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Discurso que devia ser transcripto a pag. 115, col. 2.ª, lin. 11.ª do Diario de Lisboa, na sessão de 13 de janeiro

O sr. Mártens Ferrão: — Começando se na sessão passada a discutir o projecto de lei ácerca de viação municipal, usei da palavra, declarando — que achava convenientes algumas, ou uma grande parte mesmo, das prescripções adoptadas no projecto. Entendi de grande necessidade — que se tomassem providencias ácerca da viação municipal, concordando por isso em these com o principio geral do projecto, approvando o na generalidade; mas discrepando em pontos que entram na sua organisação e que influem no seu todo; a respeito d'elles desejarei, perante a camara, expor simplesmente a minha opinião.

O ponto fundamental da minha divergencia em relação ao projecto do governo consiste — em que n'este projecto a autonomia municipal é ferida em alguns dos seus artigos, porque as attribuições das municipalidades, em relação á parte deliberativa e á parte executiva com respeito a caminhos vicinaes, passam todas para as mãos do governo.

Este facto, estas disposições, viciam quaesquer reformas que se queiram fazer n'este sentido; se ellas forem adoptadas não é necessario muito trabalho para sustentar esta minha proposição.

O projecto estabelece no artigo 2.° que = o governador civil, com o pessoal technico das obras publicas, proceda á confecção provisoria do plano de estradas municipaes e sua classificação, e aos outros trabalhos que lhe são relativos =. Esses trabalhos são — determinar primeiro quaes as estradas que são municipaes e as que o não são, o que não está determinado; designar o ponto onde começam e onde devem terminar, quer dizer, a sua directriz; a largura que devem ter; a sua extensão approximada; e a designação dos municipios que devem concorrer para a feitura ou conservação de cada uma d'ellas.

Elaborado assim este trabalho, são sobre elle ouvidas as municipalidades pela fórma consultiva, e depois de um inquerito aberto á similhança do que se pratica pela legislação belga, este trabalho é remettido a uma commissão central de viação publica, que é composta do governador civil, do director das obras publicas, de um outro empregado das obras publicas e de dois membros eleitos da junta geral do districto; mas ainda os trabalhos d'essa commissão não são verdadeiramente definitivos, porque hão de receber a approvação ou reprovação do governo em conselho de obras publicas, quando d'ellas tiver havido recurso.

Essa commissão permanente de viação tem a seu cargo: a classificação das estradas municipaes, ou sejam estradas municipaes de 1.ª ordem ou sejam de 2.ª; quer dizer, ou sejam estradas privativas do municipio, ou estradas que liguem municipio a municipio; a superior inspecção e fiscalisação de todas as obras de viação municipal executadas por administração ou por empreitada; a approvação de todos os projectos de obras respectivas a viação municipal; determinar annualmente, em vista dos orçamentos e recursos das camaras municipaes e do estado das estradas, as obras a fazer no seguinte anno; apresentar todos os annos um relatorio circumstanciado sobre o estado da viação municipal do districto, com especificação dos trabalhos e despezas que se effectuaram no anno anterior; propor as providencias que julgar convenientes a bem d'este serviço. Tudo isto abrange a parte deliberativa, de execução.

O governo por consequencia resolve definitivamente os recursos que se levantarem sobre qualquer acto praticado por esta commissão permanente de obras publicas, e os recursos podem recaír sobre todos ou quasi todos os pontos da sua gerencia; por consequencia não só porque a commissão é na sua maioria a representação do poder central, mas tambem porque o governo pôde resolver superiormente todos os pontos sobre que houver recursos, é claro que essas attribuições passam incontestavelmente para a mão do governo.

Ha mais no artigo 6.° o seguinte, e tudo isto se liga no mesmo systema (leu).

Quando o governo julgue conveniente classificar como estrada municipal alguma das estradas reaes ou de 1.ª ordem já existentes, ouvirá os conselhos municipaes interessados e respectiva commissão de viação, ficando definitiva a classificação que o governo decretar.

É a auctorisação ao governo para poder passar a municipaes a ordem de estradas que entender convenientes. Não me refiro ao bom ou mau uso que o governo possa fazer d'esta auctorisação; refiro-me á ordem de attribuições que vão ser centralisadas completamente na mão da auctoridade governamental.

O artigo 12.° estabelece que = as obras sejam feitas de empreitada =, e boa é esta disposição, mas estabelece ainda que = as condições do contrato e fórma de licitação e concurso sejam sujeitos á approvação da commissão de viação municipal =.

Aqui está mais um ponto em que tambem as attribuições passam para esta commissão, que é uma representação do poder central, pela fórma por que está organisada, como já disse.

Isto, sr. presidente, constitue uma centralisação na mão da auctoridade governamental das attribuições que pertenciam ás municipalidades desde longa data; desde a velha legislação das ordenações e subsequente do antigo regimen até á de 1850, que as conservou, e ainda á de 1862 (15 de julho) que não alterou a este respeito.

