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2 | II Série B - Número: 135 | 28 de Janeiro de 2012

VOTO N.º 39/XII (1.ª) DE PESAR PELO HOLOCAUSTO

Em 27 de janeiro de 1945 o grupo de campos de extermínio nazi de Auschwitz-Birkenau, na Polónia, foi libertado dos seus carrascos pelas tropas soviéticas, na sua marcha para Berlim. O espetáculo de sofrimento e desolação que, nesse dia, se abriu ao mundo foi a porta de entrada para a tomada de consciência mundial sobre o Holocausto.
Auschwitz-Birkenau era apenas um dos muitos campos de morte, uma mera peça no vasto sistema de extermínio, que havia sido montado a partir de uma decisão tomada, também num dia de janeiro. Foi a 20 de janeiro de 1942 que, na célebre Conferência de Wannsee — por contraste, um belo lago perto de Berlim — , um grupo de altos funcionários do regime de Hitler elaborou o monstruoso protocolo que pretendia dar uma «solução final à questão judaica» (Endlösung der Judenfrage): a sua aniquilação sistemática por métodos industriais, no seguimento dos fuzilamentos em massa que até aí eram a regra do terror racial e político do III Reich.
O que recordamos (e celebramos) hoje é, em primeiro lugar, a revelação e a vitória da verdade, mesmo da mais horrível e brutal, sobre a mentira, a distorção e o engano. Como escreveu uma das sobreviventes do Holocausto, a grande filósofa Hannah Arendt, a forma de verdade mais frágil não é a verdade racional mas, sim. a verdade factual. Os princípios matemáticos ou as leis da física resistem ao desaparecimento dos seus descobridores, mas os factos, se não forem protegidos e recordados, não resistirão ao desaparecimento das suas testemunhas. Numa altura em que crescem, até com lugar ao nível cimeiro de alguns Estados, os discursos negacionistas do Holocausto, o Parlamento português associa-se não só à homenagem das vítimas, mas também à tarefa sempre inacabável de impedir que a voz e a imagem dessas testemunhas — participantes e vítimas de uma das mais horríveis verdades factuais da história humana — possa ser deturpada, silenciada, ou mesmo suprimida.
Em segundo lugar, homenageamos aqui a força moral e a coragem física daqueles que, para salvar a justiça, preferiram arriscar a vida, a sobreviver num mundo em que a sua passividade, omissão ou cobardia pudesse representar indiferença com esse hediondo crime contra a condição humana, e que se traduziu na perseguição e no extermínio tendo por base a cor da pele, ou as convicções políticas, religiosas e morais.
Para além de milhões de judeus, no Holocausto pereceram dezenas e dezenas de milhares de ciganos, de eslavos, e de dissidentes e resistentes, provenientes de diferentes orientações políticas, desde liberais a comunistas, passando por sociais-democratas e independentes.
Se Hannah Arendt se salvou, para gloria do pensamento e da inteligência da humanidade inteira, alojandose entre janeiro e maio de 1941, num quarto do n.º 6A da Rua da Sociedade Farmacêutica, em Lisboa, na espera pelo navio da Companhia Colonial de Navegação que a levaria a Nova Iorque, isso ficou a dever-se aos heróis e aos justos que, como Aristides Sousa Mendes, cônsul português em Bordéus, arriscaram a sua segurança e o bem estar das suas famílias por terem obedecido à intuição moral básica da solidariedade.
Ficou a dever-se, também, aos corajosos soldados que deram a sua vida nas praias da Normandia, nos desertos de Tobruk, nas cidades devastadas e geladas da Rússia. Ficou a dever-se aos resistentes do maquis francês, das montanhas da Jugoslávia, das florestas polacas, das planícies ucranianas, dos fiordes noruegueses. Ficou a dever-se aos marinheiros mercantes que perderam a vida nas águas geladas do Atlântico para manterem as cidades alimentadas e os exércitos em movimento. De todos eles somos devedores. De uma dívida que jamais poderá ser paga. Por se terem colocado no lugar do Outro, como se esse fosse o seu lugar, no momento da maior e extrema agonia, na viragem entre a aniquilação e a salvação.
Finalmente, o que celebramos aqui é a confiança de que, na luta entre a tirania e a liberdade, entre a segregação e a igualdade, entre o desprezo e a fraternidade, as sociedades plurais e os cidadãos livres e comprometidos com a causa pública, jamais permitirão que nenhuma conjugação de forças e infortúnios volte a tornar possível um outro eclipse mortal da razão, do coração e de todos os valores que dão um sentido de esperança à existência histórica da humanidade sobre a Terra.

Palácio de São Bento, 27 de janeiro de 2012 A Presidente da Assembleia da República, Maria da Assunção A. Esteves.

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