º), a «ofensa à honra do Presidente da
República» (artigo 328.º), a «sabotagem» (artigo 329.º), o «incitamento à desobediência coletiva» (artigo 330.º),
as «ligações com o estrangeiro» (artigo 331.º), a «coação contra órgãos constitucionais» (artigo 333.º), a
«perturbação do funcionamento de órgão constitucional» (artigo 334.º) e o «tráfico de influências» (artigo 335.º).
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Para justificar o aditamento a este elenco resultante do artigo 335.º-A, revelou o Parlamento, no n.º 2 desse
mesmo artigo, que entendia serem os factos descritos no n.º 1 lesivos do Estado de direito democrático, na
medida em que por seu intermédio se agrediriam desde logo «interesses fundamentais do Estado» e a
«confiança nas instituições e no mercado». Acrescentou-se ainda a lesão da «transparência», da «probidade»,
da «idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património», a «equidade», a «livre
concorrência», e a «igualdade de oportunidades».
Destes dois elementos, conjugados - quer da inserção do enriquecimento injustificado no quadro sistemático
dos «crimes contra a realização do Estado de direito», quer dos motivos apresentados pelo legislador para o
prefigurar como um novo tipo de crime, aí enquadrado -, resulta logo, à evidência, que o poder legislativo conferiu
a maior «dignidade», ou o mais intenso peso axiológico, ao bem jurídico que, no seu entender, será protegido
pela nova incriminação. Além disso, dos mesmos elementos resulta igualmente que uma tal intensidade
axiológica, trazida agora, pelo decreto parlamentar, para o universo da incriminação penal, apresenta uma clara
homologia com o sistema de valores constitucionalmente reconhecido. De facto, o legislador não convocou aqui
um interesse coletivo na preservação de valores sociais que só à luz de outros ordenamentos - morais, religiosos
ou ideológicos - que não o ordenamento constitucional merecessem ser preservados. Pelo contrário: os valores
que, de acordo com o decreto, se pretendem preservar, e para cuja preservação se recorre à instância penal,
são os da própria subsistência da arquitetura essencial da ordem constitucional.
Ter-se-á na verdade entendido que, numa ordem como esta - que tem como princípios essenciais, entre
outros, a limitação dos poderes públicos e a proteção da liberdade individual - cada membro da coletividade
política deve poder confiar na possibilidade da máxima efetividade dos princípios constitucionais, ou na
possibilidade da máxima correspondência entre a sua enunciação jurídica e a sua realização na vida. Em Estado
de direito democrático nenhuma autoridade que seja superior ou exterior à Constituição dispõe de meios que
permitam impor coativamente o cumprimento da ordem que ela própria institui. Confiar em que tal cumprimento
se verificará, não obstante a ausência deste «elemento coativo externo», consubstancia assim um pressuposto
de realização do Estado de direito e da democracia. Ora - ter-se-á também entendido - a disseminação de
práticas ilícitas que envolvam corrupção (literalmente: ato ou processo de corromper, de perverter, de usar ou
obter em benefício próprio ou de outrem vantagens ou bens que à comunidade pertenceria usar ou fruir) constitui
um fenómeno que lesa, ou pode vir a lesar gravemente, a confiança de que se nutre a ordem que a Constituição
estabelece; e por isso se incluiu como crime contra a «realização do Estado de direito» aquele que decorrerá
da incompatibilidade existente entre património adquirido, possuído ou detido e bens e rendimentos declarados
ou que devam sê-lo.
A ser, como parece, este o sentido a conferir tanto ao lugar sistemático que o crime de enriquecimento
injustificado ocupa quanto à proclamação de motivos que acompanha o «desenho» do seu tipo, é claro que o
legislador, ao proceder a esse «desenho», entendeu estar em causa uma medida de política criminal que visaria
realizar um bem jurídico dotado de particular dignidade, porque com intensa refração no sistema de valores
constitucionais. Será pois à luz desta consideração - que não pode deixar de ser tida em conta num contexto
em que a margem de decisão legislativa determina o âmbito do controlo que dela faz o Tribunal - que se resolverá
a questão de saber se o tipo criminal que por estes motivos foi «desenhado» cumpre ou não os princípios que,
sob a perspetiva da Constituição, o legitimam.
14 – Entendeu o legislador dever prosseguir este bem jurídico, por ele próprio caracterizado como sendo um
bem de primeira grandeza, através da previsão típica de uma infração que decorre, objetivamente, da reunião
de dois elementos: (i) a aquisição, posse ou detenção de património, por um lado; (ii) a incompatibilidade entre
este último e os rendimentos e bens declarados ou que devam sê-lo, por outro. O agente típico da infração
confundir-se-á com o cidadão comum, uma vez que a incompatibilidade entre o património adquirido, detido ou
possuído e aquele outro a declarar será criminalmente relevante sempre que ocorrer na esfera de qualquer
pessoa. É o que se depreende da frase com que se inicia o «desenho» do tipo («quem, por si ou por interposta
pessoa...»), e que abre o n.º 1 do artigo 335.º-A.
Assim sendo, o alvo da censura jurídico-penal, ou, dizendo por outras palavras, o «comportamento» típico
que é punível, e que se considera apto para lesar atual ou potencialmente o bem jurídico valioso que se quis
proteger, confunde-se com a existência de uma incompatibilidade ou incongruência entre duas grandezas - o
património «tido» e o «sujeito a declaração». E residindo aí, nessa incompatibilidade, o cerne da censura do
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legislador, o «comportamento» criminalizado traduzir-se-á - se a estes dados juntarmos a qualidade do agente
típico da infração, o cidadão comum - na verificação de qualquer variação patrimonial, ocorrida a qualquer altura
na esfera de qualquer pessoa, entre o «tido» e o sujeito a declaração.
Perante esta incriminação «típica», porém, torna-se desde logo manifesto que, com o seu desenho, o
legislador não cumpriu o dever que sobre ele impende de identificar com a máxima precisão que a natureza da
linguagem consentir o facto voluntário que considera punível. A descrição da infração criminal, deste modo feita
pelo decreto da Assembleia, não cumpre na verdade as exigências decorrentes do princípio constitucional de
lex certa, textualmente sediado no n.º 1 do artigo 29.º da CRP. É que, desde logo, não cumpre a função precípua
de garantia que o princípio da legalidade penal, nas vestes de tipicidade, prossegue - a de tornar cognoscível o
sentido da proibição penal, de modo a que os cidadãos com ela se possam conformar ou por ela se possam
orientar. Como se disse no Acórdão 168/99 (cf., supra, ponto 10.2.): «[a]veriguar da existência de uma violação
do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da
conformidade da norma penal [aplicável] com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua
função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma
incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se
constitucionalmente ilegítima». Ora é precisamente nestas circunstâncias que se encontra a norma
incriminadora constante do n.º 1 do artigo 335.º-A, que o decreto da Assembleia pretende aditar ao Código
Penal.
Com efeito, e em primeiro lugar, ao considerar-se punível a verificação de uma mera variação patrimonial,
ou uma incongruência entre duas grandezas - o património «tido» e o sujeito a declaração - deixa-se por
identificar o concreto «comportamento», comissivo ou omissivo, ao qual se associa o juízo de desvalor penal. A
exigência que decorre do n.º 1 do artigo 29.º da CRP, segundo o qual «[n]inguém deve ser sentenciado senão
em virtude de lei [...] que declare punível a ação ou omissão [...]» fica assim por cumprir. O que o artigo 335.º-A
do decreto da Assembleia pretende criminalizar confunde-se com um estado de coisas reportado a uma situação
objetiva de incompatibilidade. Perante uma tal deficiência na construção legislativa do tipo, fica-se logo por esse
motivo sem saber em que é que consiste, com o mínimo de determinação exigível, o facto voluntário punível, de
modo a que com a previsão penal se possam harmonizar os comportamentos dos cidadãos.
Depois, e em segundo lugar, permanecem incertezas e dúvidas quanto ao sentido que deva ser atribuído
aos requisitos dos quais depende o preenchimento do tipo criminal, ou, o que é dizer o mesmo, relativamente
às condições que devem estar reunidas para que, considerando-se perfeito o crime, quanto a ele se possa
deduzir acusação.
Sendo dois os elementos da infração – (i) património adquirido, possuído ou detido; (ii) incompatibilidade
entre este e o sujeito a declaração – parece certo que o cerne da censura penal estará na verificação da
«incompatibilidade» entre as duas grandezas. Já se tinha salientado este ponto. Porém, o que importa agora
notar é que não há certezas quanto ao que se deva entender por tal «incompatibilidade».
Pode com efeito entender-se que a variação patrimonial censurada é, apenas, de ordem numérica ou
quantitativa: se assim for, o tipo criminal preencher-se-á – considerando-se portanto perfeitas as condições para
que, relativamente a ele, se deduza acusação – com a mera verificação de uma não coincidência entre os
montantes a que ascendem as duas grandezas em confronto, e isto qualquer que seja a respetiva origem ou
proveniência (lícita ou ilícita). Para corroborar que foi este o sentido que o legislador quis conferir ao termo
[incompatibilidade] invocar-se-ão, porventura, dois argumentos. Por um lado, um argumento de ordem literal,
decorrente do que vem disposto nos n.os 5 e 6 do artigo 335.º-A. Como no n.º 5 do preceito se faz depender a
punibilidade da «ação» do montante a que ascenda a discrepância entre o que é «tido» e o que é «declarado»
(se a discrepância for inferior a 350 salários mínimos mensais a «conduta» não será punível) e no n.º 6 se agrava
a pena (até 5 anos de prisão) caso tal montante ultrapasse os 500 salários mínimos mensais, dir-se-á que o
sentido a atribuir ao conceito, nuclear, de variação patrimonial será de ordem estritamente quantitativa. Para
confirmar a conclusão invocar-se-á porventura ainda um outro argumento, desta vez de ordem histórica. Uma
vez que os trabalhos preparatórios (cf., supra, ponto 6) revelam que o legislador, ao pretender construir o tipo
criminal do enriquecimento injustificado por contraposição ou diferença em relação ao anterior tipo de crime de
enriquecimento ilícito, propositadamente eliminou, dos termos em que descreve a nova infração, as referências
antes existentes à ausência de origem lícita determinada dos bens e rendimentos ou aos bens legítimos, dir-se-
á então que o novo tipo de crime, desenhado portanto com maior amplitude, se perfaz com a mera verificação
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de uma incompatibilidade quantitativa entre o património «tido» e os bens «declarados» ou que devam sê-lo. E
isto independentemente dos motivos, lícitos ou ilícitos, que possam justificar a referida variação patrimonial, uma
vez que a inclusão destes elementos valorativos na descrição típica do que é agora incriminado veio a ser,
propositadamente, evitada. «Incompatibilidade», nesta aceção, seria, assim, um elemento típico estritamente
descritivo.
Contudo, se assim é, fica por esclarecer a razão de ser do próprio nome que foi conferido ao crime, e que
consta da epígrafe do artigo 335.º-A. O qualificativo injustificado, que se acrescenta ao substantivo
enriquecimento, parece pressupor algo mais do que uma simples verificação de montantes patrimoniais não
coincidentes; parece pressupor que à não coincidência se associa logo um juízo de desvalor. A ser assim,
«incompatibilidade», seria já, nesta aceção, não um elemento típico descritivo, mas um elemento típico
normativo. Mas não se vê como possa compreender-se um tal juízo de desvalor, se a «incompatibilidade» entre
as duas grandezas [património tido, património sujeito a declaração] puder ser verificada pela existência de uma
simples discrepância quantitativa – independentemente de qualquer averiguação quanto às suas causas, e à
valoração que elas mereçam ao direito.
Seja como for, a incerteza mantém-se, contribuindo ela própria para que a redação do preceito nada ou
pouco informe sobre o facto voluntário que se erige em objeto da censura penal.
A este ponto acresce um outro, que surge como consequência direta de tudo quanto acaba de dizer-se.
O âmbito da incriminação, assim tão incertamente definido, é de tal modo amplo que poderá abranger
situações de vida muito heterogéneas, e às quais não será legítimo associar um único e indiferenciado juízo de
desvalor jurídico.
Dada a latitude da previsão, pode suceder que a variação patrimonial verificada seja reveladora de uma
prática ilícita, traduzida na prestação de declarações não fidedignas, ou não correspondentes com a realidade.
Nessa situação, porém, uma será a censura que o «comportamento» típico merecerá ao direito, e que se
concretizará na previsão do crime de fraude fiscal (artigos 103.º e 104.º do Regime Geral das Infrações
Tributárias). Poderá também acontecer que, subsumidas ao tipo do enriquecimento injustificado, deste modo
tão latamente descrito, se encontrem variações patrimoniais reveladoras de acréscimos de riqueza obtidos por
práticas que, por envolverem corrupção, enquanto fenómeno lato de captura privada de bens que pela
comunidade deveriam ser fruídos, lesem o «valor» da confiança, tal como o legislador o prefigurou ao identificar
as razões que, a seu ver, justificariam a incriminação. Mas o intenso juízo de desvalor que nesse caso a «ação»
merecerá do direito poderá já decorrer, por exemplo, da previsão do crime de branqueamento de capitais (artigo
368.º-A do Código Penal).
Os exemplos mostram que à heterogeneidade das situações de vida que poderão vir a ser incluídas na
previsão lata do n.º 1 do artigo 335.º-A corresponderão distintos juízos de desvalor jurídico. A ilegitimidade da
associação de todas estas situações a uma única e indiferenciada reação do direito - dotada da intensidade que
é própria da intervenção penal - torna, também ela, incompreensível o sentido da incriminação. Assim, ainda por
este motivo a norma incriminadora não logra definir, com a clareza que o n.º 1 do artigo 29.º da CRP exige, em
que é que consiste o objeto da punição.
15 – A conclusão, que só por si será suficiente para demonstrar que o novo tipo incriminador se não conforma
com as exigências constitucionais que o legitimariam, tem no entanto consequências que se repercutem no
incumprimento dos demais princípios que ao caso são aplicáveis.
Assim, e subsidiariamente, pode dizer-se que, sendo deste modo construído o tipo, tudo indica que se
considerará consumado o crime pela reunião destes dois elementos: património detido, possuído ou adquirido
por um lado; incompatibilidade entre este e o sujeito a declaração, por outro. Pelo menos, é o que decorre de
uma formulação literal que associa a censura penal à simples verificação de uma certa situação ou de um certo
estado de coisas, resultante exclusivamente de uma incongruência, ou de uma «incompatibilidade», entre duas
grandezas. A ser assim presumido o cometimento do crime, sobre o agente recairá o ónus de, já no âmbito de
um processo contra si instaurado, vir a oferecer justificação para a verificada variação patrimonial. E tal
significará que, logo na formulação do tipo criminal e pelo modo como ele foi construído, se contrariou o princípio
da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), entendido, na sua dimensão substantiva, enquanto
vínculo do próprio legislador penal.
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Por outro lado, perante esta formulação do tipo incriminador torna-se igualmente impossível divisar qual seja
o bem jurídico digno de tutela penal que justifica a incriminação. Particularmente, torna-se manifestamente
impossível nele (no tipo) divisar a prossecução daquele bem, dotado da mais intensa dignidade porque da mais
intensa refração na ordem axiológica da Constituição, que o próprio legislador, no caso, diz ter prosseguido.
Criminalizar uma mera variação patrimonial entre duas grandezas, o património detido e aquele outro sujeito
a declaração, significa optar por uma medida de política criminal de tal modo imperfeitamente desenhada que a
partir dela se não consegue vislumbrar qual seja verdadeiramente a «conduta» humana objeto da censura
jurídico-penal. Em tais circunstâncias, nas quais se encontra comprometida a própria possibilidade de a
formulação da incriminação dar a conhecer o que é ou não proibido pelo direito, comprometida estará também
a possibilidade de se anteverem os bens que justificariam a incriminação. Tanto bastará para que se considere
que no caso se não cumpriu a exigência que decorre do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, segundo a qual
só será constitucionalmente legítima a medida de política criminal que, traduzindo-se na instituição de uma nova
incriminação, vise a preservação de um «valor social» cuja tutela se mostre dotada - nos termos atrás expostos
(cf., supra, ponto 10.1.) - de dignidade jurídico-penal. Numa incriminação de tal modo lata que pode englobar
situações de vida heterogéneas, às quais não é legítimo associar uma única e indiferenciada reação por parte
do direito, é logicamente impossível que se divise por que motivo resolveu o legislador unir a heterogeneidade,
desencadeando para ela a intervenção penal que, em Estado de direito, deve constituir sempre um recurso de
última instância.
A estas considerações não obstam as indicações que o próprio Parlamento forneceu, no n.º 2 do artigo 335.º-
A, relativamente às razões pelas quais assim decidia instituir o crime de enriquecimento injustificado.
Como já se viu, tais indicações, que não têm eficácia prescritiva, intendiam conferir ao «bem jurídico»
protegido pela nova incriminação uma particular intensidade axiológica, e assim, à necessidade da sua tutela,
uma particular dignidade. A especial refração que esse bem teria no sistema de valores da Constituição - por se
concretizar em exigências de preservação do Estado de direito democrático - assim o demonstraria. Contudo,
não se vê que articulação possa existir entre o tipo criminal, tal como ele foi desenhado no n.º 1 do artigo 335.º-
A, e a preservação deste valor constitucional de primeira grandeza. O tipo, já o sabemos, preenche-se com a
verificação da «incompatibilidade» entre o património tido e o sujeito a declaração. Ora, no que ao cidadão
comum diz respeito, não se vê como pode a ocorrência desta incompatibilidade ser por si só ofensiva dos
«interesses fundamentais do Estado» ou da «confiança nas instituições e no mercado», ou tão pouco em si
mesma expressão necessária de uma «agressão» a valores como a «transparência» e a «probidade», inter alia.
Ao cidadão comum, que é o agente típico da infração prevista no artigo 335.º-A, não se conferem especiais
poderes de decisão que afetem a vida da sociedade política como um todo. Por isso mesmo - e diversamente
do que ocorre, como se verá já de seguida, com os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos - não
se encontra ele sujeito a um qualquer dever, que o oponha a toda a comunidade, de perante ela desvelar
permanentemente as vicissitudes por que passe a qualquer momento e por qualquer motivo o património que
adquira, detenha ou possua. O bem jurídico digno de tutela penal (maximamente digno dessa tutela) que,
segundo as palavras do legislador, justificaria a incriminação constante do n.º 1 do artigo 335.º-A que o decreto
da Assembleia pretenderia aditar ao Código Penal não é assim, face à formulação literal que esse mesmo
decreto confere à norma penal incriminadora, passível de ser divisado enquanto finalidade a ser prosseguida
pela incriminação.
D. Do aditamento à Lei 34/87, de 16 de julho
16 - A segunda medida de política criminal tomada pela Assembleia da República através do Decreto 369/XII
que nos presentes autos é impugnada diz respeito aos crimes de responsabilidade de titulares de cargos
políticos e de altos cargos públicos. É na Lei 34/87, de 16 de julho, que se sedia o regime aplicável à prática
desta categoria de crimes. Por isso mesmo, a lei começa por definir não apenas o que se deva entender por
titulares de cargos políticos e titulares de altos cargos públicos (artigos 3.º e 3.º-A) mas ainda o que se deva
entender por crimes de [sua] responsabilidade, esclarecendo que no âmbito do conceito se incluirão todos os
que forem praticados no exercício de funções (artigo 1.º). A seguir, preveem-se os [concretos] tipos de crimes e
as sanções que lhes serão aplicáveis, sendo por ora de destacar, nesse elenco, a previsão do crime de
prevaricação (artigo 11.º), recebimento indevido de vantagem (artigo 16.º), corrupção passiva (artigo 17.º),
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peculato (artigo 21.º), peculato de uso (artigo 21.º), participação económica em negócio (artigo 23.º) e abuso de
poderes (artigo 26.º).
O crime de enriquecimento injustificado, a ser aditado, conforme pretende o artigo 2.º do decreto da
Assembleia, a este diploma, através da sua inscrição como artigo 27.º-A, virá portanto acrescer a este elenco,
aplicando-se ao âmbito de pessoas que a própria lei identifica através das listas contidas nos seus artigos 3.º e
3.º-A.
Tal como vem formulado, o novo tipo legal de crime reproduz quase integralmente a construção já feita no
artigo 1.º do decreto quanto ao artigo 335.º-A, a ser aditado ao Código Penal. Assim, tal como este último
preceito, também o novo artigo 27.º-A da Lei 34/87 contém uma redação estruturada em 6 números. O n.º 1
dedica-se a «desenhar» o tipo legal de crime de acordo com a reunião dos dois elementos que acabámos de
analisar [(i) a aquisição, posse ou detenção de património; (ii) que seja incompatível com rendimentos e bens
declarados ou que devam ser declarados]; o n.º 2 a enunciar aqueles «valores» jurídicos que, segundo o
legislador, justificam a incriminação, em enumeração totalmente coincidente com a já feita a propósito do
aditamento ao Código Penal; os n.os 3 e 4 a determinar o que se deva entender por «património» e por
«rendimentos e bens declarados, ou que devam ser declarados» de forma também coincidente com o feito
anteriormente; e os n.os 5 e 6 a modular a pena de acordo com o montante a que possa ascender a
«incompatibilidade» existente entre património detido (ou possuído, ou adquirido) e património declarado, ou
que deva sê-lo. Por conseguinte, e tal como sucede quanto ao n.º 5 do artigo 335.º-A, é excluída a punibilidade
se o montante da discrepância entre património «detido» e «declarado» não exceder um certo limite. A única
diferença entre um e outro regime está no facto de esse limite ser agora, para os «crimes de responsabilidade»,
não de 350 salários mínimos mensais (como é de acordo com o n.º 5 do artigo 335.º-A) mas apenas de 100,
alargando-se portanto, em regime mais severo, o âmbito da punibilidade. Em idêntico sentido de maior
severidade vai também o disposto no n.º 6, que prevê a possibilidade de punição com prisão até 8 anos caso o
«valor» da incompatibilidade exceda os 350 salários mínimos mensais. Aliás, a maior severidade deste regime,
aplicável aos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, já decorre - por comparação com o regime
fixado no n.º 1 do artigo 335.º-A - do n.º 1 do preceito que agora vimos analisando. Aí, a punição genericamente
prevista é a de prisão até 5 anos; de acordo com o preceito que se pretende aditar ao Código Penal, tal punição
seria de prisão até 3 anos.
Para além deste aspeto geral, que demonstra que o crime de enriquecimento injustificado, quando previsto
em relação a quem seja «titular de cargo político» ou «titular de alto cargo público», se distingue do outro que
com o mesmo nome se procura prever - para ser aplicado a todo aquele que detiver, possuir, adquirir património
cujo valor seja discrepante com declarações feitas ou que devam ser feitas - apenas no que diz respeito à maior
severidade da punição, existe ainda um outro traço distintivo desta nova incriminação que merece ser
sublinhado. Diversamente da maior severidade da punição, este outro traço distintivo não diferencia este tipo de
crime face àquele outro que se pretende aditar ao Código Penal; diferencia-o, sim, face aos demais crimes de
responsabilidade que já se encontram previstos na Lei 34/87, de 16 de julho. Enquanto estes últimos serão
apenas aqueles que o agente típico incluído no conceito legal de «titular de cargo político» ou de «titular de alto
cargo público» cometer no exercício das suas funções (artigo 1.º da Lei 34/87), o crime de enriquecimento
injustificado, agora previsto pelo artigo 27.º-A, valerá não só para o «período do exercício de funções públicas»
mas ainda para «[o]s três anos seguintes à cessação dessas funções». É o que decorre do n.º 1 daquele
preceito.
Assim descrito o regime especial que tem que analisar-se, e sendo certo que a raiz da sua especialidade,
em todos os aspetos de que revista, se encontra no agente típico desta nova incriminação - que, diversamente
do que vimos suceder quanto ao aditamento ao Código Penal, se não confunde com o cidadão comum -, importa
resolver a questão de saber se, por esse motivo, deverá o Tribunal proceder a ponderações diversas daquelas
que lhe merece o artigo 335.º-A, a cuja redação procede o artigo 1.º do decreto parlamentar. Por outras palavras,
o problema que tem agora que resolver-se é o de saber se, e em que medida, o enriquecimento injustificado
cujo agente típico é o titular de cargo político e alto cargo público merecerá, quanto à sua conformidade
constitucional, juízo diferente daquele que já foi feito sobre o mesmo enriquecimento injustificado, quando o seu
agente típico é o cidadão comum: «quem, por si ou por interposta pessoa [...]».
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17 – Os titulares de cargos políticos (incluindo-se nesta genérica categoria também os titulares de altos
cargos públicos) assumem perante a comunidade que servem especiais deveres e responsabilidades. Se
dúvidas houvesse quanto à justeza desta asserção, frequente na linguagem comum, ou quanto à possibilidade
da sua relevância no plano mais estrito da dogmática jurídico-constitucional, dissipá-las-ia o reconhecimento
pela CRP da existência de um estatuto dos titulares de cargos políticos, feito pelo artigo 117.º a propósito dos
«princípios gerais de organização do poder político». Aquele ao qual foi confiado, nos termos da Constituição,
um certo múnus, deve, perante a sociedade estadual, prestar contas pelos atos que pratique no exercício das
suas funções de forma mais exigente do que aquela que é prevista para quem não detém quaisquer poderes de
decisão quanto ao devir da coletividade. É isto mesmo que resulta do já referido artigo 117.º, que não apenas
prevê genericamente a responsabilidade política, civil e criminal dos titulares de cargos políticos pelas «ações e
omissões» conexas com o exercício de funções, como, para além disso ou por causa disso mesmo, endereça
ao legislador duas ordens de regulação: a lei deve – diz o n.º 2 do preceito – dispor sobre os «deveres
responsabilidades e incompatibilidades» desses titulares e sobre as «consequências do respetivo
incumprimento»; a lei deve – diz o n.º 3 – determinar os crimes de responsabilidade e as sanções que lhe sejam
aplicáveis. A Lei 34/87, de 16 de julho, a cujo articulado o decreto da Assembleia se propõe aditar o artigo 27.º-
A, sobre o crime de enriquecimento injustificado, ao estatuir precisamente sobre os «crimes de responsabilidade
dos titulares de cargos políticos», traduz o cumprimento, por parte do legislador ordinário, da ordem de regulação
que lhe é endereçada nos termos do n.º 3 do artigo 117.º da CRP.
Para além disso, não restarão dúvidas de que, por causa da especial posição que ocupam, sobre os titulares
de cargos políticos recairá um dever geral de «transparência» quanto a formas de condução de vida pessoal ao
qual não estará sujeito quem não detém quaisquer poderes de decisão pública. A legitimidade constitucional da
imposição deste «dever de transparência», de incidência essencialmente patrimonial, a quem decide
politicamente [publicamente], pode encontrar, sob o ponto de vista textual, fundamento bastante no já
mencionado artigo 117.º, referente à «especialidade» do estatuto dos titulares de cargos. O seu fundamento
axiológico geral, porém, encontrar-se-á porventura na formulação do seguinte princípio: se ao legislador incumbe
evitar que a confiança - entendida como acima se entendeu, enquanto elemento ético que sustenta o Estado de
direito democrático (cf., supra, ponto 13) - sofra erosão por causa da disseminação de práticas que se traduzam
no aproveitamento privado de bens ou vantagens que a toda a comunidade pertenceria usar ou fruir, sobre quem
dispõe de poderes de decisão - encontrando-se assim, pela natureza das coisas, em condições fácticas
eventualmente favorecedoras da ocorrência daqueles atos ilícitos - deve pesar um especial ónus de
«transparência» patrimonial, sem que com isso se deva entender que injustificadamente se invadem esferas
reservadas de vida, própria ou de terceiros. Assim é que a Lei 4/83, de 2 de abril (alterada por último pela Lei
38/2010, de 2 de setembro), que dispõe sobre o controlo da riqueza dos titulares de cargos políticos e altos
cargos públicos, manda que esses mesmos titulares apresentem no Tribunal, no prazo de 60 dias contado do
início ou da cessação de funções, declaração de rendimentos, património e cargos sociais. Tal é suficiente para
que se conclua que sobre aquela categoria de pessoas que segundo o artigo 27.º-A serão os agentes típicos do
novo crime de enriquecimento injustificado pesa um dever geral, e de cumprimento constante, de
«transparência», dever esse que se traduz numa obrigação especial de revelação de quaisquer vicissitudes por
que passe o seu património. Semelhante dever não impende sobre quem não exerce quaisquer cargos públicos;
e da justeza da sua imposição não pode duvidar-se, atendendo ao que decorre do sistema da Constituição.
18 – Não obstante a conclusão, haverá desde já que esclarecer que do estatuto constitucional dos titulares
de cargos políticos nenhuma ilação se pode retirar que altere as ponderações já feitas pelo Tribunal a propósito
do ilícito criminal que o decreto da Assembleia, através do artigo 335.º-A, pretendia aditar ao Código Penal.
No artigo 27.º-A, que o mesmo decreto pretende aditar à lei sobre os crimes de responsabilidade dos titulares
de cargos políticos, formula-se uma incriminação típica que é em tudo homóloga àquela que consta do referido
artigo 335.º-A. O crime de enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos só se distingue do outro
crime com o mesmo nome, previsto para ser aplicado a qualquer cidadão («quem, por si ou por interposta
pessoa...»), pela especial condição do agente que o comete e pela maior severidade das sanções que lhe são
aplicáveis. Em tudo o resto, a estrutura dos dois tipos incriminadores permanece idêntica.
Sendo assim construído o tipo constante do artigo 27.º-A, todas as questões que se colocaram a propósito
do seu homólogo (o previsto no artigo 335.º-A, a aditar ao Código Penal) mantêm inteira pertinência.
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Desde logo, o enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos permanece, tal como o crime
homólogo perpetrado pelo «cidadão comum», um crime de situação ou de estado de coisas. Uma vez que a
formulação da incriminação se esgota na verificação da «incompatibilidade» entre a riqueza que se tem e aquela
outra sujeita a declaração, também aqui o legislador, com essa formulação, se afastou das exigências que para
ele decorrem do disposto no n.º 1 do artigo 29.º da CRP, uma vez que se omite – tal como se omitiu na redação
do n.º 1 do artigo 335.º-A – a especificação do concreto comportamento, comissivo ou omissivo, que constitui o
objeto da censura penal.
Além disso, mantém pertinência a questão relativa à observação do princípio constitucional da presunção de
inocência. Também aqui será de concluir que se considerará consumado o crime pela reunião de dois
elementos: património detido, possuído ou adquirido por um lado; incompatibilidade entre este e aquele outro
sujeito a declaração, por outro. Tal como vimos suceder quanto ao preceito a aditar ao Código Penal, o cerne
da censura do legislador encontrar-se-á, também quanto ao enriquecimento injustificado dos titulares de cargos
políticos, na verificação de uma «incompatibilidade» entre duas grandezas. Assim, a conclusão a extrair será a
mesma que se obteve aquando da análise do artigo 335.º-A: tal significa que, logo na formulação do tipo criminal
e pelo modo como ele foi construído, se contrariou o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da
CRP), entendido, na sua dimensão substantiva, enquanto vínculo do próprio legislador penal.
Finalmente, a indeterminação, que permanece na construção típica do crime de enriquecimento injustificado
dos titulares de cargos políticos, não permite que se conclua que, através dele, se prossegue um bem jurídico
digno de tutela penal, nos mesmos termos em que tal impossibilidade se verifica quanto ao crime previsto no
artigo 335.º-A. Não se duvida que o bem jurídico complexo (e resumido, na sua complexidade, a uma ideia geral
de confiança, enquanto elemento ético do Estado de direito) que o legislador diz ter corresponda, em abstrato,
a um valor constitucional de primeira grandeza. Todavia, e como se deixou já claro, não basta, para que se
considere perfeita a imposição constitucional da necessidade de pena, a valoração que em tese possa merecer
o bem que, segundo o legislador, com a nova incriminação se terá querido proteger. Fundamental é que, perante
a formulação do concreto tipo criminal que para a sua garantia foi construído, se possa concluir que o bem ou
«valor» protegido não poderia ser garantido de outra forma que não pela criminalização daquele
«comportamento» que foi tipicamente descrito. Ora é uma tal conclusão que a indeterminação da formulação
típica constante do artigo 27.º-A a aditar à Lei 34/87, de 16 de julho, não permite que se retire. Assim, também
por este motivo lesa a norma referida o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das
normas constantes do n.º 1 do artigo 1.º e do artigo 2.º do Decreto da Assembleia da República n.º 369/XII, por
violação dos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 27 de julho de 2015. — Maria Lúcia Amaral (com declaração conjunta com o Sr. Conselheiro Pedro
Machete) — Teles Pereira — Maria de Fátima Mata-Mouros — Catarina Sarmento e Castro — João Pedro
Caupers — Maria José Rangel de Mesquita — Pedro Machete (com declaração conjunta com a Sr.ª Conselheira
Maria Lúcia Amaral) — Lino Rodrigues Ribeiro (com declaração) — Fernando Vaz Ventura (com declaração) —
Carlos Fernandes Cadilha (com declaração) — João Cura Mariano — Ana Guerra Martins — Joaquim de Sousa
Ribeiro.
Declaração de voto
Entendeu a maioria que, em relação ao aditamento à lei sobre crimes da responsabilidade dos titulares de
cargos políticos, previsto pelo artigo 2.º do decreto, se não deveriam retirar quaisquer conclusões do particular
estatuto constitucional que detêm os agente típicos da incriminação, estatuto esse que é reconhecido nos pontos
16 e 17 do Acórdão.
