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SESSÃO DE 20 DE JANEIRO DE 1886

Presidencia do exmo. sr. Ignacio Francisco Silveira da Mota

Secretarios os exmos. srs.

João José d'Antas Souto Rodrigues
Henrique da Cunha Matos de Mendia

SUMMARIO

O sr. presidente, antes de se dar conta do expediente, participou que lhe fôra entregue uma representação enviada á camara dos senhores deputados pelo presidenta, secretario e mais membros de um comicio popular que se realisou em Braga com o fim de pedir ao parlamento a conservação do estado actual d'aquelle districto. - Recebêra tambem, para o mesmo fim, uma representação da direcção da associação dos artistas do monte pio de S. José. - Consultou a camara sobre se consentia que estas representações fossem publicadas no Diario do governo. - Foi auctorisada a publicação. - O sr. presidente declarou tambem que tinha recebido participação dos srs. barão de Viamonte, Carlos Roma du Bocage e Goes Pinto de não poderem ainda comparecer na camara por falta de saude. - Deu-se conta da seguinte correspondencia: 1.° Um enleio do ministerio da fazenda, acompanhando a remessa de 190 exemplares do orçamento geral e propostas de lei das receitas e das despczas ordinarias do estado, na metropole, para o exercicio de 1886-1887; 2.° Tres officios do mesmo ministerio, acompanhando a remessa de alguns esclarecimentos pedidos pelos srs. Antonio Ennes, Antonio Candido e Consiglieri Pedroso. - Teve segunda leitura um projecto de lei do sr. Lamare, auctorisando o governo a conceder á camara municipal de Almeida as ruínas da casa da antiga vedoria, para ali se construir um edifício para os paços do concelho. - Justificaram faltas, alem das mencionadas pelo sr. presidente, os srs. Cunha Bellem, Neves Carneiro, J. Borges de Faria, Luiz José Dias e Aralla e Costa.
Na ordem do dia continuou o incidente que tinha estado em questão na sessão antecedente, relativamente a alistamento dos guardas e reforma dos serviços aduaneiros. - Continua, usando da palavra o sr. Thomás Bastos. - O sr. Avellar Machado requer que se prorogue a sessão até se votar o incidente. - Este requerimento é approvado. - Fallam ainda sobre o assumpto os srs. João Arroyo e Carlos Lobo d'Avila.- Julgou-se discutida a materia a requerimento do sr. Azevedo Castello Branco. - A moção de ordem do sr. Franco Castello Branco é approvada em votação nominal, a requerimento do sr. João Arroyo. - Foi rejeitada em votação nominal a proposta do sr. Mariano de Carvalho. - No fim da sessão o sr. Luciano de Castro chama a attenção do governo sobre os acontecimentos, filhos da divergwncia entre as cidades de Braga e Guimarães. - O sr. presidente não lhe parece que este assumpto possa entrar já em discussão. E notando que era mais conveniente que se enviasse para a mesa uma nota de interpellação a este respeito, encerra á sessão entre o susurro e os protestos da esquerda da camara.

Abertura - Ás duas horas e tres quartos da tarde.

Presentes á chamada - 71 srs. deputados.

São os seguintes: - Adriano Cavalheiro, Agostinho Lucio, Garcia de Lima, Albino Montenegro, Alfredo Barjona de Freitas, Silva Cardoso, Antonio Candido, Antonio Centeno, Garcia Lobo, Moraes Sarmento, Moraes Machado, A. M. Pedroso, Santos Viegas, Sousa Pavão, A. Hintze Ribeiro, Urbano de Castro. Augusto Poppe, Pereira Leite, Neves Carneiro, Caetano de Carvalho, Sanches de Castro, Lobo d'Avila, Conde do Villa Real, Cypriano Jardim, E. Coelho, Elvino de Brito, E. Hintze Ribeiro, Fernando Geraldes, Francisco Beirão, Frederico Arctica, Guilherme de Abreu, Barros Gomes, Matos de Mendia, Silveira da Mota, J. A. Pinto, J. C. Valente, Scarnichia, Franco Castello Branco, Souto Rodrigues, João Arroyo, Teixeira de Vasconcellos, J. Alves Matheus, Ponces de Carvalho, Joaquim de Sequeira, Simões Ferreira, Teixeira Sampaio, Amorim Novaes, Avellar Machado, Ferreira de Almeida, Borges de Faria, Elias Garcia, Laranjo, Lobo Lamare, Figueiredo Mascarenhas, José Maria Borges, Oliveira Peixoto, Simões Dias, Luciano Cordeiro, Luiz de Lencastre, Luiz Ferreira, Luiz Dias, M. P. Guedes, Marçal Pacheco, Mariano de Carvalho, Guimarães Camões, Pedro de Carvalho, Gonçalves de Freitas, Pereira Bastos, Visconde de Ariz, Visconde das Laranjeiras e Consiglieri Pedroso.

Entraram durante a sessão os srs.: - Moraes Carvalho, Torres Carneiro, Sousa e Silva, Antonio Ennes, Fontes Ganhado, Carrilho, Seguier, Conde de Thomar, Emygdio Navarro, Estevão de Oliveira, Filippe de Carvalho, Wanzeller, Sant'Anna e Vasconcellos, Costa Pinto, Melicio, Azevedo Castello Branco, Dias Ferreira, Pereira da Santos, José Luciano, J. M. dos Santos, Reis Torgal, Luiz Jardim, Luiz Osorio, Manuel d'Assumpção, Pinheiro Chagas, Miguel Dantas, Santos Diniz, Rodrigo Pequito, Tito de Carvalho, Visconde de Reguengos e Visconde do Rio Sado.

Não compareceram á sessão os srs.: - Adolpho Pimentel, Lopes Vieira, Agostinho Fevereiro, A. da Rocha Peixoto, Pereira Côrte Real, A. J. da Fonseca, Lopes Navarro, Pereira Borges, Cunha Bellem, Jalles, Pinto de Magalhães, Almeida Pinheiro, Augusto Barjona de Freitas, Ferreira de Mesquita, Fuschini, Avelino Calixto, Barão do Ramalho, Barão de Viamonte, Bernardino Machado, Carlos Roma du Bocage, Conde da Praia da Victoria, Ribeiro Cabral, Sousa Pinto Basto, Goes Pinto, Firmino Lopes, Vieira das Neves, Correia Barata, Francisco de Campos, Castro Mattoso, Mártens Ferrão, Guilhermino de Barros, Baima de Bastos, Franco Frazão, Augusto Teixeira, Ribeiro dos Santos, Ferrão de Castello Branco, Sousa Machado, J. A. Neves, J. J. Alves, Coelho de Carvalho, Correia de Barros, Ferreira Freire, Pinto de Mascarenhas, Júlio de Vilhena, Lourenço Malheiro, Bivar, M. da Rocha Peixoto, Correia de Oliveira, Manuel de Medeiros, M. J. Vieira, Aralla e Costa, Martinho Montenegro, Miguel Tudella, Pedro Correia, Pedro Roberto, Barbosa Centeno, Dantas Baracho, Vicente Pinheiro, Visconde de Alentem, Visconde de Balsemão e Wenceslau de Lima.

Acta - Approvada.

EXPEDIENTE

Officios

1.° Do ministerio da fazenda, acompanhando 190 exemplares do orçamento geral e proposta de lei das receitas e das despeza ordinarias do estado na metropole para o exercicio de 1886-1887.
Mandaram se distribuir.

2.° Do mesmo ministerio, remettendo, em satisfação ao requerimento do sr. deputado Antonio José Ennes, duas notas da despeza ordenada desde 17 de março de 1884 até 15 de janeiro corrente, em conformidade do decreto de o de julho do mesmo anno e da carta de lei de 27 de junho, do anno proximo passado.
Á secretaria.

3.° Do mesmo ministerio, remettendo, em satisfação ao requerimento do sr. deputado Antonio Candido, seis copias dos contratos de supprimentos em conta da divida fluctuante, levantados por meio de operações com as praças de Londres e Paris no mez de dezembro findo.
Á secretaria.

4.° Do mesmo ministerio, remettendo, em satisfação requerimento do sr. deputado Consiglieri Pedroso, duas

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pias das consultas da procuradoria geral da corôa e fazenda, e do conselho superior das alfandegas, sobro a applicação da taxa de 3$350 réis por 100 kilogrammas de bacalhau pescado por navios portuguezes.
Á secretaria.