Póde dizer se, e com rasão, que o uso que em grande parte se fazia d'estas attribuições não era como devera ser; não era tão illustrado como conviria que fosse; e este argumento, ou este facto, direi melhor, que eu não contesto, para mim é sem duvida um argumento para a reforma e melhoramento municipal, mas nunca para lhe ir cercear uma attribuição summamente importante de que ainda hoje gosa o municipio.

Se nós formos a cercear as attribuições que competem ás municipalidades, este elemento municipal fica sem força no paiz, e desde que elle não tenha força deixa de existir ou arrosta uma vida indifferente e sem importancia na administração.

O que succede no nosso paiz em relação a attribuições municipaes, quanto á viação municipal, e ao bom ou mau uso que d'ellas se tem feito, succedeu tambem em relação a toda a viação publica. Pois o que eram os nossos trabalhos de viação publica ha quinze annos atrás? Incontestavelmente imperfeitíssimos. Qual foi o trabalho que se seguiu? Foi reformar. É o que eu desejo que se faça em relação ás municipalidades, mas não requestar lhes as suas attribuições, porque estas prendem com uma outra ordem de principios, que é o governo local que deve animar-se e não ser abatido.

O que succedeu entre nós, succede nos outros paizes, porque os aperfeiçoamentos da viação publica são, póde dizer-se, de moderna data; mas o que fizeram os paizes illustrados, a alguns dos quaes o projecto foi beber uma grande parte das suas disposições?

Eu já tive occasião de dizer aqui hontem, que o projecto era baseado essencialmente, numa grande parte das suas prescripções, na lei franceza de 21 de maio de 1836, e que em algumas outras prescripções seguira a legislação belga, por exemplo, quando estabelece o praso de um mez para as reclamações, que na legislação da Belgica é de dois mezes; mas na parte que eu impugno o projecto afastou-se completamente da legislação d'aquelles dois paizes, e ou seguiu um caminho seu privativo, ou foi seguir as disposições e principios da legislação hespanhola de 22 de julho de 1857, legislação em que se centralisaram todos os trabalhos municipaes na mão do governo, havendo uma liquidação das despesas já feitas em virtude da legislação anterior, principalmente da legislação de 1851, que o governo compensou com obras nas respectivas provincias ou municipalidades. Mas cumpre notar que na Hespanha as idéas de administração em geral têem seguido a corrente das opiniões politicas, e variado com ellas.

Uma parcialidade eleva o principio de dar desenvolvimento moral á acção municipal; vem outra e enfraquece-o: é assim que se tem andado, sem que se possa dizer, que se tenha assentado sobre bases certas e definidas a verdadeira reforma do systema municipal.

Confrontando pois o projecto de lei, não com este systema que não julgo seja o mais conveniente, mas com a legislação franceza e belga, notarei á camara os principios em que esta materia está baseada n'estes paizes, e a profunda divergencia que ha entre o pensamento do governo e o que se segue n'aquelles paizes, um doa quaes, a França, não póde ser suspeita para os que sustentam a centralisação administrativa.

Todos sabem que o principio centralisador existe em larga escala no regimen francez; pois lá o systema municipal em relação á viação publica não soffreu o golpe que soffre aqui pelas disposições d'este projecto. E é necessario ver que a lei de 21 de maio de 1836 não é a unica que regula esta materia, porquanto esta lei deixou subsistir a legislação anterior, e por ella é que se deve entender o que respeita ao estabelecimento e designação de caminhos municipaes.

Ha ali attribuições unicas e exclusivas dos municipios, ou communas, como é a designação dos caminhos municipaes homologada pelos prefeitos. Diz a legislação franceza: «Os caminhos vicinaes de grande e pequena communicação são reconhecidos taes por accordão dos prefeitos sobre deliberação do conselho municipal, que constata que a existencia d'estes caminho sé necessaria para a communicação doa consumos». Classificados assim os caminhos municipaes, sem distincção de 1.ª ou 2.ª classe, sem distincção de caminhos municipaes de grande transito, ou só para dentro da municipalidade, é ao conselho geral de departamento que compete a deliberação ácerca de, d'entre estes caminhos já classificados como communaes pelos conselhos communaes, quaes os que devem pertencer á 1.ª classe, ou de grande transito. Quer dizer quaes os caminhos de grande transito ou de pequeno transito, mas não foi arrancada ao elemento da povoação a attribuição que tinha de designar a ordem d'esses caminhos (apoiados). Competem, é certo, diversas attribuições ao prefeito, mas nenhuma d'ellas na escala que vem consignada neste projecto para a auctoridade ou governo central; salvo o principio que já referi, de que, quando ha caminhos municipaes que pertençam a concelhos de diversos districtos, é chamado sómente o prefeito a dirigir a parte policial, note-se bem, porque se podem dar conflictos entre diversas municipalidades, e então o governo entendeu que era necessario conferir ao prefeito exclusivamente essa attribuição de policia.

Temos portanto á face da legislação franceza subsistente, que o principio municipal foi ali mais respeitado, embora aquelle paiz seja o systema centralisador, do que o é pelo projecto que discutimos.