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Dissentimos deste entendimento pelas seguintes razões:
1 – Tal como se diz no Acórdão (ponto 10.1.), o princípio constitucional da necessidade de pena desdobra-
se em duas vertentes essenciais: é não apenas exigível que, perante cada nova incriminação, se possa divisar
no «tipo» desenhado pelo legislador a prossecução de um bem jurídico que seja digno de tutela penal, como é
também necessário, para que se cumpram as exigências decorrentes do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, que perante
a nova decisão de criminalizar se revele tal bem carente, ou precisado, da referida tutela.
Acompanhamos a conclusão sufragada pelo acórdão quanto à impossibilidade de se divisar, perante o tipo
incriminador constante do artigo 1.º do decreto parlamentar - relativo ao artigo 335.º-A do Código Penal -, um
qualquer bem jurídico que seja digno de tutela penal; mas dissentimos da maioria quanto à possibilidade, por
ela afirmada, de sustentar idêntica conclusão quanto ao previsto no artigo 2.º do decreto. Aí, entendemos que o
problema não estará na ausência de bem digno de tutela, mas antes na impossibilidade de se afirmar que o bem
protegido pelo legislador será ainda, perante a formulação típica que é desenhada, um bem «carente» ou
«precisado» dessa mesma tutela.
2 – A impossibilidade de se divisar na concreta formulação do tipo criminal previsto pelo artigo 335.º-A do
Código Penal um qualquer bem jurídico que seja digno de tutela penal só surge justificada, a nosso ver, pela
consideração que segue.
Ao cidadão comum, que é o agente típico da infração prevista no artigo 335.º-A, não se conferem especiais
poderes de decisão que afetem a vida da sociedade política como um todo. Por isso mesmo, não se encontra
ele sujeito a um qualquer dever, que o oponha a toda a comunidade, de perante ela desvelar permanentemente
as vicissitudes por que passe a qualquer momento e por qualquer motivo o património que adquira, detenha ou
possua. O dever que impende sobre qualquer membro comum da sociedade política, que é constitucionalmente
fundado e que deve ser prestado perante a autoridade estadual, é o de pagar impostos (artigo 103.º, n.º 3 da
CRP), e, consequentemente, de proceder às declarações fiscais nos termos em que o impõe a lei geral tributária.
Do incumprimento desse dever decorrem as consequências que a ordem jurídica, nos termos dessa mesma lei,
já prescreve. Ver no incumprimento desse dever – traduzido em qualquer incompatibilidade ocorrente a qualquer
momento entre o património «tido» e o «declarado» ou que deva sê-lo – uma ofensa, atual ou potencial, à
preservação da ordem constitucional, porque à manutenção da confiança no Estado de direito e na democracia,
é algo que, por se tornar insuscetível de ser racionalmente credenciado, se revela à evidência como
manifestamente excessivo.
3 – Todavia, e diversamente do que sucede com o cidadão comum, o agente típico do crime de
enriquecimento injustificado, previsto no artigo 27.º-A da Lei sobre os crimes da responsabilidade dos titulares
de cargos políticos, não está apenas adstrito a uma obrigação, decorrente do dever fundamental de pagar
impostos, de proceder àquelas declarações de património que sejam prescritas pelas regras gerais das leis
tributárias que sejam aplicáveis. Muito mais do que isso, sobre os titulares de cargos políticos impende um dever
especial, fundado na natureza própria do múnus que exercem, de desvelar perante a comunidade todas e
quaisquer vicissitudes por que passe o seu património durante o período de tempo correspondente ao exercício
de funções. A conclusão, que induz a que se tenha em conta a especialidade da relação que, por esta via, se
estabelece entre os titulares destes cargos e a comunidade política no seu todo considerada, não pode deixar
de ter consequências quando se analisa a conformidade do prescrito no artigo 27.º-A com os padrões
legitimadores da constitucionalidade de qualquer nova incriminação.
4 – Na verdade, não cremos que seja possível transpor para este novo tipo de crime todas as considerações
que já foram feitas a propósito do enriquecimento injustificado do - chamemos-lhe assim - «cidadão comum».
Uma vez que o agente típico da infração descrita pelo artigo 27.º-A vive em contexto juridicamente marcado pela
obrigação de desvelo de todo o seu património perante a comunidade que serve, qualquer «incompatibilidade»
ou incongruência que se detete entre aquele último e os rendimentos e bens declarados ou que devam sê-lo
traduz logo, por si própria e em si mesma, uma situação merecedora de um certo e determinado juízo de desvalor
jurídico. O espetro da diversidade de situações da vida que se pode albergar sob o tipo do enriquecimento
injustificado, quando previsto, enquanto crime, para o cidadão comum, estreita a sua amplitude quando o mesmo
tipo é previsto para ser aplicado, apenas, a titulares de cargos políticos. No que a estes últimos diz respeito,
qualquer divergência que se verifique ocorrer entre o património «tido» e o «declarado» [ou que deva sê-lo] terá
para o direito, só por si, um significado próprio, na exata medida em que será, também só por si, sinal de
incumprimento do especial dever de «transparência» a que a ordem jurídica obriga o agente.
5 – Se a este dado, que releva antes do mais da ordem jurídico-constitucional, se juntar um outro, já
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assinalado, e que releva da ordem da observação empírica - os titulares de cargos políticos, aos quais são
conferidos poderes de decisão que afetam a comunidade, encontram-se em situação fáctica de vantagem
quanto à possibilidade de captura, em proveito próprio ou alheio, de bens que a essa mesma comunidade
pertenceria fruir -, reunidas estão as condições para que se não possa sem mais «aplicar» a este tipo de crime
todas as ponderações que foram feita aquando da análise do enriquecimento injustificado do «cidadão comum».
Disse-se, a propósito deste último tipo de crime, que a formulação lassa da incriminação não permitia que se
divisasse nela a prossecução de um qualquer bem jurídico que fosse digno de tutela penal; e que, se assim era
em geral, também o seria em relação àquele particular bem que o legislador, no n.º 2 do artigo 335.º-A –
textualmente reproduzido no n.º 2 do artigo 27.º-A – invocava como sendo o que, a seus olhos, justificaria a
incriminação. Ora, é esta afirmação, relativa à manifesta impossibilidade de discernir no tipo incriminador o bem
que é digno de tutela penal, que não pode ser repetida face à incriminação resultante do artigo 27.º-A. Seja pelo
acervo de deveres que impende sobre o titular de cargos políticos e que não impende sobre o cidadão comum,
e que se traduz na condição especial em que aquele se encontra de desvelo constante de toda e qualquer
variação que ocorra em património que seja seu; seja pela posição fáctica em que o exercício de poderes
públicos o coloca, posição essa que favorece empiricamente a ocorrência da hipótese de captura para fins
privados de bens comuns, a verdade é que, no que lhe diz respeito [ao titular de cargo político], a verificação da
mera «incompatibilidade» entre o património «tido» e o «declarado» adquire, para o direito, um sentido
qualitativamente diverso daquele que vimos poder ser atribuído à mesma «incompatibilidade», quando prevista
no tipo incriminatório constante do artigo 335.º-A. E, dentro desse diverso sentido, não pode manifestamente
excluir-se a hipótese do estabelecimento, pela ordem jurídica, de uma relação de articulação entre o «facto»
incriminado - a discrepância entre as duas grandezas - e o bem valioso que se quis proteger. A previsão,
estabelecida pelo legislador, de uma atual ou potencial relação de «danosidade» ou de «ofensividade» entre
uma coisa e outra - entre a discrepância detetada entre o que se tem e o que se declara ou deva declarar, por
um lado, e a capacidade que essa discrepância terá para erodir o bem jurídico valioso que é a confiança no
Estado de direito e na democracia - não é coisa que, no contexto do artigo 27.º-A, apareça destituída de qualquer
credenciação racional. E esta é uma conclusão à qual o Tribunal, que tem neste contexto um controlo limitado
pela margem de liberdade conformadora do legislador (ponto 9), não pode deixar de estar vinculado.
6 – No entanto, não basta, para que se legitime constitucionalmente uma nova incriminação, que seja ainda
discernível num certo «tipo incriminador» um bem jurídico digno de tutela penal, ou que, pelo menos - em
formulação mais adequada ao âmbito de controlo que é próprio do Tribunal -, seja impossível sustentar-se,
perante certa incriminação, que os termos em que ela é feita não permite, manifestamente, que se divise um
qualquer bem que seja dotado daquela dignidade. Imprescindível é ainda, nos termos do disposto no n.º 2 do
artigo 18.º da CRP, que, perante cada nova incriminação que é decretada, um tal bem se mostre ainda carente
ou precisado de tutela penal. Ou por outras palavras, usadas aliás no Acórdão: não basta que em cada nova
incriminação se divise a intenção de preservar um valor social que, de acordo com a Constituição, possa ser
tido como merecedor do mais elevado grau de proteção jurídica; é ainda necessário que o fim almejado - a
preservação de tal valor - não possa ser realizado por outro meio de política legislativa que não aquele que se
traduz no recurso à nova intervenção penal.
Ora a indeterminação, que permanece na construção típica do crime de enriquecimento injustificado dos
titulares de cargos políticos, não permite que se conclua que, através dele, se prossegue ainda um bem jurídico
que seja «carente» ou «precisado» de tutela penal. Perante a ausência de uma qualquer indicação precisa de
qual seja, no caso, o «comportamento» punível, fica-se sem saber o que acrescenta o novo tipo incriminador ao
conjunto de normas já existentes, e já dispostas a prosseguir o mesmo fim valioso que o artigo 27.º-A se propõe
realizar. E sem que se saiba o que acrescenta a nova intervenção penal ao conjunto de medidas já previstas
para a preservação da confiança no Estado de direito democrático não pode afirmar-se a sua necessidade.
Com efeito, o artigo 3.º da Lei 4/83, de 2 de abril, já prevê, em relação aos titulares de cargos políticos,
consequências para a não apresentação das declarações devidas ou para a apresentação de declarações
falsas. O novo tipo incriminador, ao considerar a incompatibilidade do património adquirido, possuído ou detido
por tais titulares não só com os bens e rendimentos por si já declarados, mas também com aqueles que os
mesmos titulares devessem declarar, revela-se por isso, inadequado a reforçar a tutela atualmente já
dispensada ao bem jurídico-penal visado, nomeadamente através do sancionamento autónomo do
incumprimento do dever especial de declaração a que se encontram obrigados os titulares de cargos políticos.
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Pelo exposto, a conclusão segundo a qual esse fim almejado pelo legislador que estabeleceu uma nova
incriminação não poderia ser realizado por medida de política legislativa menos violenta do que aquela que se
traduz na previsão de novos crimes e de novas penas não pode, no caso, ser afirmada. Mas é por esse motivo,
e não por qualquer outro, que entendemos ser ainda, quanto a este ponto, a norma em causa lesiva do disposto
no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.
(Maria Lúcia Amaral e Pedro Machete).
Declaração de voto
Acompanho a decisão e, no geral, a fundamentação, mas desta me afasto quanto à posição assumida no
âmbito do ponto 18 quando se considera que a construção típica do crime de enriquecimento injustificado não
permite concluir que, através dele, se prossegue um bem jurídico digno de tutela penal.
A construção de uma norma criminal que se queira legitimada e reconhecida como tal exige a tutela de um
bem jurídico-penal que se reflita, de forma explícita ou implícita, mas sempre clara, na ilicitude típica. Ora, se é
certo que, por exigências de legitimação penal, as condutas proibidas e punidas devem estar referidas à
proteção de um bem jurídico-penal, não é menos certo que esse bem jurídico é incapaz de fornecer
imediatamente a conduta que tem de ser incriminada. A conduta em que se consubstancia um tipo de crime não
pode ser determinada por uma aplicação racionalmente dedutiva ou lógico-subsuntiva do bem jurídico. Ao bem
jurídico-penal cabe apenas a função de indicar o que pode ser legitimamente tutelado pelo direito penal, ou seja,
os valores e interesses essenciais à realização humana em sociedade que se encontram refletidos no texto
constitucional.
Cabendo ao bem jurídico a função de delimitar negativamente a conduta a criminalizar, então é possível
divisar no tipo incriminador do enriquecimento injustificado – artigo 2.º do Decreto 369/XII da Assembleia da
República pretende aditar à Lei 34/87, de 16 de julho – a proteção de um específico bem jurídico: a transparência
da situação patrimonial dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. Trata-se de um valor ou bem
jurídico com capacidade para intervir na conformação de ilícitos e condutas penais. Na verdade, a consciência
atual da relevância do fenómeno e da origem da corrupção, suborno, clientelismo e fraude, assim como os
reflexos perniciosos que estes atos têm na sociedade e nas instituições, contribuem para que se conceda à
transparência dos proventos dos titulares de cargos políticos (e até aos demais funcionários públicos, em
especial os que exercem cargos de direção e chefia) a dignidade de bem jurídico-penal. Sabendo-se que a
corrupção - independentemente do valor, patrimonial ou não, e das suas manifestações concretas - provoca a
erosão da confiança nas instituições político-administrativas e inutiliza boa parte dos esforços de concretização
dos objetivos proclamados, aquela transparência assume grande importância social, tornando-se um bem cada
vez mais precioso aos olhos da comunidade. Um indício seguro dessa importância é a ligação desse valor a
bens constitucionalmente relevantes no exercício de funções públicas, como o da legalidade, da imparcialidade
e da exclusividade (cf. artigos 266.º, n.º 2 e 269.º da CRP). Ora, a prossecução objetiva, exclusiva e transparente
do interesse público impõe, como um dos seus corolários, o dever de idoneidade material ou o dever de
probidade, segundo o qual quem exerce funções públicas está proibido de se aproveitar dos poderes e da sua
posição como fonte de receitas ou vantagens para si ou para outrem.
De modo que, quem durante o exercício de funções públicas ou por causa desse exercício «adquirir, possuir
ou detiver património» que não tem justificação nos rendimentos e bens conhecidos e possuídos legitimamente,
cria no público a suspeita de aproveitamento do cargo para obtenção de vantagens indevidas; e ausência de
justificação desse património faz presumir a proveniência ilícita, com a consequente afetação da confiança da
comunidade nas instituições do Estado.
Simplesmente, ao medir-se o enriquecimento injustificado pelos rendimentos e bens «declarados ou que
devam ser declarados», a conduta a incriminar acaba por se distanciar do bem jurídico objeto de tutela. Com
efeito, se o titular de cargo político declarar, para efeitos fiscais ou extrafiscais, todos os rendimentos, incluindo
os de proveniência ilícita, fica fora do alcance do tipo de enriquecimento injustificado, porque o património que
adquirir durante o exercício do cargo não será «incompatível» com o declarado; já a aquisição lícita de património
que, por algum motivo, ainda não foi refletida nas declarações, preenche o elemento objetivo do tipo de ilícito,
porque revela incongruência com os rendimentos e bens declarados. Naquela situação, a incriminação do
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enriquecimento injustificado não tem qualquer aptidão para proteger os bens da transparência e da confiança;
nesta outra, sendo o património de origem lícita, não há bem jurídico carente de proteção. E o desvalor jurídico-
penal da falta da declaração já se encontra amparado com outras prescrições legais, como as que estabelecem
crimes fiscais (artigo 103.º do RGIF) e falsas declarações em relação à declaração de rendimentos (cf. n.º 2 do
artigo 3.º da Lei 4/83, de 2 de abril). Daí que a relação que se estabeleceu entre a ação e o bem jurídico não
tenha sido um modo adequado de tutelar a transparência patrimonial dos titulares de cargos políticos, e por
conseguinte, o tipo incriminador não está suficientemente credenciado pelos princípios da necessidade e da
proporcionalidade ou proibição do excesso (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
É claro que reconduzir o ilícito-típico à simples incongruência entre o património atualmente possuído e
património anteriormente declarado, sem exigir a justificação da proveniência dos bens, significa construir um
tipo incriminador com base na suspeita de que a incongruência tem origem em atos ilícitos. De facto, o que
causa dano social é a inexistência de explicação satisfatória do modo como o património não correspondente
aos rendimentos percebidos chegou à posse de quem exerce funções públicas. A ausência de justificação do
património possuído faz presumir a proveniência ilícita, uma presunção de violação dos deveres de probidade e
transparência. Só que, como já foi apreciado no Acórdão 179/2012, a falta de justificação da proveniência dos
bens como elemento constitutivo do crime sacrifica o princípio da presunção de inocência, o que não é
constitucionalmente tolerado.
(Lino Rodrigues).
Declaração de voto
Acompanho a pronúncia de inconstitucionalidade quanto às duas normas incriminadoras visadas no pedido
- que por partilharem a mesma estrutura típica consentem uma abordagem conjunta -, por violação dos princípios
da necessidade de tutela penal, da legalidade e da presunção de inocência.
Impõe-se, contudo, quanto ao princípio da necessidade de tutela penal, esclarecer que as razões que me
conduzem a tal juízo não assentam na consideração de que os valores e interesses cuja prossecução é
enunciada pelo legislador, com vista a assegurar a legitimidade jurídico-constitucional da decisão de política
criminal em presença, não preexistam como bens jurídicos – alguns como valores-meios ou instrumentos –
dotados de dignidade jurídico-penal, porque concretizações dos valores constitucionais expressa ou
implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais.
Em meu entender, os termos em que foi arquitetado o tipo impedem que se estabeleça o indispensável nexo
referencial entre tais bens jurídicos e uma (certa) conduta proibida, deixando essencialmente sem resposta a
questão de saber o que de novo, ou mesmo como reforço – face ao arsenal jurídico-penal votado igualmente à
luta contra a corrupção ou ainda aos crimes fiscais –, se pode retirar da norma penal incriminadora, enquanto
critério orientador do comportamento dos cidadãos. E, sem o poder determinar, não é possível assegurar o
respeito pela "exigência de dignidade punitiva prévia das condutas enquanto expressão de uma elevada
gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1.º da Constituição, do qual decorre a proteção da essencial
dignidade da pessoa humana) que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só
da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido
estrito, a ineficácia de outro meio jurídico)" (Acórdão 211/95). Seguramente, pelo menos ao nível do critério da
carência de tutela penal, as normas que se pretendem introduzir não obedecem às exigências jurídico-
constitucionais decorrentes do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
O especial estatuto jurídico-constitucional dos titulares de cargos políticos e a consagração no ordenamento
jurídico de um dever de revelação da riqueza por parte dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos,
nos termos da Lei 4/83, de 2 de abril, não constitui obstáculo a este entendimento. É certo que confere sentido
mais evidente a um dos elementos do tipo – os bens e rendimentos sujeitos a declaração para fins extrafiscais
– e, do mesmo jeito, aproxima o quadro de tutela de valores e interesses como a transparência, a probidade e
a idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património, enunciados pelo legislador, na
perspetiva da especial posição de poder que caracteriza os agentes a que pode ter aplicação o artigo 27.º-A.
Contudo, para além de à violação do dever de transparência e verdade ínsito na relação de comunicação
para com a comunidade contida no referido diploma já se encontrar associada censura jurídico-penal, através
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do crime de falsas declarações, nos termos n.º 2 do artigo 3.º, da mesma lei, e também de tal dever não ser
exclusivo dos agentes que, para efeitos da Lei 34/87, de 16 de julho, são considerados titulares de cargos
políticos e altos cargos públicos – ainda que o elenco dos artigos 3.º e 3.º-A, da Lei 34/87, de 16 de julho, e
artigos 4.º da Lei 4/83, de 2 de abril, seja largamente coincidente –, persiste a consideração de que o tipo de
enriquecimento injustificado não surge estruturado como delito de falsidade. O desvalor jurídico-penal não
decorre da inverdade ou ocultação de bens e rendimentos no ato declarativo produzido em cumprimento das
injunções que decorrem da Lei 4/83, de 2 de abril, pois, mesmo que infringidas, não assumem relevo autónomo
para o efeito da incriminação como enriquecimento ilegítimo. Permanece a exigência de uma variação
patrimonial, cuja medida nem mesmo é encontrada a partir do que foi efetivamente declarado, mas sim do que
deva ser declarado. É, pois o acréscimo patrimonial sem origem conhecida que emerge em si mesmo como
desvalioso - e não a divergência entre o declarado e a realidade ou mesmo a omissão de declaração -, sem que
se logre identificar um dever jurídico - e o correspondente défice pessoal a sancionar - que o legitime. Aliás, no
que concerne ao património adquirido, possuído ou detido nos três anos seguintes à cessação de funções -
idóneo, nos termos do n.º 1 do artigo 27.º-A, a conduzir a um apuramento de incompatibilidade -, nem mesmo
persiste qualquer obrigação declarativa fundada na Lei 4/83, de 2 de abril: a declaração final deve ser
apresentada no prazo de 60 dias a contar da cessação de funções (cf. artigo 2.º, n.os 1 e 4).
(Fernando Vaz Ventura).
Declaração de voto
Com base nas considerações já expendidas na declaração de voto aposta ao Acórdão 179/12, que se
pronunciou sobre o Decreto da Assembleia da República que pretendia instituir o crime de enriquecimento ilícito,
e que entendo serem ainda aplicáveis no presente caso, acompanho o juízo de inconstitucionalidade mas
apenas no que se refere à violação do princípio da presunção de inocência do arguido.
A eliminação, nas normas dos artigos 335.º-A do Código Penal e 27.º-A da Lei 34/87, de 16 de julho, aditadas
pelo Decreto da Assembleia da República n.º 369/XII, do inciso "sem origem lícita determinada", que constava
do anterior diploma e representava a formulação negativa de um elemento constitutivo do tipo legal, não evita a
presunção do resultado ilícito em que se traduz a divergência entre o património e os rendimentos declarados.
Nesse sentido, o arguido terá sempre de tomar a iniciativa de alegação e prova em relação aos factos que
revelem a discrepância, em vista a determinar a origem lícita do património ou, ao menos, suscitar o estado de
dúvida sobre o caráter injustificado do enriquecimento. E não poderá limitar-se a exercer o direito ao silêncio,
visto que a não prestação de declarações terá sempre a consequência desvantajosa de não permitir contraditar
a prova documental que evidencie a variação desproporcionada entre o património e os rendimentos.
Na verdade, o tipo legal não exige a prova da origem ilícita do património – que, a verificar-se, conduziria ao
preenchimento de um outro tipo de incriminação –, nem será possível ao Ministério Público, em fase de
investigação, desvelar eventuais circunstâncias justificativas do enriquecimento que sejam do conhecimento
pessoal do arguido. Encontrando-se o tipo legal construído em termos tais que o arguido tem de prescindir
necessariamente do direito ao silêncio para esclarecer aspetos que não poderão ser objeto de prova por outro
meio, o que está em causa é uma verdadeira transferência do ónus da prova da acusação para a defesa.
(Carlos Fernandes Cadilha).
———
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DECRETO N.º 426/XII
[REGIME JURÍDICO DO SISTEMA DE INFORMAÇÕES DA REPÚBLICA PORTUGUESA (REVOGA AS
LEIS N.OS 30/84, DE 5 DE SETEMBRO, E 9/2007, DE 19 DE FEVEREIRO, E OS DECRETOS-LEIS N.OS
225/85, DE 4 DE JULHO, E 254/95, DE 30 DE SETEMBRO)]
Mensagem do Presidente da República sobre a devolução sem promulgação do Decreto
Junto devolvo a Vossa Excelência, Sr.ª Presidente da AR, nos termos do artigo 279.º, n.º 1, da Constituição,
o Decreto da Assembleia da República n.º426/XII – "Regime jurídico do Sistema cie Informações da República
Portuguesa (revoga as Leis n.os 30/84, de 5 de setembro, e 9/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Lei n.os
225/85, de 4 cie julho, e 254/95, de 30 de setembro)" –, uma vez que o Tribunal Constitucional, através de
Acórdão cuja fotocópia se anexa, se pronunciou, em sede de fiscalização preventiva, pela inconstitucionalidade
da norma do n.º 2 do artigo 78.º do mesmo Decreto.
Lisboa, 8 de setembro de 2015.
O Presidente da República,
Anexo: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2015.
Anexo
ACÓRDÃO N.º 403/2015
Processo n.º 773/15
Plenário
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
(Conselheiro Teles Pereira)
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Presidente da República requereu, em 7 de agosto de 2015, ao abrigo do n.º 1 do artigo 278.º, n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa (CRP) e do n.º 1 do artigo 51.º e do n.º 1 do artigo 57.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
novembro (LTC), que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com o disposto no n.º 4 do artigo 34.º
da CRP da norma constante do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII da Assembleia da República, que
«Aprova o Regime Jurídico do Sistema de Informações da República Portuguesa», revogando as Leis n.os 30/84,
de 5 de setembro, e 9/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis n.os 225/85, de 4 de julho, e 254/95, de 30
de setembro, recebido na Presidência da República no dia 6 de agosto de 2015, para ser promulgado como Lei.
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O pedido assenta nos seguintes fundamentos:
«…
1.º - Pelo Decreto n.º 426/XII, a Assembleia da República aprovou o regime jurídico do Sistema de
Informações da República Portuguesa.
2.º - No n.º 2 do artigo 78.º do referido Decreto estabelece-se que ‘os oficiais de informações do SIS e do
SIED podem, para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º, e no seu exclusivo âmbito, aceder
a informação bancária, a informação fiscal, a dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos
das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a
fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o
equipamento de telecomunicações ou a sua localização, sempre que sejam necessários, adequados ou
proporcionais, numa sociedade democrática, para o cumprimento das atribuições legais dos serviços de
informações, mediante a autorização prévia e obrigatória da Comissão de Controlo Prévio, na sequência
de pedido devidamente fundamentado’.
3.º - A justificação para o regime aprovado pode encontrar-se na exposição de motivos que acompanhava
a proposta de lei do Governo segundo a qual ‘no contexto da recente Estratégia Nacional de Combate ao
Terrorismo (…) e dos desafios colocados pelas novas ameaças à segurança nacional, surge como
incontornável o acesso a meio operacionais consagrados pela primeira vez de modo transparente e
expresso na lei positiva, indo ao encontro do padrão de garantias quer da Carta Europeia dos Direitos
Fundamentais quer da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Neste contexto, e em linha com a
maior parte dos Estados-Membros da União Europeia, prevê-se o acesso aos metadados, isto é, o acesso
a dados conservados pelas operadoras de telecomunicações, o que se rodeia de especiais regras para
salvaguardar integralmente os direitos dos cidadãos, em especial o direito à privacidade’.
4.º - Não está em causa, assim, o mérito e a necessidade deste regime o qual, de resto, foi aprovado por
uma expressiva maioria, superior a dois terços dos Deputados em efetividade de funções.
5.º - Coloca-se, todavia, a questão de saber – não tendo esta dúvida sido ignorada pelo legislador na
referida exposição de motivos, sendo, por outro lado, amplamente sublinhada nos diversos pareceres que
constam dos trabalhos preparatórios – se a norma em causa, sendo justificada pelas novas ameaças à
segurança nacional, é conforme com o disposto na Constituição em matéria de privacidade das
telecomunicações.
6.º - Com efeito, estabelece-se no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição que ‘é proibida toda a ingerência
das autoridades públicas na correspondência nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação,
salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal’.
7.º - Em face da norma constitucional citada surgem duas dúvidas fundamentais quanto ao problema em
análise: i) deve o acesso aos metadados considerar-se uma ingerência nas telecomunicações para os
efeitos previstos na norma constitucional? e ii) pode considerar-se que a autorização prévia e obrigatória
da Comissão de Controlo Prévio equivale ao controlo existente no processo criminal?
8.º - Por um lado, em face da evolução tecnológica das últimas décadas, pode questionar-se a inclusão
dos metadados no conceito de telecomunicações, tendo presente que a norma constitucional em causa
foi aprovada num momento em que tais desenvolvimentos se encontravam ainda em fase inicial.
9.º - Por outro lado, o legislador, porventura consciente das dificuldades de conformidade constitucional
que a proposta suscitava, fez depender o acesso aos metadados de autorização prévia e obrigatória da
Comissão de Controlo Prévio a qual, nos termos do disposto no artigo 35-º do mesmo Decreto, é
‘composta por três magistrados judiciais, designados pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre
juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com, pelo menos três anos de serviço nessa
qualidade’.
10.º - Coloca-se, pois, a questão de saber se esta autorização prévia concedida por uma Comissão com
a mencionada composição satisfaz a exigência constante da última parte do n.º 4 do artigo 34.º da
Constituição.
…».
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2. O requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 7 de agosto de 2015 e o pedido foi admitido na mesma
data.
3. Notificada para o efeito previsto no artigo 54.º da LCT, a Presidente da Assembleia da República veio
apresentar resposta na qual oferece o merecimento dos autos. Já após a fixação da orientação do Tribunal, foi
apresentada pelo Governo uma Nota Explicativa, a qual foi apensa, por linha, ao processo.
4. Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2 da LCT e fixada a orientação do Tribunal, importa
decidir conforme dispõe o artigo 59.º da mesma Lei.
II – Fundamentação
5. A única questão que o Tribunal deve apreciar refere-se à norma constante do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto
n.º 426/XII da Assembleia da República, que estatui o seguinte:
Artigo 78.º
Acesso a dados e informações
1 – Os diretores e os dirigentes intermédios de primeiro grau do SIS e do SIED têm acesso a informação e
registos relevantes para a prossecução das suas competências, contidas em ficheiros de entidades públicas,
nos termos de protocolo, ouvida a Comissão Nacional de Proteção de Dados no quadro das suas competências
próprias.
2 – Os oficiais de informações do SIS e do SIED podem, para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do
artigo 4.º, e no seu exclusivo âmbito, aceder a informação bancária, a informação fiscal, a dados de tráfego, de
localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador
ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como
para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização, sempre que sejam necessários,
adequados e proporcionais, numa sociedade democrática, para cumprimento das atribuições legais dos serviços
de informações, mediante a autorização prévia e obrigatória da Comissão de Controlo Prévio, na sequência de
pedido devidamente fundamentado.
Para bem se compreender o alcance do n.º 2 do artigo 78.º agora introduzido pelo Decreto n.º 426/XII e
ajuizar da sua validade constitucional, há que ter presente o sentido prescritivo dos preceitos para que remete,
nomeadamente a alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º e os artigos 20.º, 35.º a 38.º, que criam e regulam a “Comissão
de Controlo Prévio”, os quais estatuem o seguinte:
Artigo 4.º
Atribuições
1 –(…).
2 – Os serviços de informações desenvolvem atividades de recolha, processamento, exploração e difusão
de informações:
a) Necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança interna
e externa do Estado Português;
b) Que contribuam para garantir as condições de segurança dos cidadãos, bem como o pleno funcionamento
das instituições democráticas, no respeito pela legalidade e pelos princípios do Estado de Direito; e
c) Adequadas a prevenir a sabotagem, a espionagem, o terrorismo, e sua proliferação, a criminalidade
altamente organizada de natureza transnacional e a prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou
destruir o Estado de Direito democrático constitucionalmente estabelecido.
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Artigo 20.º
Disposições gerais
Sem prejuízo das atribuições próprias da Assembleia da República e dos demais órgãos de soberania, a
atividade do SIRP é objeto de fiscalização externa especializada da competência exclusiva das seguintes
entidades independentes:
a) O Conselho de Fiscalização do SIRP;
b) A Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP;
c) A Comissão de Controlo Prévio.
Artigo 35.º
Comissão de controlo prévio
A Comissão de Controlo Prévio é composta por três magistrados judiciais, designados pelo Conselho
Superior da Magistratura, de entre juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com pelo menos três
anos de serviço nessa qualidade.
Artigo 36.º
Competência
1 – A Comissão de Controlo Prévio é a entidade competente para a concessão de autorização prévia de
acesso à informação e aos dados previstos no n.º 2 do artigo 78.º.
2 – O pedido para a concessão de autorização prévia prevista no número anterior é decidido ponderando a
relevância dos seus fundamentos e a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente
previstos.
3 – A Comissão de Controlo Prévio elabora anualmente um relatório de atividades, que remete à comissão
parlamentar competente para os assuntos constitucionais, direitos, liberdades e garantias e ao Conselho de
Fiscalização do SIRP.
Artigo 37.º
Procedimento
1 – O pedido para a concessão da autorização prévia prevista no número anterior é da competência dos
diretores do SIS ou do SIED, ou de quem os substitua em caso de ausência ou impedimento, com conhecimento
ao Secretário-Geral.
2 – O pedido previsto no número anterior é apresentado por escrito e contém os seguintes elementos:
a) Indicação concreta da ação operacional a realizar e das medidas requeridas;
b) Factos que suportam o pedido, finalidades que o fundamentam e razões que aconselham a adoção das
medidas requeridas;
c) Identificação da pessoa ou pessoas, caso sejam conhecidas, envolvidas nos factos referidos na alínea
anterior e afetadas pelas medidas e indicação do local onde as mesmas devam ser realizadas;
d) Duração das medidas requeridas, que não pode exceder o prazo máximo de três meses, prorrogáveis
mediante autorização expressa.
3 – A decisão é da competência do juiz a quem tenha sido distribuído o pedido, podendo haver decisões do
coletivo em matérias de particular complexidade.
4 – O juiz outorga a decisão de concessão ou de denegação da autorização, por despacho fundamentado
proferido no prazo máximo de 72 horas.
5 – Em situações de urgência devidamente fundamentadas no pedido dos serviços de informações, pode ser
solicitada ao juiz a redução para 24 horas do prazo previsto no número anterior.
6 – O procedimento previsto no presente artigo é coberto pelo regime do segredo de Estado nos termos do
artigo 15.º.
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7 – O Secretário-Geral ordena a destruição imediata de todos os dados e informação recolhidos mediante a
autorização prevista no presente artigo, sempre que não tenham relação com o objeto ou finalidades da mesma.
8 – Por decisão do coletivo de juízes, pode ser determinado o cancelamento de quaisquer procedimentos de
acesso a informação e a dados previstos no n.º 2 do artigo 78.º, bem como participados à Comissão de
Fiscalização de Dados do SIRP os elementos conducentes à destruição imediata dos respetivos dados ou
informações.