Segunda leitura

Projecto de lei

Senhores. - O antigo edificio da vedoria, situado no largo principal de Almeida, que por muitos annos serviu de residencia aos governadores d'aquella praça, está em estado completo de ruina.
A camara municipal d'aquella localidade deseja de há muito um edificio proprio para os paços do concelho, mas as suas circumstancias têem-na impedido de conseguir o seu intento, coagindo-a a realisar as suas sessões na casa onde funcciona o tribunal de justiça, que não tem as necessarias accommodações para bem poderem ali funccionar tantas repartições.
Sem nenhum despendio para o estado e sem o menor prejuizo se podia satisfazer a esta justissima pretensão concedendo-se-lhe os muros da referida casa da vedoria, que occupou uma área de 379 metros quadrados para ali se levantar um edificio destinado aos paços d'aquelle concelho, e assim tenho a honra de submetter á vossa illustrada apreciação o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.º É auctorisado o governo a conceder á camara municipal de Almeida as ruinas da casa da antiga vedoria, situada no largo principal d'aquella praça e que occupa uma área de 379 metros quadrados para ali se poder construir um edificio destinado aos paços d'aquelle concelho.
Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario.
Sala das sessões da camara, em 18 de janeiro de 1886. = José da Gama Lobo Lamare.
Lido na mesa, foi admittido e enviado á commissão de fazenda.

REPRESENTAÇÕES

Da commissão eleita pelo comicio popular de Braga e da associação dos artistas do monte pio de S. José, da mesma cidade, contra o projecto de lei apresentado pelo sr. Franco Castello Branco, que tem por fim desannexar o concelho de Guimarães do districto de Braga, e determinar que elle fique pertencendo ao districto do Porto para todos os effeitos administrativos e politicos.
Apresentadas pelo sr. presidente da camara, enviadas á commissão de administração publica e mandadas publicar no Diario do governo.

JUSTIFICAÇÕES DE FALTAS

1.ª A communicação feita pelo sr. presidente referiu-se ás faltas dos srs. deputados: barão de Viamonte da Boa Vista, Carlos Roma du Bocage e Ernesto Julio Góes Pinto. = O secretario, João J. d'Antas Souto Rodrigues.

2.ª Declaro que o sr. deputado Cunha Bellem, por motivo de serviço publico, faltou ás sessões de hontem e hoje e faltará ainda a mais algumas. = Alfredo Barjona.

3.ª Declaro que, por motivo justificado, tenho deixado de comparecer ás sessões da camara. = A. Neves Carneiro.

4.ª Participo que tenho faltado ás sessões anteriores por motivo justificado. = O deputado, Luiz José Dias.

5.ª Declaro que, por motivo justificado, tenho faltado ás sessões d'esta camara. = José Borges de Faria.
6.º Participo a v. exa. e á camara que o sr. deputado Aralla e Costa tem faltado á camara e faltará a mais algumas sessões por motivo justificado. = Pereira dos Santos.
Para a acta.

O sr. Presidente: - Antes de proceder á leitura do expediente, cumpre-me o dever de participar á camara que me foi entregue uma representação assignada pelo presidente, secretarios e vogaes do comicio popular que se realisou em Braga, e em que estiveram representadas todas! as parcialidades politicas e todas as classes sociaes, a fim de pedirem á camara a conservação do estado actual do
mesmo districto.
Recebi tambem para o mesmo fim uma representação da direcção da associação dos artistas do monte pio do S. José.
Consulto a camara sobre se consente que estas representações sejam publicadas no Diario do governo.
Cumpre-me participar tambem á camara que recebi uma commimicação de alguns srs. deputados, declarando que não poderam ainda comparecer, e continuarão a faltar a algumas sessões por motivo de doença.
Os participantes são os srs. Carlos Bocage, barão de Viamonte e Goes Pinto.
Foi approvada a publicação das representações.
O sr. Alfredo Barjona: - Mando para a mesa a participação de que o sr. deputado Cunha Bellem faltou ás sessões de hontem e hoje, e continuará a faltar a mais algumas, por motivo de serviço publico.
O sr. Eduardo Coelho: - Pedi a palavra na doce illusão de que estaria cá o sr. ministro do reino. Vejo que isso não aconteceu, por isso peço ao sr. ministro da fazenda, que representa o governo a bondade de dizer a s. exa. que eu desejava fazer-lhe communicações graves a respeito do estado anarchico em que se encontra o concelho de Valle Passos; e desejava tambem pedir a s. exa. que tomasse providencias a fim de que a ordem publica não seja alterada, como se receia, na eleição que tem de realisar-se no dia 24 do corrente.
Desejava tambem dirigir a s. exa. outras perguntas sobre assumptos de interesse publico, e espero que o sr. ministro da fazenda fará o favor de prevenir o seu collega d'este meu desejo.

ORDEM DO DIA

O sr. Thomás Bastos: - Continuando no uso da palavra, cumpre-me agradecer descendencia que tiveram em consentir que eu ficasse com a palavra reservada, visto que na sessão passada, por mo sentir levemente incommodado, não pude continuar na ordem de considerações que tinha a fazer, até á hora de terminar a sessão.
Antes do proseguir, cumpre-me fazer uma declaração ácerca do meu protesto contra as palavras que julguei ouvir na sessão passada ao sr. ministro da fazenda, palavras que eu mal interpretei, o que deu logar as explicações que troquei com s.º exa. Direi pois que, em vista das explicações que o sr. ministro da fazenda me deu, esse protesto fica insubsistente.
Eu, sr. presidente, só uso da palavra para accusar o governo, quando entendo que elle não segue os preceitos legaes ou que não está no limite das suas attribuições, porque nenhuma animadversão me move contra o sr. ministro da fazenda nem contra qualquer cavalheiro que tenha assento n'esta casa.
Dito isto tratarei de corresponder á benevolencia da camara sendo o mais breve possivel nas considerações que passo a fazer.
Eu tinha hontem tratado summariamente de demonstrar que a organisação da guarda fiscal não correspondia exactamente ás justas delimitações da melhor organisação mi-

