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Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010 II Série-RC — Número 4

XI LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2010-2011)

VIII REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
Reunião do dia 14 de Dezembro de 2010

SUMÁRIO O Sr. Presidente (António Filipe) deu início à reunião às 16 horas e 44 minutos.
Procedeu-se à apresentação dos projectos de revisão constitucional n.os 5/XI (2.ª) (CDS-PP) e 10/XI (2.ª) (Deputado do CDS-PP José Manuel Rodrigues), relativamente ao Preâmbulo, tendo usado da palavra, além do Sr. Presidente, os Srs. Deputados Telmo Correia e José Manuel Rodrigues (CDS-PP), Marques Júnior (PS), Guilherme Silva (PSD), Luís Pita Ameixa (PS), Jorge Bacelar Gouveia (PSD), José Manuel Pureza (BE), João Oliveira (PCP), Heloísa Apolónia (Os Verdes), Mota Amaral (PSD) e Vitalino Canas (PS).
Foram ainda apresentados os projectos de revisão constitucional n.os 6/XI (2.ª) (Deputados do PSD Guilherme Silva, Correia de Jesus, Vânia Jesus e Hugo Velosa), 7/XI (2.ª) (Deputados do PSD Mota Amaral e Joaquim Ponte) e 10/XI (2.ª) (Deputado do CDS-PP José Manuel Rodrigues), relativamente ao artigo 6.º (Estado unitário). Pronunciaramse, além do Sr. Presidente, os Srs. Deputados Guilherme Silva e Mota Amaral (PSD), José Manuel Rodrigues (CDSPP), Luís Marques Guedes (PSD), Eduardo Cabrita (PS), João Oliveira (PCP), Ricardo Rodrigues (PS), Jorge Bacelar Gouveia (PSD), José Manuel Pureza (BE), Paulo Mota Pinto (PSD) e Telmo Correia (CDS-PP).
O Sr. Presidente encerrou a reunião eram 19 horas e 44 minutos.

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O Sr. Presidente (António Filipe): — Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 16 horas e 44 minutos.

Srs. Deputados, em primeiro lugar, gostaria de dar conhecimento do despacho do Sr. Presidente da Assembleia da República sobre o nosso pedido para reunir às quartas-feiras às 16 horas e 30 minutos — e hoje, não sendo quarta-feira, à mesma hora.
O despacho do Sr. Presidente é do seguinte teor: «Autorizado a título excepcional, desde que seja garantido, sempre que necessário, quórum de funcionamento e de deliberação no Plenário». Portanto, havendo votações ou alguma dificuldade de quórum no Plenário, teremos de interromper os trabalhos; não sendo esse o caso, estamos autorizados, ainda que a título excepcional, a funcionar à quarta-feira a partir das 16 horas e 30 minutos, em simultâneo com o Plenário.
Srs. Deputados, se não houver questões prévias que queiram suscitar, iremos dar início à apresentação e leitura comparada dos projectos de revisão constitucional.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, trata-se de uma pequeníssima questão prévia, que é um esclarecimento complementar sobre a metodologia, em concreto, desta primeira leitura.
Confesso que não é a primeira Comissão Eventual para a Revisão Constitucional em que participo, mas, como já vai longo o tempo da última em que participei, pergunto se haverá uma apresentação por parte do proponente, seguida de pedidos de esclarecimento e de debate, ou se será feita uma mera apresentação. Não tenho esse esclarecimento presente, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Telmo Correia, será feita uma apresentação das propostas pelos proponentes, seguida de debate. Aliás, o debate mais demorado é feito nesta primeira leitura, uma vez que a segunda leitura será para votação indiciária das propostas, acompanhada do debate que for necessário fazer nessa altura, até porque poderão surgir propostas novas, ou o aperfeiçoamento de propostas existentes, que resultem da primeira leitura. Mas o essencial do debate ou o debate mais substancial, se quiserem, será feito na primeira leitura, precisamente. A segunda leitura é muito mais sumária e mais dedicada às votações indiciárias.
Portanto, a apresentação das propostas e o respectivo debate será feito a partir de agora.
As primeiras propostas que temos para discussão dizem respeito ao preâmbulo da Constituição: são duas propostas de eliminação, uma apresentada pelo CDS — projecto de revisão constitucional n.º 5/XI (2.ª) — e outra apresentada pelo Sr. Deputado do CDS-PP José Manuel Rodrigues — projecto de revisão constitucional n.º 10/XI (2.ª).
Convidava os Srs. Deputados proponentes a tentarem convencer-nos da bondade das vossas propostas.
Tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: No que diz respeito ao CDS-PP, não é a primeira vez que apresentamos esta proposta. De resto, desde há algum tempo e tanto quanto me recordo, em todos os processos de revisão constitucional sempre defendemos a eliminação do preâmbulo, ideia que mantemos.

Neste momento, produziu-se um ruído na sala, em resultado da queda de equipamento de um dos assistentes à reunião.

É só o preâmbulo que queremos eliminar, mais nada! Não temos mais nenhuma intenção destruidora, além do preâmbulo!

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Risos.

Diria que a proposta de eliminação do preâmbulo se basta a si mesma, Sr. Presidente. Ou seja, bastará fazer uma leitura do preâmbulo e da nossa proposta para perceber o fundamento e as razões por que o fazemos.
Essas razões são, basicamente, três.
Consideramos que o preâmbulo é, obviamente, um texto datado, ou seja, um texto que corresponde a um momento concreto da história de Portugal — um momento revolucionário. Neste caso, da aprovação da Constituição, é um momento pós-revolucionário, mas muito marcado pelo período revolucionário. Portanto, desse ponto de vista, é um texto datado, que não deveria ter sentido permanente como texto constitucional.
Por outro lado, ao defendermos esta eliminação, também sustentamos aquela que é a nossa ideia de Constituição. Sempre defendemos que a Constituição deve ser um traço de união entre todos os portugueses e, portanto, um texto em que todos os portugueses, independentemente das suas opções, escolhas e convicções, se possam rever, indiscutivelmente.
Sem querer proceder aqui a uma leitura do preâmbulo e respeitando até o seu valor poético, para contrariar esta ideia bastaria citar a frase em que se refere «abrir o caminho para uma sociedade socialista». A abertura de um «caminho para uma sociedade socialista» é para aqueles que se revêem no socialismo, para aqueles que acreditam numa sociedade socialista ou para os que têm alguma ligação com o socialismo. Ora, grande parte dos portugueses não é socialista, não deseja uma sociedade socialista nem quer «abrir o caminho para uma sociedade socialista». Eu próprio, se fosse o caso, fechá-lo-ia sempre que possível! Portanto, não creio que faça sentido que um documento que deve ser o traço de união entre todos os portugueses garanta que a sociedade socialista é o único caminho possível para o País, é o único caminho que Portugal deve seguir. Pelo contrário, defendemos a ideia de que a Constituição deve ser, como disse, um texto de união, uma espécie de Magna Carta de todos os portugueses, em que todos se possam rever. Isto sem prejuízo, objectivamente, do contexto e do valor histórico deste preâmbulo enquanto documento.
Em suma, não nos opomos ao seu valor histórico, até entendemos que o preâmbulo deve ser respeitado e existir enquanto documento histórico, mas não concordamos que ele deva fazer parte integrante do texto constitucional, porque, como referi, é parcial, corresponde a uma determinada época, é datado, não é, forçosamente, um documento em que todos os portugueses se possam rever e nós entendemos que todos os portugueses se devem poder rever no texto constitucional.

O Sr. Presidente: — Como a proposta do Sr. Deputado José Manuel Rodrigues é idêntica, convidava-o, querendo, a apresentá-la neste momento, antes de se proceder ao respectivo debate.

O Sr. José Manuel Rodrigues (CDS-PP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho pouco mais a acrescentar às justificações avançadas pelo Sr. Deputado Telmo Correia. Realmente, este preâmbulo procura datar a nossa Constituição e utiliza determinadas expressões que estão completamente ultrapassadas pela instituição da nossa democracia, designadamente a frase onde se refere que o País abrirá «caminho para uma sociedade socialista».
Portanto, comungo da opinião transmitida pelo Sr. Deputado Telmo Correia — outra coisa não seria de esperar — , de que a Constituição deve ser um traço de união entre todos os portugueses, onde todos os cidadãos e as instituições se possam rever. Ora, desse ponto de vista, este preâmbulo não representa a vontade do povo português, nem sequer a vontade maioritária do povo português, e por isso proponho a sua eliminação, respeitando, naturalmente, a história e o contexto em que este preâmbulo foi elaborado, aquando da Assembleia Constituinte.

O Sr. Presidente: — Inscreveu-se o Sr. Deputado Marques Júnior, a quem dou a palavra.

O Sr. Marques Júnior (PS): — Sr. Presidente, a minha inscrição é um pouco extemporânea, porque um outro Sr. Deputado do Partido Socialista vai falar sobre esta questão do preâmbulo.
A verdade é que, neste início dos trabalhos de revisão da Constituição, gostaria de aproveitar a oportunidade para prestar uma homenagem muito sentida de agradecimento a todos os Constituintes que

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elaboraram, na sequência da Revolução do 25 de Abril, esta Constituição. Portanto, estas minhas palavras são de homenagem a todos os Constituintes que elaboraram a Constituição, um trabalho que, na altura, apesar das várias revisões a que já foi sujeito, foi reconhecido como extraordinário. Constituintes que, aliás, ao longo da vida, vieram a demonstrar (a generalidade deles) que eram pessoas do melhor que tinha a sociedade portuguesa.
Gostaria de fazer, neste momento, um preito de homenagem a esses Constituintes. E peço desculpa ao Sr.
Presidente de, de certo modo, inserir estas minhas palavras neste início de discussão.

O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Marques Júnior, se me é permitido, também me associaria à homenagem que acabou de fazer.
O Sr. Deputado Luís Pita Ameixa inscreveu-se para intervir mas, por uma questão de alternância e uma vez que há Deputados de vários partidos inscritos, daria a palavra, agora, ao Sr. Deputado Guilherme Silva e, em seguida, ao Sr. Deputado Luís Pita Ameixa.
Faça favor, Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, no início formal destes trabalhos, já de abordagem do texto das proposta, queria cumprimentar o Sr. Presidente e, na sua pessoa, todos os membros da Comissão.
Também começava por fazer uma abordagem prévia, associando-me aos cumprimentos e saudações do Sr. Deputado Marques Júnior, mas tornado essa homenagem extensível aos Constituintes das revisões da Constituição, que me parecem merecer também esse preito de homenagem, porque as revisões têm permitido uma actualização e uma evolução que, se não tivesse ocorrido, não permitiria que a nossa sociedade funcionasse nos moldes modernos e de abertura que hoje a caracterizam.
Relativamente às duas propostas que estão aqui em discussão, uma do CDS-PP e outra do Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, uma primeira nota de autonomia ao texto do Sr. Deputado José Manuel Rodrigues.
Enquanto no texto do CDS-PP se diz que «É eliminado o preâmbulo da Constituição da República Portuguesa», no do Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, nesta nossa simplificação insular, diz-se apenas que «É eliminado o preâmbulo». Portanto, esta é a diferença entre a proposta do CDS nacional e a que subscreve o Deputado José Manuel Rodrigues.
Foi tudo dito relativamente aos argumentos de eliminação do preâmbulo, designadamente o facto de ser um documento datado e ultrapassado. Não fazemos disto uma questão, o preâmbulo não tem alcance normativo e, portanto, não nos perturba que subsista ou que seja eliminado na medida em que não afecta o conteúdo constitucional e o alcance das normas constitucionais.
Já defendemos que poderíamos, porventura, conciliar o preâmbulo com um pós-preâmbulo que fizesse o registo da evolução constitucional nas diferentes revisões, texto que poderia ser actualizado em função das revisões que se fossem fazendo. Ou seja, quem quisesse ter uma nota sobre o texto constitucional devidamente actualizada teria esse registo através do preâmbulo. Aliás, numa Constituição anotada e publicada pelo Dr. Luís Marques Mendes, a propósito da revisão de 1997, há um texto notável e muito bem feito, uma nota introdutória do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, em que ele faz, de certo modo, a síntese da evolução constitucional e que podia ser um texto inspirador de uma solução desse tipo.
Do meu ponto de vista, esta fórmula conciliaria o respeito por aqueles que defendem, por razões históricas, a manutenção do preâmbulo e supriria a consequência da desactualização do preâmbulo relativamente à evolução que o texto constitucional registou. Mas, como disse, para o PSD, esta não é uma questão decisiva e, portanto, não temos aqui uma defesa de retirada ou de manutenção do preâmbulo, porque não é isso que é essencial nesta revisão constitucional.

O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Guilherme Silva, ao fazer uma homenagem aos participantes nas revisões constitucionais, de certa forma, faz um elogio em causa própria, porque, tanto quanto me recordo, o Sr. Deputado Guilherme Silva»

O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, quero dizer-lhe que estava a pensar nos outros!

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O Sr. Presidente: — » foi um participante activo em seis dos sete processos de revisão constitucional, não contando com o processo de 1994, que não chegou ao fim! Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Pita Ameixa.

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, queria, em primeiro lugar, saudar todos, muito em particular o nosso colega Marques Júnior, porque penso que a intervenção que fez foi muito a propósito, uma vez que estamos a discutir o preâmbulo, porque ele próprio constitui uma homenagem ao 25 de Abril, de que o nosso colega Marques Júnior foi participante directo, activo e pessoal, como sabem.
Portanto, isto não estava combinado mas ajuda-nos a justificar a nossa posição acerca do preâmbulo e do valor que ele tem, que é um valor de natureza histórica, evidentemente, não tendo valor dispositivo nem, do nosso ponto de vista, fazendo parte da Constituição, ao contrário do que disse o Sr. Deputado Telmo Correia.
Naturalmente, respeitamos as opiniões que foram expendidas, em particular as dos proponentes da eliminação, mas, com o devido respeito, não concordamos com elas.
O preâmbulo é um texto introdutório prévio à Constituição, que justifica o poder originário constituinte daqueles que a fizeram e que tiveram esse poder na sequência da Revolução do 25 de Abril e das eleições constituintes de 1975.
Entendemos que as revisões constitucionais, e esta também, se devem justificar por si próprias, devem ter a sua própria justificação, não se procurando mexer nas justificações de outros momentos, como foi o momento originário constituinte.
Todos estaremos de acordo em que a passagem do tempo cria a necessidade de actualizações, e essas actualizações têm sido feitas. Estamos agora na VIII revisão constitucional, pelo que já foram feitas sete, que fizeram as adaptações que, ao tempo, os legisladores entenderam adequadas, sem que nenhum problema ou impedimento tenha havido, designadamente por via do preâmbulo.
O preâmbulo constitui um traço de identidade histórica referida a um momento, o momento constitucional primeiro, e portanto tem esse valor genético, justifica o poder constitucional constituinte fundado no 25 de Abril, o ânimo do legislador e caracteriza o espírito da época, designadamente o espírito do 25 de Abril, que era algo muito falado na época e que está expresso no preâmbulo.
O preâmbulo não pertence à Constituição, não tem força dispositiva, só o articulado o tem, pelo que não prevalece contra o articulado nem para além dele.
Além disso, esta revisão constitucional, como todas, não sendo uma revolução constitucional, destina-se a aperfeiçoar a Constituição que temos e não a procurar encontrar para o País uma outra e nova Constituição.
Assim, este aperfeiçoamento tem de ser feito dentro dos parâmetros e das características fundamentais da Constituição que temos e não escrevendo uma outra e nova Constituição.
E tanto que o preâmbulo não faz parte da Constituição que termina dizendo «A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril, aprova e decreta a seguinte Constituição». Portanto, o preâmbulo é alguma coisa que está antes da Constituição, não tem força dispositiva, repito, e não faz parte integrante dela no sentido dispositivo.
O preâmbulo não vale por si e não gera inconstitucionalidades, ou seja, com o fundamento do que ali se diz ninguém corre o risco de gerar inconstitucionalidades, porque não tem força dispositiva, repito. E tem várias formulações para além daquela que o Deputado Telmo referiu em relação ao socialismo. Por exemplo, «Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo» também não é uma expressão actual. Esse problema foi resolvido, bem resolvido e ainda bem que o foi, mas não é motivo para, agora, querermos derrubar essa expressão.
Além disso, a expressão «socialista», tendo naturalmente o valor histórico que tem, pode ter, para aqueles que assim o entenderem, uma interpretação mais actualista, porque, no fundo, «socialista» tem uma matriz em que é muito importante e prevalecente o interesse da colectividade nacional e o interesse dos domínios sociais. Isso pode ser entendido assim.
Aliás, o CDS chegou também a dizer que era socialista, em certa altura da sua história, e lembro-me de o Presidente do CDS dessa altura ter usado uma expressão curiosa, que foi: «Hoje, todos somos um pouco ‘marchistas’«. Antigamente, usava-se esta expressão, «marchistas» — julgo que agora está um pouco em desuso — , sobretudo aqueles que falavam do lado da direita, em vez de marxistas. Certamente que se lembram de, na altura, o Professor Freitas do Amaral ter dito: «Hoje, todos somos um pouco ‘marchistas’«.