Artigo 38.º
Extensão de regime à Comissão de Controlo Prévio
Aplica-se à Comissão de Controlo Prévio, com as necessárias adaptações e naquilo que não for incompatível
com o Estatuto dos Magistrados judiciais, o disposto nos artigos 25.º a 27.º, em matéria de imunidades, deveres,
direitos e regalias.
6. Importa começar por delimitar o objeto do recurso, uma vez que o Requerente termina o pedido solicitando
a fiscalização preventiva da constitucionalidade dirigida à norma do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII,
preceito que transcreve na sua integralidade, no artigo 2.º do requerimento.
Assim, tomado em toda a sua amplitude semântica, o pedido parece apontar no sentido de que se pretende
ver apreciada a conformidade constitucional dos vários tipos de acesso admitidos aos oficiais de informações
do SIS e do SIED para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto n.º 426/XII, a saber, o
acesso a informação bancária, o acesso a informaçãofiscal e o acesso a dados de tráfego, de localização ou
outros dados conexos das comunicações. Porém, uma leitura conjugada do pedido com os fundamentos
exarados nos artigos 3.º a 10.º do requerimento, conduz a outro entendimento, mais restrito.
Com efeito, o Requerente transcreve no artigo 3.º o segmento da Exposição de Motivos da Proposta de Lei
n.º 345/XII, - na origem do Decreto em análise -, em que se alude tão somente ao acesso aos metadados,
enquanto dados – estruturais ou descritivos - produzidos no âmbito ou em conexão com um processo de
telecomunicação, registados e conservados pelas respetivas operadoras, conceito que é retomado nos artigos
7.º, 8.º e 9.º do requerimento. Por outro lado, nenhuma menção é feita à possibilidade de acesso dos oficiais do
SIS e do SIED a informação de outra natureza, nem às condicionantes respetivas.
Mostra-se, assim, seguro considerar que o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade da
normação contida no n.º 2 do artigo 78.º não abrange a possibilidade de acesso dos oficiais de informações do
SIS e SIED a informação bancária e fiscal, prevista no Decreto n.º 426/XII.
Importa ainda ter desde já em atenção que a conexão que é estatuída entre os dados a que os mesmos
oficiais de informação podem ter acesso – condicionado e funcionalmente orientado à identificação da fonte,
destino, data, hora, duração e tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de
telecomunicações ou a sua localização -, e um processo comunicacional – realizado ou tentado – permite
estabelecer uma relação de correspondência entre tais dados e aqueles compreendidos no conceito de dados
de tráfego, tal como acolhido na Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29 de agosto,
diploma de transposição da Diretiva n.º 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho (JO,
L201, de 31 de julho de 2002). Releva especialmente o considerando (15) da Diretiva (JO, L201/38), explicitando
o sentido e alcance dos dados de tráfego, nos seguintes termos:
«Uma comunicação pode incluir qualquer informação relativa a nomes, números ou endereços fornecidos
pelo remetente de uma comunicação ou pelo utilizador de uma ligação para efetuar a comunicação. Os dados
de tráfego podem incluir qualquer tradução desta informação pela rede através da qual a comunicação é
transmitida, para efeitos de execução da transmissão. Os dados de tráfego podem ser, nomeadamente, relativos
ao encaminhamento, à duração, ao tempo ou ao volume de uma comunicação, ao protocolo utilizado, à
localização do equipamento terminal do expedidor ou do destinatário, à rede de onde provém ou termina a
comunicação, ao início, fim ou duração de uma ligação. Podem igualmente consistir no formato em que a
comunicação é enviada pela rede».
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Nesta aceção, o tratamento dos dados de localização que fornecem a posição geográfica do equipamento
terminal de um utilizador e que se destinam a permitir a transmissão das comunicações, mormente no âmbito
de sistemas de telecomunicações móveis, encontra-se abrangido pelo conceito de dados de tráfego, aplicando-
se-lhes o disposto nos artigos 6.º da Diretiva n.º 2002/58/CE [cfr. considerando (35)] e da Lei n.º 41/2004, de 18
de julho.
Diferentemente, outros dados de localização, decorrentes da capacidade de tratamento que as redes móveis
digitais possam deter [referida pelo considerando (35)] como «a capacidade de tratar dados de localização que
são mais precisos do que o necessário para a transmissão de comunicações, tais como serviços que prestam
aos condutores, informações e orientações individualizadas sobre o tráfego», previstos nos artigos 9.º da Diretiva
n.º 2002/58/CE e 7.º da Lei n.º 41/2004, de 18 de julho, porque não conexos com a transmissão de
comunicações, não se encontram compreendidos na norma objeto do pedido e, correspondentemente, no
âmbito da cognição deste Tribunal.
Assim, constitui objeto do presente pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, sobre a qual
cumpre emitir pronúncia, a norma, constante do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII, nos termos da qual,
os oficiais de informações do SIS e do SIED podem, para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º,
e no seu exclusivo âmbito, aceder a dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das
comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o
destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de
telecomunicações ou a sua localização, sempre que sejam necessários, adequados e proporcionais, numa
sociedade democrática, para cumprimento das atribuições legais dos serviços de informações, mediante a
autorização prévia e obrigatória da Comissão de Controlo Prévio, na sequência de pedido devidamente
fundamentado.
7. Inserindo-se a norma objeto do presente recurso no âmbito de um diploma que visa estabelecer um novo
Regime Jurídico do Sistema de Informações da República Portuguesa, começaremos por apresentar uma breve
evolução histórica do quadro jurídico-normativo do Sistema de Informações da República (SIRP).
A Lei de Defesa Nacional publicada na sequência da primeira revisão constitucional – operada em 1982 –
veio prever a criação de um sistema de informações nacional. Nesse propósito, foi publicada a Lei-Quadro do
Sistema de Informações da República Portuguesa (LQSIRP) – a Lei n.º 30/84, de 5 de setembro,
sucessivamente alterada pelas Leis n.os 4/95, de 21 de fevereiro, 4/95, de 21 de fevereiro, 15/96, de 30 de abril,
75-A/97, de 22 de julho, e pela Lei Orgânica n.º 4/2004, de 6 de novembro – na qual se consagraram os principais
princípios em matéria de recolha e tratamento de informações.
A Lei-Quadro n.º 30/84 estabeleceu as bases gerais das informações em Portugal e definiu as regras relativas
ao funcionamento, direção e controlo de todos os respetivos órgãos, procedendo ao enquadramento de acordo
com um fluxo de poder e dependência tutelar, determinando ainda a sujeição dos mesmos a estruturas de
fiscalização, com enunciação de missões, deveres e responsabilidades dos serviços propriamente ditos e
também das entidades fiscalizadoras. Formalmente, o SIRP definia-se como estrutura orgânica de serviços
públicos que tinha por incumbência, em regime de exclusividade e no quadro democrático do Estado de Direito,
«a produção de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional e à garantia da segurança
interna» (artigo 2.º, n.º 2 da LQSIRP). A lei previa, no âmbito da sua estrutura, a criação de três serviços de
informações: o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), o Serviço de Informações Militares (SIM)
e o Serviço de Informações e Segurança (SIS). A regulamentação destes serviços foi aprovada pelos Decreto-
Lei n.º 224/85 (que estabeleceu a orgânica do SIED), Decreto-Lei n.º 225/85 (que regulamentava o SIS) e
Decreto-Lei n.º 226/85 (que veio regulamentar o SIM), todos publicados a 4 de julho de 1985.
As décadas de oitenta e noventa foram, de resto, prolíficas do ponto de vista legislativo na área da segurança
interna, com reflexos no Sistema de Informações da República: assim, foi publicada a Lei de Segurança Interna
(Lei n.º 20/87, de 12 de junho) e a Lei do Segredo de Estado (Lei n.º 6/94, de 7 de abril). E também a Lei-Quadro
do SIRP foi objeto de alterações várias, a primeira das quais em 1995, com a extinção do Serviço de Informações
Militares e a atribuição da componente militar ao SIED, que passou a denominar-se SIEDM - Serviço de
Informações Estratégicas e de Defesa Militar (Lei n.º 4/95, de 21 de fevereiro). Ainda em 1995, a 30 de setembro,
foi publicado o Decreto-Lei n.º 254/95, para regulamentar o SIEDM.
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Posteriormente, a Lei Orgânica n.º 4/2004, de 13 de agosto, reestruturou o Sistema de Informações da
República Portuguesa, colocando os dois Serviços de Informações na dependência direta do Primeiro-Ministro
e criando o cargo de Secretário-Geral do SIRP, para coordenar e conduzir superiormente a atividade dos
Serviços de Informações. O SIEDM perdeu a componente militar e recuperou a designação original de SIED
(Serviço de Informações Estratégicas de Defesa).
Na sequência da dita Lei Orgânica n.º 4/2004, foi publicada a Lei n.º 9/2007, de 19 de fevereiro (alterada pela
Lei n.º 50/2014, de 13 de agosto), cumprindo-se uma meta essencial da reforma do Sistema de Informações da
República Portuguesa (SIRP). Esta Lei estabelece a orgânica do Secretário-Geral do SIRP, do Serviço de
Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e do Serviço de Informações de Segurança (SIS), criando uma
estrutura bipolar unificada por um vértice de condução superior, inspeção, superintendência e coordenação,
sendo um dos ângulos o SIED e o outro o SIS, com vértice no Secretário-Geral do SIRP. Consagrou-se, assim,
um quadro regulador unitário do SIRP, que concretiza os pormenores de organização e funcionamento do
Secretário-Geral, do SIED e do SIS, e das estruturas comuns necessárias para assegurar o cumprimento da
missão, que se traduz na produção de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional e à
garantia da segurança interna.
Neste quadro legal, a atividade do SIRP está especificamente limitada por alguns princípios inscritos nos n.os
1 e 3 do artigo 3.º e n.º 1 do artigo 4.º da LQSIRP: (i) o princípio da constitucionalidade e da legalidade: a
atividade dos serviços de informações está sujeita ao escrupuloso respeito pela Constituição e pela lei,
designadamente em matéria de proteção dos direitos fundamentais das pessoas, especialmente frente à
utilização de dados informatizados; (ii) o princípio da exclusividade: a atividade dos serviços está rigorosamente
limitada às suas atribuições, não podendo desenvolver uma atividade de produção de informações em domínio
que não lhe tenha sido concedido; (iii) o princípio da especialidade: a atividade dos serviços de informações
reduz-se ao seu estrito âmbito, não podendo a sua atividade confundir-se com a atividade própria de outros
organismos, como no domínio da atividade dos tribunais ou da atividade policial (cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Os
Serviços de Informações de Portugal: organização e fiscalização, in Estudos de Direito e Segurança, Almedina,
2007, pág. 181-182).
É ainda de salientar a importância dada à proteção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como
resulta, ainda que implícito, daquele princípio da constitucionalidade ou legalidade, reforçado pelo disposto no
artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 9/2007: «O Secretário-Geral, os membros do seu Gabinete e os funcionários e agentes
do SIED, do SIS e das estruturas comuns não podem desenvolver atividades que envolvam ameaça ou ofensa
aos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na lei.». De resto, o mesmo artigo 6.º dispõe
ainda, nos seus n.os 2 e 3, de várias estatuições que inculcam nos princípios supra referidos: «(…) é vedado
exercer poderes, praticar atos ou desenvolver atividades do âmbito ou da competência específica dos tribunais,
do Ministério Público ou das entidades com funções policiais (…) [bem como] (…) é ainda expressamente
proibido proceder à detenção de qualquer pessoa ou instruir inquéritos e processos penais».
Finalmente, refira-se que a separação da atividade de informações das atividades policial e de investigação
criminal resulta, além de fatores históricos, de princípios e valores eminentes da nossa ordem jurídica.
8. O Decreto n.º 426/XII da Assembleia da República, que aprova o Regime Jurídico do Sistema de
Informações da República Portuguesa, visa, desde logo, reunir no mesmo diploma aspetos que se encontram
dispersos por vários dos diplomas mencionados. Assim, propõe a revogação das atuais redações da Lei n.º
30/84, de 5 de setembro, da Lei n.º 9/2007, de 19 de fevereiro, do Decreto-Lei n.º 225/85, de 4 de julho, do
Decreto-Lei n.º 370/91, de 7 de outubro, sobre regime contributivo do SIS, e do Decreto-Lei n.º 254/95, de 30
de setembro, com a introdução de um novo regime orgânico-funcional. É de referir que a Lei n.º 9/2007 já havia
expressamente revogado, no respetivo artigo 72.º, os Decretos-Lei n.os 225/95 e 254/95, tendo estes perdurado,
residualmente, em função do regime transitório estabelecido no artigo 71.º dessa mesma Lei, sendo essa a
razão pela qual o Decreto n.º 426/XII, agora aprovado revoga, “adicionalmente”, no artigo 175.º, os referidos
Decretos-Leis de 1995.
Outro dos objetivos da proposta de lei que deu origem ao mencionado Decreto consiste na atualização do
regime do SIRP às atuais exigências de informação e segurança. No que toca à orgânica do SIRP, prevê-se a
constituição de três categorias de órgãos: (i) órgãos independentes de fiscalização (Conselho de Fiscalização
do SIRP; Comissão de fiscalização de Dados do SIRP e Comissão de Controlo Prévio); (ii) órgãos de direção e
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controlo (Primeiro-Ministro, Secretário-Geral); (iii) órgãos de coordenação e consulta (Conselho Superior de
Informações; Conselho Consultivo). Especificamente no que toca à fiscalização, importa mencionar que se prevê
a composição do Conselho de Fiscalização do SIRP por três cidadãos de reconhecida idoneidade, eleitos pela
Assembleia da República, a composição da Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP por três magistrados
do Ministério Público nomeados pelo Procurador-Geral da República, com sede na Procuradoria-Geral da
República, e, finalmente, a composição da Comissão de Controlo Prévio, por três magistrados judiciais,
designados pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre juízes conselheiros do Supremo Tribunal de
Justiça, com, pelo menos, três anos de serviço nessa qualidade (artigos 20.º, 21.º, 29.º e 35.º do Decreto n.º
426/XII).
Em relação à norma que é objeto de fiscalização preventiva – o n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII –
o pensamento legislativo que esteve na sua base vem descrito na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º
345/XII, nos seguintes termos:
«No contexto da recente Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo, aprovado pela Resolução do
Conselho de Ministros n.º 7-A/2015, de 20 de fevereiro, e dos desafios colocados pelas novas ameaças à
segurança nacional, surge como incontornável o acesso a meios operacionais consagrados pela primeira vez
de modo transparente e expresso na lei positiva, indo ao encontro do padrão de garantias quer da Carta Europeia
dos Direitos Fundamentais quer da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Neste contexto, e em linha com a maior parte dos Estados-Membros da União Europeia, prevê-se o acesso
aos metadados, isto é, o acesso a dados conservados pelas operadoras de telecomunicações, o que se rodeia
de especiais regras para salvaguardar integralmente os direitos dos cidadãos, em especial o direito à
privacidade. Efetivamente, admite-se, no artigo 78.º da presente proposta lei, a possibilidade de acesso a dados
de base, de localização e de tráfego, eventualmente considerados «dados pessoais» para os efeitos do artigo
35.º da Constituição (CRP), mas não a «ingerência nas comunicações», prevista no n.º 4 do artigo 34.º da CRP,
do domínio do processo penal (âmbito, este, vedado aos serviços de informações, indiretamente, atentos os
limites que a lei impõe à atividade do SIRP, ao impedir os serviços de informações de desenvolver ações próprias
dos tribunais, do Ministério Público e das polícias).
O regime de acesso garante a finalidade vinculada à prevenção de fenómenos graves, como o terrorismo, a
espionagem, a sabotagem e a criminalidade altamente organizada, e, mesmo nestes casos, é limitada ao
estritamente adequado, necessário e proporcional numa sociedade democrática. Para o efeito, é criada uma
entidade própria, a Comissão de Controlo Prévio (cfr. os artigos 35.º a 38.º), que concede a autorização prévia
do acesso à informação e dados necessários, numa dada operação, segundo um exigente procedimento legal,
que visa a sindicância do acesso a dados pessoais que possa por em causa a reserva da intimidade da vida
privada, a efetuar por três juízes.
O que se pretende é, não um acesso a conteúdos de comunicações (escritas ou de voz), por intrusão ou
ingerência nas comunicações, mas o acesso autorizado a dados (de base, de localização e de tráfego), que são
solicitados às entidades legitimamente responsáveis pelo seu tratamento, que os fornecem por determinação, e
apenas nesse caso, daquela comissão de juízes, nos termos da presente lei, matéria que tem melhor inserção
sistemática em sede do artigo 78.º (Acesso a dados e informação)».
O artigo 78.º está sediado na Secção IV (Meios Legais) do Capítulo I (Direção, Coordenação e consulta) do
Título II (Do Secretário-Geral, das Estruturas Comuns, do Serviço de Informações de Segurança e do Serviço
de Informações Estratégicas de Defesa), a parte do Diploma que estabelece e regulamenta os meios de atuação
dos dois serviços integrados no SIRP: meios operacionais (artigo 74.º), identidade e registos codificados (artigo
75.º), uso e porte de arma (artigo 76.º), utilização de meios de transporte (artigo 77.º), acesso a dados e
informações (artigo 78.º) e passaporte especial e livre-trânsito (artigo 79.º).
No confronto com o regime revogado, aquela Secção IV sistematiza e define concretamente aquilo que, na
estrutura da Lei n.º 30/84, aparecia algo descontextualizado, num quadro sistemático referido a “princípios
gerais” (o capítulo I dessa Lei), onde convergiam, sempre num enunciado muito generalizador (rectius, pouco
preciso), a definição do objeto da Lei (artigo 1.º), as finalidades do SIRP (artigo 2.º), o limite das atividades dos
serviços de informações (artigo 3.º), a delimitação do âmbito de atuação destes (artigo 4.º), o acesso a dados e
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informações por estes (artigo 5.º), a exclusividade funcional dos serviços de informações (artigo 7.º) e a orgânica
do SIRP (artigo 7.º).
9. A norma do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII atribui aos oficiais de informação do SIRP o poder
funcional de aceder a dados de comunicação que permitam identificar o assinante ou utilizador, a fonte, o
destino, data, hora, duração e o tipo de comunicação, bem como identificar o equipamento de telecomunicações
ou a sua localização.
Considerando que o objeto do presente recurso diz respeito, especificamente, ao acesso aos dados relativos
às telecomunicações por parte dos oficiais de informações, em primeiro lugar, convém caracterizar o tipo de
dados em causa e saber se o acesso aos mesmos é merecedor de proteção constitucional.
A exposição de motivos que acompanhava a proposta de lei do Governo que esteve na origem do Decreto
n.º 426/XII (cfr. o artigo 3.º do pedido), em linguagem informática, qualifica-os como “metadados”, usualmente
definidos como “dados sobre dados”, por dizerem respeito a circunstâncias das comunicações, e não ao próprio
conteúdo da comunicação.
Numa concreta comunicação é possível separar do núcleo duro da informação fornecida ou transmitida um
conjunto de marcos ou pontos de referência que lhe dão o respetivo suporte e que permitem circunscrever a
informação sob todas as formas. Tais dados são “informações” que acrescem aos dados e que têm como
objetivo informar sobre eles, em princípio, para tornar mais fácil a sua organização. Sendo dados sobre dados
(“informação sobre informação”), acabam por fornecer informação sobre a localização, tempo, tipo de conteúdo,
origem e destino, entre outras, dos atos comunicacionais efetuados através de telecomunicações ou por outros
meios de comunicação.
Como categoria que tem por fim um efeito jurídico é de usar a designação “dados de tráfego”, não só por ser
o enunciado linguístico que vem referido na norma objeto de fiscalização, mas sobretudo porque no nosso
ordenamento jurídico já há uma definição legal desse enunciado. Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea d), da Lei
n.º 41/2004, de 18 de agosto, sobre Segurança nas Telecomunicações, define “dados de tráfego” como
«quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações
eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma».
A este propósito, o Tribunal Constitucional acolheu, desde o Acórdão n.º 241/2002, de 29/05/2002, uma
classificação tripartida (louvando-se, então, nos Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República n.º 16/94, votado em 24/06/94, na base de dados da DGSI, n.º 16/94 – complementar, votado em
2/05/1996, in Pareceres, vol. VI, págs. 535 a 573, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, no Diário da República – II
Série, de 28/08/2000) dos dados resultantes do serviço de telecomunicações. Ali se distinguiram:
«(…) os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao
estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo,
localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de
tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo»
Tal classificação tripartida foi retomada pelo Tribunal – assinalando que se mantinha, então, “consensual” –
no Acórdão n.º 486/2009:
«Não obstante a evolução legislativa acabada de enunciar, a verdade é que, relativamente ao tipo de dados
envolvidos no serviço de telecomunicações, continua a ser consensual, no seio da doutrina e jurisprudência
nacionais, a classificação adotada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que distingue
entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo (Vide Parecer n.º 16/94/complementar, acessível
em www.dgsi.pt, e Parecer n.º 21/2000, no DR II Série, de 23 de julho de 2002).
Assim, de harmonia com esses pareceres, no serviço de telecomunicações podem distinguir-se as seguintes
espécies de dados:
“Nos serviços de telecomunicações podem distinguir-se, fundamentalmente, três espécies ou tipologias de
dados ou elementos: os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários
ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo,
localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de
tráfego; e os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo.
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Sendo os vários serviços de telecomunicações utilizados para a transmissão de comunicações verbais ou de
outro tipo (mensagens escritas, dados por pacotes), os elementos inerentes à comunicação podem, por outro
lado, estruturar-se numa composição sequencial em quatro tempos: a fase prévia à comunicação, o
estabelecimento da comunicação, a fase da comunicação propriamente dita e a fase posterior à comunicação.
No primeiro tempo relevam essencialmente os dados de base, enquanto que nos restantes importa
essencialmente a consideração dos dados de tráfego e de conteúdo.
Os dados de base constituem, na perspetiva dos utilizadores, os elementos necessários ao acesso à rede,
designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respetivo serviço: interessa aqui
essencialmente o número e os dados através dos quais o utilizador tem acesso ao serviço.
(…)
Diversamente dos elementos de base (elementos necessários ao estabelecimento de uma base para
comunicação), que estão aquém, antes, são prévios e instrumentos de qualquer comunicação, os chamados
elementos de tráfego (elementos funcionais da comunicação), como os elementos ditos de conteúdo, têm já a
ver diretamente com a comunicação, quer sobre a respetiva identificabilidade, quer relativamente ao conteúdo
propriamente dito da mensagem ou da comunicação.
Os elementos ou dados funcionais (de tráfego), necessários ou produzidos pelo estabelecimento da ligação
da qual uma comunicação concreta, com determinado conteúdo, é operada ou transmitida, são a direção, o
destino (adressage) e a via, o trajeto (routage).
(…)
Estes elementos funcionalmente necessários ao estabelecimento e à direção da comunicação identificam,
ou permitem identificar a comunicação: quando conservados, possibilitam a identificação das comunicações
entre o eminente e o destinatário, a data, o tempo, e a frequência das ligações efetuadas.
Constituem, pois, elementos já inerentes à própria comunicação, na medida em que permitem identificar, em
tempo real ou a posteriori, os utilizadores, o relacionamento direto entre uns e outros através da rede, a
localização, a frequência, a data, hora e a duração da comunicação, devem participar das garantias a que está
submetida a utilização do serviço, especialmente tudo quanto respeite ao sigilo das comunicações.
Finalmente, os elementos de conteúdo — dados relativos ao próprio conteúdo da mensagem, da
correspondência enviada através da utilização da rede.»
Ora, importa enquadrar os dados em causa na norma objeto do presente recurso numa das categorias
enunciadas. Reportando-se os mesmos aos “dados de tráfego”, “dados de localização” ou a outros “dados
conexos” das comunicações - como a própria lei enuncia - necessários para identificar o assinante ou utilizador
ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, data, hora, duração e o tipo de comunicação, bem como para
identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização, dúvidas não restam que os mesmos se
podem qualificar como dados de tráfego, por respeitarem «aos próprios elementos funcionais da comunicação,
reportando-se à direção, destino, via e trajeto de uma determinada mensagem». São dados, pois, que identificam
ou permitem identificar a comunicação e, uma vez conservados, possibilitam a identificação das comunicações
entre emitente e destinatário, a data, o tempo e a frequência das ligações efetuadas.
No que toca aos dados de localização, consistem em dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas
que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um utilizador de um serviço de
telecomunicações, podendo incidir sobre a latitude, longitude ou altitude do equipamento, sobre a direção da
deslocação, sobre a identificação da célula de rede em que o equipamento está localizado em determinado
momento e sobre a hora de registo da informação de localização. Como acima se referiu, ao delimitar o objeto
do recurso, tem-se considerado que os mesmos estão também incluídos no conceito mais amplo de “dados de
tráfego” (assim, Catarina Sarmento e Castro, Direito da Informática, Privacidade e Dados Pessoais, Almedina,
2005, pág. 181). E é nesse sentido que a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que regula a conservação e transmissão
dos dados de tráfego e de localização, reserva a mesma disciplina jurídica para ambos.
10. O acesso a dados relativos a comunicações encontra-se, entre nós, sujeito a ampla regulamentação
legal, impulsionada sobretudo pelo direito comunitário.
Após o primeiro diploma, que estabeleceu os princípios gerais das comunicações - o Decreto-Lei n.º 188/81,
de 2 de julho –, as ulteriores Leis de Bases das Redes e Prestação de Serviços de Telecomunicações - Lei n.º
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88/89, de 11 de setembro e Lei n.º 91/97, de 1 de agosto - preocuparam-se em regular o tratamento dos dados
pessoais gerados pelas telecomunicações. Nesta última Lei previa-se expressamente, no n.º 2, do artigo 17.º
uma cláusula destinada a garantir a inviolabilidade e o sigilo dos serviços de telecomunicações de uso público,
nos termos da lei.
Entretanto, foi aprovada a Lei de Proteção de Dados Pessoais – Lei n.º 67/98, de 26 de outubro –, que se
destinou a transpor para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva 95/46/CE do Parlamento e do Conselho, de 24
de outubro de 1995, relativa à proteção de pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados
pessoais e à livre circulação desses dados.
Posteriormente, a Lei n.º 69/98, de 28 de outubro – que transpôs a Diretiva 97/66/CE, do Parlamento Europeu
e do Conselho –, veio regular o tratamento de dados pessoais e a proteção da privacidade no setor das
telecomunicações, especificando e complementando as disposições da Lei da Proteção de Dados. Esse diploma
impõe ao prestador de serviços de telecomunicações o dever de adotar todas as medidas técnicas e
organizacionais necessárias para garantir a segurança desses serviços de telecomunicações, impondo também
aos operadores de rede o dever de garantir a confidencialidade e o sigilo das telecomunicações, através dos
serviços acessíveis ao público e das redes públicas de telecomunicações.
Os Decretos-Lei n.º 290-A/99 e 290-B/99, ambos de 30 de julho, vieram consagrar, como “obrigações dos
operadores de redes públicas de telecomunicações”, a proteção de dados e o sigilo das comunicações
suportadas na rede que exploram e a de assegurar o sigilo das comunicações do serviço prestado, bem como
o disposto na legislação de proteção de dados.
A introdução de novas tecnologias digitais nas redes de comunicações públicas trouxe consigo uma grande
capacidade e possibilidade de tratamento de dados pessoais, e determinou a necessidade de acautelar novos
requisitos específicos de proteção de dados pessoais e da privacidade dos utilizadores. De facto, os novos
meios de comunicação, disponíveis a um custo cada vez menor e acessíveis a um número cada vez maior de
pessoas vieram multiplicar os riscos para a privacidade dos seus utilizadores. Tal facto justificou que a Diretiva
97/66/CE fosse revogada e substituída pela Diretiva 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa
ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas.
O objetivo deste novo regime foi estender a proteção oferecida pela anterior Diretiva aos utilizadores de
serviços de comunicações publicamente disponíveis, independentemente das tecnologias utilizadas.
Especificamente no que respeita aos dados de tráfego, a Diretiva define-os como «quaisquer dados tratados
para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos
da faturação da mesma, e podem ser, nomeadamente, relativos ao encaminhamento, à duração, ao tempo ou
ao volume de uma comunicação, ao protocolo utilizado, à localização do equipamento terminal do expedidor ou
do destinatário, à rede de onde provém ou onde termina a comunicação, ao início, fim ou duração de uma
ligação, ou ao formato revestido pela mesma». A normativa europeia estabelece, em particular, regras referentes
à eliminação dos dados, exigindo, para a sua conservação, o respeito pelo princípio da proporcionalidade. Nesse
ponto, refere-se que «a eliminação dos dados de tráfego justifica-se pela sua especial sensitividade, que poderia
permitir elaborar e revelar o perfil da comunicação, dando a conhecer, v.g. a sua origem geográfica» (Catarina
Sarmento e Castro, ob. cit, pág. 172).
E, assim, mercê do dever de transposição desta nova diretiva europeia, a referida Lei n.º 69/98 foi revogada
pela Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, a qual veio aprovar o regime jurídico do tratamento de dados pessoais e
da proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas. Este último diploma legal preocupou-se
especialmente com a faturação detalhada e a localização celular. Em conformidade com a diretiva europeia
transposta, a Lei n.º 41/2004 não prejudica a possibilidade de existência de legislação especial que restrinja a
sua aplicação no que respeita à inviolabilidade das comunicações, nomeadamente para efeito de investigação
e repressão de infrações penais (artigo 1.º, n.º 4).
Assim, na sequência desse diploma, foi aprovada a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho que transpôs para a ordem
jurídica interna a Diretiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/03, relativa à conservação
de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente
disponíveis ou de redes públicas de comunicações, que estabelece amplas garantias no que toca ao acesso e
conservação dos dados de tráfego e de localização das comunicações para fins de investigação, deteção e
repressão de crimes graves por parte das autoridades.
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11. Para além da ampla regulamentação legal no que toca ao acesso aos dados, são ainda vários os
instrumentos internacionais que protegem o acesso a dados deste tipo.
Não obstante alguns desses instrumentos não preverem normas detalhadas expressamente referentes à
proteção de dados, garantem em várias normas a proteção da vida privada, onde se inserem, de forma
inquestionável, limites ao acesso a dados pessoais, entre eles relativos a comunicações dos indivíduos, como,
aliás, tem sido afirmado pelos órgãos de garantia dos respetivos instrumentos.
Assim, desde logo, o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem declara que «ninguém
sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência
(…)». A mesma redação é retomada pelo artigo 17.º do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos.
Ambos os textos prescrevem que o indivíduo tem direito à proteção da lei contra tais intervenções ou tais
atentados.
O artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), por seu turno, estabelece que
«qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua
correspondência». Nos termos do n.º 2, «não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste
direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade
democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico
do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção
dos direitos e das liberdades de terceiros». O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem
desenvolvido uma ampla jurisprudência sobre a proteção do acesso a dados de comunicações, afirmando
expressamente que os mesmos se encontram abrangidos pela proteção de “vida privada e familiar” ínsita no n.º
1 do artigo 8.º da CEDH. Assim, no caso Malone c. Reino Unido, referiu que o acesso e uso de dados
respeitantes a tráfego de comunicações constituem matéria que é abrangida pelo âmbito de proteção do n.º 1
do artigo 8.º da CEDH (Acórdão de 02/08/1984, queixa n.º 8691/79).
Por fim, no contexto da União Europeia, cabe mencionar os artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia. Note-se que, antes de a mesma produzir efeitos vinculativos, o Tribunal de
Justiça da União Europeia já havia proclamado a existência de um «princípio geral de direito comunitário que
consagra a proteção contra as intervenções arbitrárias e desproporcionadas do poder público na esfera da
atividade privada de uma pessoa singular ou coletiva» (Acórdão de 22/10/2002, Roquette Frèrres, processo n.º
C-94/00). Atualmente, o artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais consagra o respeito pela vida privada e
familiar, dispondo, inspirado nas demais normas internacionais, que «todas as pessoas têm direito ao respeito
pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações». Este direito vale, nos termos
do artigo 52.º, n.º 3 da Carta, com o mesmo sentido que é conferido ao artigo 8.º da CEDH. Por seu turno, o
artigo 8.º da Carta contém uma norma específica relativa à proteção de dados pessoais, proteção essa que
recebe, assim, uma consagração expressa e autónoma face ao artigo 7.º. A norma em causa estabelece que
«todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito». O Tribunal de
Justiça da União referiu que este direito está «indissociavelmente relacionado com o direito ao respeito pela vida
privada» (Acórdão de 09/11/2010, Volkerund Markus Schecke, processo n.º C-92/09 e C-93/09). Por outro lado,
esclareceu que a proteção de dados de tráfego das comunicações se encontra abrangida pelo âmbito de
proteção deste direito fundamental (assim, o Acórdão de 08/04/2014, Digital Rights Ireland Ltd., processos n.º
C-293/12 e C-594/12, que, anulou a Diretiva 2004/26/CE, por violação dos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos
Fundamentais).
12. O acesso aos dados das comunicações efetivamente realizadas ou tentadas põe em causa direitos
fundamentais das pessoas envolvidas no ato comunicacional. E não é apenas a invasão ou intromissão no
conteúdo informacional veiculado pelos meios de transmissão (dados de conteúdo), que os afetam, mas também
as circunstâncias em que a comunicação foi realizada (dados de tráfego).
