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CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
Discurso que devia ter logar na sessão de 16 do corrente, publicada no Diario de Lisboa n.º 14, pag. 153, col. 3.ª, lin. 19.
O sr. Mártens Ferrão: — Na largueza com que já tem corrido o debate, não usaria da palavra se não visse a necessidade de firmar bem claramente, qual é a opinião da commissão sobre os pontos que foram tratados depois do notavel discurso do sr. relator da commissão, e que se encontram resolvidos no projecto. Foi este o motivo porque não estando n'este momento na sala aquelle cavalheiro, eu julguei dever pedir a palavra por parte da commissão.
Antes de se passar á discussão da especialidade, pareceu-me necessario que alguem por parte da commissão, expozesse bem claramente a opinião d'ella, para que não succedesse que a votação da generalidade fosse baseada sobre um falso supposto ácerca da verdadeira intelligencia das disposições do projecto.
N'estas materias, é mister toda a clareza e toda a franqueza; e a commissão entende que deve ser clara e que ser franca perante o parlamento (apoiados).
Sr. presidente, eu entro no debate tomando a questão na altura em que está collocada e com a indole que lhe tem sido dada na discussão. Na minha opinião o debate tem corrido de uma maneira elevada, e por isso de verdadeiro interesse para o paiz. Tem sido uma protestação do parlamento, da sua adhesão aos principios verdadeiros em que assenta a liberdade da imprensa (apoiados); protestação que eu julgo sempre util em um corpo politico, quando discute questões d'esta magnitude (apoiados). Aceito por consequencia o debate n'este campo; para mim não tem elle sido um debate entre opposição e maioria, mas sim uma manifestação da opinião politica do parlamento em relação á liberdade de imprensa (apoiados).
Considero, sr. presidente, esta questão como uma verdadeira protestação por aquelles principios, e mais que tudo como um grande aviso, e este é o interesse politico da discussão considerada principalmente debaixo d'este ponto de vista, um grande aviso, digo, a todas as administrações, de que não será facil no nosso paiz attentar contra a liberdade de imprensa (muitos apoiados).
O que isto mostra é que nós estamos em perfeito systema liberal pelas leis, e mais ainda pelo uso, pelos costumes publicos, pelas crenças e pela opinião unanime do paiz; e eu ligo muito maior importancia a este segundo ponto, porque contra as leis póde haver um braço forte que as derogue, mas não se derogam as crenças, os costumes politicos e a opinião profundamente radicada de um povo (apoiados).
Tomando a questão n'este campo, permittir-me-ha a camara que eu diga tambem rapidamente, como o adiantado do debate e a estreiteza do tempo o exigem, a minha opinião sobre a importancia e a natureza da liberdade de imprensa, ao menos segundo eu a considero.
Para mim a liberdade de imprensa é uma verdadeira, liberdade politica, o paiz que a conquistou não póde nem deve perde-la. No systema dos governos livres, que sabem corresponder a esse nome, conquistada uma vez uma liberdade, é mister não a sacrificar mais, porque as liberdades politicas tem o valor de verdadeiras instituições sociaes.
É isto o que tem sido seguido pelo paiz que constantemente tem firmado, cada vez mais, a sua liberdade, e contra a qual hoje é impossivel combater ali. Fallo da Inglaterra. A Inglaterra gastou dezenas de annos a conquistar successivamente as suas liberdades publicas, mas conquistadas, cada uma d'ellas tem sido uma concessão perpetua feita á sociedade; ninguem teria força hoje para attentar contra ellas, póde dizer-se que constituem a propria sociedade.
Houve uma epocha, e esta apreciação parece-me necessaria, em que quasi todas as nações da Europa possuiam instituições analogas, que amavam igualmente; em todas ellas começava a germinar o principio da liberdade politica, e d'ahi, d'este ponto commum, umas marcharam para o absolutismo, outras para a liberdade; porque? Porque as primeiras, a pretexto de cohibir abusos sacrificaram successivamente as suas liberdades nascentes; sacrificaram algumas mesmo a titulo de defender outras, e por este caminho errado crearam o absolutismo; quizeram abater a liberdade para evitar os seus abusos; quizeram sacrificar liberdade a liberdade, e n'esse sacrificio, n'essas limitações, as liberdades pereceram, e o absolutismo surgiu (apoiados).
Por outro lado, o paiz que seguiu caminho opposto, refiro-me á Inglaterra, o que fez? Não sacrificou liberdade a liberdade, sustentou successivamente todas ellas, e muitas á custa de lutas sanguinolentas. E o que se seguiu? Foi radicar-se n'aquelle paiz a liberdade e o governo dó paiz pelo paiz, que é a sua primeira defeza.
Eu desejaria, sr. presidente, que todos os governos representativos fossem modelados pelo espirito liberal d'aquelle paiz. Sei a impossibilidade que ha em copiar as instituições d'aquelle para outro paiz; são a expressão dos usos e dos costumes de muitos annos, de seculos mesmo, e esses elementos não se encontram analogos nos outros paizes; mas entre copiar as instituições taes como lá se encontram, ou revestir as instituições liberaes do espirito que ali predomina, ha uma grande differença.
