146 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
N'este campo, o debate é impossivel para quem queira, supprimindo a inspiração da propria consciencia, sustentar a idéa de qualquer separação. E demais, senhores, aqui não podemos tratar de questões de sentimentos. Diante de nós, sobre este assumpto, temos o codigo civil portuguez a regular contratos.
Vou pois considerar o contrato do casamento; continuo a apreciar o nosso codigo civil.
"O casamento é um contracto perpetuo feito entro duas pessoas de sexo differente, com o fim de constituirem legitimamente a familia": é o artigo 1:056. Ambos os conjuges estrio pois fundamentalmente unidos no mesmo fim a que se obrigam pelo matrimonio perante a sociedade civil: a constituição legitima da familia.
"Aos pães compete reger as pessoas dos filhos menores, protegel-os e administrar os bens d'elles; o complexo distes direitos constituo o poder paternal."
"As mães participam do poder paternal e devem ser ouvidas em tudo o que diz respeito aos interesses dos filhos; mas é ao pae que especialmente compete durante o matrimonio, como chefe de familia, dirigir, representar e defender seus filhos menores, tanto em juizo como fóra d'elle."
São estes os artigos 137.° e 138.° As mesmas são portanto para o pae e para a mãe as obrigações de mais grave responsabilidade que póde impor a sociedade civil: a educação dos filhos; a organização da futura sociedade, a honra da nação.
O codigo civil portuguez reconhece e proclama a responsabilidade do pae e da mãe por tão peremptoria forma que, no artigo 140.º, determina para os paes a obrigação, alias imposta pela, natureza, de dar a seus filhos os necessarios alimentos e o ocupação conveniente, conforme as suas posses e citado.
Mais ainda. O artigo 141.° chega, no § unico, a declarar inhabeis para reger as pessoas e os bens do seus filhos os paes que, na conformidade da lei geral, tenham sido punidos pelo crime de abuso do poder paterna;, a requerimento dos parentes ou do ministerio publico.
Desde que aos conjuges são communs estas augustas responsabilidades do poder paternal; desde que estão ligados por existencias igualmente caras a ambos; repugna que entre elles haja separação de bens, como se n'este mundo pudesse haver bens do valor d'um filho.
E, depois, quando é que póde ser de influencia sensivel a separação de bens? Quando são muito desiguaes as fortunas dos conjuges. Veja-se o que pude succeder então.
Se morre, primeiramente o conjugo mais rico, fica o outro em condições de fortuna inferiores ás de seus filhos, os quaes devem em todo o tempo honrar e respeitar seus paes e cumprir, durante, a menoridade, os seus preceitos em tudo que não seja illicito (artigo 142.°).
É certo que aos filhos é prescripta pelo mesmo codigo civil a obrigação de alimentar seus paes (artigo 172.°); em que desgraçada situação porém? Quando os pães precisam de alimentos (artigo 171.º)! Alem disto; n'esta mesma situação de horrivel miseria, ficam as necessidades dos paes dependentes do criterio dos filhos pelos artigos 179.°, 180.° e 181.°!
Conheço a disposição do codigo civil portuguez ácerca do apanagio dos conjuges viuvos; é regulado este direito, triste e excepcional, pelos artigos 1:231.° e 1232.°, os quaes constituem um outro argumento em favor da minha doutrina. Por estes artigos póde succeder que fique a receber um a esmola, depois de ter provado que d'ella precisa, um pae que, na vespera de cair na pobreza, ainda tinha sufficientes rendimentos de bens que tenham passado então para teus filhos.
Ora não merece logar em familia honesta, que se preze, não póde n'esta santa instituição ter abrigo, quem tenha alma para consentir que em tão miseravel situação cá a uma pessoa a quem tenha jurado, perante um altar de fé, amor e fidelidade por toda a vida. Para gente assim é demais o matrimonio, sacramento ou simples contrato legal, como queiram; basta-lhe a mancebia, um contracto que não tem logar na legislação patria.
E, se primeiro morre o conjuge menos abastado? Fica então o conjuge viuvo, gosando, elle só, fortuna superior á que tem de ser repartida pelos filhos, cujos interesses creados legitimamente pelo casamento são, n'este caso, prejudicados gravemente por uma clausula do mesmo casamento! E todavia os filhos são o principal fim do matrimonio!
Certo é, meus senhores, que a separação do bens, no caso mesmo de haver filhos ou outros descendentes dos conjuges, na época da dissolução do casamento, rarissimas vezes é da iniciativa dos noivos ; quasi sempre é exigencia dos paes da noiva. Mal se comprehende isto!
Ao esposo póde confiar-se sem precaução a felicidade de uma filha, que muitas vezes deixa o soberano dominio em casa de seus pães para ir ficar sujeita á obediencia imposta pelo artigo 1:185.°; mas todas as precauções serão poucas para segurar os bens da filha na sua familia! É repugnante ! É torpe!
Á esposa confia o marido a sua consideração social e a de sua familia, sem restricções, com a serenidade de quem cumpre um dever de consciencia; e hão de ser estipuladas restricções, para interesses pecuniários! E, se a esses pães é indiferente a consideração social do marido de sua filha, e portanto a de netos seus, não merecem elles ser considerados como paes, elles, que não sabem ser avós. "Póde haver paes que não estimem seus filhos; não póde haver avós que não estimem netos seus" lembro-me de ter lido esta maxima n'um livro monumental, obra celeste. E terá errado o auctor d'esse livro, Victor Hugo? Elle que, na sua enorme magestade, soube mostrar que era um avô extremosissimo, como ninguém póde sel-o mais, ter-se-ia offendido a si mesmo, pensando que todos os avós eram como elle? Talvez.
Estas singelas observações condemnam a separação de bens, na sua mesma origem, para o caso de haver filhos ou outros descendentes communs na epocha da dissolução do casamento.
Creio ter assim demonstrado com toda a evidencia o artigo 4.° d'este projecto de lei.
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É reconhecido e acatado em Portugal o direito de propriedade em toda a sua plenitude: é uma das garantias individuaes e essenciaes consignadas na carta constitucional da monarchia (artigo 145.°, § 21). Como consequencia d'este direito, o codigo civil portuguez garante o detestar, no artigo 1:763.° a todos aquelles a quem a lei não o prohiba expressamente.
Ha fundamento para o direito de testar? E a lei ha de garantir este direito em absoluto ou regulai-o e restringil-o?
Depois da morte, os restos de cada qual pertencem á terra commum; e pertencerá tambem á patria ou ao mundo, a todos ou a ninguém, a propriedade do que em sua vida foi de cada um? Fique esta questão para os publicistas theoricos; mas observarei que não podem parar no estado os que tiverem a peregrina idéa de negar o direito do testar. Ninguém póde dispor de qualquer propriedade para depois da sua morte; e portanto o estado é o unico herdeiro de todos: creio que ha quem assim pense. Mas por que ha de ser o estado ? Só porque elle, nos seus códigos, garante a propriedade e a todos fornece os meios de sustental-a e defendel-a ?
Se pela morte o cidadão perde o direito de propriedade, como ha de então ficar sujeito a ligações com o estado ? Assim, depois da sua morte, a pátria havia do ser para elle o mundo inteiro; e seus herdeiros seriam todos, o que o mesmo fora que aniquilar a herança.
Certo é que o estado garante o direito de propriedade e fornece os meios para a plena fruição d'este direito ; não menos o é porém que o estado deve respeitar os direitos