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O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Por isso é que o CDS votou contra a Constituição!

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Creio que houve uma evolução no mundo que foi muito favorável à esquerda, no sentido em que a própria direita assimilou muitos dos valores da esquerda, porque os valores da justiça, que foram sempre protagonizados pela esquerda em primeira instância, foram «bebidos» pela direita.
Hoje, vejo com muito prazer que alguns Srs. Deputados ou outros dirigentes do CDS ou do PSD, quando querem criticar alguma medida dos partidos da esquerda, nomeadamente do PS, dizem: «Eles, que até são socialistas, fazem isto». Isso faz subentender que o progresso da justiça social está de facto de um lado socialista e de esquerda.
Além disso, a terminar, queria referir que a nossa Constituição é muito clara e tira razão àquilo que disse o Sr. Deputado Telmo Correia e às preocupações dos Deputados proponentes no sentido em que o artigo 1.º refere que Portugal é uma República soberana, baseada na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e igualitária. Portanto, a vontade popular é um elemento fundamental. E o artigo 2.º acrescenta que se baseia «no pluralismo de expressão e na organização política democráticas».
Chamo ainda a atenção para o n.º 2 do artigo 43.º, que refere que «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas».
É o que diz o dispositivo constitucional.
Portanto, sendo o preâmbulo algo que está fora da Constituição dado o seu valor histórico, e não tendo ele valor dispositivo, não vemos interesse em que ele deva ser derrubado, como as duas propostas do CDS advogam. Aliás, o CDS aparece sozinho a fazer essa proposta, o que já é algo de significativo, uma vez que o CDS ç um pequeno partido»

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Já é médio!

Risos.

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — » e ç ele que a faz.
Portanto, a nossa ideia é que estamos aqui para aperfeiçoar a Constituição que existe e não para mudarmos de Constituição, pelo que devemos respeitar a sua história, e esse preâmbulo é justamente um «monumento» histórico à Constituição, ao 25 de Abril, enforma aquilo que foi o querer do legislador Constituinte e que, para nós, também é o espírito do 25 de Abril, que não deve ser retirado da Constituição.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, a título preliminar, gostaria também de me associar à intervenção do Deputado Marques Júnior, saudando todos aqueles que puderam participar em processos constitucionais, ora na primeira fase do processo constituinte, ora nas sucessivas revisões constitucionais, sendo certo que, neste caso, o Deputado Marques Júnior foi também um Capitão de Abril, pertencendo ao Movimento das Forças Armadas, a que o preâmbulo da Constituição faz directa referência.
Portanto, a título preliminar, gostaria de deixar esta nota.
Em relação ao preâmbulo, ao contrário do que intuí aqui nesta conversa que estamos a ter sobre a eliminação do preâmbulo, ele é mais diverso do que parece e comporta várias dimensões que devem ser referidas.
O preâmbulo é uma referência histórica, conta um passado que deixou de existir, felizmente, dá-nos conta do que sucedeu com o 25 de Abril e, também, do que se pretende colocar dentro da própria Constituição.
Portanto, ele é, simultaneamente, uma referência histórica sobre um passado que se quis afastar, uma síntese do novo texto constitucional que estava a ser aprovado e, além do mais, no seu último parágrafo, uma fórmula de aprovação da própria Constituição.
Claro que podemos discutir o preâmbulo comparando-o com experiências de outros países. Há preâmbulos maiores e menores, há países que nem sequer têm preâmbulos nos respectivos textos constitucionais e até há

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países em que o preâmbulo é, ele próprio, parte integrante da Constituição, como é o caso da Constituição francesa.
Se a Constituição francesa não atribuísse força normativa ao preâmbulo, por exemplo, em França nem sequer havia a protecção de direitos fundamentais, porque uma boa parte do catálogo de direitos fundamentais tem referência no preâmbulo, que, por sua vez, remete para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a primeira Declaração da Revolução Francesa que passou a consagrar direitos fundamentais na Europa.
Mas é evidente que estamos em Portugal e, estando nós em Portugal, devemos interpretar o preâmbulo tal como ele é e de acordo com a nossa Constituição.
Assim, a meu ver, o preâmbulo faz parte da Constituição. Não é pelo facto de se dizer que a Constituição começa «já a seguir» que ele não faz parte da Constituição, porque em muitas leis encontramos a mesma fórmula, ou seja, que «a Assembleia da República, ao abrigo das suas competências, aprova o seguinte Código Penal», por exemplo, e não vamos dizer que o preâmbulo de um Código Penal não faz parte desse Código, porque faz! Portanto, o problema não é ele fazer ou não parte da Constituição, o problema é o seu conteúdo e saber se o seu conteúdo está ou não conforme ao articulado da Constituição, sendo certo que, nestas sete revisões que aconteceram, o conteúdo do texto constitucional foi mudando consideravelmente em alguns dos seus aspectos.
Mas creio que neste ponto talvez fosse importante saber — e deixo esta pergunta aos dois proponentes, ao CDS e ao Deputado José Manuel Rodrigues — , se a intenção de eliminação do preâmbulo é mesmo uma intenção de o eliminar totalmente ou se é apenas uma intenção de eliminação de algumas das suas palavras.
Ouvi dizer, da parte dos Srs. Deputados, que o preâmbulo está desfasado da sua história, que não corresponde, de facto, àquilo que está na Constituição, mas, depois, a justificação que foi dada foi apenas no sentido de estarem preocupados com a frase «abrir caminho para uma sociedade socialista». Não sei se querem acrescentar, no primeiro parágrafo, a parte que se refere ao regime fascista, porque muitos autores até dizem que o Estado Novo não foi bem um regime fascista, foi mais suave, não directamente colado ao regime italiano, foi um regime nacional autoritário.
Portanto, a minha dúvida vai no sentido de saber se, efectivamente, pretendem a eliminação de todo o preâmbulo ou se pretendem apenas a eliminação, por aquilo que disseram, da expressão «abrir caminho para uma sociedade socialista».
É evidente que este socialismo, mesmo podendo ter diferentes interpretações — e concordo com essa eliminação — , não é consensual entre os portugueses. Mesmo que seja um socialismo à portuguesa, seja isso o que for (e não sei o que é!, certamente que uma constituição não pode ficar refém e ser capturada por uma ideologia política específica, seja ele um socialismo mais suave, à portuguesa, seja ele um socialismo chinês, soviético, jugoslavo ou ex-jugoslavo, ou seja aquilo que for. Parece-me sempre preocupante manter uma frase no preâmbulo de que vamos a caminho de uma sociedade socialista.
Aliás, o preâmbulo também tem o seu lado simbólico e, sobretudo, o seu lado de marketing. Ora, um investidor que queira investir em Portugal e queira saber qual é o seu regime jurídico deve começar por ler a Constituição, que é o «bilhete de identidade» de um país, e a certa altura vê que, afinal, Portugal está a caminho de uma sociedade socialista. Não sei o que esse investidor vai pensar do País em que vai investir o seu dinheiro, mas é natural que apanhe um susto e desista rapidamente de investir! Mas, Srs. Deputados Telmo Correia e José Manuel Rodrigues, deixo-vos esta dúvida sobre se a eliminação é, de facto, total ou se é apenas de uma frase. E queria saber, também, qual a interpretação que fazem sobre se o regime do Estado Novo foi verdadeiramente um regime fascista e se a manutenção dessa palavra no primeiro parágrafo do preâmbulo não vos provoca algum problema.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Pureza.

O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, esta é uma proposta recorrente por parte do Grupo Parlamentar do CDS e creio que é bom, para clarificação das coisas, que o CDS insista nela, porque isso mostra a fidelidade que o partido proponente mantém em relação ao seu voto contra a Constituição.

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O que está em causa para o CDS é o que o Sr. Deputado Telmo Correia há pouco, quando caiu alguma coisa na bancada da comunicação social, disse ser uma «intenção destruidora». Dizia o Sr. Deputado que não tinha nenhuma intenção destruidora para alçm do preâmbulo,»

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — E muito bem!

O Sr. José Manuel Pureza (BE): — » mas o CDS tem, realmente, uma «intenção destruidora« para alçm do preâmbulo e simboliza-a, justamente, nesta proposta a propósito do preâmbulo.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Olhe que não!

O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Com esta sugestão, o que o CDS propõe é que, pura e simplesmente, seja eliminada, no texto da Constituição, qualquer referência ao quadro de opções de ruptura histórica que deu origem à Constituição de 1976, ainda que a título de preâmbulo. É isto que o CDS quer, uma vez mais, simbolizar com a sua proposta.
Portanto, esta reescrita da história que está prevista na proposta do CDS merece, da nossa parte, uma total discordância. Aliás, quando apresentaram as respectivas propostas, os Srs. Deputados Telmo Correia e José Manuel Rodrigues afirmaram-se adeptos de uma retirada — e creio que a opinião agora expressa pelo Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia vai no mesmo sentido — do texto constitucional de tudo quanto lhes parece polémico.

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Não é polémico, é ideológico!

O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Não é que seja objectivamente polémico, porque o que é polémico é-o, evidentemente, para cada um em função das suas opções! Portanto, desse ponto de vista, bem percebo que há referências constitucionais que incomodam o Grupo Parlamentar do CDS, ou o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, ou o Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, mas a verdade é que retirar da Constituição tudo quanto seja polémico significa, no limite, ter como horizonte aquilo a que se poderia chamar uma Constituição mínima ou, mais do que isso, uma Constituição negativa, uma Constituição ausente e que, por isso mesmo, beneficiaria a relação de forças desequilibrada que está estabelecida no terreno das relações sociais. Em última análise, é isso que estas opiniões veiculam.
Finalmente, uma última nota, Sr. Presidente, para dizer o seguinte: os proponentes afirmam-se adeptos de que seja retirado, expurgado do texto constitucional tudo o que está ultrapassado, e nós, naturalmente, ficamos para ver se vão propor-nos que seja incluído no texto constitucional qualquer inciso que faça lembrar o liberalismo económico e o liberalismo das relações laborais do século XIX, porque isso é ser coerente com o expurgar do texto constitucional de qualquer coisa que soe a ultrapassado.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado João Oliveira.

O Sr. João Oliveira (PCP): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, queria começar por confessar que estive tentado a fazer o que o Sr. Presidente fez na revisão constitucional de 2004, quando disse, em nome do Grupo Parlamentar do PCP, que sobre esta proposta o PCP já tinha dito o que tinha a dizer e, portanto, deixava o CDS e o PSD falarem sozinhos. Estive tentado a fazê-lo, mas resolvi reforçar os argumentos que, tantas e tantas vezes, já utilizámos no combate a esta proposta em concreto, que é, utilizando a metáfora da proposta destruidora, uma proposta de dinamitação constitucional da memória, e não só da memória, porque se é verdade que o preâmbulo não tem um valor normativo, também é verdade que o valor do preâmbulo não é meramente histórico.
O preâmbulo tem um valor hermenêutico que contribui para compreender o alcance dos comandos constitucionais da perspectiva com que muitas destas normas constitucionais foram aprovadas pelos Constituintes, independentemente da subversão que tiveram, ou não, em concreto nas revisões constitucionais de que foram objecto.

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É com naturalidade e com facilidade que se compreende esta intenção do CDS de eliminar o preâmbulo, tendo o CDS tido a posição que teve na própria votação da Constituição. Obviamente, o CDS pretende limpar da memória todo o processo de luta e de resistência do povo português contra a ditadura fascista que deu origem, também, à aprovação desta Constituição da República, como muito bem está escrito no preâmbulo, nunca se tendo, aliás, o CDS conformado com a perspectiva de sociedade que a Constituição propunha.
Portanto, bem se compreende esta intenção do CDS de «dinamitar» o preâmbulo da Constituição.
Sr. Deputado Telmo Correia, queria deixar-lhe uma outra referência que tem a ver com a interpretação limitada que fez do alcance do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa. De facto, se é verdade que no preâmbulo da Constituição se afirma, claramente, a intenção de abrir caminho para uma sociedade socialista, também é verdade que foi por força desse objectivo estratégico que a Constituição assumia e da sua subversão pela prática concreta de vários governos constitucionais que a Constituição sofreu as «mutilações» que sofreu, podendo resultar daí alguma desconformidade entre esta afirmação do preâmbulo e o conteúdo concreto da Constituição.
É igualmente verdade, Sr. Deputado Telmo Correia, que o preâmbulo da Constituição, ainda antes da necessidade de «abrir caminho para uma sociedade socialista», «afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático». E tudo isto é afirmado, precisamente, por contraposição àquela que foi a história de repressão, de negação dos direitos dos cidadãos e de direitos políticos ao povo português naqueles 48 anos de ditadura fascista que precederam a Revolução de 25 de Abril.
Portanto, é aqui que reside o carácter fundamental deste preâmbulo, que é, inegavelmente, um carácter histórico que deve ser preservado e mantido sem ser alterado, mas também um conteúdo hermenêutico que ajuda a interpretar os princípios fundamentais de organização do Estado português, os princípios fundamentais da democracia portuguesa nas suas várias dimensões política, económica, cultural e social.
No entender do PCP, o preâmbulo deve ser mantido porque dá, de facto, uma perspectiva mais ampla do texto constitucional.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, queria também, em nome de Os Verdes, pronunciar-me sobre esta proposta recorrente do CDS, e agora também do Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, que por acaso tambçm ç do CDS»

O Sr. José Manuel Rodrigues (CDS-PP): — Não é por acaso!

Risos.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): — » para dizer o seguinte: o preâmbulo da Constituição da República Portuguesa é uma mensagem da Assembleia Constituinte e, Sr. Deputado Marques Júnior, não haverá pior maneira de prestar uma homenagem à Assembleia Constituinte do que erradicar, de vez, a mensagem que nos deixaram aquando da criação e construção da Constituição da República Portuguesa, porque é este preâmbulo que nos enquadra no texto que vamos ler a seguir.
É este preâmbulo que nos diz que rebentámos com o regime fascista (chamem-lhe os nomes que quiserem, mas foi isso que o povo português sofreu durante 48 anos); é este preâmbulo que nos diz que a ruptura com esse regime se deu com a Revolução de 25 de Abril de 1974; e é este preâmbulo que nos diz que foi criada uma Assembleia Constituinte que, no dia 2 de Abril de 1976, votou esta Constituição, uma Constituição que tem sofrido processos de alteração, mas que é a Constituição de 1976.
Já aqui foi dito — e Os Verdes concordam com isso, naturalmente — que o preâmbulo não tem valor de normativo constitucional, mas ele tem uma importância fulcral: ele sustenta, relata-nos a base, o enquadramento temporal e local desta Constituição.

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De modo que só queremos reafirmar o que, provavelmente, já teremos dito n vezes aquando da apresentação desta proposta por parte do CDS noutras revisões constitucionais, isto é, que repudiamos completamente esta proposta. De resto, não é surpresa, pois não, Sr. Deputado Telmo Correia?

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Não, de todo! Surpresa seria o contrário!

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): — Exactamente!

O Sr. Presidente: — Tem agora a palavra o Sr. Deputado Mota Amaral.

O Sr. Mota Amaral (PSD): — Sr. Presidente, julgo que, dos presentes, fui o único que votei este texto e, portanto, subscrevo-o. E não me causa qualquer problema o seu conteúdo, nem na altura nem hoje, porque o texto tem, ao longo da sua redacção, um sujeito: o sujeito destas frases é a Assembleia Constituinte.
Portanto, a Assembleia Constituinte votou, no dia 2 de Abril de 1976, a Constituição, incluindo esse texto.
Desde logo, não faz qualquer sentido alterar o que a Assembleia Constituinte declarou.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): — Claro!