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litar, porquanto nem as graduações concedidas no quadro hierarchico do artigo 6.° eram legaes, nem houvera especial escolha dos individuos que tinham a desempenhar as funcções a que eram attribuidas essas graduações; nem tão pouco se procurara por esse regimen de transição estabelecer melhor passagem do estado anterior para este que o vae substituir.
A questão que principalmente occupava a camara era a da perseguição movida contra os guardas fiscaes, e é dessa que eu tambem vou occupar-me.
Pedem-nos provas, apontâmos os factos que são do conhecimento publico, não só da imprensa opposicionista, como da imprensa ministerial; que não tem querido fazer uso d'elles, o que não lhe levo a mal, porque conheço a situação em que está. O que é certo é que os factos são narrados por differentes pessoas e do diversas localidades e que não podem ser considerados pura invenção; a menos que não tenhamos de admittir que os pobres guardas adquiriram o espirito imaginoso de Eugenio Sue ou Ponson de Terrail para andarem fazendo tétricos romances. (Apoiados.)
Como esses factos se passaram entre os superiores e os guardas sem a intervenção de pessoas estranhas, é impossivel podermos obter outras provas que não sejam as declarações d'aquelles que se dizem perseguidos, para contrapor ás allegações dos superiores que negam que taes factos existam. Se não merecem fé as declarações dos perseguidos ou suppostos perseguidos, não sei porque hão de merecei a as declarações dos suppostos ou verdadeiros perseguidores, tanto mais que nem todos esses individuos que estão revestidos de auctoridade no corpo da fiscalisação têem tal auctoridade moral, que as suas simples allegações possam ser admittidas sem reflexão, quando não venham documentadas ou bem comprovadas (Apoiados.)
Vou apresentar á camara alguns factos, e creio que um d'elles bem frisante.
Um guarda da fiscalisação externa, que estava em Lisboa, recebeu ordem para marchar para Castello de Vide. Tendo sido antes d'isso intimado a alistar-se, declarou, pelos motivos que já todos conhecem, que não se alistava. Recebeu ordem para marchar para aquella localidade. Obedeceu, e, chegando ali, depois de ter estado algum tempo em serviço, foi successivamente intimado pelo chefe do districto, pelo chefe de secção e chefe do posto para se alistar, e respondeu sempre negativamente.
Achava-se ali este guarda desde fins de dezembro, quando em 10 de janeiro lhe constou que ia ser novamente intimado para se alistar, sob pena de não o fazendo, receber guia de marcha. Elle, que estava em uma dependencia de Castello de Vide, em Montalvão, teria de marchar para o Porto.
Effectivamente assim succedeu; foi aquelle guarda para o Porto, e ahi teve noticia de que a marcha não era simplesmente até aquella cidade; deram-lhe ordem para marchar para Bragança.
Ora, este guarda a que alludo não andou n'estas jornadas unicamente por conveniencia do serviço, embora se dissesse ha dias n'esta casa que as transferencias só por tal motivo eram feitas; tão pouco era dos protegidos que estão sempre em Lisboa, porque já estivera no cordão sanitario em setembro, e ainda ultimamente lhe deviam a gratificação relativa ao serviço d'esse mez.
Mandam-n'o percorrer todo o paiz, não como um judeu errante, mas como um guarda errante victima das judiarias de seus superiores.
Menos feliz do que o sr. presidente do conselho, a quem de Faro até Monsão ninguem perguntava pelas reformas politicas, ao guarda perguntam de Lisboa até Castello de Vide, de Castello de Vide até o Porto, d'ali até Bragança, e quem sabe ate onde mais: alistas-te? Se não te alistas, caminha.
Aos guardas que não quizeram alistar-se até 17 de dezembro o sr. ministro mandou distribuir as instrucções assignadas pelo sr. administrador geral e depois d'elles as lerem, se não se convencem Jogo das vantagens do alistamento, manda-os passear de Lisboa a Bragança.
No antigo receituário medico recommendava-se aos doentes que passeassem depois de tomar o leite de jumenta; parece que similhantemente as instrucções assignadas pelo sr. administrador geral precisam ser passeadas para melhor serem assimiladas.
Assim como isto succede com os guardas que estão em Lisboa, com quantos não terá succedido o mesmo sem se poderem queixar, porque estão em pontos da raía distantes, e são desprotegidos? (Apoiados.)
Este processo é gradual. Creio que na inquisição tambem se procedia assim.
Pergunta-se em Lisboa ao guarda se quer, alistar-se; se elle declara que não quer, passa-se-lhe guia de marcha, e põe-se-lhe na guia a seguinte verba: «não é alistado».
V. exa. e a camara comprehendem perfeitamente para que isto é. É para serem recebidos com todas as honras, affagos e carinhos; é para não pararem em ponto algum até que cedam. (Apoiados.)
Pergunto se este é que é o systema, se esta é que é a fórma de obter alistamentos voluntarios? (Apoiados.) E d'esta maneira que se obtém um corpo fiscal que possa inspirar confiança, e que seja proveitoso para o paiz? (Apoiados.)
Já o cordão sanitario serve para mais alguma cousa. Não é simplesmente um cordão de oiro para uns, e cordão para estrangular os pobres pescadores do Algarve, como disse um meu collega n'esta camara, é tambem cordão para apertar os guardas fiscaes até o ponto de cederem, para virem alistar-se, o que lhes repugna pelas rasões bem conhecidas de todos. (Muitos apoiados.)
Citarei outro facto.
Em 6 do corrente e de noite, porque era a melhor occasião para se fazer este serviço, o chefe de posto no Aterro, Antonio Agostinho (e cito o nome porque elle já está demittido e portanto livre de perseguição), foi procurado pelo sub-inspector, que lho perguntou se se alistava. O chefe do posto respondeu que não podia resolver-se a alistar-se sem primeiro consultar seu pae, para saber se lhe convinha ter este destino que o prendia durante oito annos, ou outro qualquer que seu pae lhe quizesse dar. Pediu tres dias de licença para ir á sua terra consultar o pae e daria depois a resposta. Disse-lhe o sub-inspector que, se queria a licença, alistasse-se primeiro. Corno o chefe de posto insistisse em que não podia de maneira nenhuma resolver sem ouvir o pae, foi-lhe negada a licença e o sub-inspector disse-lhe que se considerasse despedido. O chefe de posto, em obediencia ao seu superior, retirou-se, e o sub-inspector levantou-lhe um auto de abandono de serviço e o chefe de posto foi demittido.
Vejam os processos que se seguem. A questão é chegar-se a poder dizer que estão todos alistados.
Eu quero crer que o sr. ministro da fazenda não dê estas ordens, mas deve tomar providencias para obstar a taes procedimentos, que são publicos e notorios.
Sr. presidente, disse e repito, o fim é arranjar alistados seja por que modo for. Até se procuram em suas casas os doentes e incapazes do serviço para os forçar ao alistamento; e isto deu logar a um qui pro que engraçadissimo.
Um collega nosso e que eu muito prezo, o sr. António Centeno, foi procurado em sua casa para ser intimado a apresentar-se no corpo fiscal, como guarda da alfandega, por isso que estava com parte de doente e era preciso que comparecesse para se alistar. De maneira que até já vem procurar se guardas á camara dos deputados para augmentar o alistamento. (Riso.)
Para que serve chamar os guardas que estão doentes em sua casa, e os que se acham incapazes de fazer serviço? Naturalmente é para os fazer alistar. Aqui têem

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como os alistamentos se fazem voluntariamente; é collocando os guardas entre a espada e a parede. E repito a pergunta, é assim que poderemos contar com um bom serviço da guarda fiscal militar?
Parece-me que, pelo modo por que se está procedendo, ha de ser possivel apresentar um grande numero de alistados, e talvez que, para o resultado ser mais completo, nós ainda vejamos offerecer um premio a quem apresentar um certo numero de guardas alistados, á similhança do que se fazia n'outro tempo, em que as camaras municipaes davam um premio a quem lhes apresentava umas tantas cabeças de pardaes. (Riso.)
O sr. Franco Castello Branco disse-nos que, apesar de todas as tentativas e propaganda que nós empregâmos para collocar os guardas em situação afflictiva, já tinha 70 por cento dos guardas alistados, e hontem deu-nos a agradavel noticia para elle e para nós de que já estavam alistados 80 ou 90 por cento: s. exa. espera que até 31 de janeiro se alistará o resto, e benevolamente pediu ao sr. ministro da fazenda que por commiseração acceitasse ainda depois os que se tivessem recusado ao alistamento. Alistados todos, como P. exa. espera, não ficaria a quem applicar-se a commiseração do sr. ministro da fazenda. Com os processos que já todos conhecem, o sr. ministro da fazenda tem feito as conquistas que ouvimos, já chegou a 90 por cento e se o seu dominio se estendesse ate Hespanha, seria possivel ouvirmos aqui serem-lhes contados, como a D. João, por mille e tre.
Tambem o illustre deputado disse que não se tem empregado a alliciação para obrigar os guardas e sim o conselho para os convencer o que isto era procedimento justissimo. O emprego dos taes meios suasorios, que já conhecemos, faz-me lembrar os que usava um juiz de paz de uma aldeia sertaneja; era um homem valente, esforçado; quando havia litigantes chamava-os á sua loja e tomando uma espingarda carregada que tinha sempre atraz do balcão, mettia-a á cara e dizia-lhes: se vocês se não compõem, dou uma chumbada em cada um; e por este modo obtinha que todos se conciliassem. (Riso.)
Os meios suasorios são, como temos visto, collocar os guardas nas condições de: ou perderem o logar, ou andarem a passear por todo o paiz, até cederem; passeio que aliás não ha de custar muito barato ao thesouro. É verdade que, quando se mandam para qualquer ponto, paga-se-lhes a passagem, mas não só lhes dá os meios de poderem viver, tendo de pedir fiado o que comem, como podem dar testemunho os meus collegas que vivem em povoações maritimas e na raia. (Apoiados.) D'este modo os homens que vão fiscalizar os impostos, e que devem ter a maior superioridade moral sobre os individuos que naturalmente estão mais propensos a lezar o fisco, como são os vendedores, ficam d'elles dependentes. (Apoiados.)
Não quero referir me agora minuciosamente ao facto d'esses guardas irem armados de tal modo, que não por cobardia, mas por vergonha têem de sê retirar diante dos contrabandistas, que geralmente têem melhor armamento; e terem destacados para pontos sem apoios e onde não podem esperar o auxilio dos seus camaradas no momento em que forem atacados. (Apoiados.)
Reservo-me para quando tratar de analysar a organisação das alfandegas.
São estes factos que citei que constituem a propaganda que o sr. ministro acha licito oppor á propaganda da opposição, que quer desviar os guardas do bom caminho!
Não nos illudamos. O sr. ministro da fazenda, consentindo esses processos, sem os reprimir e punir os que os empregam, está fazendo outra propaganda, que vae engrossar, não o numero dos guardas, mas o d'aquelles que, attribuindo a defeito do systema o que é defeito dos homens, procuram um caminho que nós deviamos evitar-lhes cautelosamente. (Apoiados.) Está aqui quem me ouve e que póde dizer se por este meio se vae ou não engrossar as fileiras, por emquanto diminutas do seu partido. (Apoiados.)
É com homens coagidos pela dura lei da necessidade que se quer fazer um corpo em que o alistamento deve ser voluntario! (Apoiados.) É com este fermento que se quer estabelecer a disciplina, e fazer uma reformação em harmonia com as justas delimitações da lei militar.
Nós queremos o alistamento completo, mas de voluntarios; porque esta guarda fiscal não é a guarda real do sr. ministro da fazenda; ha de ser a guarda auxiliar de todos os ministros da fazenda que se seguirem a s. exa. (Apoiados.)
Todos comprehendem que a questão mais grave e importante é a questão de fazenda, que depende em muito da boa fiscalisação dos impostos, e se nós tivermos maus instrumentos para essa fiscalisação, mais proxima, mais impendente será a ruina que nos ameaça. (Apoiados.)
Nós não nos contentâmos só com o numero de guardas, olhamos tambem á qualidade, e a qualidade depende, alem de outras condições, principalmente do alistamento voluntario, como bem o reconheceu o sr. ministro da fazenda na sua organisação.
Mas, novamente pergunto á camara, pergunto a quantos me ouvem, se um alistamento nas condições que tenho descripto, é voluntario. (Apoiados.)
E eu pergunto á camara, eu pergunto a quantos me ouvem, que valor se póde attribuir ás instrucções mandadas publicar pelo sr. ministro da fazenda para explicar aos guardas as vantagens da reforma. (Apoiados.)
Os factos estão provando contra essas instrucções.
Os guardas eram homens que não tinham habilitações, que não tinham illustração sufficiente para poderem abranger de um golpe de vista todos os assumptos a que se referiam as instrucções.
O proprio sr. Franco Castello Branco disse que elles não as conheciam.
Elles levavam-se, portanto, pelos factos.
Conheciam tão bem alguns superiores que lá tinham, que hesitavam em alistar-se para lhes ficarem sujeitos n'um regimen mais duro.
Promettiam-lhes nas instrucções vantagens para a reforma, mas elles, que não podiam n'um rapido exame apreciar esse documento, nem até estudal-o proficuamente, tinham a natural desconfiança contra essas promessas, resultante de estarem vendo que só com muito atrazo se pagava aos reformados.
Só agora é que foram pagos aos guardas reformados no Porto os vencimentos de novembro, e para isto foram necessarias as instancias repetidas da imprensa e do parlamento.
Ás palavras, que não percebiam, oppunham-se os factos, que todos vêem e são de facil comprehensão.
De tudo isto e de muitas mais circumstancias resultavam e resultam a hesitação, a repugnancia em se alistarem.
Eu já hontem disse singelamente á camara que não me repugnava a idéa de que na guarda fiscal, n'este estado transitorio, em que é possivel não se encontrar logo um pessoal novo nas condições exigidas, se fizesse um alistamento com diversidade de condições, isto é, um alistamento d'onde resultasse a uns a faculdade de se despediram do serviço quando lhes conviesse, e a outros a obrigação de um certo praso de serviço.
No artigo 31.° d'esta organisação diz-se:
«O guarda que, findo o tempo do seu alistamento, não quizer continuar no serviço, assim o declarará por escripto um mez antes de terminar o seu compromisso. A mesma declaração, e no mesmo praso, fará aquelle que pretender ser readmittido no corpo da guarda fiscal.»
Não teria sido possível inserir na reforma uma disposição similhante para os antigos guardas?
Respeitar-lhes o direito que tinham de se retirarem do serviço quando lhes conviesse, exigindo-se-lhes apenas que