Eu disse, sr. presidente, que a liberdade de imprensa é uma verdadeira liberdade politica, creio que ella entra como elemento indispensavel no systema representativo. Para mim o systema representativo expressa o concurso, a representação de todos os elementos sociaes, debaixo dos principios da liberdade, da igualdade e da ordem.
Pelo principio da liberdade não admitto a faculdade de não reconhecer qualquer das liberdades politicas; as liberdades politicas exigem todas igual reconhecimento da sociedade. Pelo principio da igualdade umas liberdades não devem ser sacrificadas ás outras. Pelo principio da ordem o poder é auctorisado á lançar mão dos meios necessarios contra o abuso, mas esses meios não ferem nem inutilisam nenhum dos outros principios, nem o da igualdade, nem o da liberdade, porque é com a harmonia d'elles que deve e póde existir a ordem.
Eis-aqui como eu comprehendo a synthese do systema representativo em relação ás liberdades politicas. Notarei, sr. presidente, um facto, de passagem, porque não quero demorar o debate, e porque se fosse a desenvolver esta ordem de ideias e de considerações levar-me-ía muito longe, mas notarei um facto que é importante na historia dos povos civilisados, e que lhes é ao mesmo tempo um aviso. Os excessos do poder ou seja pelo lado do absolutismo, ou pelo da demagogia, têem sempre proseguido a imprensa, não têem podido viver com ella. A imprensa só tem gosado liberdade estavel no regimen e na pratica dos governos moderados e de ordem.
Eu vejo na França, as leis de 1767 opprimindo a liberdade de imprensa, leis as mais oppressivas de que nos offerece exemplo o absolutismo d'aquella epocha, e que succedeu? Succedeu que o contrabando litterario inutilisou os effeitos que se queriam tirar d'aquelle errado recurso, e só ficou d'elle o odioso dos principios que comprehendia! Succede quasi sempre assim.
Vejo mais adiante, tambem debaixo do ponto de vista do poder absoluto, porque não lhe posso chamar outra cousa, o decreto imperial de 5 de fevereiro de 1810 agrilhoando a imprensa. Era o excesso do poder absoluto, que não podia viver com a liberdade de imprensa. Por outra parte, olho para os excessos do principio opposto, e encontro a lei de sangue de 29 de março de 1793, punindo os abusos da imprensa, com pena de morte, e usando e observando largamente d'ella cobrindo assim de horror as praças e as ruas de París!
Aqui tem v. ex.ª os excessos ou do poder absoluto e do poder contrario, attentando constantemente contra a liberdade de imprensa, e não podendo viver com ella.
Na Inglaterra encontro o mesmo. Henrique VIII fazia calar o parlamento ameaçando fazer cair a cabeça de homem que ali queria disputar-lhe o levantamento do imposto. Era a liberdade da palavra que perecia.
Que leis mais repressivas da imprensa, do que as do tempo da rainha Maria?
Izabel por cujos dotes como chefe do estado tenho a consideração que todo o homem politico deve ter (apoiados), mas por cujo liberalismo não me enthusiasmo, fazia cortar as mãos a Stubbs, e ao impressor que tinha feito estampar a obra d'este homem, porque n'essa obra havia abuso de liberdade de imprensa; e os juizes que não tiveram a condescendencia de julgar justa aquella sentença foram expiar a sua franqueza nas masmorras da torre de Londres.
Por outra parte o longo parlamento, que foi a convenção nacional da Inglaterra, estabeleceu á censura especial, e usou e abusou largamente d'ella. Já o seu estabelecimento foi uma violencia; mas não bastou isso, porque sobre ella o abuso foi muito maior.
Eis aqui, sr. presidente, como o excesso do poder n'um ou n'outro campo não pôde subsistir com a liberdade da imprensa. Só os governos moderados, e de ordem, têem entendido que, para a sua vida, o seu desenvolvimento e a ordem da sociedade têem necessidade de garantir a liberdade de imprensa (apoiados).
Sr. presidente, eu ponho de parte esta ordem de reflexões, que me levariam muito longe, mas não passarei á especialidade das considerações que foram feitas sobre o projecto, sem dizer rapidamente como entendo á imprensa periodica e o valor que lhe ligo.
Que valor tem a imprensa periodica politica, perguntava, em 1862, o primeiro jornalista da Europa, Emile Girardin, quando voltou a redigir a Presse, de que ha muitos annos estava afastado, e respondeu — não tem valor algum.
Acatando profundamente o nome d'este homem distincto, discordo absolutamente da conclusão a que elle chegou.
Dizia elle, a imprensa politica, pondo de parte a outra imprensa, presta-se igualmente á defeza e á divulgação do erro e da verdade, se o erro tem por si a vantagem do numero, a verdade tem a da evidencia; estas duas vantagens compensam-se, o pró e o contra neutralisam-se assim.
Vede os Estados Unidos, onde a imprensa jornalistica está immensamente generalisada, onde milhares de jornaes todos os dias combatiam e combatem a escravidão; notae ainda que essa opinião tinha a seu lado a opinião da imprensa de todo o mundo civilisado, e com ella a opinião de todas as côrtes da Europa, o consenso unanime de todos os povos europeus; pois o que conseguiu essa imprensa? Não foi ella que resolveu a questão da escravatura nos