Com efeito, mesmo que não haja acesso ao conteúdo, a interconexão entre dados de tráfego pode fornecer
um perfil complexo e completo da pessoa em questão – com quem mais conversa, que lugares frequenta, quais
os seus horários, etc. A verdade é que, como refere Costa Andrade, «no seu conjunto, os dados segregados
pela comunicação e pelo sistema de telecomunicações se revelam, muitas vezes, mais significativos que o
próprio conteúdo da comunicação em si. O que, de resto, bem espelha o interesse com que, reconhecidamente,
a investigação criminal procura maximizar a recolha de dados ou circunstâncias da comunicação, também
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referenciados como dados de tráfego» (cfr. Bruscamente no verão passado – A Reforma do Código de Processo
Penal”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, julho-agosto 2008, pág. 338).
Isto mostra claramente que a manipulação ilegal ou ilegítima do conteúdo e das circunstâncias da
comunicação pode violar a privacidade dos interlocutores intervenientes, atentando ou pondo em risco esferas
nucleares das pessoas, das suas vidas, ou dimensões do seu modo de ser e estar. De sorte que a possibilidade
de se aceder aos dados das comunicações colide com um conjunto de valores associados à vida privada que
fundamentam e legitimam a proteção jurídico-constitucional.
Desde logo, a liberdade de ação, enquanto vertente do direito ao desenvolvimento da personalidade, de
acordo com a qual, na interação com os outros, a condução da vida de cada um é autoconformada pela sua
atuação, o que pressupõe, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira «a exigência de proibição de
ingerências dos poderes públicos (...) como, por exemplo, (...) “o direito a não ser espiado”» (Constituição da
República Portuguesa Anotada, 2.a ed., Vol. I,pág. 465).
Depois, com a esfera íntima e a esfera privada da pessoa humana, seja enquanto pretensão de isolamento,
tranquilidade e exclusão do acesso dos outros a si próprio (direito à solidão), seja, enquanto impedimento à
ingerência dos outros (direito ao anonimato), seja ainda, mais modernamente, e perante a insuficiência protetora
das referidas dimensões, enquanto controlo das informações que lhe dizem respeito e de subtração ao
conhecimento dos outros os factos reveladores do modo de ser do sujeito na condução da sua vida privada
(autodeterminação informacional). Como refere Joaquim Sousa Ribeiro, esta última dimensão, hoje a de maior
relevo, «impede que o “eu” seja objeto de apropriação pelos outros, como matéria de comunicação na esfera
pública. Nela conjuga-se o direito ao segredo (à intromissão dos outros na esfera privada, com tomada de
conhecimento de aspetos a ela referentes) e um direito à reserva (proibição de revelação)» – cfr. A Tutela de
bens da personalidade na Constituição e na Jurisprudência constitucional portuguesas, in Estudos de
Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. III, Coimbra Editora, pág. 853).
Estes direitos encontram-se hoje expressamente consagrados no artigo 26.º da CRP e são intimamente
interligados, constituindo a reserva da intimidade da vida privada uma dimensão do direito, mais amplo, referente
ao desenvolvimento da personalidade. Mas, não obstante se qualificar como um direito especial de
personalidade, o direito à reserva da intimidade da vida privada não se esgota nele, pois está consagrado
constitucionalmente como um direito autónomo. E neste ponto, não se confunde com o direito à privacy anglo-
saxónica, que tem assumido contornos mais amplos, surgindo como expressão paradigmática de todos os
direitos pessoais (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I,
2.ª ed., Coimbra, 2010, pág. 619).
O Tribunal Constitucional formulou, pela primeira vez, uma definição do conteúdo do direito à reserva da vida
privada no Acórdão n.º 128/92, como constituindo o direito de cada um a ver protegido o espaço interior ou
familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias, i.e., como um direito a uma esfera privada onde
ninguém pode penetrar sem autorização do respetivo titular. No entender do Tribunal, esse direito compreende,
por um lado, a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa
esfera de intimidade e, por outro, o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não
ser mediante autorização do interessado (“direito ao segredo do ser”). E no que toca aos lugares da vida onde
a vida privada pode ser manifestada, o Tribunal afirmou ainda que ela abrange «a vida pessoal, a vida familiar,
a relação com outras esferas de privacidade (…) o lugar próprio da vida pessoal ou familiar (…) e, bem assim,
os meios de expressão e de comunicações privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc».
De modo que, na jurisprudência constitucional, as comunicações privadas, englobando o conteúdo e
circunstancialismos em que as mesmos têm lugar, são reconhecidas como um meio através do qual se
manifestam aspetos da vida privada da pessoa e que, por isso, caem no âmbito da proteção constitucional da
respetiva reserva.
Quanto ao âmbito objetivo do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, o Tribunal tem dito – em
consonância com a doutrina acima referida – (i) que tal direito inclui, como diferentes manifestações, o direito à
solidão, o direito ao anonimato e o direito à autodeterminação informativa; (ii) que o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, como liberdade comportamental, de livre conformação e expressão da
personalidade, é entre nós tratado distintamente do direito à reserva, no sentido de livre controlo da informação
sobre aquilo que, em decorrência dessa liberdade de conduta, cada um faz na sua esfera privada; (iii) que a
fórmula “reserva de intimidade da vida privada” não pode ser interpretada restritivamente, de modo a
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circunscrever a proteção constitucional à vida íntima, pois que tal implicaria deixar de cobrir todas as outras
esferas da vida que devem igualmente ser resguardadas do público, como condição de salvaguarda da
integridade e dignidade das pessoas; (iv) e que o facto de se recusar a equivalência entre “privacidade” e
“intimidade” não impede que se não estabeleçam graduações entre diferentes esferas da vida privada,
consoante a sua maior ou menor ligação aos atributos constitutivos da personalidade (cfr. entre outros, os
Acórdãos n.os 306/2003, 368/2002, 355/97, 442/07 e 230/08).
13. O direito ao desenvolvimento da personalidade, na dimensão de liberdade de ação de um sujeito
autónomo dotado de autodeterminação decisória, naturalmente que comporta a liberdade de comunicar. Nesta
dimensão relacional, do “eu” com o “outro”, o objeto de proteção é a comunicação individual, isto é, a
comunicação que se destina a um recetor individual ou a um círculo de destinatários previamente determinado.
A liberdade de comunicar abrange a faculdade de comunicar com segurança e confiança e o domínio e
autocontrole sobre a comunicação, enquanto expressão e exteriorização da própria pessoa. Tal liberdade,
enquanto refração do direito ao desenvolvimento da personalidade e da tutela da privacidade, mereceu no texto
constitucional um recorte material específico, através da autonomização, no artigo 34.º, do sigilo dos meios de
comunicação privada. Servindo para proteger vários bens jurídico-constitucionais, ele é hoje, como refere
Gomes Canotilho, «um dos núcleos essenciais do direito à autodeterminação comunicativa, juntamente com a
proteção de dados pessoais constantes de ficheiros informatizados ou manuais» (cfr. Privatização e Direitos,
Liberdades e Garantias. A propósito do sigilo de correspondência no serviço de telecomunicações, in Estudos
de Direitos Fundamentais, 2.ª ed. pág. 162).
Pode falar-se assim de um «direito à autodeterminação comunicativa» que serve para defender vários bens
jurídico-constitucionais, entre eles: o direito ao desenvolvimento da personalidade e o direito à reserva da
intimidade da vida privada.
Na vertente de defesa da reserva da intimidade da vida privada, o direito à autodeterminação comunicativa
protege a esfera pessoal perante as ingerências públicas ou privadas, ou seja, o interesse das pessoas que
comunicam em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação e circulação do conteúdo e
circunstâncias da comunicação. Neste sentido, os interlocutores intervenientes têm direito a um ato negativo: à
não intervenção de terceiros na comunicação e nas circunstâncias que a acompanham. Trata-se de uma
garantia de que devem beneficiar, prima facie, todas as comunicações privadas, independentemente de as
mesmas dizerem ou não respeito à intimidade dos intervenientes (cfr. Lucrecio Rebollo Delgado, El Secreto de
las Comunicaciones: Problemas Actuales, Revista de Derecho Político, n.º 48-49, 2000, pág. 363).
No entanto, o direito à autodeterminação comunicativa abrange ainda esferas de proteção mais amplas que
a da simples reserva da vida privada. É que o progresso tecnológico, ao facilitar a acumulação, conservação,
circulação e interconexão de dados referentes às comunicações, aumentou as possibilidades de devassa. Agora
é o próprio domínio de atuação do individuo que é posto em causa, pois já não tem meios para assegurar a
confidencialidade da comunicação. A liberdade de, à distância, trocar com os destinatários livremente escolhidos
por cada um, informações, notícias, pensamentos e opiniões está comprometida com as inimagináveis
possibilidades da sua afronta pelos avanços tecnológicos. Por isso, é necessário assegurar que a comunicação
à distância entre privados se processe como se os mesmos se encontrassem presentes, i.e., que as
comunicações entre emissor e recetor, bem como o seu circunstancialismo, se tenham como uma comunicação
fechada, em que os sujeitos se autodeterminam quanto à realização da mesma e esperam, legitimamente, que
a comunidade proteja o circunstancialismo daquela pretendida comunicação. Ora, como a interação entre
pessoas que se encontram à distância tem de ser feita através da mediação necessária de um terceiro, de um
fornecedor de serviços de comunicação, exige-se que esse operador e o Estado regulador também garantam a
integridade e confidencialidade dos sistemas de comunicação.
Neste contexto, o direito à autodeterminação comunicativa assume-se como um direito de liberdade, de
liberdade para comunicar, sem receio ou constrangimentos de que a comunicação ou as circunstâncias em que
a mesma é realizada possam ser investigadas ou divulgadas. Sem essa confiança, o indivíduo sentir-se-á
coartado na liberdade de poder comunicar com quem quiser, quando quiser, pelo tempo que quiser e quantas
vezes quiser. Trata-se, pois, de permitir um livre desenvolvimento das relações interpessoais e, ao mesmo
tempo, de proteger a confiança que os indivíduos depositam nas suas comunicações privadas e no prestador
de serviços das mesmas. Como refere Costa Andrade, «a tutela da inviolabilidade das telecomunicações radica
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assim na “específica situação de perigo” decorrente do domínio que o terceiro detém – e enquanto detém –
sobre a comunicação (conteúdo e dados). Domínio que lhe assegura a possibilidade fáctica de intromissão
arbitrária subtraída ao controlo do(s) comunicador(es). Por ser assim, o regime jurídico do sigilo na segurança
e reserva dos sistemas apenas visa proteger a confiança na segurança e reserva dos sistemas (empresas) de
telecomunicações» (cfr. Costa Andrade, ob. cit. pág. 339). Neste sentido, os comunicadores têm direito a ações
positivas dos operadores e do Estado que não só assegurem a confidencialidade das comunicações e das
circunstâncias em que elas se realizam como também lhes permitam controlar os dados produzidos, guardados
e transmitidos que respeitem a comunicações já efetuadas.
E nisto se distingue do direito à autodeterminação informativa consagrado no artigo 35.º da CRP, com vista
à proteção das pessoas perante o tratamento de dados pessoais informatizados. O objeto de proteção do direito
à autodeterminação comunicativa reporta-se a comunicações individuais efetivamente realizadas ou tentadas e
só essas é que estão cobertas pelo sigilo de comunicações. Naquele outro direito protege-se as informações
pessoais recolhidas e tratadas por entidades públicas e privadas, cuja forma de tratamento e divulgação pode
propiciar ofensas à privacidade das pessoas a que digam respeito. Como refere Maria Eduarda Gonçalves,
neste caso, o problema não está na existência ou na quantidade de dados, mas na qualidade, «entendida esta,
em termos amplos, como o conjunto das condições da recolha dos dados, seu tratamento e comunicação, bem
como as características desses dados, isto é, a sua exatidão, a sua adequação aos fins prosseguidos» (cfr.
Direito Da Informação, Almedina, pág. 84). Neste caso, pretende-se impedir que as informações prestadas a um
particular ou a uma entidade possam por estes ser divulgadas a outras pessoas ou entidades, ou seja, que a
pessoa se torne “simples objeto de informações”, face a todos os registos informáticos que vai deixando no seu
dia a dia. A proibição de ingerência ou devassa neste domínio implica não apenas a proibição de acesso a
terceiros aos dados pessoais, mas ainda a proibição de divulgação ou mesmo de interconexão de ficheiros com
dados da mesma natureza (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 554).
De modo que é possível assinalar ao direito à autodeterminação comunicativa uma dupla vertente, enquanto
proteção de uma reserva da vida privada e enquanto liberdade de atuação, ou seja, uma conexão entre “segredo
das comunicações” e “liberdade de comunicação”.
14. A autodeterminação comunicativa é protegida no artigo 34.º da CRP através da inviolabilidade das
comunicações. A “inviolabilidade de princípio” justifica-se, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, para
«limitar na maior medida possível a possibilidade de restrições, sujeitando-se estas a pressupostos bastante
vinculados» (cfr. ob. cit, Vol. I,pág. 540). Nessa inviolabilidade inclui-se, no n.º 4 daquele preceito constitucional,
a proibição de ingerência das autoridades públicas nos meios de comunicação, não só as que estão investidas
de poderes públicos de autoridade como, mas por maioria de razão, as demais entidades públicas e entidades
privadas (n.º 1 do artigo 18.º da CRP).
A garantia de não ingerência tem, porém, um sentido mais vasto que o sigilo de comunicações, podendo
assumir um duplo relevo.
Desde logo, ela configura-se como uma garantia de sentido negativo, de inviolabilidade, que protege o
indivíduo de ingerências do Estado ou de terceiros. Neste contexto assume-se como um direito que garante ao
respetivo titular posições jurídicas perante o Estado para defesa de abusos relativos à utilização dos dados em
causa. Como correspondência desta garantia, cabe ao Estado um dever de não ingerência, de não agressão.
Deste direito deriva, como já se referiu, não só a obrigação de princípio de não divulgar o conteúdo das
comunicações privadas, mas também não aceder às circunstâncias em que as mesmas foram efetuadas.
Por outro lado, a garantia de não ingerência pode, ainda, reclamar um correspondente dever a ações
positivas por parte do Estado. Desde logo, a obrigação de o Estado adotar os instrumentos jurídicos necessários
para manter a comunicação e seu circunstancialismo como “fechados” (nomeadamente, através da aprovação
de leis destinadas à proteção dos dados de comunicação). Nesse sentido, o n.º 2 do artigo 26.º da CRP
estabelece, precisamente, uma obrigação legiferante, obrigando o legislador a estabelecer garantias contra a
obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações. Depois, através da
efetivação do referido “direito ao apagamento” ou ao “bloqueio” dos dados de tráfego, que vai ínsito no direito à
autodeterminação comunicativa, e no correspondente “direito ao esquecimento”. De facto, o direito à
autodeterminação comunicativa tem, nos dias de hoje, e face à tendencial perenidade dos registos de dados,
de passar pela imposição de limites temporais à conservação dos dados.
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15. É em face da proibição de ingerência das autoridades públicas nas comunicações que o Requerente
coloca uma primeira questão: deve o acesso aos dados de tráfego considerar-se uma ingerência nas
telecomunicações para os efeitos previstos na norma constitucional?
A resposta passa por averiguar previamente se os chamados “dados de tráfego”, na definição já referida,
estão abrangidos no conceito de “telecomunicações” ou “demais meios de comunicação” enunciados no n.º 4
do artigo 34.º da CRP. Este preceito manteve a sua redação inalterada até à revisão constitucional de 1997,
resultando dos trabalhos preparatórios da mesma que a alteração, com a aditação à referência a “demais meios
de comunicação”, visou «explicitar dimensões já contidas no artigo 34.º, n.º 4, no sentido de acompanhar a
evolução tecnológica» (José Magalhães, Diário da Assembleia da República, IIª Série, de 23 de abril de 1997,
pág. 2286).
Ora, há um largo consenso na doutrina e na jurisprudência, de resto não se conhece posição contrária, no
sentido de se incluir os dados de tráfego no conceito de comunicações constitucionalmente relevante para a
proibição de ingerência. Quer dizer: o âmbito de proteção do artigo 34.º, n.º 4 abrange não apenas o conteúdo
das telecomunicações, mas também os dados de tráfego.
Nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em nota ao artigo 34.º da CRP, salientam que «a garantia
do sigilo abrange não apenas o conteúdo da correspondência, mas o “tráfego” como tal (espécie, hora, duração,
intensidade de utilização)» (ob. cit., pág. 544).
Para Costa Andrade, citando jurisprudência alemã, «na medida em que estivermos no âmbito das
comunicações, o seu regime e a sua área de tutela abrangem, nos mesmos termos, tanto o conteúdo como os
dados ou circunstâncias da comunicação. Sendo as coisas lineares em relação ao conteúdo, hoje não será difícil
referenciar a fundamentação e o sentido da inclusão dos dados da comunicação sob a mesma área de tutela.
Segundo a lição do Tribunal Constitucional Federal (02/03/2006): «também a intromissão nos dados cai na área
de tutela do artigo 10.º da Lei Fundamental; o direito fundamental protege também a confidencialidade sobre as
circunstâncias do processo de comunicação. O que compreende especialmente o se, o quando, o como, entre
que pessoas ou entre que aparelhos a comunicação teve lugar. De outra forma, a tutela do direito fundamental
seria incompleta, uma vez que os dados da comunicação têm um grande contexto expressivo (Aussagegehalt).
Eles podem, em concreto, permitir conclusões decisivas sobre as ações de comunicação e de movimentação.
A frequência, a duração e o momento das ligações dão informação sobre a espécie e intensidade das relações
e permitem fazer ilações sobre o conteúdo» (cfr. ob. cit. pág.340 e 341).
Por sua vez, Germano Marques da Silva e Fernando Sá afirmam que «é possível perceber que a intenção
da Constituição é oferecer proteção ao tráfego de informação escrita, desenhada ou falada, entre dois ou mais
destinatários definidos» e «essa proteção, especialmente nos modernos meios de comunicação, é ainda
constitucionalmente garantida às circunstâncias em que se realizam as comunicações. Nesses termos, estão
também protegidos os dados relativos aos meios de comunicação usados, à hora da sua utilização, à duração
da sua utilização, ao local da sua utilização ou à identidade dos seus utilizadores» (cfr. Anotação ao artigo 34.º,
in Jorge Miranda e Rui Medeiros., ob. cit., págs. 772 e 774).
O Tribunal Constitucional também já teve oportunidade de se pronunciar expressamente sobre este aspeto,
tendo também equiparado a proteção dos dados de tráfego à proteção constitucionalmente concedida aos dados
de conteúdo. Assim, no Acórdão n.º 241/02, em que refere expressamente que «a proibição de ingerência nas
telecomunicações, para além de vedar a escuta, interceção ou vigilância de chamadas, abrange, igualmente, os
elementos de informação com elas conexionados, designadamente os que no caso foram fornecidos pelos
operadores de telecomunicações». A mesma interpretação foi retomada e amplamente desenvolvida no Acórdão
n.º 486/2009, em que, reportando-se aos dados de tráfego, se afirmou que «num Estado de Direito democrático,
assiste a qualquer cidadão o direito de telefonar quando e para quem quiser com a mesma privacidade que se
confere ao conteúdo da sua conversa».
De igual modo, o Conselho Consultivo da Procuradoria da República, nos já referidos Pareceres n.º 16/94,
Complementar, de 26/10/1995, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, defendeu que «os elementos funcionais, desde
logo, os dados de tráfego, na medida em que permitem a identificação ou identificabilidade da comunicação
(direção, destinatário, local, hora, duração) integram já elementos suficientemente relevantes da comunicação
justificando a proteção do sigilo. São elementos que apenas se geram quando existiu e porque existiu uma
determinada transmissão ou comunicação».
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No mesmo sentido, o Parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados n.º 29/98, de 16/04/1998, ao
concluir que a tutela constitucional do sigilo da correspondência e das telecomunicações «(...) abrange quer o
denominado “tráfego” da comunicação quer o conteúdo desta». Os referidos dados são mesmo considerados
particularmente sensíveis, nos termos do artigo 7.º da Lei de Proteção de Dados.
Também a doutrina estrangeira tem defendido amplamente que a privacidade da comunicação ou a
autonomia comunicacional abrange não apenas a proibição de interferência, em tempo real, do conteúdo de
uma comunicação, como também a impossibilidade do ulterior acesso de terceiros a elementos que revelem as
condições factuais em que decorreu uma comunicação (v., neste sentidoNicolas-González-Cuéllar Serrano, em
“Garantias constitucionales de la persucución penal en el entorno digital”, in Prueba e Processo Penal, Tirant lo
Blanch, 2008,pág. 171-174).
E semelhante entendimento tem o Tribunal de Justiça da União que, no já referido Acórdão de 08/04/2014,
Digital Rights Ireland Ltd., processos n.º C-293/12 e C-594/12, que anulou a Diretiva 2004/26/CE, referiu
ilustrativamente que, no que toca aos dados de tráfego das comunicações, «a conservação dos dados imposta
pela Diretiva 2006/24 constitu[i] uma ingerência particularmente grave nesses direitos», embora não seja
«suscetível de afetar o referido conteúdo, tendo em conta que, como resulta do seu artigo 1.°, n.° 2, esta diretiva
não permite tomar conhecimento do conteúdo das comunicações eletrónicas, enquanto tal» (parágrafo 39). O
TJ sublinhou várias vezes a gravidade da ingerência resultante de uma conservação ilimitada de dados de
tráfego, pelo facto de os mesmos permitirem «designadamente, saber qual é a pessoa com quem um assinante
ou um utilizador registado comunicou, e através de que meio, assim como determinar o tempo da comunicação
e o local a partir do qual esta foi efetuada. Além disso, permitem saber com que frequência o assinante ou o
utilizador registado comunicam com certas pessoas, durante um determinado período» (parágrafo 26). Mais
afirmou: «estes dados, considerados no seu todo, são suscetíveis de permitir tirar conclusões muito precisas
sobre a vida privada das pessoas cujos dados foram conservados, como os hábitos da vida quotidiana, os
lugares onde se encontram de forma permanente ou temporária, as deslocações diárias ou outras, as atividades
exercidas, as relações sociais e os meios sociais frequentados» (parágrafo 27). Assim, conclui, inter alia, que
«apesar de a Diretiva 2006/24 não autorizar (…) a conservação do conteúdo da comunicação e das informações
consultadas através de uma rede de comunicações eletrónicas, não está excluído que a conservação dos dados
em causa possa ter incidência na utilização, pelos assinantes ou pelos utilizadores registados, dos meios de
comunicação previstos por esta diretiva e, consequentemente, no exercício, por estes últimos, da sua liberdade
de expressão, garantida pelo artigo 11.° da Carta» (considerando 28).
Já quanto aos dados de base (v.g. número de telefone, endereço eletrónico, contrato de ligação à rede) e
aos dados de localização de equipamento, quando não dão suporte a uma concreta comunicação, não são
objeto de proteção do direito ao sigilo das comunicações (cfr. Acórdão n.º 486/2009). De facto, se o objeto de
proteção é uma comunicação individual, então os dados que não pressuponham uma concreta comunicação,
que não façam parte do processo de comunicação, ainda que protegidos pela reserva da vida privada – artigo
26.º da CRP – não estão cobertos pela tutela do sigilo das comunicações.
Por tudo isso, também se entende que a área de proteção do sigilo das comunicações consagrada no n.º 4
do artigo 34.º da CRP, compreende tanto o conteúdo da comunicação como os dados de tráfego atinentes ao
processo de comunicação. Na verdade, o acesso aos dados de tráfego pode constituir uma ingerência gravosa
na vida privada das pessoas, já que se pode aceder a informações relativas a todas as chamadas efetuadas,
incluindo as chamadas para as linhas de serviço de emergência/SOS/similares, ao número de chamadas, aos
números de telefone chamados, à hora de início e duração de cada chamada e às respetivas unidades de
contagem.
Concluímos, pois, respondendo à primeira questão colocada pelo Requerente neste processo, que a
proibição de ingerência nas comunicações, constante do artigo 34.º da CRP, abrange os dados de tráfego.
16. Assente que os dados de tráfego estão na área de tutela do sigilo das comunicações, importa responder
à segunda questão do Requerente: pode considerar-se que a autorização prévia e obrigatória da Comissão de
Controlo Prévio equivale ao controlo existente no processo criminal?
O artigo 34.º, após estabelecer, no n.º 1, o princípio segundo o qual «o domicílio e o sigilo da correspondência
e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis», prescreve, no n.º 4, que «é proibida toda a
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ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de
comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal».
Em relação às autoridades públicas, este preceito constitucional exprime duas normas contrapostas no seu
sentido deôntico: uma norma proibitiva de toda a ingerência na correspondência, telecomunicações e demais
meios de comunicação; e uma norma permissiva da ingerência nos casos previstos na lei em matéria de
processo penal. Entre as duas normas há uma relação de excecionalidade, em que a norma proibitiva aparece
como geral relativamente à norma permissiva, que exceciona. Com efeito, a norma permissiva autoriza o
legislador a criar normas para um setor restrito de casos com uma configuração particular - «em matéria de
processo penal» - que consagram uma disciplina oposta à constitucionalmente estabelecida como regime-regra.
O sacrifício do direito à inviolabilidade das comunicações privadas a razões imperiosas de investigação
criminal consubstancia uma restrição ao conteúdo constitucional daquele direito fundamental, com o âmbito de
proteção acima delimitado. O direito à inviolabilidade das comunicações não é pois um direito absoluto, visto
que a Constituição autoriza uma intervenção normativa do legislador, para salvaguarda de outros valores
constitucionais, nomeadamente de bens jurídicos dotados de dignidade penal (de bens jurídico-penais), ao
serviço dos quais se encontra o processo criminal. De facto, o n.º 4 do artigo 34.º da CRP admite restrições a
estabelecer por lei com fundamento em exigências de processo criminal relativamente à inviolabilidade de
correspondência, telecomunicações e outros meios de comunicação. Trata-se, pois, de um preceito
constitucional que contempla uma previsão constitucional expressa da restrição de um direito fundamental (sigilo
das comunicações), preenchendo o pressuposto material da emanação de leis restritivas a que diretamente se
refere ao artigo 18.º, n.º 2, primeira parte, da Lei Fundamental («a lei só pode restringir direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na Constituição»).
Ora, como refere Gomes Canotilho, a autorização de restrição expressa de um direito fundamental «tem
como objetivo obrigar o legislador a procurar sempre nas normas constitucionais o fundamento concreto para o
exercício da sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias», de modo a criar segurança
jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos
expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva» (cfr. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed. pág. 448). Sendo este o sentido das restrições estabelecidas por
lei, mediante autorização expressa da constituição, a intervenção normativa abstrata do legislador ordinário só
pode ocorrer nos termos autorizados pela norma constitucional e nos casos nela previstos.
Ora, o tipo de restrições ao direito à inviolabilidade das comunicações que é admitido pelo n.º 4 do artigo 34.º
da CRP é muito mais exigente do que as restrições toleradas por outros direitos fundamentais em que se
protegem os mesmos bens jurídicos (dignidade da pessoa, desenvolvimento da personalidade, garantia da
privacidade, autodeterminação comunicativa). Contrariamente ao que se verifica em alguns desses direitos, em
que, através da expressão “nos termos da lei”, se atribui uma competência genérica de regulação que pode ser
interpretada como incluindo poderes de restrição, a norma permissiva do n.º 4 do artigo 34.º autoriza a restrição
do direito à inviolabilidade das comunicações apenas em determinado domínio normativo: “em matéria de
processo criminal”. Através deste segmento normativo, a autorização constitucional expressa para a restrição
do direito à inviolabilidade das comunicações é completada com a discriminação dos fins e interesses a
prosseguir com a lei restritiva ou com o critério que deve balizar a intervenção do legislador ordinário.
Este é, pois, um caso – a par do igualmente estabelecido no artigo 27.º, n.º 3, em que se estabelecem as
condições da privação da liberdade -, em que é a própria Constituição que prevê diretamente uma determinada
restrição, remetendo para a lei a sua concretização, mas tomando sempre como referencial o processo criminal.
Noutras situações, a Constituição limita-se a admitir restrições não especificadas, como por exemplo nos artigos
35.º, n.º 4 (proibição de acesso a dados pessoais, salvo nos casos previstos na lei), 47.º, n.º 1 (liberdade de
escolha de profissão salvas as restrições legais), 49.º, n.º 1 (direito de sufrágio ressalvadas as incapacidades
previstas na lei geral), e 270.º (restrições estabelecidas por lei ao exercício de direitos pelos militares e agentes
militarizados).
Enquanto no caso do artigo 34.º, n.º 4, a lei se limita a declarar a restrição prevista na Constituição, tendo de
se conformar com o condicionalismo que se encontra expressamente recortado no preceito constitucional, nos
outros casos, em que não existe uma tal especificação, a lei cria a restrição admitida pela Constituição tendo,
no entanto, de sujeitar-se aos requisitos de legitimidade impostos pelo princípio da proporcionalidade, como
decorre do artigo 18.º, n.º 2, segunda parte. Tornando-se a todos os títulos claro, neste contexto, que o grau de
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vinculação do legislador é maior quando a restrição está, desde logo, expressamente prevista na norma
constitucional (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit.,Vol, I, pág. 391).
E não é de menor importância a fixação dos termos da autorização constitucional para a restrição, já que
através deles se conhece também o âmbito de proteção da norma constitucional consagradora daquele direito
fundamental. É que, como refere Gomes Canotilho, a norma constitucional que consagra um direito sujeito a
reserva de lei restritiva, para além de autorizar o legislador a estabelecer limites ao âmbito de proteção
constitucionalmente garantido (norma de autorização de restrição), é simultaneamente uma norma que
reconhece e garante um determinado âmbito de proteção ao direito fundamental (norma de garantia) – cfr. ob.
cit, pág. 1260.
De modo que a enunciação constitucional expressa da matéria em que há autorização para uma intervenção
legislativa limitadora do âmbito de proteção do direito à inviolabilidade das comunicações constitui também uma
garantia de que tais restrições não estão autorizadas noutras matérias e para outras finalidades. O poder de
restrição do legislador encontra-se assim vinculado aos pressupostos e fins pré-determinados na norma
constitucional que autoriza a restrição. Nesse sentido, refere Vieira de Andrade que «o próprio preceito
constitucional que autoriza a restrição pode indicar expressamente os fins ou outros pressupostos específicos
da restrição. Será o caso, por exemplo, dos artigos 27.º, n.º 3, 34.º, n.º 4, e 47.º, n.º 1, que podem ser
considerados de “reserva qualificada”. Nestas situações, presume-se que o legislador só está autorizado a
restringir o conteúdo dos direitos para essas finalidades, ou seja, para a salvaguarda dos direitos ou valores
enunciados, quando muito para outras finalidades que decorram necessariamente ou se possam considerar
implicadas nas expressamente referidas» (cfr. Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 5ª ed., pág. 281).
17. Ao definir o campo de incidência da lei restritiva do direito à inviolabilidade das comunicações pela
“matéria de processo criminal” a Constituição ponderou e tomou posição (em parte) sobre o conflito entre os
bens jurídicos protegidos por aquele direito fundamental e os valores comunitários, especialmente os da
segurança, a cuja realização se dirige o processo penal. Não obstante as restrições legais ao direito à
inviolabilidade das comunicações que o legislador está autorizado a estabelecer deverem obedecer à
ponderação do princípio da proporcionalidade, a preferência abstrata pelo valor da segurança em prejuízo da
privacidade das comunicações só pode valer em matéria de processo penal. É que a não inclusão de outras
matérias do âmbito da restrição do direito à inviolabilidade das comunicações, não é contrária ao plano
ordenador do sistema jurídico-constitucional. Ainda que se pudesse considerar, em abstrato, que há outras
matérias em que o valor da segurança sobreleva os valores próprios do direito à inviolabilidade das
comunicações, a falta de cobertura normativa da restrição em matérias extraprocessuais não frustra as
intenções ordenadoras do atual sistema, porque há razões político-jurídicas que estão na base da abstenção do
legislador constitucional.
Que não estamos perante uma “incompletude contrária ao plano normativo” da Constituição é confirmado,
de forma implícita, mas clara, pelas opções valorativas tomadas aquando da 4.ª e da 5.ª revisões constitucionais.
Nessas revisões foram abertamente tidos em conta imperativos acrescidos de segurança e a necessidade de
incrementar medidas contra a criminalidade referida na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto n.º 426/XII.
Esse objetivo levou a alterações que se traduziram em restrições a direitos fundamentais, nesta área, com a
consagração de novos equilíbrios normativos entre os valores aqui em confronto.
Assim, pela 4.ª revisão, o artigo 33.º, n.º 3, passou a prever a extradição de cidadãos portugueses, em
condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de
criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias
de um processo justo e equitativo. Também o n.º 4 do mesmo artigo passou a admitir a extradição por crimes
puníveis com a prisão perpétua (ainda que só mediante a garantia de não aplicação ao caso).
O próprio artigo 34.º foi objeto de reponderação, na 5.ª revisão constitucional, passando a admitir-se, no n.º
3, a entrada durante a noite no domicílio das pessoas, com autorização judicial, “em casos de criminalidade
especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas”.
O repensamento desta matéria, nas referidas revisões constitucionais, deixou inalterados os termos da norma
permissiva de ingerência nas telecomunicações, estabelecida na 2.ª parte do n.º 4 do artigo 34.º, e o seu alcance
restrito a “matéria de processo criminal”. Apenas se alargou o âmbito da proibição aos “demais meios de
comunicação”, na revisão de 1997.
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Nada autoriza, pois, a admitir uma eventual extensão do âmbito da ressalva final do n.º 4 do artigo 34.º - para
a qual, aliás, o intérprete, neste contexto concreto, não dispõe de instrumentos metodológicos adequados.