O Sr. Mota Amaral (PSD): — Ou seja, fazer alterações pontuais, riscar palavras daqui ou tirar dali não faz sentido, porque o que a Assembleia Constituinte votou foi isto, no quadro em que decorreram os seus trabalhos conforme a maioria nela existente e conforme o sentido exacto dos responsáveis políticos da época, nos quais, obviamente, o PSD também se inscrevia.
Mesmo a declaração, que tanto choca alguns, «de abrir caminho para uma sociedade socialista» está balizada na afirmação da garantia da democracia. Não se trata «de abrir caminho para uma sociedade socialista» imposta pela força, nem por sombras! A base fundamental do regime instituído pela Constituição é a democracia, o pluralismo e expressamente se diz que esta meta de uma sociedade, que, afinal, está traduzida abaixo como sendo um país «mais justo e mais fraterno», se irá realizar «no respeito da vontade do povo português».
A Assembleia Constituinte, claramente, assumiu uma realidade que é óbvia: a de que a história avança e as posições do povo português, manifestamente, também se modificam.
Portanto, dentro destas condições, o que me parece nítido é que a vontade do povo português nunca se manifestou no sentido da construção de uma sociedade socialista diferente dos moldes daquela que hoje vivemos, com a presença do Estado com capacidade para intervir na actividade económica, mas reconhecendo as virtualidades e o papel decisivo da iniciativa privada, com todas as suas consequências.
Julgo, portanto, que o preâmbulo da Constituição de 1976, votado pela Assembleia Constituinte, que é, portanto, uma responsabilidade da Assembleia Constituinte e dos Constituintes — tomo a minha parte nela, 1/250 do dito preâmbulo — , não prejudica de forma alguma, nem alguma vez foi considerado incompatível com a vontade do povo português manifestada sucessivamente, com nuances variadas, ao longo destes quase 40 anos de vigência da Constituição.
O aspecto afirmativo do preâmbulo no que toca à garantia dos direitos fundamentais, no que toca à rejeição da ditadura, no que toca ao abrir para Portugal, finalmente, de uma democracia pluralista em toda a sua amplitude, sobretudo na base fundamental dela, que é o direito de sufrágio, que nunca existiu antes em Portugal (há, de facto, aqui uma fundação de um regime democrático numa plenitude como nunca tinha existido anteriormente no nosso País), é daqueles conteúdos que, na minha opinião pessoal, devemos manter e respeitar, respeitando assim também a Assembleia Constituinte e o seu trabalho, tão fundamental para a instauração da democracia no nosso País.

O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Mota Amaral é o único Deputado Constituinte que faz parte desta Comissão e, portanto, é o único dos presentes que é destinatário directo da homenagem — justa, aliás — que todos nós aqui fizemos. E, naturalmente, a sua participação honra esta Comissão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.

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O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, quase me sinto obrigado a pedir desculpa por ter pedido a palavra entretanto, isto depois da intervenção o Sr. Deputado Mota Amaral, que é praticamente definitiva em relação a este tema. Mas queria deixar apenas duas ou três notas sobre questões que foram levantadas por outros Deputados.
A posição do Partido Socialista está expressa em relação ao preâmbulo, mas há dois ou três aspectos que entendo que deveriam ser clarificados da nossa parte, correspondendo, aliás, a intervenções que aqui foram feitas.
Em primeiro lugar, creio que não devíamos exagerar em relação à importância do preâmbulo.
Obviamente, o preâmbulo tem natureza histórica, e a história não se muda nem se elimina, por isso defendemos que ele não deve ser mudado nem eliminado. Mas não creio que seja possível levarmos a discussão ao ponto de exagerar sobre a sua importância, como fez, por exemplo, o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, que dizia que os investidores iriam deixar de investir por causa do preâmbulo! Já ouvi falar que, talvez, o sistema fiscal afaste alguns, ou o sistema de justiça e as questões laborais, mas nunca me pareceu que alguma vez o preâmbulo fizesse afastar, ou hesitar sequer, os investidores em relação ao nosso País.
Do mesmo modo, houve exagero — talvez contrário — do Sr. Deputado João Oliveira, quando falou aqui do teor hermenêutico do preâmbulo. Essa tese do teor hermenêutico do preâmbulo, que já teve algum fulgor no passado, hoje em dia não tem qualquer colagem à realidade. O preâmbulo não tem sequer teor algum hermenêutico, em meu entender, tem simplesmente um significado histórico e não exerce qualquer contributo no que diz respeito à interpretação da Constituição.
Finalmente, vou pronunciar-me sobre uma sugestão aqui deixada pelo Sr. Deputado Guilherme Silva, a de pensarmos, eventualmente, num pós-preâmbulo ou num novo preâmbulo. Vejo essa proposta com alguma dificuldade, por um lado, porque julgo que não conseguiríamos fazer um resumo da Constituição — como é óbvio, teríamos imensa dificuldade — e, por outro lado, porque creio que esse preâmbulo não conseguiria preencher qualquer necessidade que exista actualmente.
Temos uma Constituição, essa Constituição é passível de interpretação pelos intérpretes da Constituição, não necessitamos de uma ajuda preambular e, portanto, esse novo preâmbulo não exerceria qualquer papel histórico, como exerce o actual preâmbulo. Penso, por isso, que nos meteríamos aqui numa carga de trabalhos imensa e, por muito alento que tenha o Professor Marcelo Rebelo de Sousa em fazer uma sugestão de um resumo da Constituição, cada um de nós teria tendência a fazer um resumo diferente.
Não creio que pudéssemos chegar aqui a um acordo sobre isso e, além de mais, teríamos um trabalho que seria absolutamente desnecessário, porque não contribuiria para melhorar a interpretação da Constituição.

O Sr. Presidente: — Neste momento, está inscrito o Sr. Deputado Telmo Correia, a quem dou a palavra.

O Sr. Osvaldo Castro (PS): — É para defender a honra da bancada!

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — A honra da bancada não precisa de defesa neste caso, Sr. Deputado Osvaldo Castro, de todo. Antes pelo contrário! Sr. Presidente, como a proposta que aqui foi discutida e invocada pelos vários partidos, até com versões diferentes nalguns casos, é nossa, cabe-me esclarecer alguns pontos e procurar responder a algumas perguntas que aqui foram feitas.
Começaria pelo Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, que fez uma pergunta muito interessante ainda que relativamente fácil de responder, e se não o fizemos logo na intervenção inicial foi porque quisemos poupar à Comissão uma longa prelecção sobre uma matéria em que a nossa posição é conhecida e não carece, do meu ponto de vista, de mais demonstração do que aquela que foi feita.
A pergunta interessante é se queremos eliminar apenas uma frase ou o preâmbulo no seu todo. Nós escolhemos a fórmula mais extensa, na versão do CDS (que o Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, pelo seu punho, escreveu de forma mais sintética e, eventualmente, até mais clara), que é a eliminação do preâmbulo.
E porquê? Recentemente, estivemos num debate — o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia não assistiu a esse debate, organizou um outro onde, por acaso, não pude estar — em que o Professor Jorge Miranda dizia que o

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preâmbulo devia ser alterado, porque está completamente desactualizado, não corresponde ao que é a Constituição hoje em dia e, portanto, o que devia fazer-se era reescrever o preâmbulo.
Ora, nós não concordamos com essa tese, pensamos que o preâmbulo não deve ser reescrito. O preâmbulo é um documento histórico, tem valor enquanto documento histórico e, do nosso ponto de vista, não deve fazer parte integrante do texto constitucional. Mas alterá-lo é, de alguma forma, desvirtuar, mexer em algo que, naquela altura, no contexto em que foi feito, tem um valor histórico, literário e até, nalguma medida, poético, se assim quisermos.
Como compreenderá, Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, não entro na discussão sobre a qualificação do regime que caiu, e em boa hora que caiu — digo isto para que não fiquem dúvidas e não possam ser sempre assacadas as velhas referências da esquerda mais à esquerda sobre as convicções do CDS — , designadamente qualificando-o como regime fascista ou não fascista. Essa é uma matéria que deixo aos teóricos, aos professores e a quem quiser.
Não vou entrar aqui nessa discussão, muito menos agastar, de alguma forma, os meus amigos do Partido Comunista e entrar numa discussão sobre se o Partido Comunista Português é comunista, social-fascista ou seja o que for» Essa ç uma discussão que, neste momento, não nos interessa.

O Sr. João Oliveira (PCP): — Deixa essa discussão para o MRPP!»

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Exactamente! Algumas pessoas do MRPP entenderiam que assim era, mas não vou entrar nessa discussão.
Os Constituintes entenderam que o regime que caiu em 25 de Abril de 1974 era um regime fascista — deixemo-los ficar com essa qualificação. O resto tem interesse meramente teórico, e não é o interesse teórico que aqui me preocupa.
Perguntam-me por que é que sublinhei — e com isto respondo, também, ao Sr. Deputado do PCP — uma frase e não outros aspectos do preâmbulo. Devo responder que sublinhei um aspecto que merece a nossa frontal discordância, que é esta ideia de que Portugal está a «abrir caminho para uma sociedade socialista» ou que devemos estar a construir uma sociedade socialista. Não nos revemos nesta frase. Revemo-nos na democracia, na independência nacional» Em tudo o resto revemo-nos e, portanto, não vamos falar daquilo em que nos revemos.
A primeira frase não tem discussão: «A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português (»), derrubou o regime fascista«. Independentemente da qualificação do regime, isto é um facto, um facto histórico. Quer dizer, não vamos discutir se foi ou não assim, porque toda a gente sabe que foi e, portanto, não tem discussão possível. Agora, que estejamos a construir uma sociedade socialista» Nós não só achamos que não estamos como não devemos estar! E, provavelmente, o Sr.
Presidente concordará comigo em relação à interpretação do que está a ser a condução do País do ponto de vista da construção da sociedade socialista!»

O Sr. Presidente: — Sr. Deputado, concordo com a primeira parte: não estamos, de facto!

Risos.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Não estamos, de facto. Exactamente!

O Sr. Presidente: — Já quanto ao que eu gostaria ou não»

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Na minha opinião, devíamos estar menos ainda!

O Sr. Presidente: — Aí já discordaremos, como o Sr. Deputado sabe!

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Aí já discordaremos, como é evidente. Mas ambos concordamos que não estamos a construir uma sociedade socialista.

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Em relação às questões levantadas pelo Sr. Deputado Mota Amaral, que o PSD poderá acompanhar ou não — tenho ideia de que, nalgumas revisões, já terá acompanhado esta nossa posição, designadamente em termos de sentido de voto — , gostaria de dizer o seguinte: sem pôr em causa a longa experiência parlamentar e constitucional do Sr. Deputado Mota Amaral, sublinharia que, em nome do CDS, temos de refazer um pouco a «conta» que fez, porque o Sr. Deputado Mota Amaral não tem 1/250 da responsabilidade da decisão de aprovação do preâmbulo, porque os Deputados Constituintes do CDS, a quem presto particular homenagem porque foi uma atitude muito corajosa, votaram contra a Constituição de 1976, incluindo o preâmbulo.
Portanto, tem de, primeiro, expurgar os votos dos Deputados do CDS e só o que sobra é que tem de ser repartido. Não será 1/250» Temos de retirar os 16 Deputados do CDS e repartir o resto pelos Deputados que votaram a favor da Constituição.
Creio que foi o Sr. Deputado José Manuel Pureza que disse — e estou de acordo com ele nesse aspecto em concreto — que a nossa posição é coerente: nós não concordámos com a Constituição de 1976, não concordámos com o texto original nem com o preâmbulo, e continuamos a não concordar.
O que verificamos é que, se essa expressão poderia fazer sentido em relação à Constituição de 1976, hoje ela faz cada vez menos sentido. De facto, no espírito da Constituição de 1976, uma Constituição pósrevolucionária, estava, nalguma medida, a ideia objectiva de construção de uma sociedade socialista num País que era muito à esquerda, Sr. Deputado Luís Pita Ameixa. Aliás, se mudarmos de posição, o Sr. Deputado pode recordar alguns textos do CDS e eu alguns do PS que, hoje, o BE e o PCP não defenderiam nesta Assembleia, tal era o conteúdo esquerdista do PS naquela altura! Os partidos políticos mudam de posição, evoluem e não temos de ter problema algum com isso, porque os partidos tiveram, ao longo da sua história, posições diferentes em relação a várias matérias.
O que digo, hoje, é que esta não é uma Constituição que esteja a «abrir caminho para uma sociedade socialista». O País pode desejar uma sociedade socialista ou uma sociedade não socialista, mas não quero a expressão «socialismo» na Constituição. Também não encontro, em lado algum, o liberalismo clássico enquanto expressão na Constituição, e se ele estivesse deveria ser retirado igualmente, porque a Constituição deve ser, de facto, um traço de união e são os portugueses que, em cada momento, através do seu voto, devem decidir se querem um País mais à esquerda, mais à direita, mais ao centro, isto de acordo com um projecto concreto, democrático, num determinado momento da vida do País.
Além de mais, no debate aqui travado, há algo muito curioso que registo: tirando os partidos que estão mais ligados, histórica e evocativamente, ao processo revolucionário e ao próprio texto original da Constituição, como é o caso do PCP — o BE é mais recente enquanto partido com assento parlamentar — , que, desde a primeira revisão, tanto quanto me lembro (que me corrijam o PCP e Os Verdes se estou a errar), tem votado contra a maior parte do sentido dos processos de revisão constitucional, que é natural que defendam o texto na sua versão original e para quem a Constituição de 1976, na sua letra original, seria seguramente melhor do que este texto que temos hoje em dia, tirando esses, dizia, nenhum dos outros partidos aqui veio dizer: «Esta expressão está correcta, nós vamos construir uma sociedade socialista, o texto da Constituição é assim mesmo, o preâmbulo está muito bem, identificamo-nos muito com o preâmbulo». Não! O que vieram dizer foi: «Deixem estar, é histórico, não estamos a construir, mas» Enfim, ao mesmo tempo, ç uma democracia»«. Acrescentaram, ainda: «A hermenêutica já não tem importância e, portanto, não há qualquer tipo de interpretação hermenêutica sobre esta matéria, isso já não tem importância, já não conta.
Está lá, mas não ç para levar a sçrio«. E por aí fora» É o que dizem, em vez de defenderem o preâmbulo! Ora, é por isso mesmo que propomos a eliminação do preâmbulo. Se não defendemos, se não nos identificamos com esta ideia, se Portugal não tem de ser uma sociedade socialista» E se, nalguma medida, ç uma sociedade socialista — nós, CDS, estamos à vontade para o dizer — , reconheçamos que, provavelmente, essa sociedade socialista está um bocadinho à beira da falência! Mas essa já é outra questão, a do que andámos a fazer desde 1976 até hoje.
Diria o seguinte: se o preâmbulo é uma referência, um documento histórico, então deve ser lido e conhecido exactamente nos termos em que são conhecidos os documentos dos revolucionários franceses ou os documentos dos revolucionários americanos.
Alguém falou de uma Constituição minimalista, creio que foi o Sr. Deputado José Manuel Pureza. É claro que defendo uma Constituição minimalista!

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O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Claro!

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Uma Constituição feita por mim seria uma Constituição minimalista — enfim, feita por mim não, pois não tenho essa presunção, mas em cuja feitura eu participasse — , como é, de resto, nos países em que nos revemos e que até, atrever-me-ia a dizer, são países bastante mais desenvolvidos do que o nosso em variados aspectos e pontos de vista.
Portanto, esse seria, de facto, o meu modelo, a minha ideia de Constituição.
O preâmbulo vale como documento histórico, vale como respeito pelos Constituintes, pelos que votaram a favor e pelos (do CDS) que votaram contra, vale como respeito pelo Movimento das Forças Armadas, pelo 25 de Abril, e por aí fora. Como valor histórico que tem, como «monumento«, como alguçm lhe chamou aqui» Enfim, normalmente guardamos os monumentos nos museus e há, inclusivamente, museus dedicados a esta matéria. Estou a pensar, por exemplo, no Museu da República e Resistência ou no Museu da Presidência da República, onde, provavelmente, este texto poderia ficar guardado, emoldurado e para conhecimento dos portugueses.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, gostaria que ficasse registado que as minhas considerações são feitas a título pessoal. O Partido Social Democrata tomará, depois, uma posição oficial sobre estas diferentes matérias. Mas creio que é muito importante podermos discutir e esgrimir aqui argumentos, a benefício da discussão e de uma solução que seja melhor.
Apenas queria deixar três notas.
A primeira tem a ver com a ideia, já aqui referida, da inalterabilidade ou intocabilidade dos preâmbulos constitucionais. Não é essa a experiência que tenho de lidar com muitos textos constitucionais em diferentes países — e não me levem a mal que refira essa minha experiência pessoal. De facto, conheço muitas constituições que foram sendo alteradas não só nos seus articulados como, também, nos seus preâmbulos e, portanto, não me parece muito procedente esse argumento de que há uma parte, uma «caixa» que está na Constituição que nunca pode ser alterada. Esse não me parece ser um argumento procedente, sinceramente.
Em segundo lugar, faz-me impressão ter uma Constituição vigente com um preâmbulo não vigente, com um preâmbulo de peça de museu ou de antiquário. Até gosto muito de ir a antiquários e de visitar museus, mas não gostaria que o preâmbulo da Constituição do meu país se tornasse numa peça de museu.
Portanto, um preâmbulo que se diz que pertence à história ou que traduziu uma vontade que já não tem hoje reflexo num texto que vigora provoca, realmente, uma certa «esquizofrenia» constitucional, a de o preâmbulo dizer uma coisa e o texto constitucional que se segue dizer o seu contrário! Creio que isto só provoca confusão nas pessoas.
O preâmbulo que apresenta um texto constitucional, como em qualquer livro ou em qualquer ópera, deve referir com verdade o que vai passar-se a seguir e não, propriamente»

O Sr. João Oliveira (PCP): — A solução não é mudar o preâmbulo!