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declarassem o seu proposito de se retirarem dois ou tres mezes antes da epocha em que o fariam; resalvada a hypothese de esta; em cumprindo alguma pena, que não devia ser, repito, a de voltarem para o exercito, pelas rasões que já expuz e até porque muitos guardas são praças da reserva, tinham graduações no exercito, e não podem para lá voltar como soldados?
É facil fazer leis; e muito já se tem escripto sobre o assumpto de que nos occupâmos; o difficil é ver como essas leis se hão de applicar nas condições em que vivemos.
Isso é que deve ser o... mais aturado e proveitoso trabalho do legislador.
O sr. ministro da fazenda, realmente, podia ter introduzido esta modificação, quando fez a segunda edição da sua reforma, que aliás ainda não recebemos. Porque é preciso que os illustres deputados saibam, que ainda que este volume é uma boa prenda, com que nos mimosearam, quem quizer consul tal-o para trabalho util, precisa do resto; muito do que aqui só refere á guarda fiscal foi alterado. Essa nova edição, quando apparecer, precisa logo do outra, que seja bem revista e correcta, como demonstrarei em tempo, quando se discutir completamente a organisação da guarda fiscal.
Mas, s. exa., repito, podia e devia ter feito a modificação que indiquei; e tanto mais que o seu animo não foi tão inquebrantavel, que não cedesse a uma certa ordem de considerações que, certamente, não era a de respeito por direitos adquiridos, nem a de conveniência da administração, para alterar a sua reforma.
Vamos ao caso.
O artigo 23.° da nova reforma diz o seguinte:
«Os pretendentes, que forem admittidos, serão inspeccionados na séde do circulo fiscal onde apresentarem os seus requerimentos, por uma junta do revisão composta de dois facultativos militares, um sub-inspector e um chefe do districto, e presidida pelo inspector do circulo ou pelo em pregado superior da fiscalisação que for escolhido pelo administrador geral das alfandegas.»
E diz no § unico o seguinte:
«Os facultativos militares serão requisitados ao ministerio da guerra, e perceberão a gratificação e ajuda de custo que forem arbitradas pelo mesmo ministerio.»
A camara sabe, que as sédes dos circulos fiscaes são: Porto, Coimbra, Lisboa, Evora e Ponta Delgada.
No artigo 23.° e no § unico estava bem demonstrado o fim principal que se tinha em vista. Era requisitarem-se ao ministerio da guerra dois facultativos militares, quando fosse necessario reunir a junta de revisão, e aquelle ministerio escolheria naturalmente os que estivessem mais proximos da séde do circulo onde se reunisse a junta, o que seria mais conveniente para o serviço e mais economico para a fazenda, e mandal-os-ía desempenhar essa commissão puramente eventual.
Aias, quer v. exa. saber o que se passou em seguida a isto?
Pouco depois de publicar a organisação, o sr. ministro da fazenda requisitava &o ministerio da guerra dois facultativos para fazerem serviço permanente, perduravel na guarda fiscal, isto é, para esses dois facultativos militares irem inspeccionar os pretendentes a guardas fiscaes em Lisboa, Porto, Evora, Coimbra e ilhas adjacentes. Mas como haviam de desempenhar esse serviço, sem terem o dom da ubiquidade? Não era possivel.
Percorrendo toda a organisação, não se encontrava disposição que permittisse haver dois facultativos permanentes na guarda fiscal. Apenas o artigo 23.° referia o que já expuz.
Sabe v. exa. o resultado? Immediatamente foram, pela lei da reforma do exercito, passados para fóra do quadro os dois facultativos nomeados para servirem no ministerio da fazenda; para só preencherem as vacaturas que resultaram d'esse facto, foram despachados mais dois facultativos militares. A nação viu acrescentado com mais dois o numero dos facultativos militares, augmentou-se a despeza, sem necessidade, nem vantagem para o paiz.
E pergunto agora a v. exa. em que se empregaram e empregam realmente, n'este periodo, esses facultativos, se, como ha pouco confessou o sr. ministro da fazenda, não tem havido; alistamentos e só depois da publicação das instrucções de 17 de dezembro é que se têem effectuado?
Desde então até essa epocha o que fizeram esses facultativos?
(Interrupção do sr. Franco Castello Branco.)
Perfeitamente, já havia alistamentos, mas como estes facultativos haviam de estar muito mais commodamente do que os pobres guardas, como os alistamentos não se verificaram só em Lisboa; ou os guardas que se alistavam em Evora, Coimbra, Porto e tambem nos Açores não eram inspeccionadas, porque os dois facultativos estavam em Lisboa, ou então teriam estes facultativos de estar ao mesmo tempo em todas essas localidades, para prestarem o serviço a que eram chamados!
Agora note a camara uma circunstancia muito especial, e é que não havia verba no ministerio da fazenda para pagar a estes facultativos militares; porque em taes condições elles não figuravam na organisação; ao mesmo tempo elles não podiam receber os seus vencimentos pelo ministerio da guerra, porque não havia verba para elles, visto que tinham ido servir para o ministerio da fazenda.
N'estas circumstancias o sr. ministro da fazenda aproveitou a occasião de fazer as suas erratas, e não emendou absolutamente o erro, confirmou-o, porque o que s. exa. tinha feito era puramente um erro, visto que não podia requisitar similhantes facultativos para tal fim; na segunda edição, pois, da sua obra disse que na junta de revisão tomarão parte dois facultativos militares em commissão no corpo fiscal.
Agora assim é que a situação d'estes funccionarios é regular; note-se, é regular perante a lei, mas é irregular perante as circumstancias do paiz e as necessidades do serviço, porque não é seguramente quando o chefe do estado vem dizer ao parlamento, no discurso da corôa, e a maioria o vae repetir na sua resposta, «que com moderação nas despezas publicas será possivel consolidar e melhorar o credito nacional», não é seguramente, repito, quando se recommenda moderação nas despezas publicas, que se inventam despezas inuteis, augmentando o orçamento do ministerio da fazenda com os vencimentos de dois facultativos, que terão muito pouco que fazer. (Apoiados.)
O sr. Franco Castello Branco: - Peço licença ao illustre deputado para dizer-lhe que esses facultativos têem sempre que fazer, porque têem de inspeccionar os guardas que se alistam, os que dão parte de doente, os que requerem aposentação, emfim, estão constantemente em serviço.
O Orador: - Muito bem, agradeço a explicação do illustre deputado, e a camara ficou comprehendendo perfeitamente como dois facultativos apenas, tendo a sua séde em Lisboa, podem estar inspeccionar guardas em Evora, Coimbra, Momtalvão, Algarve e até nos Açores, tudo ao mesmo tempo!
O sr. Franco Castello Branco: - Não vão lá.
O Orador: - Então são os doente, que vem cá?! E mais commodo. (Riso.)
N'esse caso, estou quasi propondo que se abra um consultorio medico no ministerio da fazenda! (Riso.)
Ora, sr. presidente, do que nós precisâmos é de proceder com economia e moderação nas despezas, e com moralidade n'estes assumptos. (Apoiados.)
Com franqueza, não sabemos todos que, mais ou menos proximo da circulos ou mesmo das sessões da fiscalisação, ha facultativos militares que, assim como são incumbidos do certas commissões, podiam muito bem desempenhar