De facto, a referência ao processo criminal não é apenas uma indicação teleológica, mas também a
localização da restrição à proibição de ingerência numa área estruturada normativamente em termos de oferecer
garantias bastantes contra intromissões abusivas. Ao autorizar a ingerência das autoridades públicas nos meios
de comunicação apenas em matéria de processo penal, e não para quaisquer outros efeitos, a Constituição quis
garantir que o acesso a esses meios, para salvaguarda dos valores da “justiça” e da “segurança”, fosse efetuado
através de um instrumento processual que também proteja os direitos fundamentais das pessoas. Porque a
ingerência nas comunicações põe em conflito um direito fundamental com outros direitos ou valores
comunitários, considerou-se que a restrição daquele direito só seria autorizada para realização dos valores da
justiça, da descoberta da verdade material e restabelecimento da paz jurídica comunitária, os valores que ao
processo criminal incumbe realizar. Assim, remeteu para o legislador processual penal a tarefa de “concordância
prática” dos valores conflituantes na ingerência nas comunicações privadas: por um lado, a tutela do direito à
inviolabilidade das comunicações; por outro, a viabilização da justiça penal. Na verdade, como escreve
Figueiredo Dias, «o processo penal é um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do
conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual» (cfr. Direito
Processual Penal, Coimbra Editora, 1974,pág. 59).
Assim, a referência ao processo criminal, encontrando-se estreitamente associada à Constituição, onde se
detetam normas diretamente atinentes a essa matéria e que condensam os respetivos princípios estruturantes
(artigo 32.º) – a ponto de se falar numa constituição processual criminal –, tem um sentido hermenêutico
inequívoco, não podendo deixar de ser entendido como a «sequência de atos juridicamente preordenados
praticados por pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre a prática de um crime e as suas
consequências jurídicas».
Nesse plano, o artigo 34.º, n.º 4, ao delimitar a restrição à matéria de processo penal tem também outras
consequências com reflexo no estatuto constitucional do arguido.
Desde logo, a realização da justiça, não sendo um fim único do processo criminal, apenas pode ser
conseguida de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o respeito pelos direitos
fundamentais das pessoas que no processo se veem envolvidas. O respeito desses direitos conduz, por
exemplo, a considerar inadmissíveis certos métodos de provas e a cominar a nulidade de «todas as provas
obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida
privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» (cfr. artigo 32.º, n.º 8, da CRP). A nulidade
das provas, com a consequente impossibilidade da sua valoração no processo, quando sejam obtidas por
ingerência abusiva nas comunicações, corresponde assim a uma garantia do processo criminal e resulta de ter
havido acesso à informação fora dos casos em que a própria Constituição consente a restrição ao princípio da
inviolabilidade dos meios de comunicação privada.
Por outro lado, a referência ao processo criminal implica que a intervenção restritiva careça de prévia
autorização judicial. Sendo o processo criminal uma forma heterocompositiva através da qual se realizam as
funções de jurisdictio referidas à atuação de pretensões baseadas em normas públicas de direito criminal, exige-
se a intervenção de um órgão qualificado para essas funções (cfr. artigo 202.º da CRP). Embora se não trate de
um caso em que a reserva do juiz ou a reserva de primeira decisão se encontre especialmente individualizada
na Constituição (cfr. Acórdãos n.os 4/06 e 426/2005), como sucede em matéria de privação de liberdade (artigos
27.º, n.º 2, e 28.º, n.º 1), entrada no domicílio sem consentimento do titular (artigo 34.º, n.º 2), inibição do poder
paternal (artigo 36.º, n.º 6), liberdade de associação (artigo 46.º, n.º 2) e regularidade e validade dos atos do
processo eleitoral (artigo 113.º, n.º 7), não pode deixar de reconhecer-se que a reserva absoluta do juiz tende a
afirmar-se quando não existe qualquer razão ou fundamento material para a opção por um procedimento não
judicial de resolução de litígio (Gomes Canotilho, ob. cit., pág. 663). O que é particularmente evidente quando
se trate de questões que se reportam ao núcleo duro da função jurisdicional, como é o caso das competências
exclusivas do juiz de instrução (artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal), em que releva a prática de
atos que afetam direitos, liberdades e garantias das pessoas (cfr. Vieira de Andrade, “Reserva do juiz e
intervenção ministerial em matéria de fixação da indemnizações por nacionalizações”, Scientia ivridica, Tomo
XLVII, n.os 274-276, julho/dezembro, 1998,pág. 225). Esse é seguramente o caso quando está em causa a
interceção, gravação ou registo de comunicações (artigo 269.º, n.º 1, alínea c), do CPP).
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Estando excluída a possibilidade, em todo este contexto, de efetuar uma interpretação da norma
constitucional que consinta o acesso a dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das
comunicações no âmbito das atribuições dos serviços de informações, à revelia de qualquer processo penal ou
autorização judicial, ainda que tenha em vista a prevenção penal de bens jurídicos muito relevantes (artigos 4.º,
n.º 1, alínea c), e 78.º, n.º 2, do Decreto), dificilmente se poderá encarar a ideia de uma ampliação do âmbito da
restrição contida no artigo 34.º, n.º 4, 2.ª parte, a partir do fim da regulação ou da conexão de sentido da norma.
Desde logo, porque a finalidade do preceito, como assinalou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 241/2002,
é a de delimitar o âmbito das restrições à garantia da inviolabilidade das comunicações. E, como se deixou
exposto, essa delimitação é expressamente assumida pela Constituição como sendo apenas reconduzível às
situações enquadradas pelo processo penal. Não há aqui, por isso, uma qualquer lacuna oculta que justifique,
contra o seu sentido literal, uma interpretação conforme com a teleologia imanente da norma, já que ela própria
tem por objetivo definir o âmbito preciso da restrição, sem que se torne possível estabelecer uma identidade
valorativa entre o processo penal e a investigação levada a efeito pelos serviços de informações. Além de que
o alargamento do âmbito da norma constitucional, a ser admitida, teria um duplo sentido, implicando não apenas
uma ampliação do âmbito aplicativo da restrição ao princípio da não ingerência nas comunicações, mas também
uma redução da garantia de reserva de juiz, através da remissão do controlo de atos que afetam direitos
fundamentais para uma entidade meramente administrativa.
Pode, então, concluir-se que, no caso da proibição de ingerência das autoridades públicas nas
comunicações, que o artigo 34.º, n.º 4, primeira parte, consagra como princípio geral, as exceções a que se
refere o segmento final desse preceito estão condicionadas à matéria de processo penal, e sendo a restrição
constitucionalmente autorizada apenas nesses termos, não tem cabimento efetuar uma qualquer outra
interpretação que permita alargar a restrição a outros efeitos, como se a restrição não estivesse especificada no
próprio texto constitucional ou se tratasse aí de uma restrição meramente implícita que permitisse atender a
outros valores ou bens constitucionalmente reconhecidos.
18. Este tem sido o entendimento constante, quer da jurisprudência do Tribunal Constitucional, quer da
doutrina que se pronunciou sobre o sentido jurídico-normativo do n.º 4 do artigo 34.º da CRP.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado que a “compressão” da proibição da ingerência
nas comunicações só pode ser feita nos termos da lei e em “matéria de processo criminal”.
Enquanto critério normativo da solução de um concreto problema jurídico, o n.º 4 do artigo 34.º da CRP foi
objeto de interpretação no já referido Acórdão n.º 241/02, em que conheceu da inconstitucionalidade da norma
ínsita no artigo 519.º, n.º 3, alínea b), do CPC quando interpretada no sentido de que, em processo laboral,
podem ser pedidas, por despacho judicial, aos operadores de telecomunicações informações relativas aos
dados de tráfego e à faturação detalhada de linha telefónica instalada na morada de uma parte, sem que enferme
de nulidade a prova obtida com a utilização dos documentos que veiculam aquelas informações, por infração ao
disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 34.º, n.os 1 e 4, da Constituição. Aí se reconheceu que «a garantia da
inviolabilidade das telecomunicações não é, na Constituição, absoluta – ela admite a ressalva de "casos
previstos na lei" (n.º 4 do citado artigo 34.º). Simplesmente, a Constituição teve o cuidado de delimitar o âmbito
em que esses casos se poderiam inscrever – "em matéria de processo criminal"». Sendo esse o critério
normativo oferecido pelo preceito constitucional, então, «o âmbito da restrição ao princípio da não ingerência
nas telecomunicações está constitucionalmente delimitado, não sendo lícito, a pretexto de concordância com
aquele interesse (interesse público da administração da justiça), também constitucionalmente consagrado,
ampliar a restrição consentida». Nessa ordem de razão, afirmou-se, expressivamente, que «é certo que se
poderia contrapor ao sigilo das telecomunicações (…) o interesse público na administração da justiça, em ordem
ao qual se verteu em lei o dever de cooperação das partes e de terceiros para a descoberta da verdade. O certo
é que, como se viu, o âmbito da restrição ao princípio da não ingerência nas telecomunicações está
constitucionalmente delimitado, não sendo lícito, a pretexto de concordância com aquele interesse, também
constitucionalmente consagrado, ampliar a restrição consentida».
E no Acórdão n.º 198/85, em que se questionou a constitucionalidade do artigo 1216.º do Código de Processo
Civil – que prescrevia que toda a correspondência dirigida ao falido era entregue ao administrador – por
desconformidade com o n.º 4 do artigo 34.º, na versão originária, o Tribunal entendeu que nessa disposição
«apenas se prevê a possibilidade de restrições legais ao sigilo da correspondência “em matéria de processo
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criminal”, e a restrição ora em causa não tem aí, a todas as luzes, a sua sede – não é, por outras palavras,
ditada por um objetivo de investigação e perseguição criminal». E ao comparar a restrição prevista na norma
sindicada com o estabelecido nas Leis de Falências italiana e alemã, refere que «em ambos os mencionados
ordenamentos a consagração legal da restrição ou restrições em causa depara com menores dificuldades do
que entre nós, uma vez que em qualquer deles o respetivo preceito constitucional ressalva, genericamente, as
limitações ao direito impostas “por ato fundamentado da autoridade judiciária, observadas as garantias
estabelecidas pela lei” (Constituição Italiana), ou as limitações impostas “com base numa lei” (Grundgesetz)».
Na nossa ordem jurídica, a dificuldade em aceitar a restrição ao sigilo da correspondência existe porque «não é
uma fórmula ampla e genérica deste tipo a que se contém no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição Portuguesa —
mas antes, como se viu, uma fórmula que unicamente prevê restrições (legais) do direito em apreço “em matéria
de processo criminal”.
De igual modo, nos Acórdãos n.os 407/97, 70/2008, 486/2009 e 699/2013 agora em matéria de sigilo de
telecomunicações, se considera que a possibilidade de existir ingerência nas telecomunicações só ocorre «no
quadro de uma previsão legal atinente ao processo penal (a única constitucionalmente tolerada)»; que «só no
domínio do processo penal é que a lei ordinária pode prever restrições à referida garantia contida no artigo 34.º,
n.º 4. As necessidades de perseguição penal e de obtenção de provas justificam a compressão do direito
individual à comunicação reservada, mas carecem de ser avaliadas pelas autoridades judiciárias em termos de
necessidade, adequação e proporcionalidade, de tal modo que violado que seja o princípio da menor intervenção
possível e da proporcionalidade, há de a prova assim obtida ser considerada nula (artigos 32.º, n.º 8, da
Constituição e 189.º do Código de Processo Penal)»; e que «a proibição de obtenção de meios de prova
mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações pode ser
afastada, quer pelo acordo do titular dos direitos em causa, quer pelas restrições à inviolabilidade desses direitos
expressamente autorizadas pela Constituição. O legislador constitucional prevê expressamente restrições ao
sigilo das telecomunicações mas apenas as admite no domínio da lei processual penal».
Assim, o Tribunal Constitucional tem considerado que, para além da permissão de restrições expressamente
previstas no n.º 4, referente ao processo criminal, vigora uma proibição absoluta de ingerência das autoridades
públicas nos meios de comunicação, incluindo em matéria de dados de tráfego.
E no mesmo sentido se pronunciou o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República em quatro
Pareceres sobre o sigilo das telecomunicações: (i) no Parecer n.º 92/91, de 30/3/92, a propósito da questão de
saber se a expressão “em matéria de processo criminal”, usada no artigo 34.º, n.º 4, da CRP, poderia abranger
processos de prevenção criminal, designadamente na área da segurança, concluiu que «a obtenção de prova
por meio de escutas telefónicas ou similares só é suscetível de ser judicialmente autorizada a partir do início da
fase processual de inquérito», o qual «tem de iniciar-se logo que haja aquisição da notícia da existência de uma
infração criminal idónea à formulação de um juízo objetivo de suspeita sobre a sua verificação»; (ii) No Parecer
n.º 16/94, de 24/6/94 e Parecer n.º 16/1994, Complementar, de 26/10/1995, concluiu que «o sigilo das
comunicações é tendencialmente absoluto, cedendo apenas nos termos e pelo modo previstos no Código de
Processo Penal como meio de aquisição da prova»; (iv) e no Parecer n.º 16/2000, de 9/3/2000, pronunciou-se
no sentido de que «no âmbito de processos de natureza cível, sendo solicitadas, por parte do juiz da causa,
para efeitos de instrução, informações referentes a dados de tráfego e dados de conteúdo, é legítima a recusa,
por parte dos operadores de telecomunicações».
Por fim, cabe referir que ao mesmo resultado de interpretação tem chegado a doutrina que se pronunciou
sobre o texto e a intenção prático-normativa das normas alojadas no n.º 4 do artigo 34.º da CRP. Gomes
Canotilho e Vital Moreira afirmam que do teor desse artigo resulta que nele se «inclui a proibição de ingerência
nos meios de comunicação, salvo nos casos previstos na lei (reserva de lei) em matéria de processo penal (e
não para outros efeitos)». (cfr. ob. cit., pág. 543); Cristina Máximo dos Santos refere que o direito ao sigilo das
telecomunicações não é absoluto, pois admite exceções previstas na «lei em matéria de processo criminal» «o
que vale por dizer que, apenas em processos de natureza penal, se admite a ingerência nas telecomunicações,
cabendo à lei ordinária definir os limites em que ela pode ter lugar» (“cfr. As novas tecnologias da informação e
o sigilo das telecomunicações”,Revista do Ministério Público, n.º 99, pp. 96); Rui Pereira, precisamente a
propósito das competências dos Serviços de Informação da República, afirma que «há limites à atividade dos
serviços que decorrem da Constituição. Assim, as “escutas telefónicas” – ou, mais rigorosamente, a ingerência
(...) na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação... – apenas podem ser
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levadas a cabo no âmbito do processo penal e carecem sempre se mandado de juiz por se “prenderem
diretamente” com direitos fundamentais» (“cfr. Informações e Investigação Criminal”, I Colóquio De Segurança
Interna, Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Almedina, pág. 161).
19. Resta, pois, saber se a atividade dos oficiais de informações do SIRP, para efeitos da qual acedem, nos
termos da norma em análise, a dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações,
necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, data, hora,
duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua
localização, se pode considerar como atividade «em matéria de processo criminal».
Tudo está em saber, a final, se o acesso aos dados de tráfego é um ato que se inclui no âmbito da
investigação criminal.
Seguramente que a resposta deve ser negativa.
Na verdade, os fins e interesses que a lei incumbe ao SIRP de prosseguir, os poderes funcionais que confere
ao seu pessoal e os procedimentos de atuação e de controlo que estabelece, colocam o acesso aos dados de
tráfego fora do âmbito da investigação criminal.
A remissão que o n.º 2 do artigo 78.º do Decreto 426/XII faz para a alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º, que
descreve as atribuições do SIRP, indica a finalidade do acesso aos dados de trafego: recolha, processamento,
exploração e difusão de informações adequadas a previr a sabotagem, a espionagem, o terrorismo, a
criminalidade altamente organizada de natureza transnacional e a prática de atos que possam alterar ou destruir
o Estado de Direito democrático.
Ora, a caracterização dessa concreta atividade como recolha de “informações” para efeitos de “prevenção”
dissocia-a, de forma clara e precisa, da atividade própria de investigação criminal. A investigação criminal, di-lo
a própria lei - artigo 1.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto - «compreende o conjunto de diligências que, nos
termos da lei processual penal, se destinam a averiguar a existência de um crime, determinar ou seus agentes
e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas, no âmbito do processo». E mesmo a circunstância
dos dados de tráfego se reconduzirem a crimes tipificados no ordenamento jurídico-penal não permite que se
caracterize a “recolha de informação” como um ato de “recolha de provas” ou que a “ação preventiva” configure
uma “atividade processual”.
Não obstante existir uma relação entre informações e investigação criminal, o legislador teve a preocupação
de distinguir, em sentido material e orgânico, as duas atividades. Com efeito, a atividade do SIRP de «produção
de informações necessárias à salvaguarda da segurança interna e externa, da independência e interesses
nacionais e da unidade e integridade do Estado», prescrita no artigo 2.º do Decreto n.º 426/XII, não inclui o
exercício de poderes, atos e atividades, «do âmbito da competência específica dos tribunais, do Ministério
Público ou das entidades com funções policiais», conforme se preceitua no n.º 2 do artigo 5.º do mesmo Decreto.
Por conseguinte, os serviços de informação não possuem quaisquer atribuições policiais ou de investigação
criminal, ou seja, não se destinam a garantir o respeito e cumprimento das leis gerais (v.g. defesa da ordem
pública), nem a apurar da autoria da prática de crimes, estando-lhes legalmente vedada tais atividades; nem
são órgãos de polícia criminal para efeitos do Código de Processo Penal, nem assumem a qualidade de
autoridade de polícia.
Há, pois, uma distinção radical entre informações e investigaçãocriminal,o que impede os oficiais de
informação de intervirem no processo penal. As informações, no sentido de «elementos de conhecimento
sistematizado em quadros interpretativos, através de critérios que sobrepõem a estrutura de sentido à relação
causal (...) produzidas através de método próprio e preservadas da atenção e conhecimento de terceiros», nisso
se traduzindo os «dois traços distintivos essenciais: - um método próprio; - um regime de segredo» (cfr. Arménio
Marques Ferreira, O Sistema de Informações da República Portuguesa, in Estudos de Direito e Segurança,
Almedina, 2007, pág. 69), visam a obtenção de um conhecimento específico necessário à tomada de decisões
e não a recolha de prova conducente ao exercício da ação penal. Ainda que a recolha e análise de informações
possa ser utilizada na investigação criminal e com vista a medidas de prevenção policiais, não deixa de ser uma
atividade autónoma e prévia à investigação criminal.
De facto, iniciando-se o processo penal com a notitia criminis, a recolha de informações para esse fim tem
que se dirigir a um crime já praticado. De modo que, a recolha de dados no âmbito de processo criminal é
sempre feita num contexto previamente delimitado pelo objeto desse processo, apenas se recolhendo
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informações no contexto da investigação de um específico facto e em relação a específicos sujeitos tidos como
suspeitos.
Diferente é a configuração da atuação “preventiva” dos serviços de informações, à qual corresponderá um
acesso aos dados que pode abranger um universo de pessoas muito mais vasto, precisamente por não estar
ainda pré-ordenado à investigação de um facto concreto e delimitado. As funções de recolha e tratamento de
informações a levar a cabo pelo SIRP, porque preventivas, não se orientam para uma atividade investigatória
de crimes praticados ou em execução. Não são atos de polícia judiciária, destinada à investigação criminal.
É evidente que uma atuação investigatória processualizada e publicizada, na forma de inquérito preliminar
ou de instrução, não só salvaguarda a liberdade e segurança no decurso do processo, como dá garantia de que
a prova para ele canalizada foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais. A mesma conclusão não se
pode extrair de uma ação de prevenção não processualizada ou mesmo não suficientemente formalizada,
coberta pelo segredo de Estado, que decorre na total ausência de instrumentos defensivos que comportem um
mínimo de dialética processual. Os procedimentos preventivos dessa natureza, desvinculados da dependência
funcional a uma autoridade judiciária, não fazem parte da investigação criminal. A Lei Fundamental enquadra
essas ações no direito constitucional da polícia – artigo 272.º –, não como atividade auxiliar da realização da
justiça, mas apenas como “medidas de polícia” de caráter preventivo. A atividade relativa à produção de
informações pelo SIRP destinadas a previr os crimes contra a segurança do Estado, soberania nacional e
realização do Estado de Direito, pode ser abrangida por esse preceito (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob.
cit., págs. 663 e 664), mas, porque não se dirige à descoberta da autoria de um crime, não reveste a natureza
de investigação criminal. As ações de prevenção do SIRP são, pois, procedimentos administrativos que,
devendo respeitar os direitos, liberdades e garantias (artigo 5.º do Decreto n.º 426/XII), não obedecem aos
princípios jurídico-constitucionais conformadores do processo penal, proclamados no artigo 32.º da CRP.
20. E não é a intervenção da Comissão de Controlo Prévio que tem a virtualidade de judicializar o acesso
aos dados de tráfego. A titularidade do processo penal é atribuída às autoridades judiciárias competentes –
Ministério Público, juiz de instrução criminal e juiz de julgamento (cfr. alínea b) do artigo 1.º do CPP) e aquela
Comissão tem a natureza de órgão administrativo não inserido jurídico normativamente na organização judicial,
pese embora a qualidade dos seus membros. De facto, do ponto de vista formal ou orgânico, não exerce a
função judicial e, do ponto de vista material, não exerce a função jurisdicional. Em questões do foro criminal é
sempre inadmissível qualquer procedimento administrativo prévio, por mor das “exigências” do ius puniendi:
exclusividade pelos tribunais e exclusividade processual (cfr. artigos 202.º e 32.º da CRP). Ou seja, cumpre aos
juízes e tribunais declarar o crime e determinar a pena proporcional aplicável, e tal atividade deve ocorrer no
âmbito de um processo penal válido e com todas as garantias constitucionalmente estabelecidas.
Ora, é precisamente a falta de intervenção de uma entidade judicial, exigida pelo artigo 32.º, n.º 4, da CRP
no que se refere à intervenção nos direitos e liberdades das pessoas, que demonstra não se poder configurar a
atuação de acesso aos dados de comunicações privadas por parte dos oficiais dos serviços de informação como
integrando um “processo criminal”. É certo que, nos termos do artigo 35.º do Decreto n.º 426/XII, a Comissão
de Controlo Prévio é composta por três magistrados judiciais, designados pelo Conselho Superior da
Magistratura, de entre juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com pelo menos três anos de serviço
nessa qualidade. No entanto, e independentemente da sua concreta composição, a comissão de controlo prévio
configura um órgão administrativo e neste ponto é irrelevante saber se é composta por magistrados judiciais, já
que os mesmos atuam, não na veste de entidade judicial, mas como membros da referida comissão
administrativa. De facto, não é específica atividade profissional dos membros que compõem um determinado
órgão que muda a natureza do mesmo, transformando-o de órgão administrativo em órgão judicial.
Nem o sistema de autorização prévia dada pela referida Comissão para acesso e manutenção dos dados de
tráfego se poderia equiparar ao controlo existente num processo penal. De facto, este último, no que toca ao
acesso aos presentes dados, assegura garantias não só no que respeita ao acesso, mas ainda no que toca ao
tratamento, manutenção e destruição ou cancelamento dos mesmos, definindo inclusivamente prazos máximos
perentórios para o efeito. Neste contexto, vigoram as garantias do Código de Processo Penal e da já mencionada
Lei n.º 32/2008 que, depois de especificar, no artigo 2.º, n.º 1, alínea f), quais as autoridades competentes para
acederem aos dados de tráfego das comunicações (no qual não consta qualquer serviço de informações),
estabelece várias garantias no que toca ao tratamento e conservação de todos esses dados, sendo nota comum
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a todo o acesso, tratamento, conservação e extinção, a intervenção de um juiz (assim, artigos 7.º e 9.º e artigo
11.º, que estabelece sobre destruição de dados). Todavia, esta intensidade de controlo não é levada a cabo
pela referida Comissão de Controlo Prévio, que se limita a conceder um “visto” prévio de autorização, após o
que deixa de ter qualquer intervenção durante as atividades de acesso aos dados em causa.
21. Aliás, independentemente da questão da reserva de juiz em processo penal, a falta das mencionadas
garantias verifica-se ainda no que toca à atuação da referida Comissão de Controlo Prévio. De facto, da lei não
resulta com suficiente determinação quais os casos ou circunstâncias em que a referida Comissão pode
conceder a autorização de acesso aos dados, nem se estabelece com clareza quais as garantias dos visados
no que toca à duração da autorização de acesso ou à eliminação dos dados.
Ora, uma atividade de acesso aos dados de tráfego, levada a cabo sem conhecimento dos visados, exige
regras claras e determinadas que permitam saber até onde pode ir a ingerência, para que haja a necessária
segurança jurídica no que toca às restrições possíveis aos seus direitos. De facto, onde a atividade e poderes
são exercidos em segredo, maior é o risco de arbitrariedade, já que os indivíduos não têm conhecimento nem
controlam a atividade de ingerência em concreto.
A esse propósito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já afirmou que um processo de acesso a dados,
porque não sujeito ao escrutínio dos indivíduos visados, tem de ser compensado por uma lei suficientemente
tuteladora dos direitos fundamentais (Acórdão de 06/06/2006, Segerstedt-Wiberg e outros c. Suécia, queixa n.º
62332/2000); que essa lei deve empregar termos suficientemente claros para possibilitar a todos os cidadãos
terem conhecimento das circunstâncias e dos requisitos que permitem ao poder público fazer uso de uma
medida secreta que lesa o direito à vida privada pessoal e familiar e à correspondência (Acórdão de 02/08/1984,
Malone c. Reino Unido, queixa n.º 8691/79); que seria contrária às exigências do artigo 8.º, n.º 2, da CEDH se
a ingerência nas telecomunicações fosse conferida aos poderes públicos através de um poder amplo e
discricionário, e que são necessárias regras claras e detalhadas, especialmente devido ao facto de a tecnologia
disponível se tornar cada vez mais sofisticada, a fim de garantir uma proteção adequada contra ingerências
arbitrárias (Acórdão de 16/02/2000, Amann c. Suíça 95, queixa n.º 27798/95); e nos casos Valenzuela c.
Espanha (Acórdão de 30/07/1998, queixa n.º 27671/95) e Prado Bugallo c. Espanha (Acórdão de 18/02/2003,
queixa n.º 58496/00), chegou à mesma conclusão, afirmando que a lei que permitia a ingerência nas
comunicações não era suficientemente clara e precisa, não mencionando a natureza das infrações que podem
dar lugar às mesmas, a fixação de um limite de duração da medida, as condições de acesso aos dados e a
eliminação dos mesmos.
E a jurisprudência constitucional estrangeira orienta-se no mesmo sentido. O Tribunal Constitucional
espanhol afirmou já, por diversas vezes, que a ingerência nas comunicações telefónicas só pode considerar-se
constitucionalmente legítima quando esteja prevista na lei com suficiente grau de precisão (Decisão n.º 49/99,
de 5 de abril, Decisão n.º 184/2003, de 23 de outubro); e o Tribunal Constitucional alemão, em relação a uma
lei que não regulava como deveriam os dados ser guardados nem oferecia garantia de uma efetiva supervisão,
decidiu que, no âmbito da realização de uma base de dados partilhada entre o serviço de inteligência e vários
serviços de segurança, com o objetivo de combater o terrorismo, a partilha ou transferência de informação estava
sujeita a requisitos constitucionais muito exigentes, dos quais se destacava a sua detalhada configuração legal
(Decisão de 24/04/2013, 1.º Senado).
Desta jurisprudência decorrem, pois, várias exigências para uma norma que, como a presente, permita o
acesso a dados de tráfego das comunicações de indivíduos sem o seu consentimento ou conhecimento. Em
primeiro lugar, a lei deve empregar termos suficientemente claros para possibilitar a todos os cidadãos terem
conhecimento das circunstâncias e dos requisitos que permitem ao poder público aceder aos dados em causa,
sendo que os requisitos para o efeito devem ser claramente determinados; deve ainda fazer menção, com
precisão, dos casos específicos em que o acesso deve ter lugar, prever a fixação de um limite de duração da
medida, e das regras e prazos para eliminação dos dados de tráfego. Só assim se poderá falar de uma ingerência
determinável e que garanta segurança jurídica aos interessados.
22. Mas, se assim é, há que reconhecer que, para além da impossibilidade de compatibilização com a norma
do n.º 4 do artigo 34.º da CRP, a norma do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII não contém densidade
suficiente para, num domínio de lei restritiva, possibilitar a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e
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interesses dos cidadãos. Com efeito, a norma não satisfaz suficientemente, como contrapartida do acesso aos
dados de tráfego, as exigências de determinabilidade que são garantidas em matéria de processo criminal,
devolvendo para a esfera administrativa ponderações que deveriam constar da lei.
Desde logo, e quanto aos pressupostos da concessão da autorização de acesso aos dados, a lei estabelece
que o acesso aos dados de tráfego de comunicações tem lugar nos casos previstos na alínea c) do n.º 2 do
artigo 4.º, que respeitam à prevenção de sabotagem, espionagem, terrorismo e sua proliferação, a criminalidade
altamente organizada de natureza transnacional e a prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou
destruir o Estado de Direito democrático constitucionalmente estabelecido. Mas a parte final da norma não
oferece suficiente segurança jurídica aos potenciais lesados, já que resulta indeterminado o que podem constituir
«atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de Direito democrático constitucionalmente
estabelecido». Assim, não se pode considerar que a lei tenha determinado de forma suficientemente precisa os
casos em que a ingerência possa ter lugar. Trata-se, aliás, de uma verdadeira indeterminabilidade, que pode
ser facilmente manipulável para permitir um acesso arbitrário aos dados de tráfego das comunicações.
Depois, porque delimita as condições em que o acesso a dados de tráfego pode ter lugar por parte dos
oficiais de informações do SIRP da seguinte forma: «sempre que sejam necessários, adequados e
proporcionais, numa sociedade democrática, para o cumprimento das atribuições legais dos serviços de
informações». Ora, a referência às exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido
estrito, quando reportada à atuação dos oficiais de informações em matéria de dados e informações, não
representa mais do que um afloramento de um parâmetro de juridicidade da Administração, tal como se encontra
genericamente consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, e é, nesse plano, inteiramente redundante na
medida em que se trata de um princípio material conformador de toda e qualquer atividade administrativa.
E, sendo assim, a alusão ao princípio da proporcionalidade nos sobreditos termos nada esclarece quanto às
condições específicas em que, no âmbito das atribuições dos serviços de informações, pode haver lugar ao
acesso a dados conexos com as comunicações.
Note-se que, em contrapartida, a Lei n.º 32/2008, que não se aplica aos sistemas de informação, estabelece
requisitos muito mais precisos para o acesso à informação em contexto de processo penal, ao prever, no artigo
9.º, n.º 1, que «a transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º só pode ser autorizada
(…) se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova
seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, deteção e repressão de
crimes graves». Assim, no artigo 78.º do Decreto, para além de os casos que permitem o acesso aos dados de
tráfego não resultarem suficientemente determinados, o mesmo se pode dizer das condições de acesso, já que
dele não resulta quais os critérios a que se deve atender para aferir se a ingerência estadual, num determinado
caso, é “necessária, adequada e proporcional, numa sociedade democrática”.
Por outro lado, e ainda quanto às situações de facto cuja ocorrência depende a possibilidade legal de
intervenção da Comissão de Controlo Prévio, a norma objeto de fiscalização, em conjugação com a alínea c) do
n.º 2 do artigo 37.º do Decreto, não impede que se autorize a recolha e análise de informação sem referência a
alvos concretos. Muito pelo contrário, ele deixa espaço para que o acesso a dados seja feito de forma bastante
alargada de modo a detetar padrões de conduta que possam reconduzir os cidadãos a potenciais suspeitos de
crime. Muito diversas são as garantias atualmente previstas no contexto do processo penal, em que a Lei n.º
32/2008 estabelece, no artigo 9.º, n.º 3, que só pode ser autorizada a transmissão de dados relativos ao suspeito
ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe
ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido, ou a vítima de crime, mediante o
respetivo consentimento, efetivo ou presumido. Assim, a lei sobre transmissão de dados atualmente em vigor
em matéria criminal exige uma determinabilidade dos dados acessíveis que não tem qualquer correspondência
com as latas menções constantes do Decreto. E isto porque, a utilização de um meio invasivo nos direitos
fundamentais que aqui estão em causa dependerá sempre da verificação de uma suspeita substanciada
segundo limiares de plausibilidade ou de probabilidade.
23. Acresce, por fim, que a norma do n.º 2 do artigo 78.º, no contexto jurídico-sistemático em que está
inserida, não torna claro e explícito todo o procedimentode acesso, a duração do acesso e a eliminação dos
dados de tráfego recolhidos.
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De facto, daquela norma, nem de qualquer outra do Decreto, resulta como é feito o acesso aos dados. Mais
uma vez se impõe o contraponto com a Lei n.º 32/2008, que determina, no n.º 3 do artigo 7.º, como é feita a
transmissão de dados por parte das operadoras no contexto do processo penal: «processa-se mediante
comunicação eletrónica, nos termos das condições técnicas e de segurança fixadas em portaria conjunta dos
membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna, da justiça e das comunicações, que
devem observar um grau de codificação e proteção o mais elevado possível, de acordo com o estado da técnica
ao momento da transmissão, incluindo métodos de codificação, encriptação ou outros adequados». Ora, o
Decreto n.º 426/XII nada menciona no que toca à forma de comunicação dos dados, nem remete esta matéria
para qualquer outra regulamentação.
