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dos privilegios exclusivos da caça? Ou antes os possuidores do direito privativo de devastar as terras dos visinhos regadas com o suor de seus rostos? Não, Sr. Presidente, esse odioso direito já lá vai. Teremos mêdo de nessa Camara outra vez encastellar os defensores dos privilegios de asylo, e menagem, isto é, os Senhores do direito de dar couto aos malfeitores contra a justiça, e as leis do paiz? Não, Sr. Presidente, tambem esse direito de detestavel memoria já se foi, para cá mais não voltar. Será para que lá não vejamos os Privilegiados com a isenção dos tributos, os Monopolistas das honras, e empregos do Estado; os Advogados dos direitos banaes? Não, Sr. Presidente, a esses revoltantes abusos a espada do Grande Pedro deu o ultimo golpe, e lá estava na Carta, na Constituição de 22, e agora está no actual Projecto o seu termo d'obito, e o Povo Portuguez não crê na sua resurreição. - Será finalmente por temer que ainda se abram as portas de ferro da Inquirição, e se accendam de novo as suas fogueiras? Não, Sr Presidente, nem cem Camaras de Pares de D. Miguel, se Camaras de Pares D. Miguel podesse Ter; nem quantos Jesuítas a Austria podesse recambiar para Portugal poderiam hoje fazer «prevalecer as portas do Inferno contra este triumfo da Igreja de Deos!!» Pois então, se a restauração do reinado dos privilegios, e abusos odiosos já não e para temer, que nos assusta? Será a esperança mais bem fundada de ver na segunda Camara o Magistrado encanecido no serviço, que nunca torceu a vara, nem para a direita, nem para a esquerda, que não vendeu ao rico a preço douro a justiça do pobre? Será o vêr lá o Militar coberto de cicatrizes, e de honras adquiridas nos combates contra os inimigos da liberdade, e independencia da Patria? Será porque nos assombra a presença do Nobre, cujo unico merito não é o accidente do nascimento, mas as qualidades, e serviços proprios, que nada perdem com a recordação dos nomes famosos de seus maiores? Será porque temos vergonha de lá encontrar o Ecclesiastico venerando, que nunca achou incompativel a liberdade com a lei do Evangelho, e que nunca escandalisou os Povos, nem com sua vida devassa, nem com a ostentação de doutrinas d'um espirito forte!! Será finalmente porque a razão não soffra lá ver o Negociante probo e consumado nos conhecimentos de sua profissão? O benemerito Proprietario ornado da nobre independencia, que geralmente distingue a sua classe? Ou o Sabio, que consumiu sua longa, e honrada vida no estudo das sciencias, para esclarecer e honrar seu paiz? É possível que em uma Assembléa destes Varões não tenhamos de ver (como se deu a entender) senão um viveiro de satellites do poder, e da tyrannia, de corruptores das instituições liberaes, e d'oppressores de seus concidadãos? Pois da educação, dos estudos, da experiencia, dos serviços, da pratica das virtudes não temos melhores fructos a esperar? Se tal é, eu renego a natureza humana, e as suas instituições, para ir viver em um Sertão. Mas não, Sr. Presidente, este negro quadro não é senão uma visão fúnebre d'uma fantasia perturbada pelo temor excessivo de perder a liberdade, e por tanto, eu inspirado por melhores razões, e possuído das roais animadoras esperanças, voto por uma segunda Camara.
O Sr. Fernandes Costa: - Sr. Presidente, não é a vã pertenção de dizer cousas novas, depois d'uma tão longa como sabia discussão, a que me impelle a erguer a fraca voz; é sim o receio insoffrido de dar um voto silencioso em materia grave e importante como esta, tão grave, que eu cuido ir nella alguma parte dos destinos da minha patria. Possam estes ser taes, quaes eu os desejo, e todo este Augusto Congresso; mas se por desdita, que eu não aguardo, assim não acontecer, ao menos não me restará o remorso de ter dado um voto, que não tivesse profundamente no meu coração, e ao mesmo tempo na minha cabeça. - É pela mesma importancia da materia, que eu não posso tambem eximir-me de fazer prévias, mas rapidas considerações, que assignalem bem os escolhos, porque temos passado, e nos tem sido funestos, a fim de os evitarmos cuidadosamente.
