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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
isso mandei entrar na igreja toda a força. Uma parte d'ella tinha ainda as armas carregadas, mas desde a noite antecedente e pelos motivos já expostos.
Eu estava, segundo dizia a minha guia de marcha, á disposição do administrador do concelho. Este, ao intimar-me tal requisição, invocou a auctoridade do presidente da assembléa que o ouviu e o não desmentiu. A ordem não me foi dada por escripto nem eu a exigi, porque a urgencia das circumstancias me pareceu dever ser tal, que o tempo gasto n'essa formalidade seria perdido. Alem d'isso as instrucções militares insertas na ordem do exercito n.º 48 de 1870 dizem expressamente que a ordem por escripto se dispensa quando for dada diante de testemunhas, e ali havia como testemunhas as pessoas que constituiam uma numerosa assembléa. Não me pareceu essencial portanto a ordem por escripto, e mesmo que o fosse era ao administrador que competia pedil-a ao presidente da assembléa, de quem recebêra a ordem e m'a transmittíra a mim, que tinha sido posto á sua disposição.
Perguntar lhe quaes eram os acontecimentos graves succedidos ou esperados, que justificavam a entrada da tropa na igreja pareceu me n'aquelle momento poder ser tomado como interferencia no desempenho dos seus deveres. Entrei portanto na igreja, e mandei collocar a tropa conforme o administrador do concelho lhe indicou que era necessario. Só muito mais tarde, quando mais socegadas no meu espirito as perturbações da rasão, que acontecimentos d’esta ordem sempre produzem, é que percebi que o fim a que se destinavam estas precauções militares era não o satisfazer a qualquer necessidade de ordem publica, mas a proteger um acto fraudulento, criminoso e indigno, qual era a falsificação do acto eleitoral.
O escrutinio não tinha principiado ainda quando me foi requisitado que mandasse entrar a força. Nem dentro nem fóra da igreja havia indicios de desordem. Havia simplesmente grupos de individuos, mas em attitude pacifica; perto da mesa alguns individuos, que mais tarde soube serem eleitores, discutiam com o presidente da assembléa e administrador do concelho; e só mais tarde soube que o assumpto da discussão era o quererem elles conservar-se junto da mesa, para fiscalisar os actos eleitoraes, e não lhes ser isso consentido.
Ao entrar a força na igreja requisitou-me o administrador, sempre em nome do presidente da mesa, que collocasse duas fileiras, uma de cada lado da igreja. Estas fileiras entre as quaes ficava quasi todo o corpo da igreja, eram destinadas a impedir que qualquer individuo estranho á mesa ultrapassasse uma certa linha que se achava perto da porta principal, a qual se conservou sempre fechada, estando aberta sómente uma lateral. O espaço vedado comprehendia toda a igreja menos uma estreita zona junto á porta principal. Um eleitor, que insistia em conservar-se junto á mesa, foi preso pelo administrador do concelho. Preparadas assim as cousas, e tendo-se dirigido varias pessoas ao administrador do concelho protestando pelos seus direitos, este lhes respondeu que cumpria as ordens do presidente da mesa.
Alguns eleitores, ao verem frustradas as suas diligencias para conseguirem o approximar-se da mesa, clamaram em voz alta contra aquella violação que se fazia aos seus direitos e declararam que abandonavam a igreja e a eleição, e que iam protestar. Este acto pacifico e legal, assim praticado por gente que eu ouvira classificar como revolucionaria, e n'um estado de exaltação que ameaçava a ordem publica; este acto nobre e digno, praticado pela gente da opposição, foi para mim um raio de luz que entrou no meu espirito perturbado. Comecei a desconfiar de que os unicos revolucionarios em Ceia eram o administrador do concelho e os seus amigos, e que eu estava ali em nome da obediencia passiva representando um indigno papel, o papel de sicario.