E quanto ao tempo durante o qual é permitido o acesso aos dados, verifica-se a mesma falta de segurança
jurídica. Nos termos do artigo 37.º, n.º 2, alínea d), do Decreto, o prazo de acesso não pode exceder três meses,
mas pode ser estendido, mediante autorização expressa. Porém, a lei não contém qualquer limite para tal
prorrogação, nem estabelece em que condições pode ser autorizada a referida prorrogação. A lei prevê assim,
a partir do momento em que a Comissão de Controlo Prévio dá a sua autorização, uma possibilidade de acesso
aos dados de tráfego sem qualquer limite máximo de tempo. Assim, tal como decidiu o TEDH no caso Valenzuela
c. Espanha, acima referido, a falta de menção de prazo específico de duração da medida gera incerteza para
os destinatários da mesma, pelo que não se pode considerar, também por aqui, que a lei cumpra a exigência
de determinabilidade.
Idêntica incerteza pode apontar-se no que respeita à eliminação dos dados - que corresponderia, aliás, a
uma exigência do direito à autodeterminação comunicativa, na vertente do “direito ao esquecimento”. No Decreto
n.º 426/XII não se especifica qualquer prazo para a manutenção ou eliminação obrigatória dos dados. De resto,
são escassas e incertas as possibilidades previstas referentes à eliminação dos dados. O artigo 37.º, n.º 8, prevê
a possibilidade da Comissão de Controlo Prévio, em coletivo, participar à Comissão de Fiscalização «os
elementos conducentes à destruição imediata desses dados ou informações». Todavia, sem a previsão legal de
um acompanhamento constante por essa Comissão, fica por saber como chega ao seu conhecimento a
existência de dados que devem ser eliminados. Por seu turno, o Secretário-Geral tem poderes para ordenar a
destruição imediata de todos os dados e informações recolhidos mediante a autorização prevista no presente
artigo, «sempre que não tenham relação com o objeto ou finalidades da mesma» (artigo 37.º, n.º 7). Assim, na
prática, a fiscalização da manutenção de dados é apenas levada a cabo pela Comissão de Fiscalização do SIRP
que, em regra, exerce a sua atividade fiscalizadora dos centros de dados por amostragem (artigo 30.º, n.º 1). A
única norma que se refere a um “dever” de eliminação de dados consta do artigo 30.º, n.º 3, de acordo com a
qual a referida Comissão de Fiscalização «deve ordenar o cancelamento ou retificação de dados recolhidos que
envolvam violação dos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na lei». Não se estipula,
porém, em que condições ou em que prazos tem lugar uma fiscalização conducente a esta avaliação e
correspondente destruição dos dados. No mais, qualquer possibilidade de eliminação ou destruição de dados
estará sempre dependente do conhecimento e pedido dos visados, nos termos do artigo 32.º. Ora, a falta de
prazos perentórios de eliminação de dados, ou de procedimentos periódicos obrigatórios destinados a averiguar
a necessidade de manutenção de todos os dados existentes, bem como de clara determinação do momento ou
condições em que a manutenção dos dados deixa de ser necessária, também não oferece suficiente segurança
à defesa dos direitos e interesses dos cidadãos.
24. De todo o exposto resulta, assim, que, independentemente da natureza específica do órgão “Comissão
de Controlo Prévio”, a atuação do mesmo não se afigura equiparável ao controlo jurisdicional existente em
processo penal em matéria de direitos fundamentais. De facto, este último, no que toca à ingerência nas
comunicações, assegura garantias não só no que respeita ao acesso, mas ainda no que toca ao tratamento,
manutenção e destruição ou cancelamento dos dados, definindo inclusivamente prazos máximos perentórios
para o efeito. Neste contexto, vigoram as garantias do Código de Processo Penal e da Lei n.º 32/2008 que
estabelece várias garantias no que toca ao tratamento e conservação de todos esses dados, sendo nota comum
a todo o acesso, tratamento, conservação e extinção, a intervenção de um juiz (cfr. artigos 7.º, 9.º e 11.º). Esta
intensidade de controlo não é levada a cabo pela referida Comissão de Controlo Prévio, que se limita a conceder
um «visto» prévio de autorização, após o que não exerce qualquer acompanhamento durante as atividades de
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acesso aos dados em causa. Neste ponto se vê, pois, também que a institucionalização do controlo prévio
mencionado em nada se pode considerar equiparável ao oferecido em matéria de processo penal.
Enfim, importa reconhecer que a ingerência nos dados de comunicação não tem, no presente contexto, lugar
num procedimento que dê garantias e faculdades de proteção de alcance assimilável àquelas que conformam
constitucionalmente o processo criminal. Assim, as razões que justificaram a exceção expressamente
mencionada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, que se prendiam, precisamente, com as específicas garantias
existentes em processo criminal, não se verificam no presente caso.
Por conseguinte, também a resposta à segunda questão que foi colocada pelo Requerente neste processo
é seguramente negativa: a Comissão Prévia de Controlo é um órgão administrativo que não tem poderes
equivalentes a uma intervenção em processo criminal.
III. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 278.º da Constituição da República, o Tribunal decide pronunciar-se pela
inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII da Assembleia da República que
“Aprova o Regime Jurídico do Sistema de Informações da República Portuguesa”, por violação do n.º 4 do artigo
34.º da CRP.
Lisboa, 27 de agosto de 2015— Lino Rodrigues Ribeiro — Fernando Vaz Ventura — Carlos Fernandes
Cadilha — Ana Maria Guerra Martins — Maria Lúcia Amaral (com declaração) — José António Pires Teles
Pereira (votei vencido, conforme declaração junta)— Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão. Não subscrevo, no entanto, os fundamentos que a sustentaram e que foram sufragados pela
maioria.
1. O juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal faz, no presente caso, decorre de uma operação de
interpretação constitucional que conduz ao seguinte resultado: em Portugal, diz-se, a CRP proíbe em qualquer
circunstância que os Serviços de Informação da República acedam aos dados de tráfego das telecomunicações
privadas, uma vez que o direito fundamental à inviolabilidade destas últimas só pode ser restringido através da
lei em matéria de processo criminal. De acordo, portanto, com esta interpretação, extra delictum –fora de um
processo [criminal] já iniciado contra alguém em tribunal e para além das suas garantias – as autoridades
públicas portuguesas não estarão pura e simplesmente autorizadas a intercetar dados de tráfego
telecomunicacional, quaisquer que sejam os fundamentos constitucionais que sustentem a necessidade da
interceção ou qualquer que seja o valor comunitário pela mesma prosseguido.
A razão de ser desta interpretação reside na redação literal do n.º 4 do artigo 34.º da CRP, particularmente
no seu inciso final. Por causa deste inciso, deve entender-se (diz ainda o Tribunal) que, ocorrendo in casu uma
«tensão» ou «colisão» entre dois valores constitucionais de primeiríssima grandeza – a liberdade individual, por
um lado, expressa no direito à inviolabilidade das telecomunicações, e, por outro, a segurança e preservação
da própria ordem constitucional, expressa na necessidade de prevenir a ocorrência de atos que contra ela
atentem –, a resposta à questão de saber em que termos é que essa «tensão» ou «colisão» deve ser
constitucionalmente resolvida não é tarefa que caiba ao intérprete empreender, uma vez que foi o próprio
legislador constituinte que conferiu para ela uma solução clara. E essa é a da «reserva absoluta» do processo
criminal, porque assim o determina a parte final do n.º 4 do artigo 34.º da CRP. Nestes termos, e a menos que
haja uma revisão constitucional contendo para tanto uma explícita autorização, os Serviços de Informações da
República, que se situam claramente fora do âmbito do poder judicial e que atuam por outros meios que não os
próprios de um processo que corra em juízo, não podem, em caso algum, intercetar os chamados dados de
tráfego.
Dissenti desta interpretação. A meu ver, na sua base está um entendimento do que seja o limite previsto no
n.º 2 do artigo 18.º da CRP («[a]lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
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previstos na Constituição») de tal modo estreito que não serve para resolver questões em que, como no presente
caso, estejam em causa problemas difíceis de «colisão» entre diferentes direitos fundamentais (o direito à
liberdade e o direito à segurança), ou – vistas as coisas de uma perspetiva objetiva e não apenas subjetiva –
entre diferentes valores constitucionais dotados ambos da mais intensa carga axiológica: o valor da liberdade,
por um lado, e o valor da defesa da ordem constitucional democrática, por outro.
2. Na verdade, e subjacente ao entendimento que foi adotado – segundo o qual os Serviços de Informações
da República se situam claramente fora da autorização constitucional que é dada ao legislador para restringir o
direito à inviolabilidade das telecomunicações – está a convicção segundo a qual a remissão que é feita para a
lei restritiva, quer a que consta do n.º 4 do artigo 34.º da CRP quer a que conste de qualquer outro preceito da
lei fundamental, é sempre uma «exceção» a uma «norma» ou «regra». De acordo com este entendimento, a
«norma» ou a «regra» é o direito fundamental em si mesmo considerado; e a «exceção», a autorização
constitucional para o restringir. E como, em termos lógicos, a exceção a uma «regra» se apresenta sempre como
um quid fechado que não admite «extensões», assim também as «exceções» aos direitos fundamentais,
resultantes das autorizações constitucionais para os restringir, nunca admitiriam outras para além daquelas que
o legislador constituinte expressamente enunciou. Nestes termos, e voltando à autorização constitucional para
restringir o direito à inviolabilidade das telecomunicações, constante do n.º 4 do artigo 34.º da CRP. Como tal
autorização constitui uma «exceção», e a «exceção» só comporta a «matéria de processo criminal», encontra-
se vedado – na lógica do Tribunal – qualquer processo interpretativo que procure indagar da razão de ser dessa
mesma «exceção», a fim de saber se nela se poderá ou não incluir outra «matéria» que, não sendo a
expressamente prevista, apresente no entanto com esta última afinidades valorativas, constitucionalmente
relevantes.
3. Creio, no entanto, que não é deste modo que se deve entender o conceito constitucional de «autorização
para restringir [um direito fundamental]». Penso que quando a Constituição remete para a lei, indicando a
possibilidade legal de limitação de um certo direito para um certo fim, não está a prever nenhuma «exceção» a
nenhuma «regra» ou «norma». A complexidade da ordenação constitucional dos direitos fundamentais, e da sua
relação com a lei, não se deixa reduzir a tão simples termos. Quando a Constituição remete para a lei, indicando
a finalidade de uma restrição a um direito, o que está a fazer é coisa diversa: está a antecipar a possibilidade
de ocorrência futura de conflitos entre o direito que consagra e outros «interesses» ou «valores»
constitucionalmente protegidos, devolvendo ao legislador ordinário a tarefa necessária de resolução acertada
desse conflito. No caso, em que se autorizou o legislador a restringir a inviolabilidade do segredo das
telecomunicações «em matéria de processo criminal», previu-se a possibilidade de ocorrência futura de um
conflito entre tal inviolabilidade, expressão da liberdade das pessoas, e a necessidade de preservação de valores
comunitários fundamentais, expressos, nos termos da Constituição, por leis penais incriminadoras, aplicadas
por intermédio das normas pertinentes de processo criminal. Além disso, e porque a incriminação de
comportamentos e a sua concretização pelas normas de processo significam também elas próprias, como bem
se sabe, restrições à liberdade (do destinatário das incriminações), a autorização constitucional expressa para
restringir a inviolabilidade do sigilo das telecomunicações em matéria de processo criminal significa também a
necessidade, constitucionalmente reconhecida, de fazer concordar a liberdade de uns (os titulares do direito à
inviolabilidade das telecomunicações) com a liberdade de outros (os titulares dos direitos que a CRP confere a
quem é arguido em processo criminal).
4. A existência de Serviços de Informações da República – cujos fundamentos constitucionais o Tribunal pura
e simplesmente não aborda –, numa ordem, como a nossa, de Estado de direito democrático, justifica-se pela
necessidade de salvaguardar bens jurídicos, coletivos e individuais, que ocupam na axiologia constitucional um
lugar não menor que os bens tutelados por normas penais incriminadoras. Todavia, da aplicação das normas
que enformem o sistema de organização dos serviços das informações, ou da definição das suas competências,
não decorrem – pela natureza mesma desses serviços – uma ameaça lesiva da liberdade individual que seja,
pela sua intensidade, equiparável àquela que emerge, inevitavelmente, da aplicação das normas de processo
criminal. Assim, e havendo afinidade valorativa ou teleológica entre as finalidades prosseguidas pelos serviços
de informação e as normas penais incriminadoras – e decorrendo da aplicação das primeiras uma potencialidade
de agressão da liberdade individual em todo o caso menor do que aquela que ocorre com a mera adjetivação
das segundas – poder-se-ia concluir, se tivesse sido outra a posição conceptual e metódica de que se partisse,
que a autorização constitucional para restringir a inviolabilidade das telecomunicações em «matérias de
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processo criminal» se estenderia, por maioria de razão, aos Serviços de Informações da República. Impedir a
extensão por razões meramente textuais, ultrapassáveis pelo acrescento de algumas palavras à parte final do
n.º 4 do artigo 34.º feito em processo de revisão constitucional, não me parece convincente: creio que os
caminhos de uma hermenêutica constitucional adequada não passam pelo método estrito de uma «textualidade»
como esta, que ergue em objeto de «interpretação» preceitos [e incisos desses preceitos] isoladamente
tomados, sem consideração pelo lugar que ocupam no sistema axiológico da Constituição. Impedir a extensão
por razões valorativas – que, por isso mesmo, permaneceriam para além de uma decisão parlamentar tomada
pela maioria qualificada a que se refere o n.º 1 do artigo 286.º da CRP – implicaria demonstrar que só a função
jurisdicional do Estado estaria apta para resolver em concreto o conflito entre a liberdade e a segurança que a
necessidade de interceção de dados de tráfego das telecomunicações implica. Ora, a meu ver, essa
demonstração não pode ser feita. Não vejo como possa retirar-se do sistema constitucional, no seu conjunto
tomado, a proibição da existência de meios administrativos de defesa da Constituição, destinados a garantir a
convivência adequada entre liberdade individual e segurança coletiva [e também individual], e por isso mesmo,
capazes de ser abrangidos pela autorização constitucional constante da parte final do n.º 4 do artigo 34.º da
CRP.
5. Dito isto, não restam dúvidas que a interceção, por parte das autoridades públicas, dos dados de tráfego
das telecomunicações, constitui por si mesma uma restrição grave do direito fundamental que o artigo 34.º
consagra, com repercussões várias na limitação de outras facetas da liberdade individual, constitucionalmente
consagradas. Como aliás o revela a jurisprudência supranacional que o Acórdão refere, a simples
obrigatoriedade de conservação, por parte dos operadores privados de telecomunicações, desses mesmos
dados durante um certo período de tempo – obrigatoriedade essa que se justifica para que as autoridades
públicas àqueles possam aceder – já prefigura de per se uma lesão intensa na privacidade, e logo, na liberdade
individual, que pode ser desde logo agredida por terceiros, ou por entidades privadas. Estando por isso o Estado
obrigado a impedir essa agressão por parte de terceiros – através da emissão de normas suficientemente
protetoras da liberdade individual – mal se compreenderia que, no que toca ao acesso dos seus próprios órgãos
e agentes a esses mesmos dados, se não munisse de um sistema de regulação tão ou mais exigente do que
aquele que é aplicado nas relações entre privados.
A regulação, por lei, dos Serviços de Informações da República, a incluir no sistema de competências desses
mesmos serviços a possibilidade de interceção dos dados de tráfego de telecomunicações, teria assim que, pelo
menos, tornar tão claras e precisas quanto possível as circunstâncias em que o acesso a esses dados seria
legítimo, de modo a não deixar à administração a liberdade de ponderar – sem quaisquer limites legais – da
necessidade da interceção. Esta é uma exigência que decorre, desde logo da primeira frase do n.º 2 do artigo
18.º da CRP, uma vez ser a reserva de lei, que aí se consagra, não apenas formal mas também material. A
intervenção agressiva da administração na esfera da liberdade dos privados não pode deixar de ser balizada
por certos critérios a definir por lei, de modo a que seja a lei a distinguir, com um mínimo de precisão, a
intervenção administrativa legítima da ilegítima. Depois, e ainda nos termos do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, tal
intervenção não poderia deixar de ser proporcionada, limitando-se ao necessário para «salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Por isso mesmo, a lei reguladora do sistema dos
Serviços de Informações da República, a incluir na competência dos seus órgãos ou agentes a possibilidade de
interceção dos dados de tráfego das telecomunicações, ter-se-ia que munir de um sistema interno de controlo
quanto ao cumprimento dos limites legais dessas interceções que fosse, ele também, protetor da ameaça da
liberdade que a referida interceção sempre representa.
6. A meu ver, a norma no caso impugnada, e que atribuía, precisamente, a agentes dos Serviços de
Informações da República a competência para a interceção dos dados de tráfego das telecomunicações, não
cumpria estas exigências, que decorrem do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.
Desde logo, e como se diz no Acórdão, a norma impugnada não definia com a precisão necessária os limites
da intervenção administrativa na liberdade individual. A exigência de reserva de lei, na sua dimensão material,
não se encontrava portanto (em meu entendimento) neste caso cumprida. Dizer, como se dizia no n.º 2 do artigo
78.º do Decreto da Assembleia, que tal intervenção seria legítima quando implicasse a adoção de meios
«necessários, adequados e proporcionais, numa sociedade democrática, para o cumprimento das atribuições
legais dos serviços de informação», equivale praticamente a dizer que toda a ponderação quanto à
proporcionalidade da intervenção [e, portanto, quanto à legitimidade da mesma] seria por inteiro devolvida à
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administração. Nenhum critério minimamente preciso ou determinado, de distinção da intervenção lícita da ilícita,
era pela lei fixado. Por outro lado, dizer-se – como se diz ainda na norma impugnada – que tal intervenção só
seria possível «para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º» [que determinava deverem os serviços
de informações «desenvolver atividades de recolha, processamento, exploração e difusão de informações(.)
[a]dequadas a prevenir a sabotagem, a espionagem, o terrorismo e a sua proliferação, a criminalidade altamente
organizada de natureza transnacional e a prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o
Estado de direito democrático constitucionalmente estabelecido»], significava, pela amplitude e indeterminação
da habilitação que era conferida à administração, que a intervenção desta última seria legítima numa tão vasta
plêiade de circunstâncias que se tornaria praticamente impossível delimitar os fatores da sua não
admissibilidade.
Perante este dado, o facto de, ainda de acordo com o n.º 2 do artigo 78.º do decreto parlamentar, os «oficiais
de informações do SIS e do SIED [só poderem] aceder a dados de tráfego (…) mediante a autorização prévia e
obrigatória da Comissão de Controlo Prévio» não preencheria por si só a necessidade de controlo e fiscalização
interna da intervenção administrativa. Perante o silêncio da lei quanto aos limites da legalidade dessa
intervenção, nenhuma garantia efetiva podia ser dada aos cidadãos de que a simples autorização prévia por
parte da Comissão constituiria em si mesmo um procedimento eficiente de controlo da atuação administrativa,
que prevenisse ou evitasse intromissões abusivas nas liberdades individuais Assim, também por este motivo se
não teria cumprido no caso a exigência decorrente do n.º 2 do artigo 18.º.
A meu ver, o juízo de inconstitucionalidade deveria ter-se fundado apenas nestas razões, aliás retomadas, a
final [pontos 21 e seguintes], no texto do próprio Acórdão.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido.
Entendo, conforme memorando que apresentei como relator original, que o n.º 2 do artigo 78.º do Decreto
n.º 426/XII, no específico quadro interpretativo traçado nesse memorando, é conforme à Constituição. É esse
quadro interpretativo que pretendo deixar explicitado neste voto, servindo-me de partes significativas do
memorando. É esta a explicação para a extensão do presente voto.
*
1. Conforme se indica no Acórdão – e constitui pressuposto do pronunciamento do Tribunal –, o objeto do
pedido de fiscalização preventiva restringe-se ao trecho do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII que permite
o acesso aos oficiais de informações do SIS e do SIED, em determinadas condições, a “dados de tráfego” e
demais dados conexos com equipamentos de telecomunicações. Embora o requerimento de fiscalização
indique todo o n.º 2, percebe-se do restante contexto expositivo ser esse tipo de dados (não a informação
bancária e fiscal) que é visto pelo Requerente como problemático do ponto de vista da conformidade
constitucional.
2. Interessa a este respeito o disposto no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, norma integrada no título
respeitante a “Direitos, liberdades e garantias” (especificamente no capítulo que integra os “Direitos, liberdades
e garantias pessoais”), e que estabelece o seguinte, numa redação que vem (a do n.º 4) da Revisão
Constitucional de 1997:
Artigo 34.º
Inviolabilidade do domicílio e da correspondência
1 – O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são
invioláveis.
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2. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade
judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.
3. Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento,
salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade
especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas
e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.
4. É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas
telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em
matéria de processo criminal.
(ênfase acrescentado).
O texto deste segmento anterior à 4.ª Revisão Constitucional (à Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de
setembro) vinha da versão inicial da Constituição, estabelecendo o seguinte:
4 – É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas
telecomunicações, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
Consistiu esta alteração de 1997, pois, e sem qualquer indício – sublinhamo-lo desde já – de se ter visado
algo mais do que o acesso pelas autoridades ao próprio conteúdo da comunicação, na integração no texto
constitucional, em paralelo à correspondência em sentido clássico (o correio em suporte físico: as cartas, as
encomendas postais e o telégrafo) e às telecomunicações existentes (basicamente o telefone, eventualmente
já o fax e a telecópia), que correspondiam aos meios de comunicação clássicos pensados como a realidade
existente em 1976, de outros meios equivalentes, os “demais meios de comunicação”, abrindo a previsão do
artigo a uma evolução, já fortemente pressentida em 1997, para novas realidades técnicas comunicacionais
entre as pessoas. Estas, todavia, mantiveram no texto constitucional (no artigo 34.º, n.º 4) o sentido essencial
que, então (em 1997), lhes era atribuído: fundamentalmente o correspondente ao conteúdo da própria
comunicação (os dados de conteúdo, numa terminologia que posteriormente se tornou usual), não tanto, então
em 1997, com um sentido, que possamos considerar claro, de abarcar outros dados respeitantes à
comunicação, concretamente o que no futuro viria a ser qualificado como dados de tráfego, enquanto elementos
que nada aportassem quanto ao conteúdo, em si mesmo, do ato comunicacional. A doutrina propendia, então
(continuamos a referir o momento histórico da revisão de 1997), a associar a ideia de ingerência nas
telecomunicações, essencialmente, à interceção das palavras trocadas entre os intervenientes. Com efeito, era
então comum a referenciação “da danosidade social das escutas telefónicas” ao “direito à palavra” (Manuel da
Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 275; deve o trecho aqui
citado ser situado no exato contexto em que foi escrito, em 1992, bem antes da evolução que viria a culminar
com a introdução pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, do atual n.º 2 do artigo 189.º do CPP).
O que aqui se pretende sublinhar, sem menosprezar o significado do elemento evolutivo que a questão dos
dados de tráfego assumiu posteriormente, é, tão-somente, a circunstância do n.º 4 do artigo 34.º da CRP não
se ter formado num quadro em que a questão do acesso aos dados circunstanciais da comunicação se
colocasse exatamente com o mesmo sentido do próprio acesso ao conteúdo da comunicação, e já então a
questão do acesso das autoridades aos dados de tráfego havia sido equacionada, por exemplo, na
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão Malone v. Reino Unido, de 1984, a
respeito do trecho do artigo 8.º, n.º 2 da Convenção que exige que a ingerência das autoridades esteja “prevista
na lei” (foi esse o exato sentido da decisão Malone, cfr. os respetivos pontos 66 a 68, e, posteriormente, em
1990, da decisão Huvig e Kruslin c. França, cfr. Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux, Pierre-Henri Imbert,
La Convention Européenne des Droits de L’Homme. Commentaire article par article, 2.ª ed., Paris, 1999, pp.
314/315). Ou seja, o que aqui se pretende afirmar é, tão-só, que o texto constitucional, não se tendo cristalizado
numa fase (inicial) de “indiferença valorativa” pelo que hoje chamamos dados de tráfego, não assimilou logo
para estes um grau de proteção absolutamente idêntico ao dos dados de conteúdo.
Adiante voltaremos a esta questão, a respeito da apreciação de precedentes na jurisprudência deste Tribunal
que entendemos dever convocar à discussão da viabilidade constitucional do artigo 78.º, n.º 2 do Decreto n.º
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426/XII. Por ora, interessa-nos – e isso é claro no trecho final do artigo 34.º, n.º 4, da CRP – que a exceção à
proibição de ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações é estabelecida sob reserva de lei
(“salvos os casos previstos na lei”) e é referida a “matéria de processo criminal”.
3. Pelo preenchimento do primeiro destes elementos, a reserva de lei, vale aqui a clareza da opção do
legislador originário e exclusivo nesta matéria, a Assembleia da República (cfr. o artigo 164.º, alínea q) da CRP),
envolvendo o Diploma aprovado uma manifestação inequívoca e particularmente expressiva– facto que o
Requerente não deixou de sublinhar no artigo 4.º do pedido de fiscalização – do propósito de conceder aos
Serviços de Informações integrados no SIRP, mediante condições bem definidas, que incluem um mecanismo
dedicado de controlo prévio condicionante, de acesso aos dados de tráfego, de localização ou outros dados
conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar
a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento
de telecomunicações ou a sua localização.
Interessa sublinhar esta incidência, além de tudo o mais, enquanto preenchimento expressivo de uma
condição identificada, no quadro dos Estados de direito, relativamente a leis que envolvam elementos restritivos
de direitos fundamentais, e especificamente quanto à consideração dos meios de atuação dos Serviços de
Informações. Referimo-nos ao chamado “princípio da afirmação clara” pelo legislador (clear statemant principle),
expressão cunhada por Cass Sunstein, referindo-se, como caso paradigmático, a uma decisão do Supremo
Tribunal de Israel, de 6 de setembro de 1999 [Association for Civil Rights in Israel v. The General Security
Service (1999). Supreme Court of Israel: Judgement Concerning the Legality of the General Security Service’s
Interrogation Methods, 38, I.L.M. 1471 (1999)], afirmando a absoluta ilegitimidade do estabelecimento, pelo
próprio serviço de informações, de meios ou métodos de atuação, sem um expresso mandato legal, maxime,
na ausência de uma clara e inequívoca decisão a esse respeito por parte do legislador (do Parlamento),
excluindo que qualquer opção neste domínio seja definida, “com base numa construção legal vaga e ambígua”,
criada ad hoc no seio do próprio serviço de informações, arvorando-se este uma faculdade de fixar métodos de
atuação e de avançar num qualquer vazio legal. Comentando este pronunciamento do Supremo Tribunal de
Israel, refere Cass Sunstein:
“[…]
Podemos tomar esta decisão judicial enquanto afirmação de um princípio geral, segundo o qual o
poder legislativo deve autorizar, explicitamente, medidas controversas que apresentem um potencial
restritivo de direitos fundamentais [explicitly authorize disputed infringments on civil liberty]. A razão para
o estabelecimento desta salvaguarda assume um sentido garantístico, contra o estabelecimento de
restrições inadequadamente ponderadas nas suas consequências, reforçando a salvaguarda política
consistente na existência de um acordo formado no seio de um órgão deliberativo de estrutura plural,
enquanto pré-condição mínima para a adoção de medidas restritivas de direitos. Constitui um risco
especial neste domínio que a polarização, no seio de um grupo específico dentro da Administração,
conduza a opções que não tenham sido sujeitas a um debate suficientemente alargado a todas as
perspetivas. Contrariamente, um processo de deliberação no seio do Parlamento [Deliberation within
the legislative branch] corresponde a uma mais ampla garantia de que as opções restritivas de direitos
sejam efetivamente defensáveis. Um Parlamento, precisamente em função da amplitude e diversidade
da sua composição, dá maiores garantias de consideração dos pontos de vista dos onerados com a
restrição [is more likely to contain people who will speak for those who are burdened] e, por isso mesmo,
um processo legislativo ocorrido no seu seio potencia uma mais adequada proteção da realidade que
Hayek identifica com o Estado de direito. Neste sentido, a exigência de uma opção legislativa clara [a
clear legislative statement] assegura a existência de níveis diversificados de controlo [checks and
balances] na proteção dos direitos individuais.
[…]” (Laws of Fear. Beyond the Precautionary Principle, Cambridge, Nova York, 2005, pp. 212/213).
4. Assente que a aprovação do Diploma (do Decreto n.º 426/XII), integrando a norma aqui questionada,
consubstancia – e esta afirmação tem algo de tautológico – a própria reserva de lei, numa expressão clara e
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inequívoca, interessa agora caracterizar a atividade dos Serviços de Informações, enquanto elemento central
da discussão em torno da referenciação, no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, do processo criminal, como espaço de
tolerabilidade da ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações e demais meios de comunicação.
Trata-se aqui de referenciar essa atividade (a dos Serviços de Informações) no plano constitucional e de
procurar a articulação desta atividade com o plano dos valores substanciais intuídos no trecho final desse n.º 4.
Com efeito, a existência dessa articulação propiciará um modelo interpretativo apto a sustentar –
interpretativamente – que a referência ao processo criminal não afasta, em termos absolutos, da lógica de
viabilização de uma ingerência reportada aos dados de tráfego, a atividade dos serviços de informações.
5. A Constituição da República Portuguesa não trata em qualquer norma – queremos dizer que não trata
direta e explicitamente – da atividade dos Serviços de Informações, atividade que referenciaremos aqui, olhando
à essência teleológica base de um Diploma contendo o Regime Jurídico do SIRP (a Lei n.º 30/84, de 5 de
setembro, e o Decreto n.º 426/XII), como função de produção de informações. Todavia, através de um
argumento de pendor orgânico, referido à alocação da competência legislativa exclusiva nesta matéria ao
Parlamento [referimo-nos ao artigo 164º, alínea q) da Constituição: [é] da exclusiva competência da Assembleia
da República legislar sobre […] q) [r]egime do sistema de informações da República e do segredo de Estado
[…]”], podemos intuir, através da integração dessa competência na reserva absoluta da Assembleia, a
consideração da organização funcional, atribuições legais e meios de atuação dos Serviços de Informações –
dos Serviços integrantes do SIRP – como matéria pretendida sujeitar aos requisitos específicos que justificam
uma tal opção atributiva de competência, a saber: “[…] o sentido e alcance da reserva absoluta de lei
parlamentar [significa], sobretudo: (a) que o processo de criação legislativa é público, desde a apresentação do
projeto ou da proposta de lei na AR; (b) que o procedimento legislativo está sujeito ao contraditório político, com
intervenção das minorias; (c) que todas e cada uma das normas são formalmente produto da vontade da
assembleia representativa” (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP. Constituição da República Portuguesa
Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2010, p. 309).
Esta reserva absoluta foi introduzida na revisão constitucional de 1997, traduzindo-se na migração da
anterior reserva relativa (antiga alínea r) do artigo 168º) para a atual reserva absoluta. A origem desta opção é
caracterizada por um participante nesse processo de revisão, como “[inculcando] nitidamente que a reserva não
se confina à aprovação de bases gerais ou de estatuto (geral) dos serviços. A solução aprovada acarreta, pois,
notória diminuição dos poderes que o Governo vinha exercendo [durante os anos 80] neste domínio sensível,
podendo contribuir para atenuar a opacidade e secretismo que têm caracterizado o processo de instalação dos
serviços de informações (e reforçar o controlo democrático das suas atividades)” (José Magalhães, Dicionário
da Revisão Constitucional, Mem Martins, 1989, p. 57). Note-se que, adicionalmente à intencionalidade que, em
si mesma, a alocação desta reserva já inculca, existe um elemento significativo, exterior ao texto constitucional,
de referenciação de todo o Sistema de Informações, na vertente do seu controlo externo, ao Parlamento. É esse
o sentido da existência, desde a conceção inicial do SIRP, do Conselho de Fiscalização do Sistema de
Informações da República Portuguesa (artigo 7.º, alínea a) da Lei 30/84, designado agora, no Decreto n.º 426/XII
– artigos 3.º, n.º 3, alínea a) e 20.º, alínea a) –, Conselho de Fiscalização do SIRP), eleito pela Assembleia da
República (artigos 8.º a 13.º da Lei 30/84, artigo 21.º do Decreto n.º 426/XII).
6. A discussão no plano constitucional – no quadro de uma democracia constitucional – da atividade dos
Serviços de Informações, convoca ao debate, necessariamente, os valores Segurança e Democracia, colocados
em paralelo, assumindo a existência de uma tensão existencial permanente entre a adoção de políticas públicas
promotoras de segurança e os valores democráticos – os valores próprios de um Estado de direito democrático
–, concretamente aqueles que se expressam no exercício de direitos fundamentais. Trata-se neste domínio,
essencialmente, de responder a um desafio: o desafio da perspetivação da Segurança, no sentido decorrente
do artigo 27.º, n.º 1, da CRP (“[t]odos têm direito à liberdade e à segurança”), enquanto obrigação prestacional
do Estado aos cidadãos, numa relação de tensão entre valores constitucionais. E, com efeito, todos
reconheceremos que a prestação de Segurança pelo Estado suscita frequentemente questões complexas de
compatibilização (mesmo de tensão existencial) entre direitos, apresentando-se como um domínio de eleição
na atuação do princípio da proporcionalidade, com o sentido que o nosso texto constitucional confere a este:
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“[a] lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,
devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses
constitucionalmente protegidos” (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
Simplificando, diremos que a compressão que uma determinada política pública, promotora do valor
segurança, possa induzir numa posição jusfundamental, justificar-se-á – só se justificará – se essa compressão
for efetivamente referida à promoção desse valor constitucional, sendo necessária à implementação dele e,
entre as opções possíveis, representar o mínimo de compressão necessário à salvaguarda desse valor. É este,
fundamentalmente, “metido numa casca de noz”, o sentido do princípio da proporcionalidade e a aplicação deste
aos valores segurança e liberdade, colocando frequentemente problemas delicados, não convoca um modelo
analítico distinto do que subjaz ao artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, concretizado nas chamadas “quatro regras
da proporcionalidade”: prossecução de um fim legítimo, adequação a esse fim, necessidade e proporcionalidade
em sentido estrito, em que se determina, comparando diretamente as situações em confronto, se a restrição
representa um ganho líquido relativamente à sua não adoção. Utilizámos neste trecho expositivo, na
caracterização do princípio da proporcionalidade, a “desdobragem” do mesmo em “quatro componentes”, no
sentido referido por Matthias Klatt e Moritz Meister (The Constitutional Structure of Proportionality, Oxford, 2012,
pp. 8/9) e por Ahron Barak (Proportionality. Constitutional Rights and Their Limitations, Cambridge, 2012, pp.