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aquella, para a qual não são precisas nenhumas habilitações especiaes? Creio que não foi por favoritismo que o sr. ministro da fazenda escolheu dois determinados facultativos, mas tão pouco o foi por terem condições especiaes, visto que todos devem ser reputados com igual competencia e idoneidade.
Manteve, porém, o sr. ministro no § unico do artigo 23.° da nova edição a boa doutrina.
Esse paragrapho é o seguinte:
«Nas ilhas adjacentes os cirurgiões militares serão requisitados á auctoridade superior militar, e perceberão as gratificações que forem arbitradas pelo ministerio da guerra.»
Vê a camara que n'esta epocha, quando o numero de alistados tem sido tão avultado que o governo tem tido necessidade de empregar essa propaganda e esses meios de coacção que todos nós conhecemos, ha dois facultativos permanentes em Lisboa para inspeccionarem os guardas que podem querer alistar-se no Porto, Coimbra, Evora e Lisboa. Para as ilhas, talvez com o fim de não obrigar os facultativos á incommoda viagem pelo Atlantico, adoptou-se o systema anteriormente estabelecido, que era, como muitas outras disposições, mais perfeito do que o seguido na edição emendada.
Entretanto a escola do exercito tem estado sem facultativo para o serviço clinico, quando é certo que ha ali um grande numero de alumnos que precisam justificar as suas faltas e serem examinados quando dão parte de doentes.
(Interrupção do sr. Lobo Lamare.)
O illustre deputado, que é militar e que tem andado sempre muito relacionado com as questões de direito e legislação militar, e muito bem, deve saber que a escola do exercito não podia por si só dar ordens sobro tal assumpto.
(Interrupção do sr. Lobo Lamare.)
O que eu sei é que ha dois facultativos para serviço permanente na guarda fiscal, quando não abundam os alistandos; o que sei é que ha a mais no orçamento os vencimentos de dois facultativos militares.
Para se poder pagar aos dois facultativos da guarda fiscal, o sr. ministro da fazenda alterou na nova edição o § unico do artigo 18.°, que na primitiva não os indica. Esse paragrapho é hoje o seguinte:
«O official superior que exercer o logar de chefe da quarta repartição da administração geral das alfandegas e os demais officiaes do exercito activo, bem como os cirurgiões militares, que fizerem serviço no corpo da guarda fiscal, terão os mesmos direitos e garantias que pelas leis vigentes competirem aos que servem nas guardas municipaes.»
Vê-se que o sr. ministro foi de uma grande solicitude em lhes definir o logar e descrever os vencimentos, quando fez a segunda edição. Teriam elles direitos adquiridos?
Visto que fallei no chefe da 4.ª repartição da administração geral das alfândegas, tenho de alludir a uma questão que aqui se apresentou ácerca do antecessor do actual e que se refere á sua exoneração.
O sr. ministro da fazenda explicou muito singelamente que, não se achando esse official satisfeito com aquelle serviço, requererá a sua exoneração.
Creio que esse official não estava justamente satisfeito com aquelle serviço, mas ficou muito satisfeito de se retirar. (Apoiados.)
N'esta casa ha certamente pessoas muito competentes que me estão ouvindo e que sabem perfeitamente que esta minha asseveração não é gratuita.
Mas, como disse, este official ficou muito satisfeito de se poder retirar d'esse sertivo, não pelo serviço em si, mas pelas condições em que elle se fazia e por uma parte do pessoal de que estava cercado. (Apoiados.)
Este official é probo, honesto, sem aspirações, cumpridor do seu dever. (Apoiados.)
Posso dizel-o, sem offensa, não é homem de grande illustração mas deve merecer confiança.
Talvez não seja dos mais aptos para um serviço em que algumas vezes se terá julgado necessario procurar fóra do cumprimento mais rigoroso dos preceitos os systemas auxiliares do mostrar que a lei é exequivel.
Talvez não tenha esse prestimo, prestimo que eu aliás não tenho costume de admirar nem de louvar em ninguem.
Mas o que é certo é que com a retirada d'este official do serviço coincidiu exactamente o facto de constar por toda a parte, de se dizer em todas as estações publicas o até officiaes, que no circulo de Lisboa se estava levando dinheiro aos guardas pela passagem de attestados do seu comportamento; que se lhes exigia uma propina não legal mas abusiva de 1$500 réis. (Apoiados.)
E até se dizia mais, que quando o interessado, por ter má letra, não sabia fazer bem o requerimento, então pela feitura do requerimento e pelo attestado levavam-lho réis 2$250.
Dizia-se tambem que, tendo alguns guardas declarado previamente que não queriam alistar-se, quando depois íam pedir um attestado do seu bom comportamento com o fim de poderem solicitar emprego no correio ou na policia civil, nem pelos 2^200 réis obtinham esse attestado. (Apoiados.)
Não sei se esse official chegou ou não a ser informado d'estes factos; elle é que o poderia dizer, se fosse chamado a fazer declarações, e se se fizesse o inquérito que o sr. Mariano de Carvalho hontem propoz e que o sr. ministro da fazenda não acceitou. (Muitos apoiados.)
O sr. Ministro da Fazenda (Hintze Ribeiro): - O illustre deputado acaba de dizer que um official probo e honrado saiu do ministerio da fazenda, onde serviu como chefe de repartição, por não se querer sujeitar a formalidades menos regulares.
O Orador: - Eu não disse isso. Este official é probo; não é uma illustração, mas merece confiança. É muito cumpridor dos preceitos legaes, mas não tem o prestimo de procurar fóra d'elles a interpretação mais facil, ou os meios de tornar mais exequivel uma lei.
O sr. Ministro da Fazenda (Hintze Ribeiro): - Este official saiu, devo dizel-o como esclarecimento ao illustre deputado, sem nunca se ter dirigido a mim para se accusar de qualquer aggravo que lhe fosse feito.
Esse official nomeei eu pelas boas informações que tinha d'elle e que não tiveram desmentido.
Tive conhecimento de que elle desejava retirar-se, e foi por isso que se deu a exoneração. Para o logar d'esse official veiu um outro, que reputo igualmente honrado e igualmente probo. Esse official não tem voz no parlamento nem quem aqui o defenda, por isso, desde o momento em que o illustre deputado disse que o official anterior saíra por não querer sujeitar-se a praticas abusivas, perguntava eu a s. exa. se, visto que outro official saíu por esse facto, esto que foi nomeado se conserva porque se sujeita a essas praticas?
Faço esta pergunta, não para resalvar o meu credito como ministro, mas para resalvar o credito d'esse official e garantir a sua dignidade.
O Orador: - Eu explico a s. exa. a significação das minhas palavras. Eu conheço ambos os officiaes a que nos referimos e estou plenamente convencido que o novo official nomeado, se se vir nas circumstancias de ter de transigir com a sua consciencia e com o cumprimento dos seus deveres, se retirará; mas a averiguação de todos os factos para a plena justificação de todos, reconhece-se principalmente se se fizer um inquerito.
Isto não é uma questão em que nos possamos contentar com o meu testemunho e com o de s. exa.; para que v. exa. a camara e todos que nos ouvem fiquem ao facto da verdade, querem-se factos, querem-se provas.
Dizia-se tambem por esse tempo e disse-o o sr. ministro da fazenda que esse official que se retirou não tinha diri-

