64
DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
pois, buscar tudo quanto tinha no quarto que estivera á minha disposição.
Logo que saí da igreja e mandei dispersar a força, dirigi-me á residencia do juiz da comarca, a fim de protestar perante elle contra aquelles que tinham usado da força do meu commando para os auxiliar em tão ignominioso acto. Ia tambem pedir-lhe que me hospedasse, visto que a minha dignidade não permittia que continuasse residindo em casa do administrador do concelho.
Quando ía em caminho fui encontrado por um official de diligencias, portador de um officio do meritissimo juiz, no qual eu era intimado para comparecer no dia seguinte como testemunha d'aquelles acontecimentos, acompanhado dos sargentos meus subordinados. Apesar d'isso continuei no meu caminho até á residencia daquelle magistrado, e declarei-lhe que a minha intenção fôra sempre protestar eu mesmo, em nome da classe militar, contra o ultrage que me havia sido feito, mas que visto haver já em juizo um requerimento no qual eu era citado como testemunha, compareceria como tal, reservando me para mais tarde protestar por outra fórma. Não podendo aquelle magistrado hospedar-me em sua casa, por não ter quarto disponivel, fui procurar o delegado da comarca, a quem fiz igual pedido, o qual tendo sido satisfeito, estabeleci a minha residencia em sua casa. Não quiz procurar hospedagem em nenhuma casa particular, porque não conhecendo ali ninguem, poderia succeder que fosse ter a casa de alguma pessoa que não fosse insuspeita, como o eram aquelles dois magistrados. Á maneira obsequiosa como fui tratado por um e outro d'estes funccionarios publicos, o ex.mo juiz dr. Eduardo Coelho e o ex.mo delegado dr. Toscano, quando eu funccionario publico tambem, collocado em circumstancias excepcionaes, lhes fui, sem que os conhecesse, pedir asylo, não é esta a occasião de agradecer. Espero, porém, que ainda viverei o tempo sufficiente para poder provar lhes o meu reconhecimento.
Logo que me achei installado, escrevi ao administrador do concelho um officio n'estes termos:
«Ill.mo e ex.mo Sr. - Rogo a v. ex.ª se sirva de me dispensar de continuar a acceitar a hospedagem official que me ofereceu, e da qual me tenho utilizado. A maneira como o acto eleitoral correu hoje na igreja, exigindo-se que a força publica, só destinada a manter a ordem, protegesse um acto de coacção aos eleitores, obriga-me a rogar-lhe, em nome da classe militar, que não requisite de mim mais actos da mesma especie, e me permitta o retirar-me amanha com a força do meu commando. — Acantonamento em Ceia, 15 de outubro de 1878. - (A) F. A. Pinheiro Bayão.
No dia seguinte fui depor no tribunal, e depozeram os meus immediatos. O que eu declarei, e que elles declararam, e que terá sido de certo confirmando por todas as testemunhas inquiridas em seguida é sufficiente, creio eu, para que os tribunaes imponham aos réus uma pena tão grave como os seus crimes. Estamos, porém, n'um paiz, onde taes sentenças se não cumprem, porque o poder moderador cobre sempre os criminosos d'esta especie com o seu manto de misericordia; e isso explica o ponto a que chega a audacia d'aquelles que têem a impellil-os ao crime, alem da perversidade natural, a certeza da impunidade.
No dia seguinte recebi do quartel-general um telegramma, ordenando-me que recolhesse ao corpo immediatamente, deixando em Ceia dezoito praças e um sargento; e recebeu ordem de marchar para Ceia o tenente de cavallaria 8, Antonio Baptista Lobo, com vinte e cinco praças e outros tantos cavallos que commandava em Gouveia, para onde, como eu, tinha sido mandado em serviço eleitoral. Contei a este official que me ficou substituindo tudo quanto havia succedido, e retirei-me. Não sei o que se passou depois. Sei sómente que tambem aquelle official foi mandado retirar de Ceia, provavelmente porque não quiz satisfazer a alguma exigencia absurda. Ficaram portanto em Ceia sómente dois sargentos, um de infanteria, outro de cavallaria, e a historia não diz ainda se elles conseguiriam ou não ser honrados com a confiança do administrador de Ceia.