E não póde dizer-se que o estado em que se achavam em França os trabalhos municipaes era perfeito. Não, senhor; d'aquellas reformas e com aquelles elementos é que tem saído o aperfeiçoamento d'estes trabalhos.

Mas se se quizer confrontar o projecto com a legislação belga, a discrepancia é ainda maior, porque este paiz é descentralisador.

A Belgica que, á excepção da Inglaterra, é o paiz onde a viação publica está mais aperfeiçoada, tem a viação municipal entregue toda á municipalidade com fiscaes do governo, com interferencia não deliberativa, mas scientifica dos homens technicos das repartições do estado.

São os concelhos municipaes que designam quaes são os caminhos municipaes; é a deputação permanente que existe perante a provincia ou governo provincial, e por consequencia toda electiva, toda de representação local, que faz a classificação de quaes são os caminhos municipaes de 1.ª classe.

Já vemos pois que d'este modo tem sido possivel chegar a um aperfeiçoamento d'este' ramo importante de administração publica, sem desnaturar a instituição e sem arrancar á municipalidade as attribuições que lhe pertencem, porque nascem da ordem de interesses que ella é chamada a representar. É o systema de dois paizes, mas systema de dois paizes importantes, onde a viação publica está summamente desenvolvida, e nas quaes o principio da municipalidade foi respeitado: na Belgica muito mais, porque lá é descentralisador o governo; na França menos, mas sem fazer excepção quanto ao respeito que tem ao principio communal na sua fórma de organisação e administração geral.

Se nós olhâmos para um outro paiz, a Inglaterra, ahi veremos que a organisação da viação municipal é toda entregue ao governo da localidade, com uma direcção intelligente, e com uma fiscalisação acertada.

Citarei ainda um exemplo importante que a camara de certo conhece, succedido com o Piemonte.

Apenas o Piemonte pôde libertar a Lombardia do jugo a que estivera sujeita, a primeira cousa que fez foi dar-lhe uma larga instituição municipal, pela lei de 23 de outubro de 1859, instituição em que este systema de viação foi considerado como attribuição exclusiva da municipalidade com uma direcção discreta e intelligente; não a cerceou, não a centralisou no governo, porque a Italia, paiz que tanto soffreu e tão abatida foi em relação á sua independencia, sabe praticamente que se conservou sempre um grande desenvolvimento e illustração na sua vida de povo foi; principalmente devido ás suas fortes instituições locaes, que não consentiram que a dominação que sobre ella pesou por muitos annos podesse extinguir as profundas raizes que ali tinha lançado o elemento da municipalidade e a independencia local.

Eis-aqui tem v. ex.ª quaes são os precedentes, o estado de uma grande parte dos paizes civilisados em relação a esta materia importante.

Não desenvolverei agora este ponto, nem mesmo tratarei de expender as vantagens que ha n'um grande desenvolvimento municipal, seria levar muito longe estas reflexões, que são apenas o fundamento de um voto.

Eu approvo o projecto na generalidade, como já disse, mas desejaria que o nobre ministro explicasse, para o que me parece já pediu a palavra, se está ou não disposto a fazer no projecto, de que se trata, modificações em harmonia com os principios que acabo de expor. Se fizer as modificações que julgo necessarias, terá o meu apoio n'esta parte; se não as fizer, reservo-me para na especialidade votar contra os artigos em que é ferido este principio.

Ha n'este projecto uma parte, na qual noto grande discrepancia com relação ao que se acha disposto na lei de 15 de julho de 1862.

Na lei de 15 de julho de 1862 é chamada a junta geral do districto mesmo para objectos que não são tão proximamente da sua attribuição; para a classificação das estradas, ainda das de 1.ª e de 2.ª classe, é ali exigida a consulta da junta geral de districto era duas ou tres partes, e é respeitado o principio municipal: prescripção util que já tem dado bons resultados e que ha de continuar a da-los.

Ali a junta geral de districto é julgada competente para dar o seu parecer em relação aos caminhos de districto, em relação á viação publica ordinaria de todo o paiz, e no projecto que se discute a junta geral de districto desapparece completamente.

Na lei de 1862, como poderia julgar-se que faltava á junta geral de districto, para sua mais cabal instrucção n'este ponto, o conhecimento technico, por isso mandou-se, e com muita rasão, que os directores das obras publicas assistissem ás discussões para as elucidar e dirigir; em uma palavra, mandou-se que tivessem n'essas discussões a ingerencia que deviam ter como homens technicos e conhecedores. As juntas geraes de districto podem com effeito conhecer as vantagens geraes da viação, mas desconhecer as circumstancias e especialidades technicas em relação á maior ou menor facilidade da construcção, em relação ao maior ou menor despendio, etc.; são circumstancias que só os homens I technicos podem esclarecer convenientemente.

Argumento com esta lei para mostrar que n'uma classificação geral de estradas são chamadas as juntas geraes de districto, cousa que desapparece completamente d'este projecto, que não é de menor importancia do que aquella lei.