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gido a minima participação a s. exa. Mas isso não admira; o official costumado á vida militar e á disciplina do soldedo, acceitou a nomeação sem a solicitar, e como entendeu na sua consciencia que não podia continuar, pediu a demissão e retirou-se. É como procedem geralmente os militares e por isso não se dirigiu ao sr. ministro da fazenda para lhe fazer queixas de aggravos.
É esse o nosso habito, que resulta dos costumes e da educação militar, o que não impede que, se ámanhã for chamado á commissão de inquérito, diga as rasões por que saíu. (Apoiados.)
O sr. Lobo Lamare: - Retirar-se de uma repartição publica, por factos criminosos que conhece, e não os confessar... Não acceitâmos essa doutrina, que é vexatoria e contraria á legalidade e brio dos funccionarios. (Apoiados.)
O sr. Mariano de Carvalho: - O inquerito, venha o inquerito. (Apoiados.)
O Orador: - Vamos todos pacificamente, sem estarmos a invocar, nem o codigo, nem o brio de ninguem.
Eu não discuto se o empregado que pediu a demissão devia ou não fazer a narrativa d'esses factos, o que eu sei é que este official solicitou que fossem mandados para os archivos da quarta repartição todos os processos de todos os guardas, conjunctamente com os livros das culpas e castigos, e n'isso encontrou muitas resistencias.
O sr. Ministro da Fazenda (Hintze Ribeiro): - Insisto pela minha parte nunca isso me constou.
Pois aquelle official quer reagir contra as praticas abusivas, encontrou resistencias, e não se dirige ao ministro? (Apoiados.)
Nunca se dirigiu a mim?
O Orador: - De accordo; estou plenamente convencido de que o sr. ministro não conhece os factos que ali se dão, e par isso mesmo entendo que, se houvesse o inquerito, o próprio sr. ministro aproveitaria com elle, porque teria inteiro conhecimento do que se tem feito. (Apoiados.)
Não quero fatigar a camara, e, por isso, vou concluir brevemente as minhas considerações.
Não quero irritar o debate, porque com isso nada conseguiremos; póde até suppor-se que quanto mais se gritar, menos rasão ha.
Eu tenho necessidade de o fazer, porque a minha voz é debil, preciso fazer-me ouvir, e alem disso estou no uso da palavra. (Apoiados.)
Logo depois d'este official, chefe da quarta repartição, se ter retirado pelo motivo que se sabe...
Uma voz: - Pelo seu estado physico.
O Orador: - Pelo seu estado physico. Felizmente não era pelo seu estado moral.
Como ía dizendo, logo depois d'elle se ter retirado appareceram as alterações em que se procurou operar uma transformação na organisação militar, que imperfeitamente só tinha estabelecido.
É uma outra coincidencia que aponto á camara; e todas ellas poderiam ter explicação, fazendo-se o inquerito.
Mas o sr. ministro da fazenda não quer o inquérito. Inquérito em que podesse intervir a politica n'uma questão d'esta ordem, nunca, exclamava s. exa.
Oh! sr. presidente, todos os annos a camara nomeia commissões de inquerito. (Apoiados.)
Isto não é de agora, mas de ha muito tempo.
Nomeou se uma commissão para se fazer o inquerito a todos os serviços dependentes do ministerio da marinha, e não se allegou o receio de que nos sentissemos todos eivados de paixões politicas a tal ponto que não podessemos ser justos na analyse e apreciação dos factos. (Apoiados.)
Diz s. exa. que quer applicar os termos legaes; que os que delinquirem vão para o poder judicial, e que demitte aquelles que, pelo seu procedimento, não poderem continuar a exercer os seus logares. Estamos todos fartos de ouvir estas respostas.
Quando ha dois annos aqui se pediam documentos relativos a uma fraude praticada n'um concurso das alfandegas, cujas questões são de ha muito as que mais nos preoccupam, apparecendo todos os dias sob mil fórmas novas, cada vez mais perigosas; quando se pediam esses documentos, s. exa. declarou que os não podia mandar porque estavam entregues ao poder judicial. (Apoiados.)
O sr. Mariano de Carvalho: - E lá estão.
O Orador: - São decorridos dois annos. O sr. Consiglieri Pedroso pergunta qual é o andamento que tem tido este processo, e o sr. ministro da justiça, que folgo dever presente, ainda não está informado onde elle pára.
O sr. Ministro da Justiça (Manuel d'Assumpção):- Estou informado do ha muito do estado do processo, e já disse ao sr. Consiglieri Pedroso, ha uns poucos de dias, que lhe pedia dar as informações que desejava. Se as não dei logo, é por que concordei com s. exa. em que ficariam para outro dia, e como a camara tem estado occupada com o incidente que se levantou na sessão de sabbado; é esta a rasão por que ainda não dei essas explicações.
O Orador: - Torno a insistir em que o unico meio de podermos ficar bem collocados n'este assumpto, é o proceder-se ao inquerito que propoz o sr. Mariano de Carvalho, porque só d'esse inquerito póde resultar verdadeira luz n'esta questão.
Inquerito que habilitará melhor o sr. ministro da fazenda a purificar aquelles serviços, lhe dará a força que não tem podido ter para proceder como era indispensavel, emfim, servindo-me da moderna linguagem scientifica ácerca das doenças de infecção, para poder tirar d'ali todos os microbios.
Dito isto, creia o illustre ministro da fazenda que não ha da minha parte o minimo desejo de contrariar os intuitos de s. exa., que eu julgo no fundo excellentes, de organisar os serviços relativos á fonte de receita que mais nos interessa.
Nós não o queremos contrariar. S. exa. é que porventura contraria esses seus bons intuitos, quando vae escolher como habilitação para dirigir uma importante casa fiscal o facto do escolhido ter sido simplesmente magistrado administrativo.
Vozes: - Muito bem.
(O orador foi comprimentado.)
O sr. Avellar Machado: - Requeiro a v. exa. que consulte a camara sobre se permitte que se prorogue a sessão, se tanto for preciso, até terminar este incidente.
Consultada a camara, resolveu affirmativamente.
O sr. Arroyo: - Vou ter o prazer e a honra de responder ás considerações que acaba de apresentar o illustre membro d'esta casa, e meu amigo, o sr. Thomás Bastos.
Antes de tudo, sr. presidente, começarei por lastimar que esta discussão não se tenha conservado sempre tão serena e tão pacifica como o exigia a necessidade impreterivel de deixar bem apuradas as responsabilidades que porventura coubessem ao actual gabinete, e a parcella de verdade que por acaso existisse nas arguições da opposição.
Tomei a palavra quando o debate se póde suppor terminado, quando a questão se acha perfeitamente esgotada, tanto por parte da accusação, como por parte da defeza.
Ainda assim, é tão funda a convicção em que estou de que são infundadas as arguições expostas pelos oradores opposicionistas, é tão firme em mim a opinião de que o procedimento do governo, no uso da auctorisação parlamentar que lhe foi concedida, tem sido ininterrompidamente correcto, que não duvidei usar da palavra n'esta altura da discussão, embora reconheça que tenho de luctar contra o natural cansaço da assembleia.
Que extraordinario debate este, sr. presidente! Que extraordinaria discussão e, sobretudo, como é extraordinaria a maneira por que a opposição conduziu o debate, pois é evidentemente á opposição parlamentar que compete a direcção da questão!