131/132). A jurisprudência deste Tribunal, concretamente no Acórdão n.º 187/2001, ao qual adiante
recorreremos desenvolvidamente, analisa o princípio da proporcionalidade em três subprincípios: adequação,
necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito. Não expressamos aqui algo de
substancialmente distinto desta visão ao isolar, como ponto de partida da aferição de proporcionalidade, a
necessária prossecução de um fim constitucionalmente legítimo, sendo certo que este elemento é intuído –
sempre o foi – pela jurisprudência deste Tribunal, como questão prévia condicionante da restrição, cujo reflexo
encontramos no artigo 18.º, n.º 2, no trecho “[…] nos casos expressamente previstos na Constituição […]”.
Reconhece-se que no seio desta equação – prestação de segurança pelo Estado, defesa da liberdade – a
atuação dos Serviços de Informações constitui uma área sensível – até particularmente sensível –, justificando-
se o tratamento destes como um caso especial. Esta sensibilidade é explicada por Jennifer E. Sims e Burton
Gerber, aludindo ao dilema que se coloca aos decisores políticos nas opções referidas à estruturação dos
Serviços de Informações: “[…] os melhores sistemas de informação [intelligence systems] envolvem segredo
de Estado a exploração do engano e a atuação clandestina; contudo, esses sistemas, quando centrados dentro
do país para fazer face a ameaças a interesses vitais nacionais vindas do exterior, podem colocar em risco
elementos fundamentais da democracia que, paradoxalmente, devem proteger […].Este risco sublinha a menor
importância que, para esconjurar este perigo, a estrutura organizacional tem, comparativamente às políticas,
práticas e liderança implementadas nesses serviços” (Transforming US Intelligence, Washington, 2005, p. XI da
Introdução).
Vale, a respeito da promoção da segurança como valor constitucional, o entendimento da Constituição, do
espaço vivencial por ela desenhado, como envolvendo uma proteção ativa do modelo democrático que
expressa, funcionando o texto constitucional como “contrato social” contendo cláusulas, explícitas e implícitas,
de autodefesa, através das quais se constrói o conteúdo de uma função de “proteção da Constituição” (fórmula
que a Constituição alemã expressamente inclui no seu texto – Verfassungsschutz), que legítima, além da tutela
penal propriamente dita, o que se pode designar como “proteção administrativa da Constituição”. Trata-se aqui
do que a Doutrina constitucional germânica identifica como “[…] institutos e faculdades para a defesa da ordem
fundamental livre e democrática […]”, englobando a atividade dos serviços de informações, ou seja: “[…] a
recolha e tratamento de informações […] em âmbitos que antecedem as ameaças concretas para os bens
jurídicos protegidos. Tal recolha e avaliação abarca […] a vigilância de pessoas e organizações suspeitas de
atividades contrárias à Constituição” (Erhard Denninger, “Stretbare Demokratie und Schutz der Verfassung”, in
Benda, Maihofer, Vogel, Hesse, Heyde, Handbuch des Verfassungs Rechts, 2.ª ed., Berlim, 1994, p. 699).
Corresponde esta forma especial de proteção, a atividade que a concretiza, ao domínio primordial de atuação
dos Serviços de Informações, corresponde, enfim, à função de produção de informações.
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Assim, podemos caracterizar a intencionalidade desse conteúdo funcional (a tal atividade de proteção da
Constituição, não de proteção ou de defesa do Estado aparelho de poder) como um sistema estruturada em
vista do desencadear de mecanismos de alerta prévio, uma função sequencialmente referida ainda a um
momento anterior ao da entrada em jogo – rectius, da adjetivação – da tutela penal, mas que, nem por isso,
deixa de estar ligada aos valores específicos (aos tipos) abarcados pela lei penal, e de poder mesmo vir a
entroncar na adjetivação penal. É que, num Estado de direito democrático, fora de um quadro de referenciação
aos valores subjacentes à tutela penal – fora dos mínimos éticos e dos valores jurídico-constitucionalmente
reconhecidos em que esta assenta (v. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed.,
Coimbra, 2007, p. 120, § 25) – não existe qualquer intervenção legítima de proteção do espaço constitucional.
Pelo contrário, existirá um uso abusivo e ilegítimo dessa função protectiva. Defender-se-á algo, eventualmente
defender-se-á o poder (algum poder circunstancial), mas isso nada tem que ver com a proteção de uma “ordem
fundamental livre e democrática”. E é esta que legitima – e só ela legitima – a tarefa de “proteção da
Constituição”. Esta – esta atividade exercida num espaço de legitimidade constitucional – situar-se-á, pois, na
antecâmara da tutela penal, numa fase ainda larvar desta, e atuará onde os respetivos valores, mesmo que em
termos difusos e ainda com um significado ambíguo, já estejam demonstravelmente presentes, já tenham,
enfim, sido colocados nalgum tipo de insegurança existencial minimamente concretizada e individualizada. E
será este mínimo de concretização e de individualização de uma ameaça, que também poderíamos caracterizar
através da ideia de risco, reportada aos valores elencados no n.º 2 do artigo 4.º do Decreto n.º 426/XII (todos
eles reportáveis, por sua vez, à tutela penal), que os Serviços de Informações sujeitarão à apreciação da
Comissão de Controlo Prévio, na lógica de funcionamento do n.º 2 do artigo 78.º do mesmo Decreto, recaindo
sobre eles (sobre os Serviços de Informação) o ónus de demonstrar os pressupostos mencionados na norma.
Assim, numa espécie de síntese conclusiva, diremos que a atividade de proteção da Constituição incidirá
sobre condutas individuais ou coletivas que contenham uma potencialidade, não negligenciável, de
menoscabo, mesmo que embrionário, dos valores próprios de uma “ordem fundamental livre e
democrática”, quando esse desvalor seja reportável ao elenco do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto n.º 426/XII
e potencie, ou torne racionalmente expectável, uma evolução que, em última análise, nos conduza a
condutas penalmente típicas, referenciáveis aos valores estruturantes dessa “ordem fundamental livre
e democrática” – em particular o terrorismo (ao qual se refere a Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto) a
espionagem e outros dos crimes contra o Estado, fundamentalmente os elencados no Título V do
Código Penal, constituindo estes exemplos paradigmáticos que justificam essa intervenção precoce
correspondem ao espaço de referência da defesa da Constituição.
7. A função de produção de informações – a atividade dos serviços de informações – no quadro institucional
dos organismos do Estado dedicados a essa tarefa (que são, no nosso caso, os organismos integrantes do
SIRP), traduz-se na incumbência funcional de “[…] assegurar, através dos serviços de informações, no estreito
respeito da Constituição e da lei, a produção de informações necessárias à salvaguarda da segurança interna e
externa, da independência e interesses nacionais e da unidade e integridade do Estado” (artigo 2.º do Decreto
n.º 426/XII). Esta tarefa recai, no quadro do SIRP, sobre dois Serviços: o Serviço de Informações de Segurança
(artigo 56.º do Decreto n.º 426/XII), que é um serviço dedicado à produção de informações de segurança interna,
e o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (artigo 57.º do mesmo Decreto), que é um serviço de
informações reportado à vertente externa (exterior ao território nacional) da segurança do Estado português e
da projeção externa dos seus interesses.
Tratam-se estas de caracterizações cuja essência decorre da atribuição funcional, com âmbitos distintos (a
segurança externa e a segurança interna), da tarefa de produção de informações. Atividade correspondente –
e as definições legais pressupõem e acomodam-se a esta ideia – à procura de um conhecimento sistematizado,
qualitativamente superior, projetado no futuro, no sentido em que se exprime através da formulação de
previsões, visando a eliminação ou a redução da incerteza, num quadro de competição ou de conflito, com o
sentido de habilitar o destinatário do produto assim criado na tomada de decisões. A informação – as
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informações com este sentido – não se reduzem à procura de meras notícias mais ou menos contextualizadas,
que expressam, quanto muito, a matéria-prima (a informação em bruto) a partir da qual se produzem, após
processamento, as informações funcionalmente atribuídas aos Serviços de Informações.
A atividade de produção de informações, no sentido aqui relevante, expressa-se, assim – e seguimos aqui
um texto de Arménio Marques Ferreira, “O Sistema de Informações da República Portuguesa”, em Estudos de
Direito e Segurança, Coimbra, 2007, p. 69 –, em elementos sistematizados em quadros interpretativos, através
de critérios que sobrepõem a estrutura de sentido à relação causal (projetam o significado de uma realidade
complexa em si mesma), que são produzidas através de uma ferramenta metodológica específica, de um
método próprio (habitualmente referido como o ciclo de produção de informações: (i) orientação da pesquisa,
(ii) pesquisa, (iii) análise, (iv) difusão da informação), método este que se reproduz funcionalmente dentro de
um serviço de informações, na divisão entre áreas de pesquisa e áreas de análise, elementos esses que são
preservadas do conhecimento de terceiros através de procedimentos protectivos próprios, correspondentes, na
sua vertente normativa, à ideia de segredo de Estado.
Trata-se, pois, quando falamos da produção de informações, de caracterizar um tipo especial de
conhecimento – um conhecimento interpretativo qualificado – e de o referir, na sua origem, a estruturas
organizacionais, os Serviços de Informações, assentes numa metodologia de trabalho própria, dedicados à
produção desse tipo de conhecimento. Nas palavras de Robert Gates, as informações lidariam primordialmente
com segredos: os segredos, porque passíveis de ser descobertos, situar-se-iam num plano de cognoscibilidade
direta correspondente ao que é “claro” – ao que se torna claro quando é descoberto, aliás. Depois viriam os
mistérios, situando-se estes numa zona de ambiguidade intrínseca que nunca fornece respostas claras. A tarefa
da análise seria solucionar, por via dos segredos descobertos, os mistérios que ensombram o processo de
tomada de decisão, eliminando ou diminuindo substancialmente o fator incerteza (adaptámos aqui a
caracterização por Robert Gates da atividade de análise, in Intelligence Requirements for the 1990's: Collection,
Analysis, Counterintelligence, and Covert Action, ed. Roy Godson, Washington, 1989, p. 115).
Assim, constitui a essência da função de produção de informações – da função de “inteligência” (o vocábulo
apropriado à designação das informações que teimosamente se recusa a entrar no nosso léxico) – a “[…]
recolha e tratamento da informação, sendo que a análise, recorrendo a todo o tipo de fontes, traduz uma
componente específica dessa atividade, tal como a ação encoberta [covert action]”. Todavia, “[…] a
característica comum e principal desta atividade reside no seu caráter sensível, por questões de propriedade e
de legalidade, mas principalmente por razões de vulnerabilidade das suas fontes e métodos à adoção de
contramedidas […].Daqui decorre o caráter secreto da atividade de informações: o secretismo constitui a
imagem de marca das informações, a base da sua relação com o governo (com o destinatário da informação)
e a sua própria autoimagem” (Michael Herman, Intelligence Services in The Information Age, Londres, 2002,
pp. 3/4).
Como conclusão diremos, enfim, que estas diversas definições projetam a matriz militar milenar das
informações [que remonta à A Arte da Guerra de Sun Tzu (Sunzi), possivelmente escrita no Século VI antes da
era comum] e poderiam, sem perda de rigor, ser reduzidas à caracterização que Richard Posner nos dá de
intelligence dizendo que “[o] objetivo da ‘produção de informações’ [the goal of intelligence] é o conhecimento
das intenções e das capacidades de inimigos potenciais” (Preventing Surprise Attacks. Intelligence Reform in
the Wake of 9/11, Nova York, Oxford, 2005, p. 99).
8. O elemento central na previsão da norma objeto, o que é questionado na sua conformidade constitucional
pelo Requerente, refere-se à natureza dos dados relativos às telecomunicações facultados aos oficiais de
informações, mediante autorização da Comissão de Controlo Prévio. Tratam-se de dados de tráfego – de
localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador
ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como
para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização. São estes elementos que a exposição
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de motivos que acompanhava a proposta de lei do Governo que esteve na origem do Decreto n.º 426/XII (cfr. o
artigo 3.º do pedido) qualificava, não com total rigor, como correspondendo a metadados, enquanto conceito
intuído como apropriado aos dados de tráfego.
Todavia, o emprego desta expressão – metadados – no contexto que aqui nos interessa é suscetível de criar
equívocos. Com efeito, na ciência da computação, corresponde o conceito de metadados, usualmente definidos
como “dados sobre dados” (“[m]etadata is simplydata about data […]”, Jembaa Cole, “When invisible electronic
ink leaves red faces: tactical, legal and ethical consequences of the failure to remove metadata”, disponível em:
https://digital.law.washington.edu/), à separação, dentro de uma determinada realidade significativa, entre um
núcleo que qualificaríamos de central, correspondente à própria realidade, e elementos periféricos, laterais, a
ela ligados por alguma relação ou ponto de contacto, os quais, não contendo essa realidade em si mesma,
expressam algum tipo de contexto circundante da mesma, relacionado mas separado dela. É assim que os
metadados são referidos, na ciência da computação, como “[…] informação estatística não visível respeitante a
um determinado documento, gerada por um programa de software […]” (Jembaa Cole, “When invisible electronic
ink leaves red faces…”, cit.). A utilidade destes elementos refere-se especialmente à gestão de bases ou de
grandes bancos de dados (armazéns de dados, data warehouse), no sentido em que permitem parametrizar
determinados elementos – nomes, números, relações lógicas redutíveis a um predicado verbal – e, através
destes, procurar conexões relevantes (procurar informação útil) dentro de uma base de dados, evitando a
necessidade de realizar uma procura através da “localização física”, documental, dessas conexões (como
paradigmaticamente ocorre numa procura com ficheiros em suporte de papel).
Ora, os dados de tráfego aqui em causa são (contêm) informação em si mesmos, permitem o
estabelecimento de conexões entre pessoas e situações, tomando como ponto de partida a existência pretérita
de uma determinada comunicação, esgotando-se o seu sentido numa extrapolação analítica realizada com base
na existência dessa comunicação e das relações que ela indica, não com base no conteúdo da própria
comunicação. Tal circunstância introduz, desde logo, o elemento central – por vezes objeto de confusão numa
discussão superficial – da caracterização dos dados de tráfego, qualificados como metadados, referidos, como
aqui sucede, às telecomunicações, distinguindo (separando) estes do próprio conteúdo da comunicação (a
mensagem em si mesma). É com este sentido, num debate que envolve frequentemente a ponderação do
significado do acesso das autoridades públicas aos chamados metadados (se entendidos como dados de
tráfego), que se contrapõe, quando – como aqui sucede – está em causa, tão-somente, o acesso a estes, o
sentido de uma “análise do tráfego contra a análise do conteúdo” (“traffic versus content analysis”), reconduzindo
a uma dimensão mais atenuada o potencial de compressão de direitos, mesmo de afetação da autodeterminação
informacional, envolvido por um acesso exclusivo aos metadados (cfr. Amitai Etzioni, Privacy in a Cyber Age.
Policy and Practice, Nova York, 2015, pp. 132/133). Esse acesso não deixa, todavia, de consubstanciar uma
intromissão na privacidade e, por isso mesmo, não dispensa o seu tratamento como tal: como intromissão numa
dimensão específica do direito à privacidade.
Existe, porém, uma diferença relativamente aos dados de conteúdo (ao que faculte um efetivo acesso ao
conteúdo da comunicação), diferença que é facilmente percetível no seu significado, ponderando um exemplo
prático, que reputo de sugestivo, referido pelo Autor antes citado, a propósito da recolha de dados de tráfego
(“[os] registos telefónicos que mostram quem chamou e para que números, o momento em que a chamada foi
feita e a sua duração – e nada mais […]”, ob. cit. p. 133): “[i]sto é equivalente à cópia de um envelope contendo
um endereço, por contraposição a ler efetivamente a correspondência nele contida – uma prática que, de facto,
é levada a cabo regularmente, em massa, pelo U. S. Postal Service. Com efeito, o USPS ‘fotografa o exterior de
cada objeto postal que é processado nos Estados Unidos’ e conserva este registo fotográfico por um período de
tempo indeterminado” (ibidem; a abonação, no texto de Amitai Etzioni, desta afirmação é a seguinte: “Ron Nixon,
‘U.S. Postal Service Logging All Mail for Law Enforcement’, The New York Times, July 3, 2013,
http://www.nytimes.com/2013/07/04/us/monitoring-of-snail-mail.html?pagewanted=all, nota 86, na p. 223).
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É ainda relevante sublinhar o contexto da aquisição deste tipo de informação (dos ditos metadados). Pode
tratar-se (i) de uma aquisição de informação em larga escala, por transferência integral, para alguma autoridade
pública, dos registos existentes num operador, ou pode tratar-se (ii) duma transferência individualizada,
realizada (autorizada e controlada) caso a caso, com base numa suspeita concreta e individualizada. É relevante
a distinção porque colocam as duas situações problemas muito distintos. Notamos que à primeira situação
correspondem os programas de recolha de dados, pela NSA – National Security Agency, à escala global, vindos
a público em 2013 (no âmbito do chamado caso Snowden), basicamente o programa “Bulk Collection of
Telephone Metadata”, referido à recolha e conservação, pela NSA, dos registos de comunicações telefónicas
efetuadas e recebidas nos Estados Unidos, o programa “PRISM” dedicado à recolha, igualmente pela NSA, de
comunicações eletrónicas de determinados fornecedores de serviços on line, caso da Google e do Facebook,
este programa dirigido, fundamentalmente a “não-americanos” e o programa “TEMPORA”, mantido pelo
Government Communications Headquarters (GCHQ) do Reino Unido (cfr., quanto à caracterização dos dois
primeiros Programas, Amitai Etzioni, Privacy in a Cyber Age…, cit., p. 123/125 e quanto ao programa
“TEMPORA”, “A simple guide to GCHQ’s internet surveilance programme Tempora”, inWired.co.UK,
http://www.wired.co.uk/news/archive/2013-06/24/gchq-tempora101). E notamos, que a segunda situação – a
obtenção de dados de tráfego caso a caso –, desde logo pela sua escala, dimensão individualizada e
especificamente motivada por factos concretos, controlados exteriormente ao interessado na aquisição da
informação, não contém o perigo da verdadeira “pesca de arrastão” à escala global, que conduziu o Tribunal de
Justiça da União Europeia, no Caso Digital Rights Ireland, Ltd (C-293/12), Acórdão de 8 de abril de 2014, a
considerar inválida a “Diretiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006,
relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações
eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva
2002/58/CE”.
Estava em causa nesta situação, com efeito, a conservação pelos operadores, obrigatoriamente, de dados
de tráfego por um período mínimo de seis meses e máximo de dois anos, a qual, incidindo sobre todas as
comunicações, indiferenciadamente à escala global europeia, comportava uma ingerência, não substanciada
em indícios concretos e atendíveis, “nos direitos fundamentais de quase toda a população europeia” (v. os
pontos 56 e 58 do Acórdão). Ora, este fator de perigo desaparece (no específico sentido em que o Tribunal de
Justiça o enunciou) quando o que ocorre é, tão-somente, a prestação de uma informação pelo operador de
telecomunicações, em suporte de papel, quanto às chamadas realizadas por um determinado número e à
localização espacial dessas chamadas (do equipamento com o qual foram realizadas) por referência a uma
antena que distribuiu o sinal. Mais ainda, quando essa informação só é obtida em situações individualizadas,
baseadas na existência de indícios consistentes, necessariamente referidos a pressupostos específicos
exigentes, controlados caso a caso por uma entidade independente, cuja atuação visa, precisamente, limitar o
acesso aos dados e a sua utilização ao estritamente necessário para se alcançar o objetivo prosseguido num
espaço de legitimidade legal e constitucional.
Serve isto para deixar clara a absoluta falta de paralelismo de situações de recolha de dados abstratos em
massa com a situação suscitada nesta fiscalização preventiva, desde logo pela incomensurável diferença de
escala envolvida, que induz perigos totalmente distintos. Com efeito, trata-se aqui – e só disso se trata – dos
dados individualizados de um caso concreto (que têm de pressupor a existência de um “caso concreto” no
serviço de informações que a eles pretende aceder), quando nessas outras situações se tratava da transferência
em bloco de grandes massas de dados, desligados de casos concretos, no intuito de, algures no futuro, serem
estes dados confrontados com hipotéticos casos concretos. Aqui, no particular contexto do tipo de dados de
tráfego relativos a telecomunicações, previstos no n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII, além da dimensão
individualizada destes, sempre sujeita a um controlo prévio condicionante assente em pressupostos de base
restritiva, verificamos que a ulterior conservação pelos Serviços de Informações dos dados cumulativamente
gerados pelos acessos autorizados no passado, os dados acumulados ao longo do tempo, sempre será
controlada pela Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP (o órgão de fiscalização externo com origem na
Magistratura do Ministério Público, prevista nos artigos 29.º a 34.º do Decreto n.º 426/XII), com a efetiva
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possibilidade de cancelamento do que seja indevidamente conservado ou incluído nos centros de dados dos
dois Serviços. Existe, pois, na lógica de funcionamento do sistema – na lógica de funcionamento do SIRP – uma
salvaguarda de controlo externo das potencialidades desvaliosas da concentração de grandes massas de
informação referida a pessoas.
9. Posicionado o sentido da regra contida no artigo 34.º, n.º 4 in fine da CRP, explicitado o sentido da função
de produção de informações, inserida na arquitetura fundamental das estruturas dedicadas a essa função, os
Serviços de Informações, e caracterizados os dados em causa na previsão legal sujeita à presente fiscalização,
interessa centrar esta indagação na procura de resposta às duas questões colocadas no ponto 7.º do
requerimento de apreciação da conformidade com a Constituição da norma constante do n.º 2 do artigo 78.º do
Decreto n.º 426/XII. São elas: i) deve o acesso aos metadados considerar-se uma ingerência nas
telecomunicações para os efeitos previstos na norma constitucional?; e ii) pode considerar-se que a autorização
prévia e obrigatória da Comissão de Controlo Prévio equivale ao controlo existente no processo criminal?
9.1. A resposta à primeira pergunta implica que se caracterizem os dados de tráfego em causa no n.º 2 do
artigo 78.º do Decreto, por referência a alguns precedentes colhidos na jurisprudência deste Tribunal. A tal
propósito, o Tribunal Constitucional acolheu, desde o Acórdão n.º 241/2002, uma classificação tripartida
(louvando-se, então, nos Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 16/94,
votado em 24/06/94, na base de dados da DGSI, n.º 16/94 – complementar, votado em 2/05/1996, in Pareceres,
vol. VI, págs. 535 a 573, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, no Diário da República – II Série, de 28/08/2000) dos
dados resultantes do serviço de telecomunicações. Ali se distinguiram:
“[…]
[O]s dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao
estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por
exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora,
frequência), dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados
de conteúdo […].
[…]”.
Tal classificação tripartida foi retomada pelo Tribunal – assinalando que se mantinha, então, “consensual” –
no Acórdão n.º 486/2009. Também o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República continuou a
fazer uso dela (v. g., no Parecer de 07/05/2009, disponível na base de dados da DGSI), já com apoio
suplementar na Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, que, no seu artigo 2.º, n.º 1, alínea d), define os dados de
tráfego como “quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de
comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma”. Os tribunais superiores também acolheram
a dita classificação (cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2010, proferido no processo n.º
886/07.8PSLSB.L1.S1, do Tribunal da Relação do Porto de 11/02/2015, proferido no processo n.º
2063/14.2JAPRT-A.P1, de 10/09/2014, proferido no processo n.º 1953/00.4JAPRT-B.P1, e de 09/05/2012,
proferido no processo n.º 311/08.7JFLSB.P2, do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/06/2013, proferido no
processo n.º 1746/05.2TJLSB.L1-8, e de 18/01/2011, proferido no processo n.º 3142/09.3PBFUN-A.L1-5, e do
Tribunal da Relação de Coimbra de 03/10/2012, proferido no processo n.º 84/11.6JAGRD-A.C1, todos
pesquisáveis na base de dados da DGSI).
Ora, rememorando aqui o texto da norma objeto, o n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII, observamos
prever este que: “[o]s oficiais de informações do SIS e do SIED podem, para efeitos do disposto na alínea c) do
n.º 2 do artigo 4º, e no seu exclusivo âmbito, aceder a informação bancária, a informação fiscal, a dados de
tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou
utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de
comunicação, bem como para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização,
sempre que sejam necessários, adequados e proporcionais, numa sociedade democrática, para cumprimento
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das atribuições legais dos serviços de informações, mediante a autorização prévia e obrigatória da Comissão
de Controlo Prévio, na sequência de pedido devidamente fundamentado” (ênfase acrescentado aqui). Tratam-
se, inequivocamente, de dados de tráfego, na referida classificação, não só pelo rótulo formal que o legislador
lhes atribui, mas – decididamente – pela natureza da informação em causa, descrita por referência à dinâmica
exterior, envolvente, de uma concreta comunicação (a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de
comunicação, o equipamento de telecomunicações e a sua localização).
9.2. Note-se que a proteção do sigilo das comunicações pela Constituição não se limita aos dados de
conteúdo, abrangendo igualmente os dados de tráfego. Nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
em nota ao artigo 34.º da CRP, salientam que “[a] garantia do sigilo abrange não apenas o conteúdo da
correspondência, mas o «tráfego» como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização)” (CRP.
Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 544). Por sua vez, Jorge
Miranda e Rui Medeiros afirmam que “[…] é possível perceber que a intenção da Constituição é oferecer
proteção ao tráfego de informação escrita, desenhada ou falada, entre dois ou mais destinatários definidos […]”
e “[…] essa proteção, especialmente nos modernos meios de comunicação, é ainda constitucionalmente
garantida às circunstâncias em que se realizam as comunicações. Nesses termos, estão também protegidos os
dados relativos aos meios de comunicação usados, à hora da sua utilização, à duração da sua utilização, ao
local da sua utilização ou à identidade dos seus utilizadores” (Constituição da República Portuguesa Anotada,
Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, pp. 772 e 774).
Este Tribunal também aproximou a proteção dos dados de tráfego à concedida aos dados de conteúdo.
Sobre a matéria, tomou posição no já citado Acórdão n.º 486/2009:
“[…]
O sigilo das telecomunicações, garantido nos termos do artigo 34.º, n.º 1, da Constituição, abrange
não só o conteúdo das comunicações mas também o tráfego como tal […]. ‘O que está em causa é
assegurar o livre desenvolvimento da personalidade de cada um através da troca à distância, de
informações, notícias, pensamentos e opiniões, à margem da devassa da publicidade’ (Costa Andrade,
em ‘Bruscamente no verão passado...’, Ano 137.º, n.º 3951, Julho-Agosto 2008, p. 339). A privacidade
da comunicação, como corolário da reserva da intimidade da vida privada, abrange não apenas a
proibição de interferência, em tempo real, de uma chamada telefónica, como também a impossibilidade
do ulterior acesso de terceiros a elementos que revelem as condições factuais em que decorreu uma
comunicação (Vide, neste sentido Nicolas Gonzales-Cuellar Serrano, em ‘Garantías constitucionales
de la persucución penal en el entorno digital’, in Prueba e Processo Penal (Análisis especial de la prueba
prohibida en el sistema español e en el derecho comparado), pág. 171-174, da ed. de 2008, da Tirant
lo Blanch,). Efetivamente, num Estado de Direito democrático, assiste a qualquer cidadão o direito de
telefonar quando e para quem quiser com a mesma privacidade que se confere ao conteúdo da sua
conversa.
[…]”.
Todavia, a aproximação da proteção dos dados de tráfego àquela que se concede aos dados de conteúdo
não esconde uma evidência que se impõe intuitivamente: é diversa a afetação da reserva da intimidade da vida
privada na recolha ou interceção de dados de base, de dados de tráfego ou de dados de conteúdo. Nesta
classificação/enumeração sequencial esconde-se uma inegável progressão de intensidade.
As apontadas diferenças não são, claro está, irrelevantes para a consideração, no presente contexto, das
duas situações.
Desde logo, permitem colocar a proteção dos dados de base num plano inteiramente distinto dos outros
dois. Como se assinalou no Acórdão n.º 486/2009:
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“[…]
O mesmo raciocínio [sobre os dados de tráfego] não vale para os elementos ou dados de base, já
que, conforme assinala Costa Andrade ‘a pertinência dos dados à categoria e ao regime das
telecomunicações pressupõe, em qualquer caso, a sua vinculação a uma concreta e efetiva
comunicação – ao menos tentada/falhada –entre pessoas” (…). Na verdade, por exemplo, a mera
identificação do titular de um número de telefone fixo ou móvel, mesmo quando confidencial, surge com
uma autonomia e com uma instrumentalidade relativamente às eventuais comunicações e, por isso
mesmo, não pertence ao sigilo das telecomunicações, nem beneficia das garantias concedidas ao
conteúdo das comunicações e aos elementos de tráfego gerados pelas comunicações propriamente
ditas (Vide, neste sentido, Costa Andrade, em ‘Comentário Conimbricense do Código Penal’, Parte
Especial, Tomo III, pág. 797-798, da ed. de 2001, da Coimbra Editora). A mesma falta de tutela
constitucional no plano do sigilo das telecomunicações valerá para os dados de localização celular que
não pressuponham qualquer ato de comunicação, bastando para o efeito que o telemóvel esteja em
posição de stand by, isto é, ligado e apto para receber chamadas (Vide, neste sentido Costa Andrade,
em ‘Bruscamente no verão passado..., Ano 137.º, n.º 3951, Julho-Agosto 2008, p. 341).
[…]”.
Daí que os tribunais superiores da jurisdição comum tenham vindo a conferir um tratamento diverso, no
sentido de uma menor proteção – rectius, uma menos acentuada intangibilidade –, aos dados de base,
colocando-os no plano das demais informações sujeitas a segredo profissional, nos termos do artigo 135.º do
CPP (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/06/2014, proferido no processo n.º
1695/09.5PJLSB.L1-9, de 20/06/2013, proferido no processo n.º 1746/05.2TJLSB.L1-8, e de 18/01/2011,
proferido no processo n.º 3142/09.3PBFUN-A.L1-5, todos disponíveis na base de dados da DGSI).
As apontadas diferenças não esgotam a sua relevância na distinção entre os dados de base e os demais
dados decorrentes do serviço de telecomunicações. Elas estendem-se à distinção entre os dados de tráfego e
os dados de conteúdo. Sendo verdade que, como atrás se concluiu, a Constituição aproxima estes no sentido
de ambos encontrarem acolhimento no artigo 34.º da CRP, mas tal não significa que lhes imponha,
necessariamente, um tratamento rigorosamente idêntico. Tal nota distintiva não passou despercebida – e
constitui um elemento importante a reter – ao Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 486/2009, embora ali não
tenha sido desenvolvida, por não interferir com a decisão. Com efeito, observou-se neste aresto:
“[…]
Aqui chegados, importa, portanto, concluir que os dados da faturação detalhada e os dados da
localização celular que fornecem a posição geográfica do equipamento móvel com base em atos de
comunicação, na medida em que são tratados para permitir a transmissão das comunicações, são
dados de tráfego respeitantes às telecomunicações e, portanto, encontram-se abrangidos pela proteção
constitucional conferida ao sigilo das telecomunicações. Outra coisa será o diferente grau de ofensa
que o acesso a estes dados reveste para os direitos e liberdades protegidos pelo sigilo das
telecomunicações, relativamente às ‘escutas telefónicas’, quer pela menor informação que
revelam, quer pelo facto de não se tratar de um método oculto de obtenção de prova, o que tem
suscitado a interrogação sobre se esse acesso deve estar sujeito aos mesmíssimos
pressupostos(vide, Mouraz Lopes, em ‘Escutas telefónicas: seis teses e uma conclusão’, na Revista
do Ministério Público, Ano 26.º, n.º 104, pág. 143).
[…]” (ênfase acrescentado).
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2010, proferido no processo n.º
128/05.0JDLSB-A.S1 (disponível na base de dados da DGSI), a propósito da identidade de questões
apreciadas, tendo em vista aferir a viabilidade de um recurso extraordinário, se assinalou, designadamente, o
seguinte:
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“[…]
Vê-se assim que, à partida, os factos são diferentes desde logo quanto aos meios de prova que
estão em causa. Localização de telefone celular e registo de dados de tráfego no acórdão recorrido, e
escutas telefónicas no acórdão fundamento. Ora, o grau de intromissão na privacidade da pessoa alvo
destas medidas é muito diverso, como bem diferente é o contributo que as medidas aqui contrapostas
podem dar, como prova indiciária.
[…]”.
A principal razão pela qual terá de ser diferente o tratamento final a conceder aos dados de tráfego, face aos
dados de conteúdo, é fácil de compreender: sabendo que as restrições legais permitidas pelo artigo 34.º da
CRP estão sempre sujeitas ao princípio da proporcionalidade (neste sentido, cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., Tomo I, pág. 774), é por demais evidente que qualquer
ponderação de proporcionalidade tem, necessariamente, de considerar, em um dos pratos da balança, a
intensidade da lesão, e que, consequentemente, quanto menor a lesão, maior é o leque de atividades que
podem ser consideradas legitimadas pela aferição de proporcionalidade.