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Para o PCP, a solução seria ter a versão originária da Constituição de 1976. Isso já sabemos, não é novidade.
O que interessa é ter, em cada momento, uma coerência dentro do texto constitucional, e não me parece válido o argumento de que o texto do preâmbulo deve manter-se tal como está porque tem um valor histórico, sobretudo quando se refere a um texto que está vigente. A Constituição de 1976 não é uma Constituição histórica, é uma Constituição vigente e em força, que limita o poder político do Estado português.
Uma outra nota ainda em relação ao que disse o Sr. Deputado José Manuel Pureza, referindo-se com veemência à defesa da manutenção do socialismo no preâmbulo, tal como está redigido na Constituição, no sentido de apelar a todos para «abrir caminho para uma sociedade socialista».
Logo a primeira dúvida é a de saber que socialismo é esse. É um socialismo à moda soviética, à moda africana, à moda chinesa ou albanesa, de outros tempos? Portanto, desde logo, há o problema de saber o que é o socialismo.

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As palavras não são vazias, têm um conteúdo e, pelo que sei, o socialismo significa um partido único, significa a propriedade colectiva dos meios de produção, significa que não há propriedade privada da terra, das empresas, significa que não há mercado, que os preços são definidos pelo plano quinquenal, bem como os salários e a produção, significa que não há separação de poderes, que os tribunais não são independentes mas, sim, uma correia de transmissão de um poder legislativo, poder legislativo que se distribui por diferentes órgãos, significa que existe um partido paralelo à estrutura de Estado. Isto é o socialismo e eu pergunto: é isto que o Sr. Deputado José Manuel Pureza quer manter na Constituição? O Sr. Deputado também diz que confundo socialismo com questões polémicas. É evidente que o seu socialismo é muito polémico — eu não o aceito e a maioria dos portugueses também não!

O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Só por ser polémico!

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Não é por ser polémico, Sr. Deputado. A questão é que a Constituição é de todos os portugueses e, se assim é, não pode ter opções que só uma minoria dos portugueses queira. Esse, sim, é que é o problema! A Constituição não é minoritária, mas, sim, consensual, por isso devemos ter o cuidado de ter na Constituição a defesa de todos os portugueses. E não é com ideias dessas que se garante uma Constituição consensual.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Rodrigues.

O Sr. José Manuel Rodrigues (CDS-PP): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, não deixa de ser curioso que quem defende a manutenção do preâmbulo na Constituição da República use os argumentos mais dispares e até, nalguns casos, contraditórios, porque a pior homenagem que pode prestar-se aos Deputados Constituintes, aos que resistiram ao cerco à Assembleia Constituinte (o que, de alguma forma, condicionou os trabalhos de elaboração da Constituição), aos Deputados que inscreveram a democracia e os direitos, liberdades e garantias nesta Constituição, é dizer, como ouvimos da parte do Partido Socialista, que o preâmbulo não é importante, não tem valor normativo, mas deve manter-se porque é uma espécie de monumento histórico.
Ora, Sr. Presidente e Srs. Deputados, nesta matéria, o CDS-PP é coerente com o seu voto contra em 1976. E, respondendo um pouco à questão levantada pelo Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, a minha proposta é a de que se elimine o preâmbulo, porque, eventualmente, será difícil consensualizar hoje um novo preâmbulo para esta Constituição.
A verdade é que a Constituição já mudou muitas vezes, com as sucessivas revisões, e o preâmbulo mantém-se praticamente intacto, não correspondendo os preceitos constitucionais aos princípios que estão inscritos no preâmbulo — é o que sucede com a frase «abrir caminho para uma sociedade socialista».
A esquerda mais à esquerda do nosso Parlamento tem aqui uma posição extremamente conservadora, porque tanto o PCP como o BE estão sempre a favor do que está, não querem evoluir. Por vontade do PCP (e do BE), hoje ainda estaríamos com o texto da Lei Fundamental de 1976. E não deixa de ser curioso o facto de o PCP se contentar sempre com o texto da Lei Fundamental da última revisão constitucional, o qual votou contra! Os direitos e liberdades estão garantidos nos preceitos e nos artigos constitucionais e não no preâmbulo que nós queremos eliminar, como é óbvio.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Júnior.

O Sr. Marques Júnior (PS): — Sr. Presidente, o Partido Socialista já tomou posição nesta matéria, mas gostaria de falar a título pessoal relativamente a esta e outras matérias.
Ao fazermos esta discussão, até parece que, às vezes, não lemos o que está no preâmbulo. Chamava a atenção para as intervenções dos Srs. Deputados Mota Amaral e Jorge Bacelar Gouveia, porque não se faz referência no preâmbulo ao Estado socialista. Fala-se numa sociedade socialista e — muito importante! — no

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respeito da vontade do povo português. Estão aí inscritos os princípios básicos de um Estado de direito democrático e esses são elementos essenciais e enformam toda a Constituição.
Mesmo o problema da construção do socialismo deve ser balizado, perspectivado exactamente nesse quadro de valores que está referenciado no preâmbulo. Esse quadro de valores inclui, repito, «a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático»«

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Até aí está tudo bem!

O Sr. Marques Júnior (PS): — «» e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português». Efectivamente, temos de ler o preâmbulo, não podemos agarrar numa parte e fazer dessa parte «bandeira» para descaracterizar o essencial do próprio preâmbulo! Devo acrescentar o seguinte: não presto aos Constituintes uma homenagem só do ponto de vista formal, é uma homenagem sentida relativamente à inteligência com que o próprio preâmbulo está concebido, porque, apesar de ser datado, ele pode ser considerado pelos Srs. Deputados, mais à direita ou mais à esquerda, como um preâmbulo que não viola qualquer questão de princípio, porque, repito, mesmo a sociedade socialista é vista da perspectiva da vontade do povo português. Só se ela se concretizasse é que essa sociedade podia construir-se.
Os senhores não estão contra isso, ou estão?

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Eu estou!

O Sr. Marques Júnior (PS): — Estão contra a vontade do povo português?

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Estou contra a sociedade socialista!

O Sr. Marques Júnior (PS): — Sr. Deputado, não é isso que está em causa, nem é isso que estou a dizer! Estou a dizer que essa sociedade a construir, seja ela qual for, é de acordo com a vontade do povo português.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Mas o povo português não quer!

O Sr. Marques Júnior (PS): — Então, se o povo português não quer, não há sociedade socialista! Efectivamente, apesar do que diz o Sr. Deputado Telmo Correia, que considero que apresenta os argumentos de uma forma inteligente e correcta — aspecto que sublinho — e não de uma forma revanchista ou sectária, penso que o CDS tem uma ideia pré-concebida relativamente ao preâmbulo, que vem do tempo de 1976, quando votou contra. Portanto, essa coerência limita e restringe a capacidade do CDS em analisar objectivamente o preâmbulo.
Objectivamente, em que é que afecta a nossa história e a nossa Constituição o facto de termos um preâmbulo datado, que corresponde a um momento histórico? Não afecta em nada!

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Pita Ameixa.

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, queria apenas deixar duas ou três notas.
A primeira é para sublinhar a intervenção do Sr. Deputado Mota Amaral, que penso que foi muito esclarecedora e repôs uma certa dignidade na forma de olharmos para a Constituição, os Constituintes e o preâmbulo da Constituição, que todos devemos ter em conta.
Em segundo lugar, gostaria de dizer o seguinte: a expressão «socialista», naturalmente, tem de ser interpretada de acordo com o que foi estabelecido na altura, mas também deve ter uma visão actualista. E, de forma alguma, nem no momento em que foi escrita, pretendia o que o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia aqui disse, porque a vitória por via, sobretudo, eleitoral de uma democracia plena em nada»

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O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Então, pode ser um não-socialismo?

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Historicamente, podemos dizer que ela foi uma vitória constitucional contrária àquele modelo que V. Ex.ª apresentou. Portanto, não creio que tenha um pingo de razão no que disse.
Tenho uma formação base e teórica, posso dizê-lo até com muita honra, de natureza marxista e revejo-me nisso. Considero que só há socialismo em democracia com democracia.

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Marx não dizia isso!

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Mas admito que esta expressão possa, para certas pessoas, ter outro sentido, outra interpretação.
Por exemplo, quando falamos em socialismo, isso pode querer dizer que»

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Essa é uma discussão interessante para os socialistas, mas não para a Constituição!

O Sr. Ricardo Rodrigues (PS): — Quando o CDS tiver dois terços dos Deputados, retira!

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — » há uma preponderância do social, da sociedade sobre o individual, sem postergar os direitos individuais, a iniciativa individual, o mercado, o Estado de direito, porque isso é fundamental.
Temos de pensar que o poder político, o Estado, a organização da sociedade tem de ser preponderante quando conflitua com interesses individuais. No fundo, isso pode ser entendido como um socialismo.
Cada um, à sua maneira, pode ter uma visão actualista desta expressão.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Cada um pode ser socialista à sua maneira...!

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Há um ponto em que não podemos ceder na organização democrática do Estado português: o interesse individual não pode ultrapassar nem ser preponderante perante os interesses colectivos. Isso não aceitamos, nem no preâmbulo nem no articulado — só se houver uma ruptura. Mas penso que também não é esse o vosso sentimento, pelo que conheço do que tem sido a expressão política, a proposta legislativa do CDS.
Julgo que o CDS também é um partido que, no confronto entre o individual e o colectivo, defende que este deve ser preponderante em relação aos interesses individuais. Foi nesse sentido que quis exprimir-me.
Finalmente, penso que terá havido aqui um «tiro ao lado» da parte do CDS, porque talvez desejasse, porventura com algum propósito, escrever um preâmbulo para a lei de revisão constitucional. O CDS podia ter pensado nisso»

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — O CDS fala por si próprio com grande facilidade! O Sr. Deputado argumenta o que o PS quer, o que o PS acha e nós falamos pelo CDS!

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Por acaso isso não é verdade! O Sr. Deputado também o diz muitas vezes. Mas, face à expressão que V. Ex.ª usou, o que parece que o CDS pretendia — é a conclusão que tiro e faço questão de a dizer — , e falhou no «tiro», era escrever ou propor um preâmbulo novo para a lei de revisão constitucional. Podia ter pensado nisso, mas não foi esse o caminho que seguiu.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Eu disse exactamente o contrário, e disse-o aqui, hoje, há alguns minutos!

O Sr. Luís Pita Ameixa (PS): — Seguiu um caminho que é errado — no qual, como vê, o CDS está isolado — e que não tem aqui aceitação geral.

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O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, antes de dar a palavra ao Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, que está inscrito, permitam-me que faça uma observação.
Também participei no debate que o Sr. Deputado Telmo Correia referiu, em que o Professor Jorge Miranda aventava a hipótese de se reescrever, de se alterar o preâmbulo, e gostaria de dizer que não estou a ver como é que seria possível fazê-lo sem afectar a matriz desta Constituição, porque há um facto que é inquestionável: apesar das suas sete revisões, continuamos a ter a Constituição de 1976.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): — Claro!

O Sr. Presidente: — Ninguém põe em causa que a Constituição foi revista, mas a Constituição é a mesma, ou seja, a identidade constitucional é a que vem de 1976 e o preâmbulo afirma exactamente isso! O preâmbulo refere-se ao 25 de Abril de 1974, ao que a Revolução restituiu aos portugueses, os direitos e liberdades fundamentais, e ainda que, no exercício desses direitos e liberdades, «os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição». E, mais à frente, a «Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno».
Sinceramente, não vejo aqui a visão caricatural do socialismo do Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia — que não de Marx, digo eu.
De facto, não vejo como poderíamos alterar o preâmbulo sem alterar a matriz identitária fundamental da Constituição. Creio que a supressão deste preâmbulo seria uma mutilação grave da nossa própria história constitucional, não apenas de uma história passada mas de uma história que se projecta no presente, no reconhecimento unânime de que a Constituição que temos é a de 1976 revista, isto é, não é uma Constituição que tenha resultado de um processo de alteração ou de transição constitucional — são revisões constitucionais feitas exactamente nos termos em que a Constituição de 1976 prevê que elas possam ser feitas.
Peço desculpa por esta minha pequena contribuição e, de imediato, dou a palavra ao Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, intervenho apenas para dar mais um pequeno contributo e registar, com agrado, a interpretação que o Sr. Presidente e o Sr. Deputado Marques Júnior dão a essa frase «abrir caminho para uma sociedade socialista». De facto, o problema é conceptual, é o de sabermos o significado exacto das palavras.
É evidente que essa indicação programática de que todos devemos caminhar, mais ou menos juntos, para uma sociedade socialista tem de ser contextualizada com o que também está no preâmbulo, que é a existência de um Estado democrático e o respeito da vontade do povo português. Mas aí, do meu ponto de vista, começamos a ter sérias dúvidas sobre o que isso significa, porque o socialismo é um conceito que tem as suas raízes na história das ideias políticas e em experiências políticas de outros países.
Portanto, quando os Constituintes o escreveram no preâmbulo não inventaram um conceito novo, foram influenciados por outras experiências que, essas sim, cunharam esse conceito de socialismo. Então, temos de saber até que ponto esse conceito é compatível com outros princípios que são incompatíveis com uma sociedade socialista, como é o caso do princípio democrático ou do princípio do Estado de direito.
É evidente que podemos chegar sempre à conclusão de que se trata de um socialismo à portuguesa, no respeito do Estado de direito e da democracia. Mas esse não é um socialismo na tradição de outras experiências, nem sequer um socialismo à portuguesa pode ser! Penso que aí se deveria corrigir o preâmbulo, porque, no fundo, o que se pretende é apelar a um Estado social, que é algo muito diferente. Um Estado social não é um Estado socialista, não é uma sociedade socialista e é evidente que esse conceito corresponderá hoje muito mais à matriz da Constituição do que propriamente a afirmação de que vamos todos a caminho de uma sociedade socialista.

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O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia, que é o último orador inscrito sobre este ponto.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, penso que a posição do CDS ficou suficientemente clara, já foi dita e redita, mas há uma pequeníssima nota que gostava de sublinhar.
Sinceramente, entendo que o debate sobre a natureza ideológica e a compreensão ideológica do que é ser marxista, do que é ser socialista, do que é ser socialista à portuguesa ou, como diria Mário Soares na época, «em liberdade», ser socialista com menos liberdade ou ser socialista seja do que for, é um debate que não me interessa! Não sou socialista, não quero saber... Não é isso que aqui está em causa.
O que está em causa é saber se a Constituição da República Portuguesa deve dizer que nós caminhamos para uma sociedade socialista, ou não, e, do nosso ponto de vista, não deve dizer. Tal como não deve dizer que caminhamos para uma sociedade liberal, ou do liberalismo, ou de outra coisa qualquer. O que deve dizer é que temos uma sociedade democrática e, de facto, socialista ou social não é a mesma coisa — ao contrário do que o Sr. Deputado Luís Pita Ameixa quis fazer crer há pouco — , tal como não é a mesma coisa ser democrata-cristão, como não é a mesma coisa ser liberal ou ser conservador, como eu sou. Cada um está no seu direito! Portanto, são identidades diferentes e não estamos aqui para fazer um curso básico de formação ideológica. Não é propriamente nossa intenção fazer um debate sobre a natureza do socialismo, os tipos de socialismo, os vários modelos de esquerda ou de direita, porque não é isso que nos interessa. O que nos interessa é que a Constituição da República Portuguesa não deve apontar o caminho de uma sociedade socialista, ponto final! É tão simples como isto.
Tudo o resto é uma discussão teórica e ideológica muito interessante, e eu já participei em inúmeros debates, ao longo da minha vida política, com gente de direita e com gente de esquerda, às vezes, sobre o que é ser de esquerda, o que é ser de direita, o que é ser socialista e o que é não ser socialista. Mas não é isso que me interessa agora! O que me interessa é ter uma Constituição que seja traço de união entre todos os portugueses e, para tanto, optámos por não reescrever este preâmbulo, por não introduzir alterações e por respeitar o seu valor, conteúdo e simbologia histórica, propondo, pura e simplesmente, a sua eliminação.
Dizem-me que o preâmbulo não faz parte da Constituição, mas se assim é, então estivemos aqui a perder uma hora e meia do nosso tempo, quando podíamos ter estado a fazer outra coisa qualquer. Se, hoje em dia, já não faz parte, não sei por que é que estivemos a discutir o preâmbulo até agora! Objectivamente, faz parte, por isso é que o estamos a discutir — e faz parte dos processos de revisão constitucional. Mas nós achamos que não deve fazer parte do texto.
Curiosamente, uns dizem que tem valor interpretativo, valor hermenêutico, que é um enquadramento fundamental da Constituição (que é a de 1976), reporta-se àquele momento histórico e, por isso, deve manterse; outros dizem que deve manter-se porque não quer dizer nada.
Portanto, o País não está a caminho de uma sociedade socialista, o País é governado por socialistas, mas isso é diferente! Não tem nada a ver uma coisa com a outra, do meu ponto de vista mal, mas essa é uma outra discussão que não aquela que estamos a ter agora. Aliás, do ponto de vista mais à minha esquerda, não é, sequer, governado de forma socialista. Mas essa é outra discussão, repito.
Os argumentos são variados, mas, seja como for, entendemos que a Constituição deve ser neutra.
Para terminar, digo mais: se, no preâmbulo, constasse «assegurar o primado do Estado de direito democrático e os direitos sociais dos portugueses» ou, então, «assegurar um Estado social de direito democrático», para nós, servia. Mas «abrir caminho para uma sociedade socialista» não serve!