Protestando perante a opinião publica contra os factos mencionados, que são de escrupulosa verdade, o meu fim não é requerer o castigo dos culpados. Sei que seria baldado empenho. Não é tambem concorrer para que seja annullada a eleição de Ceia, pois sei que as normas de honra e decencia pelas quaes se regulam os parlamentos não são as mesmas que regulam a vida commum. O meu fim é sómente desaggravar a classe militar do vexame que soffreu na minha pessoa e na dos meus commandados.
Ao meu officio já citado, escripto ao administrador do concelho, respondeu-me elle o seguinte:
«Envio devidamente assignada a guia que acompanhou o officio inconveniente de v. que hontem ao anoitecer recebi, e a que não devo responder.» — Mas apesar de «inconveniente» esse officio estava bem longe de exprimir a indignação de que me achava possuido. Bem pouco disse eu n'um caso de tanta gravidade, mas se tão pouco disse então, foi porque me reservava dizer o resto de algum modo mais publico e mais solemne.
Guarda, 20 de outubro de 1878. Francisco Antonio Pinheiro Bayão, capitão de infanteria 12.
Auto de syndicancia
Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1878, aos 19 dias do mez de novembro, n'esta villa de Ceia, e na secretaria da administração do concelho, aonde se achava o dr. José Pereira Monteiro, administrador do concelho da Guarda, em commissão regia n'este de Ceia, commigo escrivão de seu cargo, para o fim de proceder a este auto de syndicancia ácerca dos actos de violencia que o capitão do exercito, Francisco Antonio Pinheiro Bayão, em um protesto publicado no Jornal de Vizeu n.º 1472, e que com a portaria do ministerio do reino, que ordenou esta syndicancia, e alvará do governo civil d'este districto, fica fazendo parte d'este mesmo auto, diz lhe foram exigidos na assembléa eleitoral d'esta dita villa, por occasião da eleição de um deputado por este circulo n.º 76; sendo os factos mais importantes mencionados no alludido protesto os seguintes:
1.º Que a uma fôra roubada violentamente com o auxilio da força publica, commandada pelo capitão do exercito Francisco Antonio Pinheiro Bayão.
2.° Que o referido capitão Bayão recebêra do administrador d'este concelho, o dr. Elisiario Vaz Preto Casal, sem o esperar, em plena assembléa eleitoral, na presença do presidente da mesa, e em nome d'este, ordem para entrar immediatamente na igreja com toda a força do seu conluiando, que se achava postada á porta da mesma igreja.
3.° Que aquella ordem ou requisição fôra feita nos termos legaes, e em circumstancias que o mesmo capitão commandante da força não póde eximir-se ao seu cumprimento.
4.º Que na occasião em que a força armada entrou na igreja, aonde se achava reunida a assembléa eleitoral, não havia indicios de desordem.
5.° Que a força armada, depois de entrar na casa da assembléa eleitoral, occupára a posição que lhe foi indicada pelo administrador do concelho, conservando-se n'ella até que terminaram os trabalhos eleitoraes.
6.º Que durante o acto eleitoral, e depois da força armada se achar na casa da assembléa, fôra ali preso um cidadão eleitor que insistia collocar-se junto da mesa.
7.° Que depois d'estes factos alguns cidadãos se dirigiram ao administrador do concelho, protestando contra elles; porém que esta auctoridade os desattendêra, dizendo-lhes que sómente cumpria as deliberações do presidente da mesa, em virtude do que, e vendo frustradas as suas diligencias, os mesmos cidadãos clamaram em voz alta contra uma tal violação dos seus direitos, e declararam que abandonavam a eleição, saíndo em seguida da igreja.