Esta diferença é importante, designadamente, para compreender que, como melhor se analisará adiante, as
posições deste Tribunal sobre a proporcionalidade das restrições de direitos a propósito das escutas telefónicas
(dos dados de conteúdo), designadamente nos Acórdãos n.º 426/05 e n.º 4/06, não são imediata e
automaticamente transponíveis, por ser relevante a falta de uma total identidade de razão, para a recolha
individualizada, caso a caso – e é o que aqui está em causa –, de dados de tráfego.
10. Aqui chegados, importa enfrentar o obstáculo da letra do n.º 4 do artigo 34.º da CRP, ao referir-se à
“matéria de processo criminal”, reconduzido à seguinte questão: a norma constitucional impede o acesso a
dados de tráfego pelos serviços de informações, por não se tratar, ali, de um processo criminal?
Já articulámos neste texto a atividade de produção de informações – por referência à ideia de defesa
administrativa da Constituição – com a atividade de adjetivação penal, referenciando àquela um sentido e
intencionalidade preambulares desta (da adjetivação penal), estabelecendo, pois, uma articulação temática
entre as duas atividades, em termos que nos permitirão, agora, dar sentido e enfrentar as consequências de
uma relação de complementaridade, na respetiva referenciação à área temática de intervenção dos Serviços
de Informações. Estamos em crer, aliás, ser essa referenciação que dá sentido, no quadro de um Estado de
direito democrático, à função de produção de informações na área da segurança interna.
Assim – e formulamos aqui, tão-somente, um ponto de partida argumentativo –, parece a letra do preceito
(o artigo 34.º, n.º 4, da CRP), à superfície, ser clara no sentido de restringir a possibilidade de acesso aos dados
de comunicações – incluindo, pois, como se deixou afirmado, os dados de tráfego – ao âmbito do processo
criminal, tout court.
No entanto, tendo presente que a letra da lei – de qualquer lei, obviamente também a lei constitucional, que
é, paradigmaticamente, uma lei interpretativamente aberta – é o primeiro passo na complexa tarefa de a
interpretar, mas não simultaneamente o derradeiro passo nesse sentido (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil),
poderá então o seu sentido literal sofrer ajustamentos reclamados por outras considerações (sistemáticas,
desde logo, sem perder de vista a concreta realidade social que reclama a aplicação da norma). Recorrendo às
palavras de Karl Engisch (Introdução ao Pensamento Jurídico, tradução de J. Batista Machado, 10.ª ed., Lisboa,
2008, pp. 336 e ss.), diríamos: “[q]ue se passa aqui? Se se considera claro o ‘teor verbal’ como um limite
absoluto da interpretação, já não se trata aqui certamente de interpretação – nem sequer de uma interpretação
frouxamente vinculada, enquanto se entenda que esta pressupõe um teor verbal ambíguo (plurissignificativo) e
se afasta do sentido vocabular mais imediato e aparente, na direção de um mais distante. Mas as coisas já se
apresentam de outra forma se entendermos os conceitos de interpretação ‘restritiva’ e ‘extensiva’ no sentido de
que, através destes modos de interpretação, se faz vingar a genuína vontade ou a verdadeira valoração de
interesses do legislador. Sendo assim, então talvez pudéssemos falar […] de uma interpretação teleológica
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restritiva […]”. Trata-se de uma “[…] espécie de ‘retificação da lei’, que guarda fidelidade à posição tomada pelo
legislador, ao seu querer, ao escopo que persegue, e apenas quebra os limites do sentido literal […]”,
distinguindo-se da “[…] insurreição contra o legislador por amor da transcendente ideia de Direito” (Autor e ob.
cit., p. 338). No fundo, trata-se de afirmar uma “obediência pensante”, na célebre e feliz expressão de Heck.
Temos, assim, de questionar se, atento o quadro já traçado de evolução normativa e de contexto histórico
do artigo 34.º da CRP, ao lado do qual colocaremos a sede constitucional conferida à função de produção de
informações (aos Serviços de Informações), a fidelidade ao sentido querido pelo legislador constitucional,
atualizado por referência à realidade social de 2015, reclama ou não um ajustamento – uma redução – da
proibição literal contida no n.º 4 daquele artigo. No caso, precisamente, uma redução teleológica, procurando
responder a uma lacuna oculta: “[qualificamos]de lacuna ‘oculta’ o caso em que uma regra legal, contra o seu
sentido literal, mas de acordo com a teleologia imanente à lei, precisa de uma restrição que não está contida
no texto legal. A integração de uma tal lacuna efetua-se acrescentando a restrição que é requerida em
conformidade com o sentido. Visto que com isso a regra contida na lei, concebida demasiado amplamente
segundo o seu sentido literal, se reconduz e é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo
o fim da regulação ou a conexão de sentido da lei, falamos de uma ‘redução teleológica’” (Karl Larenz,
Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa da 6ª ed. alemã por José Lamego, 5ª ed., Lisboa, 2009,
pp. 555/556), sendo que “[…] a analogia, a resolução com base num princípio achado pela via da generalização
de uma regra e a redução teleológica representam uma correção do, em parte demasiado estrito, em parte
demasiado amplo, teor literal da lei, conforme à ratio legis e à teleologia própria da lei; representam, por
conseguinte, um ‘desenvolvimento do Direito imanente à lei’. De vez em quando, uma tal correção do teor literal
da lei ocorre ainda de outro modo. Os casos em que o teor literal demasiado estrito é ampliado, sem que por
isso se trate de uma analogia, podem denominar-se […] de casos de ‘extensão teleológica’. A seu lado hão de
colocar-se aqueles casos em que o teor literal, em si contraditório, de uma disposição é retificado pela
jurisprudência de acordo com o seu escopo ” (Autor e ob. cit., pág. 564).
A resposta à questão em análise não prescinde de algumas observações.
10.1. A primeira prende-se com o que poderíamos chamar de geografia sistemática dos Serviços dedicados
à função de produção de informações e do processo criminal. Tratam-se de dois sistemas – de duas áreas da
atividade do Estado – que, face ao que vai dito supra não podem, com propriedade, dizer-se enraizados em
diferentes lugares, realidades e funções, respondendo a preocupações radicalmente – e sublinhamos o
advérbio: radicalmente – diversas, no mais amplo e complexo sistema de segurança e justiça.
Na verdade, se o SIRP tem como finalidade assegurar, através dos dois Serviços de informações que o
integram, no estreito respeito da Constituição e da lei, a produção de informações necessárias à salvaguarda
da segurança interna e externa, da independência e interesses nacionais e da unidade e integridade do Estado
(artigo 2.º do Decreto n.º 426/XII) e se desenvolve atividades de recolha, processamento, exploração e difusão
de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança
interna e externa do Estado Português, informações que contribuam para garantir as condições de segurança
dos cidadãos, bem como o pleno funcionamento das instituições democráticas, no respeito pela legalidade,
informações adequadas a prevenir a sabotagem, a espionagem, o terrorismo, e sua proliferação, a criminalidade
altamente organizada de natureza transnacional e a prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou
destruir o Estado de Direito democrático constitucionalmente estabelecido (artigo 44.º, n.º 2 do Decreto n.º
426/XII), sendo isto assim, dizíamos, forçoso é concluir, desde logo, que se posiciona, a atividade de produção
de informações, no âmbito da tutela preventiva de bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal, no sentido de
referenciáveis a ele, bens estes instrumentalmente servidos pelo direito processual penal.
Não é isto o mesmo – é forçoso, desde já, dizê-lo – que fazer coincidir a sua atividade (a produção de
informações) com a que se desenvolve no processo penal. O que aqui se afirma é uma relação de
complementaridade, são conexões, não uma identidade, tanto mais que ao pessoal do SIRP é vedado exercer
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poderes, praticar atos ou desenvolver atividades do âmbito ou da competência específica dos tribunais, do
Ministério Público ou das entidades com funções policiais (artigo 5.º, n.º 2 do Decreto n.º 426/XII).
Neste conspecto, salienta-se que o SIS é o único organismo incumbido da produção de informações que
contribuam para a salvaguarda da segurança interna, do acompanhamento de fenómenos e da deteção de
ameaças nos domínios da sabotagem, da espionagem, do terrorismo, e sua proliferação, do crime organizado
transnacional e da prevenção da prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado
de Direito constitucionalmente estabelecido (artigo 56.º, n.º 1, do Decreto n.º 426/XII) e o SIED é o único
organismo incumbido da produção de informações que contribuam para a salvaguarda da independência
nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado Português (artigo 57.º do Decreto n.º
426/XII). E, neste sentido, os oficiais de informações atuam, entre outros, no domínio da prevenção do
terrorismo, da espionagem, da sabotagem e da criminalidade altamente organizada (artigo 74.º, n.º 1, do
Decreto n.º 426/XII).
A atividade do SIRP é objeto, como já dissemos, de fiscalização externa especializada (i) do Conselho de
Fiscalização do SIRP, composto por três cidadãos de reconhecida idoneidade, eleitos Assembleia da República;
(ii) da Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP, composta por três magistrados do Ministério Público
nomeados pelo Procurador-Geral da República, com sede na Procuradoria-Geral da República; e, agora, (iii)
da Comissão de Controlo Prévio, composta por três magistrados judiciais, designados pelo Conselho Superior
da Magistratura, de entre juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com, pelo menos, três anos de
serviço nessa qualidade (artigos 20.º, 21.º, 29.º e 35.º do Decreto n.º 426/XII).
A esta primeira nota – diríamos estática – acresce a mais importante imagem dinâmica dos serviços de
informações, visto que a sua atividade passa, em boa medida, por reunir informações destinadas a prevenir a
ocorrência de factos previstos e punidos na lei penal, designadamente em matéria de criminalidade grave e
altamente organizada, informações essas que, para além de se destinarem aos decisores políticos
competentes, são também destinadas – quando a matéria diga respeito à respetiva área de atuação – às
entidades competentes de investigação criminal.
10.2. Em face do exposto no ponto antecedente, a questão da redução teleológica pode agora ser
equacionada através de duas opções interpretativas colocadas em alternativa: (i) aceitamos que o sentido literal
do n.º 4 do artigo 34.º da CRP é completo e integralmente fiel à vontade do legislador, ainda que no confronto
da recolha de dados de tráfego pelos serviços de informações, seja porque o legislador constitucional pensou
nesta hipótese, seja porque, se a tivesse pensado, não a teria ressalvado e, nesse caso, a mencionada
interferência nas comunicações não é permitida pela CRP; ou (ii) interpretamos o n.º 4 do artigo 34.º da CRP,
através de uma redução teleológica, no sentido de que a recolha dos dados de tráfego no âmbito da atividade
dos serviços de informações, por esta ser conexa com a (e logicamente antecedente à) do processo criminal, é
permitida pela CRP.
Perante as mencionadas opções – alternativas –, afastamos a primeira, porquanto implicaria aceitar que o
legislador constitucional quis (ou quereria) um corte de uma peça essencial de um sistema complexo que
pressupõe o trânsito de informações do SIRP para o âmbito do processo penal, quando necessário em função
do tipo de informação em causa. De entre as informações que podem ser recolhidas, a respeitante aos dados
de tráfego é essencial, designadamente para o estabelecimento de conexões entre pessoas (eventualmente,
futuros suspeitos e, sendo caso disso, arguidos em processo penal). Essencial também para assegurar a boa
construção e funcionamento do sistema de prevenção e investigação criminal. Em suma, negar a apontada
redução teleológica é afirmar que o legislador constitucional preferiu (ou preferiria) não afetar o direito à reserva
da intimidade da vida privada um pouco mais a montante do sistema processual penal (apesar de tudo, em
termos não tão drásticos quanto aqueles que tal afetação pode atingir na investigação criminal), assim privando
tal sistema de parte das informações centralmente relevantes para o seu bom funcionamento.
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Por outro lado, o bem fundado da segunda opção, no sentido da apontada redução teleológica, revela-se
não só a contrario pelas razões constantes do parágrafo antecedente, como também afirmativamente por uma
compatibilização mais harmoniosa entre os interesses da reserva da intimidade da vida privada – aqui mais
direcionados ao direito à autodeterminação informativa (artigo 35.º da CRP) –, do bom funcionamento do
sistema de prevenção criminal, na articulação deste com o processo criminal, e da defesa da ordem
constitucional, sendo certo que a “inviolabilidade de princípio”,contida no artigo 34.º da CRP deve entender-se
limitada, como justamente apontam Jorge Miranda e Rui Medeiros, “[…] pela própria Constituição no seu todo,
em especial pelo equilíbrio entre os diferentes direitos fundamentais, maxime o direito à vida ou à integridade
física. Constata-se, desta forma, que o recorte do conceito de inviolabilidade utilizado no artigo 34.º deve ser
aferido à luz de uma leitura sistemática da Constituição, e não através de uma leitura atomística do referido
preceito” (ob. cit., pp. 757/758).
11. Tomada posição no sentido da admissibilidade, face ao disposto no artigo 34.º, n.º 4, da CRP, do acesso
a dados de tráfego pelos Serviços de Informações, não se alcança ainda a resposta final sobre a conformidade
à Lei Fundamental do artigo 78.º, n.º 2, do Decreto n.º 426/XII. Isto porque a citada norma não tolera toda e
qualquer restrição do direito à reserva da intimidade da vida privada, mas apenas as que obedeçam “à
ponderação do princípio da proporcionalidade” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., p. 774).
11.1. É extensa, profunda e consistente a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o princípio da
proporcionalidade, na vertente de proibição de excesso, aqui relevante. Escreveu-se, sobre a matéria, no
Acórdão n.º 187/2001:
“[…]
Embora tenha havido tentativas de ancorar o princípio de proporcionalidade em raízes mais antigas
– ligadas, quer à iustitia vindicativa, quer à iustitia distributiva –, a ideia de subordinar o exercício do
poder a uma exigência de proporcionalidade recebe acolhimento jurídico claro apenas a partir do
iluminismo, no domínio penal e do direito administrativo de polícia, com a vinculação da administração
a uma exigência de necessidade, transitando a partir daí para o direito constitucional.
A ideia de proporcionalidade lato sensu representa, hoje, uma importante limitação ao exercício do
poder público, servindo a garantia dos direitos e liberdades individuais (a aplicação às limitações a
direitos fundamentais, enquanto ‘limite da limitação’ remonta, na verdade, pelo menos a Herbert Krüger,
"Die Einschränkung von Grundrechten nach dem Grundgesetz", Deutsche Verwaltungsblätter, 1950,
pp. 628 e ss).
[…]
Também o Tribunal Constitucional português tem reconhecido e aplicado, em várias decisões, o
princípio da proporcionalidade, aferindo frequentemente perante ele, quer normas penais
incriminatórias – por exemplo, nos Acórdãos nos 634/93 (inconstitucionalidade da punição como desertor
daquele que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem
embarcar, quando tal tripulante não desempenhe funções diretamente relacionadas com a manutenção,
segurança e equipagem do mesmo navio), 274/98 (não inconstitucionalidade de norma que pune o não
acatamento de ordem de demolição), publicados nos ATC, respetivamente vol. 26.º, pp. 205 e ss. e vol.
39.º, pp. 585 e ss. –, quer normas de outro tipo, que previam encargos ou limitações a direitos
fundamentais – v.g., os Acórdãos n.os 451/95 (inconstitucionalidade de norma que estabelece a
impenhorabilidade total de bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções
fiscais), 1182/96 (inconstitucionalidade de normas sobre custas nos tribunais tributários), 758/95
(inconstitucionalidade de norma que impede a participação pessoal, na assembleia geral dos bancos,
e em certas condições, de acionistas que não disponham de 1/300 da soma dos votos possíveis),
176/2000 e 202/2000 (perda dos instrumentos do crime) e 484/00 (não inconstitucionalidade de norma
que prevê o indeferimento tácito do pedido de legalização de obras), publicados respetivamente nos
ATC, respetivamente, vol. 31.º, pp. 129 e ss., vol. 35.º, pp. 431 e ss., vol. 32.º, pp. 803 e ss. e DR, II
série, de 27 e 11 de outubro de 2000 e de 4 de janeiro de 2001).
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Relativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade
resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República. Mas o princípio da proporcionalidade,
enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de
Direito. Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas
públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projetada ação aos fins
pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessária ou excessivamente
restritivas.
[…]”.
A nossa Jurisprudência constitucional desdobra o princípio da proporcionalidade em três subprincípios.
Continuando a citar o Acórdão n.º 187/2001:
“[…]
O princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode, além disso, desdobrar-se analiticamente
em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos
fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou
‘justa medida’. Como se escreveu no citado Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
«o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as
medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a
prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente
protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os
fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo
desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se
medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»
Pode dizer-se que a verificação da adequação se configura como a primeira (se a medida não for
adequada, será logo violadora do princípio da proporcionalidade). Retomando o que se escreveu no
referido Acórdão n.º 1182/96:
«Num primeiro momento perguntar-se-á se a medida legislativa em causa (…) é apropriada à
prossecução do fim a ela subjacente.»
Num segundo momento, há que questionar a possibilidade de adoção de medidas menos intrusivas
com os mesmos efeitos na prossecução do fim visado.
Como se disse no citado aresto:
"Seguidamente haverá que perguntar se essa opção, nos seus exatos termos, significou a ‘menor
desvantagem possível’ para a posição jusfundamental decorrente do direito [de propriedade]. Aqui,
equacionando-se se o legislador ‘poderia ter adotado outro meio igualmente eficaz e menos
desvantajoso para os cidadãos’ [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., Coimbra, 1993, pp.
382-383]."
É, porém, certo que medidas que sejam de considerar necessárias ou exigíveis não podem deixar
de ser também adequadas (embora o inverso não seja verdadeiro). Assim, na prática, a verificação da
necessidade ou exigibilidade resolve logo também a da adequação.
A verificação da necessidade ou exigibilidade pode envolver, por outro lado, uma avaliação in
concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis efeitos, à luz dos fins prosseguidos,
para apurar a previsível maior ou menor consecução dos objetivos pretendidos, perante as alternativas
disponíveis.
Por último, retira-se ainda do princípio de proporcionalidade um último critério, designado como
proporcionalidade em sentido estrito ou critério de justa medida.
"Haverá, então, que pensar em termos de ‘proporcionalidade em sentido restrito’, questionando-se
‘se o resultado obtido (…) é proporcional à carga coativa’ que comporta" (ibidem).
Trata-se, pois, de exigir que a intervenção, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, se encontre numa
relação ‘calibrada’ – de justa medida – com os fins prosseguidos, o que exige uma ponderação,
graduação e correspondência dos efeitos e das medidas possíveis.
[…]”.
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Por fim, importa considerar os limites do controlo a realizar pelo Tribunal sobre o referido princípio, no âmbito
da atividade legislativa, e continuamos a citar o Acórdão n.º 187/2001:
“[…]
Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que originariamente relevante
sobretudo no domínio do controlo da atividade administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-
se-á mesmo – como o comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da
proporcionalidade cobra no controlo da atividade do legislador um dos seus significados mais
importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências decorrentes do princípio se configurem de forma
diversa para a atividade administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática aplicação
jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado-Administrador e para o Estado-Legislador.
Assim, enquanto a administração está vinculada à prossecução de finalidades estabelecidas, o
legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a finalidade visada com uma determinada
medida. Por outro lado, é sabido que a determinação da relação entre uma determinada medida, ou as
suas alternativas, e o grau de consecução de um determinado objetivo envolve, por vezes, avaliações
complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação complexa que pode,
porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é adequada a determinada finalidade.
E também a ponderação suposta pela exigibilidade ou necessidade pode não dispensar essa avaliação.
Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –,
legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma
‘prerrogativa de avaliação’, como que um ‘crédito de confiança’, na apreciação, por vezes difícil
e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada
medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida,
à consecução dos objetivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros
constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da competência do legislador na
definição dos objetivos e nessa avaliação (com o referido ‘crédito de confiança’ – falando de um
‘Vertrauensvorsprung’, v. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II, 14ªed.,
Heidelberg, 1998, n.os 282 e 287) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a
relação medida-objetivo é social ou economicamente complexa, e a objetividade dos juízos que se
podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua
avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que
é efetuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem,
salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas
não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do
legislador.
Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso concreto, e à luz do
princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou
não existe – e a norma é constitucionalmente conforme. Tal objeção, segundo a qual apenas poderia
existir ‘uma resposta certa’ do legislador, conduz a eliminar a liberdade de conformação legislativa, por
lhe escapar o essencial: a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade,
por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se
poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém
desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e
economicamente complexa.
A diferenciação, nestes termos, da vinculação do legislador e da administração é, aliás, salientada
na doutrina nacional e estrangeira (v., para esta, por todos, a obra por último citada) e acolhida na
jurisprudência. Assim, escreveu-se recentemente no Acórdão n.º 484/00, citando doutrina nacional:
‘O princípio do excesso [ou princípio da proporcionalidade] aplica-se a todas as espécies de atos
dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração e a jurisdição. Observar-se-á apenas que o
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controlo judicial baseado no princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade
semelhantes consoante se trate de atos legislativos, de atos da administração ou de atos de jurisdição.
Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é reconhecido um
considerável espaço de conformação (liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando
edita uma nova regulação. Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os
requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que perante
o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é
manifestamente inadequada.’ (assim, Gomes Canotilho Direito constitucional e teoria da constituição,
Coimbra, 1998, p. 264),
Ora, estando em causa a constitucionalidade de uma norma, é apenas a intervenção do legislador
que tem de ser aferida – com os limites assinalados.
E tal posição é também a seguida por outras jurisdições que aplicam o princípio da proporcionalidade
à atividade legislativa – vejam-se, a título ilustrativo, os Acórdãos do Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias de 13 de novembro de 1990 (processo C-331/98, Coletânea de Jurisprudência
do Tribunal de Justiça, 1990, p. I-4203), 12 de novembro de 1996 (processo C-84/94, caso ‘tempo de
trabalho’, in Coletânea cit., 1996, p. I-5755) e 13 de maio de 1997 (caso ‘garantia de depósitos’,
processo C-233/94, na Colect. cit., 1997, pp. I-2405), lendo-se no último destes arestos que, quando a
situação é economicamente complexa, ao julgar a conformidade com o princípio da proporcionalidade,
"o Tribunal não pode substituir a apreciação do legislador comunitário pela sua própria apreciação. De
resto, só pode censurar a opção normativa do legislador se esta for manifestamente errada ou se os
inconvenientes daí resultantes para certos agentes económicos forem desproporcionados em relação
às vantagens que apresenta’.
[…]”.
11.2. Testando a norma do artigo 78.º, n.º 2, do Decreto n.º 426/XII face ao referido princípio, a primeira nota
que se colhe – para além da legitimidade de princípio (fim legítimo) de uma intervenção legislativa consistente
na alocação de meios de atuação aos Serviços de Informações, protagonistas de uma função do Estado que a
Constituição expressamente refere – para além disto, dizíamos, colhe-se a ideia de uma manifesta adequação
da medida legislativa à prossecução do fim a que se destina (obtenção de informações relevantes para a
atividade dos Serviços integrados no SIRP). A obtenção de “dados de tráfego, de localização ou outros dados
conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar
a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento
de telecomunicações ou a sua localização” é manifestamente adequada – no contexto da atuação dos serviços
de informações – ao funcionamento do ciclo de produção de informações, permitindo, designadamente,
estabelecer a (essencial) conexão entre pessoas e lugares que aqueles Serviços tenham por carecidos de
análise. Sublinhar-se-á aqui, relativamente ao fenómeno terrorista contemporâneo, enquanto ameaça bem
presente nas sociedades dos nossos dias, o desenvolvimento deste em rede, através de conexões (contactos)
entre pessoas em pontos geográficos afastados, em termos que tornam intuitiva, como matéria-prima
informacional, a deteção e relacionação desses contactos.
A necessidade ou exigibilidade, por sua vez, traduzida na impossibilidade de adoção de medidas menos
intrusivas com os mesmos efeitos na prossecução do fim visado, também deve ter-se aqui por estabelecida,
uma vez que aos Serviços de Informações será, hoje mais ainda do que até agora, imprescindível a recolha dos
identificados dados de tráfego, precisamente para estabelecimento das apontadas conexões entre informações
dispersas, em vista da formação de um quadro informacional coerente. Trata-se, basicamente, de propiciar
acesso a elementos determinantes para a alimentação e regular constituição e funcionamento do ciclo de
produção de informações. E é este um resultado que não poderia obter-se por via menos intrusiva, certamente
inalcançável através dos vagos e imprecisos dados de base. Os instrumentos resultantes daquele n.º 2
traduzem, assim, a já assinalada “menor desvantagem possível” no (necessário) sacrifício de algo na esfera
pessoal de reserva de intimidade, entendida como direito à autodeterminação informativa.
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11.3. É mais complexa, no entanto – desde já se adianta –, a verificação da proporcionalidade em sentido
estrito. Para concluir no sentido da “justa medida” da solução legislativa, importa considerar: (i) a espécie de
informação obtida; (ii) a escala da informação; (iii) o funcionamento das comissões de fiscalização; e, face ao
quadro precedente, concluindo, (iv) o sentido das exigências de proporcionalidade.
A espécie de informação obtida é, como já se referiu, pela sua natureza, limitada (dados de tráfego) e, pese
embora afete uma projeção da reserva da intimidade da vida privada, não afeta esse tipo de informação, longe
disso, essa intimidade projetiva, com uma intensidade igual ou mesmo equivalente à afetada pela informação
resultante dos próprios dados de conteúdo, que permanecem – é essa a opção do legislador português –
inacessíveis aos Serviços de Informações.
Mais importante para apurar o sentido da proporcionalidade é, todavia, o que designamos pela escala da
informação. Como já referimos, atualmente, o debate internacional sobre a privacidade das comunicações tem
como principais alvos sistemas muito complexos, alguns deles já referidos neste texto. Em tais casos, trata-se
da recolha sistemática de informações, realizada em massa, com ténue ou sem qualquer circunscrição de
pessoas, tempo e lugares, sem uma prévia verificação da utilidade concreta da grande maioria da informação
recolhida, tendo em vista o seu tratamento posterior e assentando na expectativa da sua utilidade futura, para
estabelecimento de conexões entre pessoas que venham a ser suspeitas de ameaçar ou de lesar os interesses
do Estado. Tal recolha de informações é, na sua escala, absolutamente dissociada do que se prevê no artigo
78.º, n.º 2, do Decreto n.º 426/XII: tão-só, um acesso pontual, delimitado por circunstâncias concretas, que tem
de ser previamente solicitado a uma comissão independente, alegando e justificando a necessidade, adequação
e proporcionalidade do acesso, por referência às atribuições legais dos Serviços de Informações.
Por outro lado, como já se assinalou, a atividade do SIRP é fiscalizada por três comissões independentes,
sendo que a sua atuação garante – especificamente a da Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP – o
apagamento dos dados que não interessam à atividade dos serviços, por serem ou terem deixado de ser úteis.
Ademais – e é este um ponto de particular importância –, centrando a nossa atenção na Comissão de Controlo
Prévio, à qual cabe em exclusivo autorizar o acesso aos dados de tráfego, é visível o esforço do legislador em
encontrar um justo equilíbrio dos interesses em jogo. Tratando-se de uma comissão administrativa, não de um
tribunal, a sua composição por magistrados judiciais visa importar para aquela Comissão uma particular cultura
profissional de isenção, imparcialidade, independência e o saber, apurado pela longa experiência profissional,
da aplicação do direito à luz dos princípios fundamentais do sistema jurídico, incluindo o da proporcionalidade.
Aliás, é precisamente no n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII que repousa a chave do respeito pela
proporcionalidade em cada concreta autorização a conceder, pois ali se prevê a aplicação do princípio, em cada
adjetivação de pedidos de acesso formulados pelos Serviços de Informações.
Acresce que, considerando o momento de atuação do SIRP, o legislador terá sentido grande dificuldade, ou
mesmo encontrado barreira intransponível, na construção de um controlo jurisdicional (isto é, propriamente, por
um tribunal), num momento em que não existe e poderá não vir a existir processo judicial. E a solução que
encontrou – que copia soluções existentes em diversos países da União Europeia, caso da Alemanha e do
Reino Unido (cfr. Carlos Ruiz Miguel, “Problemas Actuales del Derecho de los Servicios de Inteligência”, in
Anuario de Derecho Constitucional Y Parlamentário, ano 2003, n.º 15, p. 166) –, a solução encontrada,
dizíamos, num compromisso possível com os interesses em jogo, consistiu na criação de uma comissão
administrativa (mas de feição para-judicial) que, na maior medida possível, replicasse o sentido profundo do
controlo que, na sua dimensão mais literal, o n.º 4 do artigo 34.º entrega aos tribunais. Precisamente a respeito
da natureza de uma entidade de controlo do acesso aos dados de tráfego, salienta-se que o Acórdão, já referido
neste texto, do Tribunal de Justiça no Caso Digital Rights Ireland, Ltd (C-293/12), decisão de 8 de abril de 2014
– que invalidou a Diretiva 2006/24/CE, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da
oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de
comunicações – este Acórdão, dizíamos, tomou posição expressa no sentido do controlo prévio não ter que
assumir, necessariamente, natureza jurisdicional, apontando a necessidade de “[…] um controlo prévio efetuado
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por um órgão jurisdicional ou por uma entidade administrativa independente cuja decisão vise limitar o
acesso aos dados e a sua utilização ao estritamente necessário para se alcançar o objetivo prosseguido
e ocorra na sequência de um pedido fundamentado destas autoridades, apresentado no âmbito de
procedimentos de prevenção, de deteção ou de uma ação penal […]” (trecho do ponto 62 do Acórdão;
destaque acrescentado), condições que o Decreto ora em apreciação, ao prever a Comissão de Controlo Prévio
(e ao estabelecer os termos da respetiva atuação) assegura.
Por fim, não se esquecendo a profundidade com que o Tribunal tem entendido a necessidade de controlo
da informação resultante da interceção de comunicações, não se pode deixar de notar que nem todas as
exigências implicadas na realização de escutas (cfr., designadamente, os Acórdãos do Tribunal n.º 426/2005 e
n.º 4/2006) fazem sentido quando apenas estão em causa os dados de tráfego. Ali, importa atentar no conteúdo
das informações, para o mais rapidamente possível aferir da sua relevância, eliminando rapidamente o resultado
lesivo (isto é, destruindo as escutas) na parte inútil, precisamente por respeito ao princípio da proporcionalidade,
momentos e necessidades que não se reproduzem quando apenas estão em causa dados de tráfego.
Tudo visto e sopesado, afigura-se que a solução encontrada pelo legislador implica, usando o critério do
Acórdão n.º 187/2001, efeitos restritivos ou lesivos que se apresentam, todavia, numa relação "calibrada" – de
justa medida – com os fins prosseguidos, ponderando aqueles efeitos face às medidas possíveis, tudo à luz do
reconhecimento e outorga ao legislador do “crédito de confiança” que lhe é devido.
12. Aqui chegado, retomando as questões/dúvidas formuladas pelo Requerente no artigo 7.º do pedido de
fiscalização, responder-lhes-ia nos seguintes termos: (1) à primeira questão – deve o acesso aos metadados
considerar-se uma ingerência nas telecomunicações para os efeitos previstos na norma constitucional? –
responderia que o acesso aos dados de tráfego pelos oficiais de informações do SIRP, nos termos do artigo
78.º, n.º 2 do Decreto n.º 426/XII, constitui uma ingerência nas telecomunicações, sendo esta, todavia, permitida
pela norma do n.º 4 do artigo 34.º da CRP, interpretada, através de uma redução teleológica, por forma a incluir
a atividade dos Serviços de Informações, ao lado da atividade de investigação criminal, na exceção à proibição
de princípio ali consagrada; (2) à segunda questão – pode considerar-se que a autorização prévia e obrigatória
da Comissão de Controlo Prévio equivale ao controlo existente no processo criminal? – responderia que a
referida autorização da Comissão de Controlo Prévio representa um mecanismo de controlo concreto da
necessidade, adequação e proporcionalidade da interceção de dados, que a Constituição impõe, e assume, no
particular contexto da atuação do SIRP, um papel equivalente, por proximidade axiológica, ao do juiz no
processo penal, o qual, nos concretos termos constantes do Decreto n.º 426/XII, entendo não contrariar as
exigências da Lei Fundamental.
13. São estas, no essencial, as razões que me conduzem a afirmar, contra o entendimento que fez
vencimento, a conformidade constitucional da norma do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII da Assembleia
da República.
José António Teles Pereira
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RESOLUÇÃO
Deslocação do Presidente da República aos Estados Unidos da América
A Assembleia da República resolve, nos termos da alínea b) do artigo 163.º e do n.º 5 do artigo 166.º da
Constituição, dar assentimento à deslocação de S. Ex.ª o Presidente da República aos Estados Unidos da
América, entre os dias 27 de setembro e 1 de outubro, para participar na 70.ª Assembleia-Geral das Nações
Unidas.
Aprovada em 9 de setembro de 2015.
A Presidente da Assembleia da República, Maria da Assunção A. Esteves.
———
RESOLUÇÃO
Deslocação do Presidente da República a Roma
A Assembleia da República resolve, nos termos da alínea b) do artigo 163.º e do n.º 5 do artigo 166.º da
Constituição, dar assentimento à deslocação de S. Ex.ª o Presidente da República a Roma, entre os dias 27 a
29 do próximo mês de outubro, para participar no X encontro da COTEC Europa.
Aprovada em 9 de setembro de 2015.
A Presidente da Assembleia da República, Maria da Assunção A. Esteves.
A DIVISÃO DE REDAÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.