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, creio que podemos dar por encerrada esta discussão sobre o preâmbulo.
Passamos, agora, à discussão das propostas que propõem a alteração do artigo 6.º (Estado unitário) da Constituição. Há três propostas, apresentadas, respectivamente, pelos Srs. Deputados do PSD eleitos pela Madeira — projecto de revisão constitucional n.º 6/XI (2.ª) — , pelos Srs. Deputados do PSD eleitos pelos Açores — projecto de revisão constitucional n.º 7/XI (2.ª) — e pelo Sr. Deputado do CDS-PP José Manuel Rodrigues — projecto de revisão constitucional n.º 10/XI (2.ª).

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Todos os projectos propõem a alteração do n.º 1 deste artigo 6.º, no sentido da eliminação da referência ao Estado unitário e da consagração do princípio da continuidade territorial.
Daria agora a palavra aos Srs. Deputados proponentes que quisessem apresentar as respectivas propostas.
Em primeiro lugar, tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva para apresentar a proposta do PSD/Madeira.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Sr. Presidente já assinalou as alterações que aqui propomos.
Não é a primeira vez que apresentamos propostas de alteração a este artigo e, no passado, propusemos que se acrescentasse «Estado unitário nacional» ao qualificativo «Estado unitário». E porquê? Porque o n.º 2 deste mesmo artigo assim identifica o Estado português quando refere que «Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio.» O Professor Jorge Miranda chama, aliás, a atenção para a circunstância de o artigo 6.º, no seu n.º 2, converter, na Constituição de 1976, os Açores e a Madeira em regiões autónomas e para as consequências que daí advêm para a qualificação do Estado português. E refere mesmo o seguinte: «Não se adoptou uma jurisdição política integral, as regiões administrativas previstas para o continente, se e quando existirem em concreto, serão, como se sabe, meras autarquias locais. Nem por isso Portugal deixa de ser hoje um Estado unitário regional, apesar de esta designação não estar expressamente consagrada na Constituição».
Como não conseguimos acolher esta proposta, de pôr a verdade na Constituição, de que Portugal é um Estado unitário regional, optámos, desta vez, por afastar a referência ao Estado unitário, que é, aliás, um qualificativo que vem da Constituição de 1911 e que tem tido uma leitura, uma interpretação e uma aplicação que entendemos equívoca e restritiva das autonomias regionais.
Sustentar, com a manutenção desta referência ao Estado unitário, uma jurisprudência constitucional restritiva das autonomias é esvaziar o sentido e o alcance do n.º 2 do próprio artigo 6.º. Desta forma, não haveria aqui referência ao Estado unitário, falando-se apenas no Estado português, pura e simplesmente, sem qualquer qualificativo. Mas é curioso que também os Professores Gomes Canotilho e Jorge Miranda, quando comentam esta disposição constitucional, referem-se a algumas preocupações e reconhecem que, no fundo, tem havido aqui uma interpretação subalternizante das autonomias políticas regionais.
Diz, por exemplo, o Professor Canotilho: «Do carácter unitário do Estado resulta ainda a imediaticidade das relações jurídicas entre o poder central e os cidadãos, não podendo existir corpos intermediários impeditivos de relações directas entre o Estado e os cidadãos. Note-se, porém, que esta imediaticidade estatal republicana não pode ser interpretada em sentido jacobino, pois é a própria Constituição que impõe o reconhecimento e garantia das autonomias regionais e da descentralização local». Ora, este alerta tem sentido, tem razão de ser, porque há, efectivamente, uma jurisprudência constitucional com este sentido jacobino e com este alcance.
Portanto, pensamos que seria um aperfeiçoamento retirarmos desta norma a referência «Estado unitário».
O princípio da continuidade territorial tem, também, alguma raiz na própria organização da União Europeia, está associado, no fundo, a preocupações de eliminação de assimetrias sociais e de igualdade de trato de todos os cidadãos, independentemente da maior ou menor distância do espaço português em relação à centralidade governativa do País, e pretende ter aqui um alcance prático que não tem tido tradução nas relações do Estado com as regiões autónomas, por exemplo.
Ainda recentemente, tivemos aquele incidente da iniciativa do Presidente do Governo Regional dos Açores de, à revelia do que resultava do Orçamento do Estado, atribuir um complemento aos funcionários da administração pública regional. Tenho dito, sobre isso, que o problema está no facto de este princípio da continuidade territorial não ter um funcionamento adequado na relação entre o Estado e as regiões autónomas, no sentido de garantir uma situação de igualdade. Isto porque, designadamente, os custos do transporte de pessoas, mercadorias e bens que chegam às regiões autónomas são superiores, o que vai reflectir-se no custo de vida dos cidadãos em geral. Apesar de já estarem previstas para os funcionários pequenas correcções em subsídios, como no de insularidade, não são o bastante para garantir uma situação de igualdade.

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Portanto, se havia que fazer alguma discriminação, deveria ter sido em sede de Orçamento do Estado, onde as restrições e os agravamentos que consagra deviam ter sido graduados de uma forma discriminada do ponto de vista positivo, em proporção moderada, mas de modo a corrigir efectivamente essa situação, porque a crise é sentida nas regiões autónomas de forma mais gravosa por razão deste diferencial de custo de vida que o não respeito por um princípio da continuidade territorial acarreta. Visamos inserir na Constituição este princípio para que tenha uma tradução efectiva e prática nas relações entre o Estado e as regiões autónomas de forma a neutralizar este tipo de consequências.
Era, no entanto, em sede de Orçamento que essa questão devia ter sido contemplada de uma forma idêntica para ambas as regiões autónomas, evitando que algumas facilidades financeiras dadas aos Açores pudessem permitir esta situação de dessolidariedade em relação ao todo nacional, que não é obviamente aceitável, mas que decorre do facto de estes princípios não terem uma efectiva realização na prática política e governativa do Estado nas suas relações com as regiões autónomas.

O Sr. Presidente: — Para apresentar a proposta dos Deputados eleitos pelo PSD/Açores, tem a palavra o Sr. Deputado Mota Amaral.

O Sr. Mota Amaral (PSD): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Cabe-me fazer a apresentação do texto referente ao artigo 6.º que consta do projecto de revisão constitucional que os Deputados do PSD/Açores apresentaram a seu tempo. Este texto é coincidente com o do artigo 6.º em vigor nalguns aspectos e é diferente noutros aspectos.
Na redacção que propomos para o artigo 6.º, recolhemos integralmente o conteúdo do n.º 2 em vigor e de alguma forma também retomamos o texto do n.º 1 na redacção que propomos para o n.º 4.
No entanto, parece-nos — e é isso que dita a nossa proposta — que convém, logo à partida, quando se trata dos princípios fundamentais da organização do Estado português, clarificar um ponto que decorre da própria Constituição, pois, na realidade, o Estado português não é um Estado unitário. Há aqui, portanto, um qualificativo que ficou por inércia. A Constituição organiza o Estado português de uma forma plural, porque prevê claramente a existência de três entidades jurídico-políticas com o seu território, a sua população, o seu poder político e, consequentemente também, o seu direito próprio. A ideia do Estado unitário é exactamente o contrário, ou seja, pressupõe um só território, sujeito a um só poder político, com o mesmo ordenamento jurídico. Não é o que se passa em Portugal presentemente.
A Constituição abriu caminho ao criar as regiões autónomas, legislação posterior permitiu que se organizassem com os seus estatutos, têm havido eleições, visto que já vamos com mais de 30 anos de funcionamento desta autonomia, e entretanto criou-se um corpo jurídico diferenciado nas duas regiões sobre a sua própria organização, mas também sobre matérias de direito material. Portanto, o que existe diferenciado nas duas regiões autónomas não é apenas um direito orgânico. Existem normas de direito material que regulam as questões no âmbito da autonomia, excluindo, evidentemente, as que correspondem à unidade nacional ou ao estado das pessoas (esta matéria não está, de forma alguma, no âmbito da autonomia e não é desejada nem corresponde às aspirações regionais) e o que decorre directamente da Constituição, como é óbvio, porque a Constituição é uma só. Quanto ao resto, há, de facto, uma pluralidade institucional e jurídica no nosso País. É isso que, com toda a clareza, pretendemos pôr na Constituição.
O Estado português não é um Estado unitário, assim como não é um Estado federal nem uma confederação de Estados. É um Estado com regiões autónomas, o que é uma forma diferente. Os estatutos das regiões autónomas têm um enquadramento constitucional peculiar, que todos bem conhecemos, pelo que não vale a pena lembrar aqui. Correspondem a leis da Assembleia da República, mas com um valor reforçado — reforçadíssimo — , são leis quase constitucionais. A legislação ordinária não se pode opor aos princípios contidos nos estatutos das regiões autónomas, podendo mesmo ser anulados os diplomas nacionais dos órgãos de soberania que contrariem os preceitos contidos nessa espécie de «subconstituições» que o próprio Parlamento aprova. Aliás, o Parlamento aprova a revisão da Constituição e, portanto, em cada versão, o próprio texto da Constituição. É por isso que digo, entre parêntesis, que o Parlamento é o poder supremo da República, porque é o órgão competente para alterar a Constituição.
«O Estado é composto pelos territórios jurídico-políticos do Continente da República, da Região Autónoma dos Açores e da Região Autónoma da Madeira.» — parece que é razoável. Às vezes, as pessoas não se

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apercebem bem, mas, na realidade, nem todas as leis que aprovamos na Assembleia da República se aplicam a todo o território nacional, existindo, de facto, uma área na qual o Parlamento legisla para o território continental da República. Não utilizo a expressão «Continente», porque penso que foi apropriada por uma cadeia de supermercados,»

Risos.

» refiro-me, portanto, ao território continental da República.
O território continental da República tem a sua organização, as suas leis próprias, os seus órgãos de governo próprios que nalguma área são órgãos de soberania e exercem competências sobre o território nacional, mas noutra área não, precisamente porque se trata de matérias que foram descentralizadas e confiadas aos órgãos de poder regional que exercem as suas competências a partir da Constituição. Portanto, nos Açores e na Madeira o Estado português também está encarregue de determinadas áreas de interesse, mas exercendo uma competência que é plena e que não pode ser questionada, como ainda há poucos dias se viu em debates realizados aqui, na Assembleia da República.
É esta questão, portanto, que me parece que convém clarificar. O facto de se manter o adjectivo «unitário» ligado ao Estado é depois utilizado pelas forças de orientação jacobina, conforme foi mencionado há pouco pelo Sr. Deputado Guilherme Silva, para dificultar a vivência prática desta autonomia que decorre da própria Constituição. Como referi, os órgãos legislativos, nalgumas matérias, têm competência para legislar em todo o território nacional, tal como a capacidade governativa do Governo da República se exerce, noutras matérias, no território continental da República e não no âmbito das regiões autónomas, que, por sua vez, participam de direito garantido pela Constituição no exercício de determinadas competências constitucionais soberanas. Este é também um ponto importante.
A amplitude da autonomia estabelecida pela Constituição veio depois a ser reforçada pelas revisões constitucionais. Não é por acaso que em todas as revisões constitucionais a questão da autonomia se reabre e que a revisão constitucional de 2004 — que não foi a última, porque houve outra revisão posterior, frustrada, sobre a questão do referendo ao tratado europeu — foi fundamentalmente sobre o regime autonómico insular.
De facto, há aqui uma dinâmica própria da construção autonómica que tem de ser reconhecida e que, de uma vez por todas, é preciso assumir como tal. Sim, senhor, existem três territórios jurídico-políticos na República portuguesa e o Estado português compreende-os, aceita-os, fazem parte da sua dinâmica e são o que lhe dá, neste momento, a sua vitalidade, a sua capacidade de afirmação e a sua dimensão plural.
Penso que a proposta que fazemos contribui para uma clarificação e uma dignificação assumidas ao nível mais alto do Estado, ou seja, ao nível constitucional, das realidades da nossa prática política e que, por isso, merece ser considerada nesta revisão da Constituição.
Também trazemos para o pórtico da Constituição um preceito que está, neste momento, no n.º 2 do artigo 225.º, que é o seguinte: «A autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania e exerce-se no quadro da Constituição.» Portanto, é preciso juntar, de certo modo, a afirmação, a dinâmica, a amplitude da autonomia, mas, por outro lado, essa autonomia é constitucional, é a solução portuguesa da realidade jurídico-política dos territórios insulares dos Açores e da Madeira, que são territórios autónomos, felizmente, para honra de Portugal e para o prestígio do nosso País.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, para apresentar a sua proposta.

O Sr. José Manuel Rodrigues (CDS-PP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta que apresento é em tudo idêntica à apresentada pelos Deputados do PSD/Madeira, até porque é fruto de um consenso largamente maioritário da Assembleia Legislativa da Madeira, numa resolução que foi aprovada no ano passado e que mereceu também o voto do CDS-PP.
O que se pretende, conforme já aqui enquadrou o Sr. Deputado Guilherme Silva, é de alguma forma ultrapassar a querela que sempre surge nas sucessivas revisões constitucionais de considerar apenas, como está na Constituição, o Estado unitário, sem atender a que o Estado tem também duas regiões autónomas e

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que, portanto, estamos perante três entidades com poder político próprio que mereciam, designadamente no caso das regiões, uma melhor clarificação no artigo 6.º, que se refere à estrutura do Estado.
Consagra-se também, quer na proposta dos Deputados do PSD/Madeira quer na que apresentei, o princípio da continuidade territorial que já está, aliás, plasmado nos estatutos político-administrativos das regiões autónomas, em legislação ordinária e é reconhecido pela própria União Europeia. A proposta dos Deputados do PSD/Açores tem o mesmo objectivo, se bem que com outra redacção, mas pretendem, no fundo, clarificar e dignificar o estatuto das regiões autónomas dentro do Estado português.
É o que se pretende com estas três propostas que ora apreciamos em primeira leitura.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Sr. Presidente, pensei que ia dar agora a palavra a um Deputado de outro grupo parlamentar.

O Sr. Presidente: — Não há alternância, Sr. Deputado.
As inscrições que, neste momento, tenho são dos Deputados Luís Marques Guedes, Eduardo Cabrita, João Oliveira, Ricardo Rodrigues e Jorge Bacelar Gouveia.
O Sr. Deputado Eduardo Cabrita pretende intervir agora?