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Que vimos nós? Vimos logo no começo da campanha, levantar-se um parlamentar illustre, considerado e respeitado merecidamente por todos os membros d'esta casa, e declarar que se occupava n'esta occasião do assumpto que prende presentemente a attenção da camara, porque a isso o haviam arrastado os seus correligionarios politicos! Principiamos por ver um chefe eleito ha poucos dias, que vinha dar as suas primeiras vozes de cominando á opposição monarchica, apresentar considerações que envolviam uma censura suave aos actos dos seus amigos politicos!
Depois, vimos o partido progressista renegar inteira e absolutamente das idéas que na sessão legislativa proxima passada expozera sobre a organisação de um corpo de guarda fiscal. Então, o partido progressista luctava com affinco, com pertinacia, por uma organisação perfeitamente militar; agora, defende esse partido systemas de conciliação, termos medios incompatíveis com os principios fundamentaes da organisação do exercito! (Apoiados.)
Assistimos á exposição de factos, de muitos factos, por oradores brilhantes, convincentes, parlamentares que toem no vigor da palavra e na força da eloquencia o melhor auxiliar para a defeza de uma causa qualquer. Seguidamente, sem demora, sem tergiversações, ouvimos a resposta a todos os argumentos apresentados, facto por facto, ponto por ponto, com a justificação cabal da conducta do nobre ministro da fazenda. Refiro-me não só aos discursos que partiram das cadeiras ministeriaes, mas tambem ao discurso proferido pela voz auctorisada de um illustre deputado, e meu particular amigo, que occupa na administração geral das alfandegas um cargo elevado.
Emfim, sr. presidente, vimos reapparecer na scena parlamentar portugueza o sr. Marianno de Carvalho... A obra de reformação do sr. ministro da fazenda não influiu sómente na disciplina fiscal, influiu igualmente na disciplina partidaria... (Apoiados.)
Ao mesmo tempo que aperfeiçoava e regularisava os serviços aduaneiros, contribuindo consequentemente para o augmento das receitas publicas, conseguia tambem reunir elementos dispersos da opposição, e, portanto, incutir vida nova ao regimen parlamentar. (Apoiados.)
Devo por isso felicitar duplamente o nobre ministro da fazenda. Elle fez bem ao seu paiz; fez bem ao seu partido que se orgulha de o apoiar, e, como generoso que é, fez bem á opposição que o guerreia. (Apoiados.)
Varias são as conclusões a tirar d'este debate.
A primeira é que a reforma alfandegaria, contida nos Reis decretos que têem a data de 17 de setembro de 1885, fica inteiramente de pé. (Muitos apoiados.)
A critica parlamentar e extra-parlamentar deteve-se unica e simplesmente em minucias, occupou-se exclusivamente de minudencias.
A architectura geral d'essa grande obra de reformação, as suas linhas capitães, o delineamento fundamental dos principios constitutivos d'esses seis diplomas, que representam uma alteração profunda da anterior legislação aduaneira, tudo isso foi respeitado pelas invectivas dos illustres deputados opposicionistas, como o fôra pelos seus orgãos da imprensa periodica. (Apoiados.) Tudo isso ficou de pé, repito.
É verdade que a opposição progressista nos advertiu de que faz tenção de discutir os seis decretos de 17 de setembro de 1885 em interpellações especiaes e successivas.
Tenho sempre o maximo respeito pela palavra de s. exas., mas arreceio-me tão sómente de que, em a discussão assumindo o apice da importancia, comecem s. exa. a saír, como fizeram o anno passado... (Riso. - Apoiados.) V. exa. ha de estar lembrado, e ha de recordar-se a camara, de que, na anterior sessão legislativa, em se discutindo questão de vulto, s. exas. os deputados progressistas usavam pegar dos seus chapéus e iam fazer a avenida. (Riso. - Apoiados.)
Note tambem a camara que a opposição progressista, querendo criticar acerbamente a reforma do sr. ministro da fazenda, lhe fez o maior dos elogios, pela bôca de um dos seus mais eminentes caudilhos.
Na verdade, o sr. Barros Gomos, procurando amesquinhar os decretos de 17 de setembro de 1885, comparou o sr. Hintze Ribeiro, sabe v. exa. com quem? Com Mousinho da Silveira. (Riso.) É exacto. Não encontrou s. exa. nada que tão profundamente podesse ferir o orgulho do illustre ministro da fazenda. Já é!
Se o sr. Hintze Ribeiro, cujos talentos distinctissimos e trabalho indefesso asseguraram de ha muito a s. exa. um logar elevadissimo entre os nossos primeiros estadistas, continuar a produzir obras de identico valor ao dos referidos decretos, virá o sr. Barros Gomes á camara, e, para desdenhar das medidas governativas do sr. Hintze Ribeiro, comparal-o-ha talvez ao marquez de Pombal! (Apoiados.)
Ha outra conclusão a tirar do debate, e vem a ser que, se esta questão vive ainda, é porque foi utilisada pela politica; (Apoiados.) se tem tido larga duração, é porque o facciosismo partidario se aproveitou d'ella. Prova-o a correcção da conducta do governo, evidenciada nos discursos dos oradores governamentaes que me precederam no uso da palavra; prova-o o tom apostolico, sentimental, elegiaco dos discursos dos deputados opposicionistas, de uma eloquencia parlamentar coeva do Noivado do sepulchro; (Riso.) provam-no ainda os successivos desvios de que a opposição progressista tem lançado mão para que da apreciação de factos, inteiramente estranhos ao assumpto que se discute, se podessem deduzir illações desfavoráveis á reforma do sr. ministro da fazenda. (Apoiados.)
Em ultimo logar, conclue-se do debate que o parlamento portuguez perde por vezes bem inutilmente o seu tempo. (Apoiados.)
Isto não era questão que tantos dias devesse roubar á camara. (Apoiados.)
Ao governo e a nós, maioria, cumpria-nos, no inicio do uma sessão legislativa, quando pela primeira vez expluem as iras opposicionistas accumuladas durante o interregno parlamentar, consentir n'uma discussão larga, ampla, e, por assim dizer, illimitada, emquanto o assumpto se não esgotasse. Mas a opposição, que pede todos os dias economias, era a quem competia reclamar uma economia de tempo ao parlamento. (Muitos apoiados.)
A questão a que a opposição attribuiu mais valor, e que considerou como ponto capital da discussão, foi a do uso que o actual gabinete fez da auctorisação parlamentar concedida pela lei de 31 de março de 1885.
Sustenta a opposição progressista, e assim o affirmou o sr. Thomás Bastos, que o governo, depois de haver usado uma vez d'essa auctorisação parlamentar, não podia voltar a usar d'ella; que a auctorisação caducara, promulgados que foram os decretos de 17 de setembro de 1885.
Argumentou até o sr. Barros Gomes com a lei de 23 de agosto de 1869, em virtude da qual o governo de então recebeu das camaras legislativas a auctorisação precisa para proceder á reforma do quadro e dos serviços publicos, lembrando como, segundo a doutrina sustentada pelo actual gabinete, seria legitimo usar ainda hoje da auctorisação contida na lei de 1869.
Principiarei por estabelecer o principio juridico, que julgo verdadeiro, e á face do qual me parece dever ser resolvido o problema: todo o poder delegado conserva nas mãos do mandatario, e dentro dos seus respectivos limites, a natureza que tinha nas mãos da pessoa ou corporação que legitimamente o outorgou.
Assim é em direito civil: o mandatario faltara ao mandato, não cumprirá para com o mandante, se não realisar a totalidade das obrigações inscriptas no titulo da procuração.
É assim em direito administrativo: a auctoridade delegada incorrerá no delicto da desobediencia ou será castigada por incuria, se não cumprir integralmente as funcções que

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lhe foram conferidas pelo seu superior legitimo, em conformidade com o pensamento que presidiu ás ordena recebidas.
Tambem é assim em direito publico, o sobretudo em direito publico, porque ahi as auctorisações partem do proprio poder que faz as leis, o qual fixa e determina o limite, a extensão, a amplitude do voto de confiança que concede ao poder executivo, dentro da orbita fixada na lei fundamental.
No meu entender, sr. presidente, a questão não póde ventilar-se n'este ponto fundamental.
Sob este aspecto, são manifestamente erroneas as doutrinas da oradores opposicionistas, na parto em que ellas tendem a diferençar a faculdade do legislar, segundo é exercida pelo poder legislativo ou pelo poder executivo, em virtude de delegação d'aquelle poder. (Apoiados.)
O ponto de só saber se o governo podia reformar os decretos de 17 do setembro de 1885 ha de ser decidido á face da natureza das materias que constituem o decreto de 9 de dezembro de 1885, da importancia o alcance das suas disposições, comparadas com as dos decretos de setembro.
Eu me explico.
Da these que estabeleci deduz-se, sr. presidente, que seria tão irregular o procedimento do governo, destruindo por uma segunda reforma os principios e as bases que fixára na primeira, como seria incorrecto o parlamento que destruísse boje a obra legislativa que approvára na vespera.
O que não fica mal ao governo, no uso de uma auctorisação parlamentar, como não ficaria mal ao parlamento, é esclarecer disposições do decretas anteriores, completar essas disposições ou modificar uma primitiva reforma em pontos secundarios, em materias que não representam as bases capitães de diplomas anteriores.
Isto não póde taxar-se do incorrecto ou illegal; e isto, e só isto, é o que se fez no decreto do 9 do dezembro.
Demais, para bom se aquilatar a conducta do governo, deve attender só a que o ultimo decreto, o decreto que contem a completarão da reforma aduaneira lavada, á execução em setembro proximo passado, appareceu quando ainda não estava reunido o parlamento:(Apoiados) foi promulgado ainda durante o interregno parlamentar. (Apoiados.)
Por outro lado, não sei como evitar o absurdo que resultaria da adopção da opinião contraria.
Se o governo estivesse completamente inhibido do tocar na reforma promulgada, que enormes inconvenientes não poderiam d'ahi advir, sempre que uma necessidade urgente tornasse inadiavel uma leve modificação do algum dos textos dos decretos!
Deveria, em tal caso, ficar o governo impassivel perante a urgencia de um remedio prompto o efficaz? Deveria elle tomar tal responsabilidade? Não viria depois a opposição, que tão severamente o accusa agora pela, adopção do principio opposto, pedir-lhe estrictas contas dum procedimento d'onde proviria talvez grave prejuizo para o paiz? (Apoiados.) Não diriam então os oradores opposicionistas que os motivos ponderosos da conveniencia publica deviam preponderar sobre o vão prurido de respeitar abusiva e integralmente a primitiva reforma? (Apoiados.)
Taes me parecem ser, sr. presidente, os verdadeiros principios que a um gabinete qualquer cumpro acatar, no uso das auctorisações parlamentares, principios esses que não foram esquecidos polo nobre ministro da fazenda. (Apoiados.)
É facil agora, sr. presidente, reconhecer que não tem valor o argumento tirado da lei de 23 de agosto de 1869.
As circumstancias do caso são inteiramente diversas.
Se é exacto que uma reforma dos serviços publicos ha de conter sempre a modificação pequena ou grande de uma organisação ou de parte de uma organisação precedente, tambem é, por outro lado, exacto que, para uma auctorisação parlamentar se suppor transmittida do ministerio para ministerio, se torna necessario que não decorra um praso longo entro a concessão do voto de confiança e a sua utilisação, o que não perca a delegação de poder o caracter de opportunidade e actualidade inherente a todas as questões e ordem politica. (Apoiados.)
Mas allega-se que o sr. ministro da fazenda exorbitou das suas attribuições, alterando por portaria o que determinára por decreto. Feita a accusação n'estes termos vagos, pareço effectivamente que houve abuso do auctoridade por parto do poder executivo. A proposição é, comtudo, inexacta, exactamente pela fórma por que é apresentada.
O que ha a determinar é a materia a respeito da qual uma portaria póde ou não póde conter alteração de decreto, para em seguida se verificar se na portaria de que o ministro é accusado se excederam os limites lixados pela doutrina e pela praxe a esta especie do diplomas governativos. Ora como a portaria é diploma sufficiente para assumptos de expediente de administração, claro se torna, sr. presidente, que o ministro não praticou abuso algum do poder com a promulgação da portaria do 19 do dezembro ultimo, que nada mais contam do que uma prorogação do praso para o alistamento dos guardas fiscaes, alem do instruções para o seu alistamento. (Apoiados.)
O curioso é que a opposição invectiva primeiro o ministro pelo excessivo rigor com que procedeu para com os guardas da fiscalisação externa das alfandegas, para em seguida o accusar por um acto do manifesta tolerancia, baseado no estado atrazado dos alistamentos ao tempo da publicação da portaria! Sempre coherente, esta opposição! (Apoiados.)
Tambem foi alvo das mais vehementes censuras o decreto n.º 5 de 17 do setembro do 1885.
O gabinete foi accusado de haver invadido e offendido as garantias constitucionaes, os direitos individuaes do cidadão, e o estylo dos deputados progressistas revestiu por essa occasião côres verdadeiramente tragicas. É-me todavia impossivel adherir á critica dos meus adversarios.
(Susurro.)
Vejo, por um certo susurro que bordeja á minha volta, que as minhas considerações não calam no animo dos srs. deputados progressistas; mas isso-é-me totalmente indifferente, e proseguirei na defeza do procedimento do governo, em que pese aos meus delicados collegas da opposição. (Vozes: - Muito bem.)
O sr. Luciano do Castro affirmou que o nobre ministro da fazenda estabelecêra penas e reformára, o contencioso aduaneiro, sem para isso haver sido auctorisado pelo parlamento. Permitta-me o illustre chefe progressista lhe observe que é menos fundada a arguição de s. exa. (Apoiados.)
Na legislação anterior, só existia a pena do prisão para os delictos e descaminhos relativos ao imposto do tabaco, pena que, em virtude da lei de 13 do maio de 1864, era do um mez até um anno, ou de um anno até tres nos casos de reincidencia; mas já uma commissão, nomeada em 1S83 e 1864, advogára a applicação mais lata da pena do prisão.
Assim é que o n.º 4.° do artigo 1.° da lei de 31 de março de 1885 auctorisou o governo a rever a legislação repressiva dos contrabandos e descaminhos de direitos, estabelecendo a pena de prisão até dois annos, e mandando applicar a pena pelo poder judicial nos termos do processo em vigor.
Á face de texto tão expresso, é porventura licito sustentar que o governo excedeu os limites da auctorisação parlamentar, regulando, nos termos do decreto n.° 5, a applicação da pena de prisão até dois annos? (Apoiados.)
Quanto a processo, e por isso que referido n.º 4.º do artigo 1.º da lei de 31 de março de 1885 se não encontra principio nenhum restrictivo para a revisão da legislação