Um terrivel como erroneo principio tem pesado por longos tempos sobre os Povos, que tem querido ser livres; é este erroneo principio - que a bondade d'uma Constituição politica é absoluta, e não relativa às circumstancias, aos habitos, e ao estado dos Povos, que a adoptam. - Este principio tem sido sobremaneira infesto a todos os Povos, que quizeram ser livres, erguendo contra a realisação dos seus mais vehementes desejos dificuldades sem conto, em vez de lhas aplainar, fazendo-os retroceder, ou desvairar no caminho da liberdade, em vez de os fazer progredir seguros no caminho da mesma. Ahi passou o ultimo meio seculo, que vio nascer e morrer tantas Constituições banaes, sem que alguma correspondesse ao proposito de seus auctores, ou aos desejos e esperanças dos Povos, que as proclamaram; é este o mais alto, e irrefragavel testamento da minha asserção.
As mesmas vicissitudes, e revezes politicos por que temos passado ha mais de dezeseis annos, parecem ter corrido debaixo do maligno influxo deste asiago principio. Os sabios Legisladores de 1820 esforçaram-se por transplantar e radicar em Portugal uma arvore, com a qual a França, e a Hespanha haviam feito não satisfactorios ensaios; e não cuidaram de examinar se as circumstancias, se os habitos, e as necessidades, em uma palavra, o modo de existir da Nação Portugueza era ou não identica ao destas duas Nações. Não cuidaram de o fazer, nem, Sr. Presidente, o podiam fazer; porque quem poderia dizer ou que Portugal de 1820 se parecia com a França de 1791, ou com a Hespanha de 1812? E quando por ventura esta identidade de circumstancias fosse demonstrada, nada mais haveria que podesse reluctar à radicação dessa arvore? Não estavam ainda vivos e frescos na memoria de todos seus desabonados fructos naquelles dous paizes, que com tanto enthusiasmo e admiração a viram erguer? Certamente o estavam; e taes eram elles, que por si os bastavam, quando bem se lhes fosse attento, para convencer que se não podia ir peor caminho para dar á Nação a liberdade, que ella altamente reclamava, do que copiando quasi litteralmente o que haviam feito outros Povos. Este o escolho liberticida, que os Legisladores de 1820 não souberam, ou não poderam evitar. Eis aqui, porque a Constituição de 1822, em desacordo com as necessidades e circumstancias sociaes do paiz, e apresentando uma consideravel preponderancia do elemento democratico sobre o monarchico, e por tanto entre estes uma forte causa de desequilibrio, sempre incompativel com a estabilidade e duração d'instituições politicas; eis aqui, digo, porque a Constituição de 1822 durou menos do que custou a fazer, apesar dos incontestaveis desejos da Nação Portugueza, que queria e anhelava a sua liberdade, e a permanencia d'instituições, que com electrico enthusiasmo havia reclamado. Eu bem sei, e esta verdade brada bem alto, que cem mil baionetas ás vozes dos tyrannos, desceram os Pyreneos; que uma aristocracia soberba e ainda forte se circumvolvia de intriga em intriga, de conspiração em conspiração, que havia um numeroso e influente clero monachal, inimigo nato de toda a instituição liberal, senhor da consciencia d'um Povo pouco illustrado, e a respeito do qual foram nimiamente miopes em politica os Legisladores de 1820, cuidando que tão vivaz inimigo podia acabar com uma morte lenta, tudo isto póde concorrer, e certamente concorreu para aquella queda; mas é tambem inegavel que ella seria muito mais retardada, e muito maiores as resistencias oppostas a essa mesma queda, se os proprios defeitos da Constituição a não enfraquecessem tanto.
Correu annos o absolutismo, e um Principe Portuguez, ha muito em um paiz remoto, que já fôra parte integrante da Monarchia, e por isso não sabedor das circumstancias, e dos verdadeiros interesses e necessidades do paiz, restituir-nos os fóros e liberdades, que seus Maiores nos haviam usui-