O Sr. Eduardo Cabrita (PS): — Não faço questão, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: — Muito bem. Vou dar, então, a palavra por ordem de inscrição.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Sr. Presidente, em nome do PSD, queria pronunciar-me sobre as propostas que foram apresentadas e que, no fundo, como os próprios proponentes acabaram por deixar claro, todas convergem numa única questão, que é o problema da qualificação do Estado português como Estado unitário.
Além de conhecer em profundidade as posições do Presidente Mota Amaral, do Dr. Guilherme Silva e da estrutura partidária do PSD nos Açores e na Madeira que há muito defendem este tipo de alterações, com toda a franqueza, a minha perspectiva é a de que se está a querer resolver um problema que é real com uma solução que não é adequada. Ou seja, como deixaram claro o Dr. Guilherme Silva e o Presidente Mota Amaral, é verdade que tem existido, nomeadamente por parte da jurisprudência do Tribunal Constitucional, estribada numa determinada leitura e interpretação do texto constitucional, certo tipo de decisões que são contrárias ao verdadeiro espírito que decorre da Constituição da República relativamente às Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores e ao poder autonómico que está constitucionalmente consagrado e deve ser respeitado pelos órgãos de soberania.
Do ponto de vista do PSD, essa questão, que é verdadeira e real, não se resolve tentando retirar o carácter unitário do Estado português. Não vemos o carácter unitário do Estado português por contraponto às regiões autónomas ou às autonomias, longe disso. O Partido Social Democrata orgulha-se de ser, desde o texto inicial da Constituição em 1976, isto é, ao longo dos 36 anos de democracia, o partido defensor da consagração e do desenvolvimento das autonomias dentro do Estado português. O contraponto de Estado unitário é uma confederação, como, por exemplo, a Suíça, ou um Estado federal, como o Brasil ou os Estados Unidos, mas não é esse o problema que se coloca. Entendemos que Portugal é, de facto, um Estado unitário que respeita, na sua organização e no seu funcionamento, as autonomias.
Nos últimos 20 anos, as revisões constitucionais têm sentido a necessidade imperiosa e, diria mesmo, a obrigação de voltar sistematicamente ao problema da definição clara das competências e da natureza das autonomias e dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, porque, do nosso ponto de vista, tem havido, por parte de alguns órgãos do Estado, uma incorrecta leitura e interpretação do que é a vontade do legislador Constituinte, ou seja, do que é modelo definido por quem de direito na própria Constituição e que deve presidir à organização e ao funcionamento do todo nacional, nele se incluindo, necessariamente, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

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Portanto, por não vermos que o problema se resolva com esta solução, também não demonizamos a terminologia de Estado unitário. Pelo contrário, como referi, consideramos que, de facto, Portugal é um Estado unitário, porque, como contraponto a esse Estado unitário, não pomos minimamente a questão das regiões autónomas. Nunca pusemos nem consideramos que se deva pôr. Deveria pôr-se se Portugal caminhasse para outro tipo de organização do estilo confederacional ou federacional. Nesse caso, sim, pôr-se-ia em crise a terminologia e o conceito de Estado unitário que está na Constituição.
Com o devido respeito, obviamente, e como referi, conheço bem e em profundidade — tivemos, aliás, muito debates dentro do nosso partido sobre esta questão — a visão dos nossos companheiros dos Açores e da Madeira, que não temos dúvida de que é claramente patriótica. No entanto, a solução que é preconizada na proposta subscrita pelo Presidente Mota Amaral e pelo Deputado Joaquim Ponte no sentido de se dizer, na Constituição, que o Estado é composto por territórios jurídico-políticos do Continente e das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores tem, pelo menos, do nosso ponto de vista, o inconveniente de pôr num plano de igualdade coisas que são completamente distintas. O Estado português não assenta num tripé. Não nos parece que as coisas possam ser colocadas constitucionalmente num plano exactamente idêntico.
Embora saiba ou, pelo menos, pense saber que não é essa a interpretação correcta, se o texto da Constituição dissesse o que é proposto, essa leitura poderia ser feita por alguns.
O PSD entende que há um problema real de necessidade de clarificação e de aprofundamento do regime constitucional das autonomias dos Açores e da Madeira. Há muito tempo que ouvimos dizer e, infelizmente, também nesta revisão constitucional entendemos que é necessário e imperioso voltar ao tema, porque continua a não haver uma correcta regulação e vivência dentro dos órgãos do Estado relativamente ao modelo que a Constituição da República sucessivamente tem vindo a reafirmar de aprofundamento dessas mesmas autonomias e de uma cada vez maior densificação dos poderes dos órgãos de governo próprios das regiões autónomas.
Em conclusão, existe, de facto, esse problema. Consideramos que esta revisão constitucional deve servir para, de uma forma que esperamos decisiva — como já o esperávamos em anteriores revisões — , ultrapassar as interpretações, do nosso ponto de vista, incorrectas e que têm levado a soluções erradas relativamente ao respeito que devia existir para com o exercício das autonomias, mas não nos parece, com franqueza, que o problema se resolva com esta solução.
Parece-nos, portanto, que se está a apostar, porventura, numa solução não adequada para um problema, esse sim, real e que deve ser encarado. Por isso, com o contributo obviamente de todos os outros Srs. Deputados, contamos aproveitar esta revisão constitucional para, de uma vez por todas, poder clarificar e deixar inequívoco o modelo de respeito pelas regiões autónomas e o modelo de desenvolvimento e de aprofundamento das autonomias quer na Região Autónoma dos Açores quer na Região Autónoma da Madeira.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Eduardo Cabrita.

O Sr. Eduardo Cabrita (PS): — Sr. Presidente, o facto de o Sr. Deputado Luís Marques Guedes ter usado da palavra antes de mim, entre outros méritos, tem a utilidade adicional de permitir sentir que, de alguma maneira, me revejo em muito do que foi afirmado. Apenas divirjo, no essencial, no que disse ser a forma desadequada de resolver um problema existente. Consideramos que a forma é desadequada e entendemos também que há um largo consenso nacional, do qual o Partido Socialista se reclama enquanto partido fundador do regime democrático e do modelo constitucional de 1976 no qual nos revemos. Não partilhamos, assim, que exista aqui uma querela autonómica no centro do nosso debate nacional carecendo de uma intervenção no plano constitucional.
O artigo 6.º é um artigo relevante do texto constitucional, porque caracteriza o nosso tipo de Estado. É o primeiro artigo em que essa questão é definida, dado que os anteriores enunciam a natureza política do Estado, a natureza da República Portuguesa, a natureza da soberania, o fundamento da cidadania e o que é o território nacional.
Chamo a atenção para a caracterização do território nacional que é feita no artigo 5.º, para o qual não existe qualquer proposta de alteração neste processo de revisão constitucional. De acordo com o artigo 5.º, n.º 1, o território nacional «abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos

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dos Açores e da Madeira». Há aqui uma identidade e uma comunidade de destino histórico, de interesses e patriótica que se fundamenta na natureza do nosso Estado e no modelo constitucional que, adequadamente, os legisladores Constituintes encontraram para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Nesta matéria, em relação à qual acompanho inteiramente as considerações do Sr. Deputado Luís Marques Guedes, partindo do contraponto clássico na natureza dos Estados entre Estados unitários e Estados federais ou confederais, não parece que a solução para uma eventual querela — que, de facto, não existe — seria omitirmos a natureza unitária do Estado português. Referindo apenas exemplos europeus, não temos dúvida de que conhecemos vários países que têm um modelo constitucional de matriz federal, como a Alemanha e a Áustria, e países que adoptam um modelo de matriz unitária e que marca também parte da nossa visão de Estado. A forma como a França se vê como Estado é susceptível de ser encontrada como referência. No entanto, neste quadro, Portugal é, manifestamente, por opção constituinte e por natureza jamais contestada nos vários processos de revisão constitucional, um País que preenche as características próprias do Estado unitário, o que não inibe o reconhecimento, por um lado, do estatuto específico das regiões autónomas e, por outro lado, dos princípios aos quais está subordinado este Estado unitário.
Releva aqui dizer, aliás, que Portugal não está num contexto que seja minimamente comparável ao debate que é feito no contexto constitucional espanhol em função da evolução do estatuto das autonomias, quer das 3 autonomias históricas quer das 14 autonomias resultantes do processo descentralizador posterior à instauração da democracia em Espanha. Em Espanha tem-se, por vezes, discutido a qualificação de uma natureza federal ou de um modelo de Estado assente numa multiplicidade de estatutos autonómicos diversos.
O estatuto português é, por razões históricas e de opção política, profundamente diferente. O nosso estatuto não é sequer assimilável ao debate que tem sido feito em Itália a propósito do estatuto das suas regiões ou do estatuto especial da Sardenha ou da Sicília.
No entanto, o que acabei de referir não inibe a profunda autonomia que o nosso modelo constitucional contempla e que é incomparavelmente superior a modelos assentes em elementos históricos, geográficos e territoriais com alguma afinidade com os Açores e a Madeira. Isto é, se virmos o que é hoje o estatuto constitucional da Córsega ou dos DOM-TOM (Départements et Territoires d'Outre Mer) franceses, concluiremos sempre que a autonomia constitucional e legalmente conferida às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é bem mais ampla seja no plano do seu estatuto político seja no plano da sua autonomia legislativa ou das marcas dessa autonomia, como confirma a existência de uma larga autonomia em matéria fiscal.
O Partido Socialista reconhece-se, desta maneira, no acervo das autonomias regionais, quer no texto fundador da Constituição quer na sua evolução ao longo de mais de três décadas. As autonomias regionais fundamentam-se, para nós, em razões geográfico-territoriais, em razões históricas, em razões culturais e fortalecem a unidade nacional. São um elemento constitutivo de um Estado que não queremos monolítico, que reconhece a descentralização, que se fundamenta nos princípios da subsidiariedade, do respeito pela autonomia do poder local e na afirmação de um princípio de descentralização democrática da Administração Pública. E é neste quadro que gostaria de me pronunciar, muito brevemente, sobre aquelas que são, concretamente, as propostas constantes destes três projectos.
Antes de mais, não tem sentido omitir aqui o conceito de Estado unitário, pelas razões que já aduzi. Esta não é a solução. A última vez que este debate foi travado com tempo e desenvolvimento foi aquando da revisão constitucional de 1982 e compreendo o que aqui se diz sobre as afirmações do Prof. Jorge Miranda.
O Prof. Jorge Miranda, na altura, era Deputado eleito pela ASDI, Associação Social Democrata Independente, eleita conjuntamente com o PS nas eleições de 1980, tendo dado origem a esse primeiro processo de revisão constitucional. Na altura, a ASDI apresentou também uma formulação para este artigo que apontava para a qualificação de Portugal como um Estado unitário regional. Ora, as nossas autonomias regionais têm a ver com uma dimensão que se funda naquela que é a natureza insular, a natureza que, hoje, no contexto da União Europeia, se diz ultraperiférica, que justifica aqui um estatuto político, legislativo e financeiro próprio que tem vindo a ser reconhecido aos Açores e à Madeira.
Não poderia, aliás, esta ideia de um Estado unitário regional fundamentar-se na própria opção constitucional de regionalização do continente através da instituição de regiões administrativas, que estão por instituir desde o texto constitucional de 1976. Porquê? Porque, como sabemos, essas têm uma natureza distinta e são consideradas não como uma manifestação de autonomia político-administrativa mas, sim, como

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uma terceira forma de autarquia local, para além dos municípios e das freguesias, dotadas estritamente de autonomia administrativa.
Portanto, perante a inexistência de condições para, eventualmente, adoptarmos a clássica proposta do Estado unitário regional, não parece que seja boa solução omitirmos a caracterização de Portugal como Estado unitário.
A segunda questão baseia-se, fundamentalmente, na proposta do PSD/Açores, aqui arguida pelo Sr. Deputado Mota Amaral, que propõe a consagração da caracterização de Portugal como o Estado composto por três territórios jurídico-políticos: o Continente da República, a Região Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira.
Ora bem, nem na nossa história política nem no nosso texto constitucional, com todo o respeito que tenho por aquele que foi o meu primeiro Presidente aquando da minha anterior passagem pela Assembleia da República, há qualquer suporte para a fundamentação da caracterização do Estado desta forma. Tal pressuporia a existência de um estatuto político do Continente, de um quadro legislativo específico aplicável ao Continente da República e, até, eventualmente, num contexto de paridade, de órgãos de governo próprio do Continente da República em paridade com os órgãos de governo próprio da Região Autónoma da Madeira e da Região Autónoma dos Açores.
Manifestamente, não é esse o modelo constitucional que temos nem vai nesse sentido qualquer das propostas apresentadas neste processo de revisão constitucional. É por isso que aqui não tem sentido que se entenda que, para dirimir eventuais dúvidas jurisprudenciais ou doutrinárias sobre a natureza e os limites da autonomia regional, se deva criar um estranho estatuto jurídico-político do Continente da República.
Uma última nota tem a ver com a questão da continuidade territorial. Esta questão já surgiu em processos de revisão constitucional anteriores — aliás, foi recentemente consagrada legalmente na alteração feita este ano à Lei de Finanças das Regiões Autónomas pela Lei Orgânica n.º 1/2010. O seu artigo 8.º-A veio, pela primeira vez, dar densificação legal ao princípio da continuidade territorial num texto da República.
Tenho algumas dúvidas na densificação que aí é feita. Não vou reabrir, nesta matéria específica, o debate da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, mas parece-me que o que está aqui em causa é algo que não é específico na fundamentação das regiões autónomas, ou seja, que tem razões próprias nas regiões autónomas mas não é uma dimensão que seja única das regiões autónomas.
Fundamentalmente, o que está em causa, segundo me parece e numa interpretação que tenta ser positiva e favorável a este conceito, é a preocupação com a existência de desigualdades de desenvolvimento, desigualdades estruturais, que afectam aquilo que, em bom rigor, não tem a ver com continuidade territorial, mas com o conceito de coesão territorial, que é distinto e que, de alguma forma, se poderá também colocar relativamente a regiões com níveis de desenvolvimento diverso noutros espaços do território nacional, designadamente no interior do território continental.
É sabido que, apesar das limitações decorrentes da sua insularidade, as regiões autónomas têm hoje um nível de desenvolvimento que leva a que a Região Autónoma dos Açores não seja já o que foi durante algum tempo, ou seja, a região do País com mais baixos níveis de desenvolvimento económico, e que a Região Autónoma da Madeira, segundo os critérios adoptados pela União Europeia, seja a terceira região do País, a seguir à região de Lisboa e ao Algarve, no nível de desenvolvimento socioeconómico, aferido pelo seu PIB.
Portanto, a questão da continuidade territorial tem já uma manifestação no quadro legal e terá, eventualmente, de fazer o seu caminho na densificação e no esclarecimento do que são as dúvidas sobre o seu sentido intrínseco. Nesse sentido, suscita-nos as maiores reservas a sua adopção neste momento, enquanto novo conceito constitucional.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, indicativamente, concluiríamos os trabalhos às 19 horas. Neste momento, estão inscritos oito Deputados e creio que a ideia será concluir a discussão deste artigo hoje, pelo que apelo a algum poder de síntese.
Tem a palavra o Sr. Deputado João Oliveira.

O Sr. João Oliveira (PCP): — Sr. Presidente, procurando corresponder ao seu apelo de síntese, começo por dizer que, da parte do PCP, vemos com muitas reservas as três propostas que estão apresentadas para o

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artigo 6.º, particularmente no seu denominador comum, que é a eliminação da caracterização do Estado português como um Estado unitário.
Temos particulares reservas em relação a este denominador comum às três propostas na medida em que, como o Sr. Deputado Eduardo Cabrita já referiu, esta proposta consubstanciaria uma alteração naquilo que é uma concepção fundamental em relação ao carácter do Estado português, o que é, aliás, considerado como um limite material à própria revisão constitucional. O carácter da unidade do Estado é um limite material à revisão constitucional, previsto no artigo 288.º da Constituição. Aliás, a importância desta concepção da unidade do Estado traduz-se no facto de ser precisamente a primeira alínea dos limites materiais à revisão constitucional.
De facto, as três propostas que temos em discussão para o artigo 6.º eliminam o carácter unitário do Estado português, sendo que há uma proposta em particular, a do PSD/Açores, que suscita ainda maiores reservas, porque, ao definir a existência de três territórios jurídico-políticos — o Continente da República, a Região Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira — , quase prevê a existência de duas regiões autónomas e de uma região que não seria autónoma. Passaríamos a ter três territórios jurídico-políticos que seriam o quê? Há a perspectiva de o Continente passar também a ter o estatuto de região autónoma, com órgãos de governo próprios, com um governo e uma assembleia regional própria? Ou a intenção é a de fazer equiparar a criação de regiões administrativas no Continente com um conteúdo de autonomia semelhante ao que se prevê para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira? Essa não é uma concepção que perfilhemos e aquilo que decorre da Constituição é que as regiões administrativas a instituir em concreto no território nacional têm um carácter, como referiu o Sr. Deputado Eduardo Cabrita, de autarquias locais e não de regiões autónomas.
Portanto, em particular a proposta do PSD/Açores levanta problemas acrescidos em relação às propostas apresentadas pelo PSD/Madeira e pelo Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, do CDS-PP, sendo estas as reservas fundamentais que temos em relação às três propostas.
Relativamente à questão da continuidade territorial, não temos particulares reservas, mas julgamos que deve haver alguma cautela, em particular quanto ao que tem sido o processo de discussão do regime autonómico insular e dos estatutos das regiões autónomas, para que se possa considerar, na Constituição, essa discussão, que já foi feita em sede de apreciação desses estatutos, sem perder a perspectiva de um Estado unitário. Obviamente que esta é uma matéria em que deve ficar vincado o carácter unitário do Estado português, não abrindo a porta à alternativa ao Estado unitário, ou seja, a existência de um Estado federado.
Do ponto de vista doutrinário e político, são, de facto, estas as questões que se colocam e as alternativas que temos: Estados unitários, Estados federais e Estados confederados.
Portanto, afirmando-se o carácter unitário do Estado português, afirmando-se na Constituição da República que o Estado português é um Estado unitário, está automaticamente a rejeitar-se aquelas que são as alternativas. Por outro lado, aceitando-se, como propõem os Srs. Deputados nestas três propostas, que se elimine o carácter unitário do Estado, obviamente que se está a abrir a porta a uma outra concepção de Estado que não é a que o legislador Constituinte previu e que o PCP continua a acompanhar.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Ricardo Rodrigues.