Subiu-me a côr ao rosto, envergonhei-me por mim, pela classe militar e pelo paiz, ao achar-me ali inesperadamente, eu official do exercito, investido no commando de tropa, forçado a assistir a um acto criminoso, e dar-lhe o auxilio da força, publica, que é só destinada a defender as leis.
Lembrei-me de protestar ali mesmo contra este facto inaudito saíndo da igreja, e abandonando em seguida o concelho do Ceia, indo protestar perante os poderes publicos contra os que de mim tinham exigido, em nome da obediencia passiva, que me tornasse cumplice n’uma acção criminosa. Cheguei a perguntar ao meu immediato, o segundo sargento Aguiar, se os soldados tinham ali todos os artigos do seu uniforme e equipamento para uma marcha immediata. Felizmente respondeu-me que não, e por isso resolvi-me a deixar continuar o acto, e protestar contra elle depois de consummado. Lembrou-me tambem que a minha saída da igreja poderia ser causa de alguma perturbação. Quem me assegurava, com efeito, que os individuos que tinham abandonado a igreja para irem protestar, diziam elles, se tinham ou não ido armar, e que vendo a igreja desguarnecida entrariam n'ella para commetterem algum desacato? Seria enorme então a minha responsabilidade. Só mais tarde, e depois d'estes acontecimentos, é que soube que elles tinham com effeito ido protestar, e que não tinham sequer pensado em resistir por meio da força a tão solemnes actos de provocação!
Nos primeiros momentos, quando vi a insistencia de alguns eleitores em quererem approximar-se da uma, ainda procurei fazer ver ao administrador do concelho que aquella exigencia era legal, mas elle respondeu-me bruscamente, que eram aquellas as ordens do presidente da mesa, que a opposição tinha suspeitado os eleitores governamentaes de quererem de noite roubar a uma, e que por isso «a uma provocação se respondia com outra»; poderia ter-lhe respondido, que a força publica não era destinada a provocar ninguem, mas no estado de perturbação em que me achava, nem isso me lembrou. Entreguei-me á sorte dos acontecimentos.
Durante cinco horas a força do meu commando esteve condemnada a permanecer a pé firme, assistindo á perpetrarão de um escandalo inaudito. A mesa estava collocada em sitio onde era impossivel a fiscalisação que aos eleitores incumbe. A uma em vez de estar de pé, esteve deitada, e com a bôca virada para o peito do presidente. Alem da uma, e encobrindo-a toda, estava sobre a mesa um grande caixão, o que tinha servido para conter a uma de noite. Este caixão de grandes dimensões, interceptava completamente a vista e impedia que fossem vistas pelo publico a uma e as operações que com ella se faziam. A minha indignação n'um certo momento foi tal, que não pude conter-me. Aproximei-me do presidente da mesa, e disse-lhe pouco mais ou menos o seguinte: «A força publica não serve para isso. A uma está deitada, e ninguem póde ver se as listas saem d’ella ou da sua algibeira». O presidente respondeu-me não me lembra o quê, e poz então a uma em pé. O acto eleitoral correu, pois, n'estas circumstancias, e teve por conclusão o que era de esperar. A opposição sabia que tinha mettido na urna pouco mais ou menos um certo numero de listas, mas os escrutinadores não consentiram que ellas de lá saíssem. E esta enormissima fraude, este indigno attentado contra as liberdades publicas, esta provocação á desordem, foi commettida com o auxilio e a protecção da força armada, commandada por mim e em nome da obediencia passiva!
Fechadas e lidas as actas falsas d'aquella escandalosa sessão e consummado aquelle audacioso ultrage á decencia publica, retirei com a força do meu commando, resolvido a protestar immediatamente e por qualquer fórma contra o acto, a mim requisitado, de criminosa cumplicidade n'um crime publico. Eu era hospede do administrador do concelho, e o brio militar, por elle tão gravemente insultado na minha pessoa, não me permittia continuar a sel-o. Mandei,
Sessão de 13 de janeiro de 1879.