O Sr. Ricardo Rodrigues (PS): — Sr. Presidente, vou também tentar ser breve — e digo também porque os meus precedentes não o foram, mas vamos ver como é que decorre.
Em primeiro lugar, queria fazer duas considerações. Uma, de significado, saudando os meus colegas insulares que apresentaram projectos de revisão constitucional. Perguntaria, no entanto, à laia de brincadeira, o seguinte: se nem os meus consegui convencer, por que é que os senhores têm a pretensão de conseguirem convencer todos os outros? Ou seja, nós, no Partido Socialista, resolvemos apresentar um único projecto nacional, fizemos integrar as nossas propostas no projecto nacional e estou convencido que assim damos um contributo sério para que todos possamos encontrar melhores soluções.
Feito este pequeno esclarecimento, gostaria de dizer que as autonomias têm várias dimensões, sendo uma delas, precisamente, a financeira. Nesse particular, concedo e concebo que a autonomia financeira consiste no poder de os Governos Regionais dos Açores e da Madeira gerirem, como bem entendem, porque têm legitimidade para o fazer, os seus recursos.

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Posso discordar do Governo Regional da Madeira, que dá, anualmente, 4 milhões de euros a um jornal que o elogia, mas não posso dizer que não aceito, porque tem legitimidade para isso; posso discordar do Governo Regional da Madeira, numa conjuntura como a que temos, que resolveu investir seis dezenas de milhões de euros em estádios de futebol, mas é uma opção legítima deste Governo Regional e nada tenho a ver com isso.
Porém, discordo, Sr. Deputado Guilherme Silva.
Portanto, nesta matéria, estranho muito que um madeirense seja capaz de criticar opções que estão no âmbito das competências e da autonomia financeira que esse Governo Regional tem. De facto, isso enfraquece as autonomias e para «esse peditório, não dou»! O senhor tem toda a legitimidade de governar a Madeira como bem entende e, é claro, eu tenho o direito de criticar, mas aceito democraticamente as opções do Governo da Região onde o senhor reside e de onde é natural.
Entrando directamente nas propostas que estão em causa, penso que ainda existe um preconceito nacional sobre o Estado unitário. Trata-se de um preconceito, porque a realidade é diferente.
Há pouco falávamos do preâmbulo. Se alguns pensam que a Constituição foi além da realidade em algumas matérias como o caso do preâmbulo, neste caso concreto a Constituição está aquém da realidade, quer queiramos quer não. Podemos continuar a dizer que o Estado é unitário, mas a verdade é que é um Estado unitário que tem um Governo da República, um Governo dos Açores e um Governo da Madeira.
A ideia do «tripé» até tem algum interesse. Na verdade, há algumas matérias em que o Governo da República não pode dispor, nos termos constitucionais e dos estatutos políticos, para a Madeira e para os Açores, nem os Açores pretendem ou querem dispor para o Continente. Por isso mesmo, como bem frisou, a ideia do «tripé» em termos de territórios existe. Não vejo nenhum problema nessa matéria. Ou seja, penso que se trata mais de um preconceito do que considerarmos que, efectivamente, temos um Estado unitário com duas regiões autónomas.
Penso que existe algum preconceito com alguns resquícios do passado em que minoritarissimamente se falou em algumas regiões autónomas sobre independência, mas hoje isso é completamente pacífico e não temos nenhum movimento social nos Açores ou na Madeira falando desse tema.
Entendo, portanto, que essa etapa deve ser ultrapassada e que devemos considerar a realidade, ou seja, que vivemos num país constituído por um Estado que tem duas regiões autónomas com direito regional próprio. Legislamos constitucionalmente sobre essa matéria, ou seja, temos um direito regional próprio que a Constituição admite e permite. Nas regiões autónomas, usamos esse direito com legitimidade própria, proveniente de eleições regionais das quais emana um parlamento e um governo que gere e administra livremente os próprios territórios com base nas eleições.
Penso que se trata de mais um equívoco e, nesse particular, que as propostas que são presentes não estão fora de um contexto que se poderia aprovar. Não contesto o Estado unitário no sentido tradicional do termo, mas tem de ser visto com alguma evolução terminológica que contenha duas regiões autónomas. Não considero que estejam sequer em confronto as duas ideias, nem as quero pôr em confronto.
Por isso, não me parece que seja contraditório dizer que é um Estado unitário com duas regiões autónomas, porque, na prática, é o que é, ou seja, é um Estado unitário com duas regiões autónomas.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Isso é o que está na Constituição de 1997!

O Sr. Ricardo Rodrigues (PS): — Exactamente! Portanto, também a proposta do Sr. Deputado Mota Amaral ficou com alguns resquícios desse preconceito quando, no n.º 3, diz que «A autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania e exerce-se no quadro da Constituição».

O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Isso já está na Constituição!

O Sr. Ricardo Rodrigues (PS): — Está bem, mas é o resquício dessa suspeição, Sr. Deputado. É um receio que não existe. As regiões autónomas estão dentro da Constituição, não precisamos de o declarar. De facto, as autonomias exercem-se dentro da Constituição e em obediência aos princípios da Constituição da República Portuguesa e, portanto, não era preciso declará-lo.

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Aliás, o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de determinados diplomas regionais, das assembleias regionais. Isso é o corolário de que vivemos sob a mesma Constituição.
No entanto, a verdade é que temos duas regiões autónomas e isso, de facto, está «meio coxo» — deixem passar a expressão — naquilo que é a estrutura do Estado. A estrutura do nosso Estado não é a de um Estado unitário proprio sensu, é a de um Estado unitário com duas regiões autónomas.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.

O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, permitam-me, nestas primeiras palavras, saudar esta iniciativa dos Deputados das regiões autónomas.
Como sabem, não sou insular, fui eleito Deputado pelo Algarve, mas ao longo da minha vida não deixo de reconhecer a importância das autonomias regionais e a simpatia que os seus êxitos me suscitam. Quero, portanto, saudar esta iniciativa e dizer que o PSD tem no seu ADN uma matriz profundamente regionalista.
Aliás, foi o grande partido, na Assembleia Constituinte, a apresentar a ideia inovadora de se estabelecer em Portugal regiões autónomas. Portanto, o PSD tem no seu património esse activo, que ninguém lhe pode retirar.
Isto não significa que não tenha alusões ou reticências a fazer em relação a algumas questões que estes projectos levantam, sendo certo que, a meu ver, estas propostas de alteração não põem em causa a ideia central que caracteriza o Estado português, que é a de ser um Estado descentralizado, admitindo regiões autónomas, rejeitando-se qualquer modelo nacionalista, jacobino à esquerda ou nacionalista de direita. Como sabemos, os Estados centralizados são um produto histórico não apenas das direitas reaccionárias, mas também das esquerdas totalitárias. Portanto, desse ponto de vista, estamos todos enquadrados na mesma matriz.
Permitam-me, contudo, fazer duas referências particulares: uma, ao projecto do PSD/Madeira e ao projecto do Deputado José Manuel Rodrigues; e outra, ao projecto do PSD/Açores.
O primeiro visa resolver um problema, que eu próprio tenho assinalado muitas vezes, o de o Tribunal Constitucional, sistematicamente, extravasar, a meu ver, o seu âmbito de interpretação da Constituição e considerar diplomas regionais inconstitucionais invocando uma competência legislativa nacional residual que não está expressa na Constituição. Não obstante o facto de, em sucessivas revisões constitucionais, ter havido correcções na delimitação da competência legislativa nacional e da competência legislativa regional, o Tribunal Constitucional, de vez em quando, encontra mais uma cláusula escondida ou sub-reptícia no sentido de, a meu ver, limitar excessivamente a autonomia legislativa regional.
Na medida em que esta proposta, eliminando essa palavra, possa resolver esse problema — que depois deveremos analisar no capítulo próprio sobre as regiões autónomas — , se é que este é o lugar em que isso deve ser feito, é evidente que merece simpatia, na medida em que isso seja possível.
Em relação à proposta do PSD/Açores, compreendo também a sua perspectiva de realçar a importância das regiões autónomas, mas entendo que há aqui alguma confusão nos termos que são empregues, sobretudo na proposta para o novo artigo 6.º, n.º 1, em que refere que o Estado português é composto por estes três territórios: o Continente da República, a Região Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira.
Ora, que eu saiba, a República não abrange só o Continente, mas também os Açores e a Madeira, porque eles pertencem à mesma República, ou seja, ao Estado português. Não há um Continente da República separado da Região Autónoma dos Açores e da Região Autónoma da Madeira.
Neste ponto, gostaria de deixar uma pergunta ao Deputado Mota Amaral, se tiver possibilidade de responder: qual é a configuração do Continente da República? É o Estado da República que não existe nos Açores e na Madeira? Que eu saiba, os portugueses dos Açores e da Madeira também são portugueses da República. O território dos Açores e da Madeira não pertence ao território da República?! Nesse sentido, qual é essa entidade do Continente? Essa entidade é o Estado português, que tem poder legislativo, tem poder administrativo, e não poderíamos nunca aceitar que o Estado português apenas legislasse sobre o Continente e não legislasse sobre os Açores e a Madeira.
É verdade que há leis próprias restritas aos territórios açoriano e madeirense, e ainda bem, mas em certos casos a legislação estende-se a todo o território nacional. Portanto, se esta expressão singrasse — e entendo

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que não deve singrar, com o devido respeito pelo Deputado Mota Amaral e pelo PSD/Açores — , significaria que, de futuro, o Estado ficaria impedido de legislar sobre o território açoriano ou madeirense.
Porém, um contributo positivo que a proposta do Deputado Mota Amaral aqui deixa é a ideia — que, às vezes, não é muito clara — de que o Estado português é um Estado pluralista do ponto de vista das suas ordens jurídicas e dos seus poderes. Há três ordens jurídicas: a nacional, a açoriana e a madeirense. No entanto, isso é muito diferente de dizer que há um Continente da República, uma entidade jurídica diversa da Região Autónoma dos Açores e da Região Autónoma da Madeira.
Por outro lado, também nunca estará em causa a ideia de termos um Estado unitário, ainda que essa palavra possa ser eliminada. Não se trata de uma questão de palavras, não mudamos a natureza das coisas retirando as palavras, a natureza é a mesma. Porquê? Porque o Estado português é sempre unitário e só tem uma Constituição. Só há uma entidade com poder constituinte, que é o Estado. As regiões autónomas existem porque o Estado português assim o estabeleceu, e muito bem, na Assembleia Constituinte.
Aliás, as regiões autónomas nem sequer têm poder judicial próprio. Não há tribunais próprios, não há um sistema judiciário próprio nos Açores e na Madeira, o que é típico de um Estado unitário. Quando há Estados federados, num Estado federal, aí, sim, há tribunais próprios, que são diferentes dos tribunais da federação.
Contudo, não é esse o caso nem é o que os Srs. Deputados insulares pretendem. Portanto, desse ponto de vista, em relação àquilo que propõem, parece-me que não está em causa acabar com o Estado unitário, mas apenas resolver alguns problemas de delimitação das competências legislativas.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Pureza.

O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente, acompanho as intervenções dos Srs. Deputados Luís Marques Guedes, Eduardo Cabrita e João Oliveira quando assinalam posições críticas relativamente às propostas que incidem sobre o artigo 6.º e, muito brevemente, vou fundamentar esta posição.
Salvo melhor opinião, em Direito Constitucional Comparado há duas matrizes de «arrumação» do Estado, de forma do Estado: a forma unitária e a forma federal. São ambas susceptíveis de matizes e de variações que têm de ser consideradas, evidentemente, mas são as duas que o Direito Constitucional Comparado conhece.
Por isso, o que o artigo 6.º da Constituição faz, e bem, do meu ponto de vista, é tomar posição nesta dicotomia entre matriz federal versus matriz unitária. E, ao optar pela matriz unitária, o artigo 6.º diz, a meu ver bem, repito, que deve prevalecer, de forma clara e não apenas abstracta, ou seja, de uma forma técnicojuridicamente concreta, o princípio da coesão nacional, o princípio da continuidade das políticas. Isso mesmo marca a opção por um Estado unitário que depois se materializa — como aqui foi dito agora mesmo pelo Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia — em unidade da Constituição, unidade da ordem jurídica matricial, sem embargo de algumas variações, evidentemente.
O que temos, no entanto, no texto constitucional é a afirmação clara de que o Estado unitário, tal como o define a Constituição, obedece a alguns princípios essenciais, quais sejam o princípio das autonomias legislativas das regiões autónomas, o princípio da descentralização e da desconcentração da Administração Pública e o princípio da criação das regiões administrativas no território do continente. Isto significa, portanto, que não é um qualquer Estado unitário, é um Estado unitário que deve ser regido por estes princípios fundamentais.
Neste sentido, parece-me evidente que o propósito das três propostas agora em apreço nos aparece aqui como deslocado, porque podemos e devemos encarar a possibilidade de afinar no texto constitucional o regime das autonomias, mas isso não pode, do nosso ponto de vista, pôr em causa a posição correcta que o texto constitucional assumiu no debate entre Estado federal e Estado unitário. Admito que, para esse efeito de afinação do regime constitucional das autonomias, se possa considerar e seja uma ferramenta útil, por exemplo, o princípio da continuidade territorial. Teríamos, contudo, de analisar essa questão com muito cuidado pelas razões que já foram aduzidas, sobre as quais não me quero pronunciar mais.
Como última nota, quero sublinhar apenas o seguinte: foi afirmado, creio que pelo Sr. Deputado Mota Amaral mas não estou certo, que a manutenção da definição constitucional de Estado unitário poderia ser arriscada na perspectiva de uma apropriação potencial por forças demasiadamente centrípetas do funcionamento do Estado português. Creio que esse risco existe, como é óbvio, mas não pode fazer abrir a

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porta ao risco inverso, que é o de uma dinâmica centrífuga que se aproprie de uma definição em tríptico do Estado português ou de uma outra qualquer definição que faculte essa mesma dinâmica centrífuga.
Penso, portanto, que o artigo 6.º tem a definição acertada e que as afinações a que haja lugar no regime das autonomias devem surgir na discussão de outros preceitos constitucionais, que não do artigo 6.º.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Paulo Mota Pinto.

O Sr. Paulo Mota Pinto (PSD): — Sr. Presidente, na minha primeira intervenção como membro desta Comissão, queria começar por saudar todos os Srs. Deputados da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
A meu ver, o problema que aqui temos não é, ao contrário do que discutimos antes, um problema de somenos. Há realmente aqui uma questão central que tem a ver com o princípio da organização do Estado.
Acompanho a análise que o Deputado José Manuel Pureza fez, segundo a qual está aqui em causa uma questão, em parte, técnica e não só política. Compreendo que haja a ideia de que devemos deixar de falar no Estado unitário apenas para quem parta do princípio de que há uma assimilação entre Estado unitário e centralista ou centralizador. Mas não é isso que está em causa.
Há, fundamentalmente, dois princípios de organização nas formas do Estado: o Estado unitário e o Estado federal, tendo este diversas formas, como a federação, a confederação ou a união de Estados. Como é evidente, as fronteiras são, por vezes, graduais. Há, aliás, Estados europeus, até próximos de nós, onde se diz que as regiões autónomas são mais autónomas e têm mais poderes do que noutros Estados federais. Existe aqui, no entanto, uma diferença que não tem só a ver com a unidade da ordem jurídica. Falando a título pessoal, mas acompanhando também a generalidade das observações que, em nome do PSD, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes referiu, a meu ver, a unidade da ordem jurídica deve manter-se. Não é pelo facto de haver adaptações ou direito regional que essa unidade da ordem jurídica, por exemplo, quanto aos direitos liberdades e garantias ou quanto a vários diplomas fundamentais, não existe.
Neste ponto, há uma questão fundamental, que é a de saber se o princípio da organização do Estado resulta de uma cedência da soberania, de uma cedência do poder constituinte, como em muitos Estados federais, ou se estamos perante um Estado unitário que vai concedendo autonomia. Nenhum dos projectos altera o artigo 3.º, que diz que a soberania reside no povo. A Constituição fala do povo português, do povo da República Portuguesa como sujeito de direito internacional que abrange quer o continente — que não existe como sujeito de direito internacional separado do restante — quer todas as suas partes constituintes.
Portanto, a meu ver, a opção pelo Estado unitário não deve ser alterada, sem prejuízo das adaptações, dos aprofundamentos ou das alterações que seja necessário fazer na parte relativa ao regime das regiões autónomas.
Quanto a esse ponto, sendo esta a minha primeira intervenção na Comissão, gostava de referir uma questão que é quase metodológica, em que talvez me afaste de alguns membros do PSD, que é a seguinte: ouvi aqui, como fundamentação, várias críticas ou referências à jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Tenho dificuldade em discutir essa jurisprudência na base de qualificações genéricas, como «excessivamente», ou de adjectivações. Portanto, preferia que, quando discutíssemos a jurisprudência, referíssemos o acórdão ou a linha de acórdãos e disséssemos por que é que, naquela linha de acórdãos ou naquele acórdão, estamos perante algo «excessivamente» ou perante algo que merece determinado adjectivo.
Admito que possa subjectivamente ter algum papel nesta matéria pelo facto de antes ter desempenhado funções nesse Tribunal, mas digo isto pelo respeito que o próprio Parlamento merece, na medida em que esse Tribunal é, em grande parte, uma emanação do Parlamento. Penso, portanto, que por auto-respeito deveremos referir esses acórdãos.
Há ainda uma outra questão, mais metodológica do que a primeira, que me parece importante. Fazendo uma referência pessoal, devo dizer que não sou partidário da revisão constitucional como reacção a acórdãos de um tribunal. Penso que, se se discorda de determinado acórdão, ele deve ser criticado e deve, evidentemente, tentar mudar-se a jurisprudência por várias formas. Ou seja, é evidente que a aplicação da Constituição é um dado importante, mas sou contra essa metodologia de revisão. Admito que esta é apenas uma opção pessoal, mas queria fazer esta referência logo de início.

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Por último, tendo-me já pronunciado quanto ao abandono do princípio do Estado unitário, entendo que a criação de diversos sujeitos de direito público em pé de igualdade, no fundo, conduziria a algo que, a meu ver, está desconforme com o sentimento da grande maioria dos portugueses das regiões autónomas. Penso que a maioria dos portugueses das regiões autónomas não sente essa diferença entre ser cidadão residente nos Açores, na Madeira ou no Continente e, sobretudo, com todo o respeito, que é infeliz a designação «continente» — o que, aliás, foi logo referido, em tom humorístico, pelo Presidente Mota Amaral. A República Portuguesa é um sujeito de direito internacional que abrange todas as suas partes.
Portanto, recordando-me dos momentos já longínquos em que houve tentativas, até políticas, de criar divisões entre os portugueses, penso que devemos evitar tudo o que possa recriar esse tipo de divisões, sobretudo por parte do partido que sempre foi o grande aprofundador da autonomia.
Nesse sentido, defendo a manutenção do actual texto da Constituição.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia.

O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, de uma forma breve, queria deixar a posição do CDS sobre esta matéria, uma vez que, sublinho, o projecto que aqui está apresentado pelo Sr. Deputado José Manuel Rodrigues é um projecto dele e corresponde à posição do CDS/Madeira.
Nesta revisão constitucional, o CDS entendeu apresentar um projecto com uma natureza minimalista. Por isso, o nosso projecto, não obstante tratar de algumas matérias de forma mais detalhada, como é o caso da justiça, deve ser lido e visto de uma forma minimalista. A Assembleia da República fez uma revisão muito significativa da matéria das autonomias — da qual me lembro bem, porque, na circunstância, era, juntamente com o Sr. Deputado Guilherme Silva, líder parlamentar — , pelo que não a desenvolvemos em particular nem a considerámos como uma questão prioritária.
Em relação aos conceitos que estão em cima da mesa, o CDS é tradicionalmente favorável e não tem antagonismo com o conceito do Estado unitário. A opção que se fez entre Estado unitário e Estado federal já aqui foi explicado, e bem do meu ponto de vista, pelos Srs. Deputados Luís Marques Guedes, Eduardo Cabrita, José Manuel Pureza e João Oliveira. Pode entender-se que a existência de regiões autónomas com esta amplitude, com assembleias legislativas próprias, etc., é quase que um tertium genus, mas é um tertium genus em que o pendor é o de um Estado unitário. Foi essa a opção da Constituição da República Portuguesa e não temos com isso conflito.
Ainda assim, quanto aos projectos que estão em cima da mesa — e até uma segunda leitura poderemos tirar uma conclusão mais detalhada sobre esta matéria — , parece-nos que os apresentados pelo PSD/Madeira e pelo CDS/Madeira são mais ponderados e razoáveis desse ponto de vista e que o projecto do PSD/Açores não faz particular sentido, visto que fala num Estado como um somatório de territórios políticos, em que um deles seria o Continente da República — o que também não sabemos muito bem o que é, a não ser que se trate de um espaço comercial localizado na Avenida da República! Portanto, não temos a noção do que seja e não nos parece, desse ponto de vista, muito razoável.
Por outro lado, estes projectos tratam de forma clara, designadamente o que é apresentado pelo Sr. Deputado José Manuel Rodrigues, a questão do princípio da continuidade territorial. Se deste princípio da continuidade territorial for feita uma leitura cuidada e atenta numa lógica de solidariedade territorial, de igualdade de circunstâncias, de igualdade de condições entre todos os portugueses, considerando o Estado unitário e o respeito pelas autonomias, penso que pode ter algum interesse e que esta matéria deve ser aprofundada. Cá estaremos para continuar esta discussão até à segunda leitura.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, queria apenas deixar algumas notas que decorrem das intervenções dos Srs. Deputados relativamente à proposta que apresentei.
Sr. Deputado Eduardo Cabrita, como referi na minha intervenção e é evidente, a inserção do princípio da continuidade territorial não era só para as regiões autónomas — como, aliás, o princípio da subsidiariedade que está na Constituição, por proposta que também subscrevi em anterior revisão constitucional. Portanto, como tive o cuidado de enfatizar, não é isso que pretendo.

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Relativamente aos propósitos deste projecto de revisão constitucional, que, aliás, senti serem subscritos pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes, penso que é tempo — e é uma responsabilidade particularmente nossa, quando temos poderes constituintes — de fazermos tudo o que pudermos para eliminar suspeições, contenciosos, conflitualidades, para colaborar e encontrar as soluções que permitam o melhor funcionamento das autonomias, o melhor relacionamento das regiões autónomas com o Estado. Tudo isto deve ser clarificado dentro do espírito da unidade nacional, que ninguém põe em causa e que não é o mesmo que Estado unitário — pelo menos, o desenvolvimento que este princípio tem tido vai mais para a unicidade, perversa nalguns casos, do que para a unidade, e é mais saudável que seja a unidade. Ou seja, é tempo de construirmos aqui as soluções que interessam.
Não há mal absolutamente nenhum que a lei do arrendamento seja uma na Madeira, seja outra no Continente e seja ainda outra nos Açores, se a lei do arrendamento da Madeira der melhor resposta aos problemas sociais, de habitação e às condições próprias da Madeira e o mesmo acontecer nos Açores e no Continente. Mal será se prejudicarmos as melhores soluções noutros espaços do território nacional por razão de uma unicidade que é errada. Nesse caso, estaremos a dar contributos de divisão, quando devíamos estar a dar contributos de unidade.
Apetrecharmos, de uma vez por todas, as assembleias legislativas com poderes que lhes permitam criar legislação adequada mais amiga da economia, do desenvolvimento, etc., não significa estarmos a pedir mais transferências ou mais apoios financeiros numa situação de crise e de dificuldade, mas significa, ao contrário, que as regiões ficariam com instrumentos que as tornariam mais auto-suficientes e a sua economia mais desenvolvida e com melhores condições para todos, ou seja, para bem do País e não apenas para bem de cada uma das regiões autónomas.
Esta é uma mensagem preliminar que queria aqui deixar, pois considero que deve ser o ponto de convergência que temos de ter nesta matéria.
Quanto à nota do Sr. Deputado Paulo Mota Pinto, por quem tenho muita consideração e amizade, são tantas as decisões do Tribunal Constitucional realmente restritivas da autonomia que não me parece que seja necessário estarmos aqui a exemplificá-las. Estou a lembrar-me de uma decisão numa matéria de concorrência de competências, ou seja, que não era da reserva relativa ou absoluta da Assembleia mas pertencia ao elenco de matérias que as assembleias legislativas podem legislar, em que o Tribunal Constitucional inventou um tertium genus de que a unidade nacional impunha que essa lei fosse nacional e considerou inconstitucional a intervenção de uma assembleia legislativa. Com uma construção jurisprudencial deste tipo, é impossível cumprir, efectivamente, o espírito constitucional das autonomias.
Por outro lado, penso que é bom termos presente, na sede destes trabalhos, nesta como noutras matérias, a jurisprudência do Tribunal Constitucional e, porventura, muitas mais vezes, os votos de vencido que também são um contributo do Tribunal Constitucional e podem ajudar a corrigir interpretações que estão a ser perversas ou menos correctas. Portanto, considero que temos até o dever para com o Tribunal Constitucional de auscultar a jurisprudência, estudá-la e trazer aqui aperfeiçoamentos. Entendo que esta questão está para além do problema das autonomias, apesar de reconhecer que pode ser mais sensível no domínio das autonomias.
Percebi também que o Sr. Deputado ficou um pouco preocupado com o uso da expressão «continente» no projecto do Sr. Deputado Mota Amaral. O artigo 5.º da Constituição diz que «Portugal abrange o território historicamente definido no continente (»)«

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Continente europeu!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Mas refere «continente». Já foi o africano, mas agora é o europeu.
Como estava a dizer, segundo o artigo 5.º, «Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira». Portanto, a expressão «continente» está na Constituição, embora referindo-se a continente europeu.
Sr. Presidente, eram estas as notas que queria aqui deixar.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Mota Amaral.

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O Sr. Mota Amaral (PSD): — Sr. Presidente, se mantivermos, ao longo da revisão constitucional, o nível de reflexão política e jurídico-constitucional que se manifestou no primeiro dia, não tenho dúvida de que iremos dar um contributo importantíssimo para a evolução do nosso Direito Constitucional, através da nossa reflexão político-constitucional. Congratulo-me com isso e também com o facto de ter dado um pequeno contributo para esta reflexão ao aparecer com algumas propostas que, embora não tivessem tido esse qualificativo, atrevo-me a dizer que foram por alguns consideradas provocatórias da discussão sobre matéria tão importante como a da organização do Estado português.
Penso que o ponto de partida tem de ser a natureza das coisas. Lembro, a esse propósito, o dito sábio atribuído a Napoleão, segundo o qual a política de um país está na sua geografia. Por isso, é fundamental ter mapas para vermos como os países estão situados e, imediatamente, tirarmos conclusões sobre a sua política.
Nesse sentido, conforme diz o artigo 5.º já aqui citado, o mapa de Portugal inclui três territórios. Esta é uma matéria da qual não podemos fugir. E não se trata apenas de três territórios ou de três quadros de terra, mas das pessoas que lá vivem. Desta realidade, decorrem consequências que em tempos passados foi possível organizar de uma maneira e que agora se têm de organizar de maneira diferente. Por isso, temos de ouvir o que se diz das regiões autónomas: o que se diz do arquipélago da Madeira, mais ao sul, perto da costa africana, e o que se diz do arquipélago dos Açores, que fica no meio do Atlântico, na mesma latitude de Lisboa e de Nova Iorque. Os responsáveis nacionais têm de ter em conta esta realidade. Há pouco invoquei a minha presença na Constituinte. Não me obriguem a invocar a minha anterior encarnação e o que vi nessa altura.

Risos.

Gostava de sublinhar um aspecto que é importantíssimo e explica muitas coisas: a pluralidade territorial do nosso País, que depois se prolonga no seu aspecto humano e demográfico, faz com que, para lá da Madeira e dos Açores, exista uma projecção de Portugal pelo mundo fora pelas razões naturais que são óbvias. Os madeirenses emigraram para a América do Sul, para África — há uma grande comunidade na África do Sul — e para a Austrália. Os açorianos foram, sobretudo, para América: primeiro, para o Brasil, depois, para os Estados Unidos e, nos últimos anos, para o Canadá. Estas comunidades fortíssimas continuam identificadas com Portugal através das suas ilhas de origem e da sua própria identificação cultural, ou seja, são madeirenses, são açorianos, são portugueses. A este respeito, há uma realidade que demonstra como esses conceitos não são sobreponíveis, pois todos os açorianos são portugueses, mas nem todos os portugueses são açorianos — com pena dos que não são, evidentemente.

Risos.

Estas realidades têm, portanto, uma consequência política, de que trata a nossa Constituição, que é a autonomia regional.
Penso que estamos a atribuir um contributo de fetiche à noção de Estado unitário. Distingo perfeitamente o que é o Estado unitário da unidade do Estado. Não confundo os dois conceitos e também não quero resumir a ideia do Estado não federal ou não confederal apenas à fórmula do Estado unitário.
Em Portugal, existe um tertium genus muito fortemente ancorado nas nossas realidades sociais e políticas, que são as regiões autónomas. Um continente com a nossa dimensão tem duas regiões autónomas que, insisto, não são apenas os tais arquipélagos, mas também a sua projecção, que, como bem sabemos, tanto nos enriquece e é um dos factores de afirmação do nosso País.
Ainda há poucos dias, quando esteve em Portugal o Presidente dos Estados Unidos da América, assisti a um facto estranho. Sabem quem é que valorizou os Açores na sua relação com os Estados Unidos da América, que é tão importante para Portugal? Foram os americanos. Deveria ter sido o Ministro português, mas foi a Secretária de Estado americana que referiu a importância dos Açores no relacionamento de Portugal com os Estados Unidos e as ligações antigas, ainda antes da independência dos Estados Unidos da América, dos Açores com a América.
Essas realidades não se podem, portanto, perder de vista, pelo que, quando falamos da necessidade de a realidade das regiões autónomas aparecer dentro da organização do Estado com todo o vigor, estamos a

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procurar dar tradução jurídico-política e jurídico-constitucional a essas realidades. Admito que a questão do território jurídico-político choque um pouco, mas é a realidade. Existem, de facto, três territórios jurídicopolíticos. Há, no entanto, uma precipitação, porque não é dito que se situam no mesmo plano, que sejam exactamente a mesma coisa. O território continental da República é a sede da República Portuguesa, cuja autoridade soberana se exerce em todo o território nacional.
Como aparte, queria referir uma questão sobre a qual não costumo falar mas que diz respeito à organização do Estado e que, portanto, também se situa no plano jurídico-constitucional. Não subscrevo a expressão, agora corrente nos Açores, de «governo dos Açores». Não há o governo dos Açores, mas dois governos nos Açores: o Governo da República Portuguesa, que, obviamente, exerce as suas competências no âmbito do poder soberano sobre os Açores, e o Governo da Região Autónoma dos Açores. Existe o Governo da Região Autónoma dos Açores e o Governo, que também exerce o poder soberano sobre os Açores, com plena autoridade, resultante da circunstância de os cidadãos residentes nos Açores — tal como os da Madeira, mas destes não me compete falar — elegerem os órgãos de soberania, votarem para o Presidente da República, votarem para o Parlamento e não quererem deixar de ter, de forma alguma, essa sua participação no exercício do poder soberano do Estado.
Nunca reclamámos a existência de tribunais próprios. Esse seria, de facto, o passo seguinte para o federalismo, mas não está em cima da mesa. A nossa aspiração autonómica não se situa apenas no âmbito administrativo e financeiro, pois, com a Revolução do 25 de Abril e aproveitando a dinâmica de libertação, deu um salto qualitativo com autonomia no domínio político, no domínio legislativo e no domínio governativo. Não se podem ignorar essas realidades e não se pode olhar para o Estado português como nos tempos antigos.
Verifico que os porta-vozes das organizações autónomas dos Açores e da Madeira do PSD são mais inconformistas e que os do PS estão, neste momento, muito bem comportados. No entanto, sublinho que, quanto à substância, o discurso do Sr. Deputado Ricardo Rodrigues coincide exactamente com o que referi.

O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, não havendo mais inscrições, dou por concluída a discussão do artigo 6.º da Constituição.
Antes de darmos por terminada a reunião de hoje, valia a pena entendermo-nos sobre a próxima reunião.
Creio que a Comissão para a Revisão Constitucional não tem mais condições para reunir no ano de 2010, pelo que retomaremos em 2011. O primeiro dia de trabalhos da Assembleia é quarta-feira, dia 5 de Janeiro. Nesse dia, uma vez que em Plenário haverá declarações políticas, talvez seja complexo a Comissão reunir, pelo que a questão que se coloca é a de sabermos se reunimos no dia 5 ou no dia 12.

Pausa.

Uma vez que todos estão de acordo que devemos reunir dia 5, tenho receio que, na primeira sessão plenária, depois de uma interrupção relativamente prolongada, todos os grupos parlamentares façam declarações políticas e que seja muito realista começar a nossa reunião às 16 horas e 30 minutos, a menos que comecemos um pouco mais tarde.

Pausa.

Não havendo objecções, a próxima reunião será no dia 5 de Janeiro, às 17 horas, com a continuação da discussão de artigos da Constituição (artigos 7.º a 23.º).
Está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 44 minutos.
A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.

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