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respectiva, a não ser quanto á applicação da pena do prisão, é evidente que o decreto n.° 5 de 17 de setembro, completado pelo de 30 de dezembro proximo passado, representa um trabalho merecedor de altissimo elogio, pela deficiencia e imperfeição da legislação anterior sobre este serviço publico. Respeitando os limites fixados pelo citado n.° 4.° á acção das auctoridades administrativas, estatue-se no artigo 38.°, § unico, do decreto n.° 5 de 17 do setembro de 1885 que, quando ao delicto corresponder pena do prisão, enviará a administração geral das alfandegas ao poder judicial uma participarão circumstanciada dos factos occorridos e da decisão tomada, a fim de que, nos termos da legislação criminal em vigor, se proceda á imposição da pena correspondente.
A opposição progressista entreteve se a levantar pequenos incidentes, episodios sem importancia para o esclarecimento da questão discutida, procurando por todos os meios e feitios excitar a opinião publica contra a actual situação politica.
Sustentou, por exemplo, que o governo tinha obrigação de vir a esta casa dar largas explicações sobre os factos de que terá sido claramente acerbado na imprensa periodica, tanto da capital, como de fora d'ella.
Ergueu-se o nobre ministro da fazenda o contestou muito bem, e muito serenamente, que lhe incumbisse tão extraordinaria obrigação parlamentar, mas só a de responder n'esta e na outra camara a qualquer pergunta que lhe for dirigida por um membro do parlamento.
Ah! sr. presidente! Eu acrescentarei que não seria preciso entreter a camara com a critica do que se lê nas folhas periodicas, sem distincção da materia, para que o tempo fallecesse á camara por tal fórma que não chegaria a discutir um só projecto de lei.
Acredite v. exa., e acreditem todos os meus collegas, que para não chegarmos a discutir sequer o discurso da corôa, bastar-nos-ía fazer o commentario das amabilidades e caricias que os membros mais graduados do partido progressista lá fóra se têem mutuamente prodigalizado com uma suavidade de tigres de Bengala. (Riso.)
Depois, aproveitando o ensejo rhetorico, e suppondo-se offendidos no uso de um legitimo direito individual, arvoram-se em defensores da imprensa periodica, gritam que a imprensa foi offendida pelo sr. ministro da fazenda, ella, a imprensa, que exerce funcções de critica, de ensino, de propaganda civilisadora, cujo caracter sacrosanto merece de todos a maior homenagem do veneração.
E quem o atacou? (Apoiados.) Qual foi a voz que se levantou no parlamento contra o uso legitimo das funcções que competem á imprensa? Pois algum de nós desconhece a extraordinária efacacia da sua acção civilisadora e o extraordinario bem que toda a humanidade lhe deve? Pois algum de nós poz limite ao seu direito e dever de critica, quando essa obrigação ou essa faculdade, é posta em execução, sem que d'ahi advenha perigo ou prejuizo á collectividade social? (Apoiados.)
Contra o que se pronunciou o sr. ministro da fazenda, e contra o que eu não tenho duvida em pronunciar-me, é contra a propaganda arriscada feita infundadamente, levianamente, é contra o abuso da força inherente ás manifestações da imprensa, utilisada por um espirito facciono, partidario em excesso. (Apoiados.)
Espraíaram-se tambem os oradores opposiocinistas em lamentações escusadas ácerca da situação dos guardas fiscaes, e digo escusadas, porque nunca esteve na intenção nem do governo, nem da maioria electiva que o apoia, o pensamento de tratar com desdem ou menos consideração os empregados inferiores da fiscalisação externa.
Tantas vezes entoaram s. exas. a cantata n.º 22 - Pobres guardas! que a final explosiu da bôca dos meus adversarios politicos da representação monarchica, o argumento de mais effeito, não direi para a camara, mas para as glorias; se os guardas fossem ricos e poderosos, teriam alcançado justiça prompta; mas como poderiam elles, miseros e mesquinhos, fazer ouvir e valor a sua voz, nas altas regiões do governo?
Que idéa faz a opposição progressista da sua força parlamentar? (Apoiados.) Pois dentro do regimen representativo, que mais alta e valiosa protecção póde lograr obter uma causa qualquer do que o apoio de uma opposição inteira?
Julgam-se s. exas. tão pouco?
Sentem no fundo da consciencia a sua pouquidade?
Não, sr. presidente; formo melhor juizo de s. exas. Na apresentação do mencionado argumento nada mais sei ver que uma prova da constante contradicção que caracterisa o procedimento politico do partido progressista: no anno passado, sustentaram que não houvera verdadeira discussão da reforma constitucional, porque s. exas. não intervieram no debate; este anno, affirmam que a defeza das pretensões de alguns dos guardas fiscaes não tem força nem vigor, porque nós, maioria, não collaboramos n'ella. (Riso.- Apoiados.) É o que o argumento significa.
E depois d'isto, passaram os illustres deputados progressistas á investir contra o sr. Hintze Ribeiro por causa do casamento dos guardas fiscaes; s. exas. não se contentam com patrocinar por todas as fórmas ao seu alcance os interesses dos guardas solteiros, ou que já constituíram familia; occupam-se igualmente do matrimonio dos guardas casadoiros. (Riso.)
N'este sentido, s. exas. envidaram os maiores esforços o fizeram mesmo grande despendio de palavras a fim se appossarem bem do criterio que devo dirigir a administração na concessão ou não concessão de licença ao guarda para contrahir casamento. (Riso.) Facilmente evitavam s. exas. tanto incommodo e gasto de phrases. Escusavam mesmo de consultar os nossos regulamentos militares, a partir do regulamento do conde de Lippe; bastava-lhes dirigirem-se ao sr. José Joaquim de Castro, que s. exa. em duas palavras os elucidaria. Não envio os illustres deputados progressistas para o sr. João Chrysostomo, porque não sei se s. exas., depois da celebro questão dos coroneis, se entendem bem com este estadista sobre cousas militares... (Riso.)
Atacou depois a opposição o problema por outro lado, sustentando que o alistamento obrigatorio era uma offensa frisante de direitos adquiridos.
A opposição lançou sobre o governo as apostrophes mais violentas, as arguições mais furibundas, sem attender aos termos em que se acha redigida a auctorisação parlamentar. (Apoiados.)
Ainda na maneira como este assumpto foi tratado pela opposição progressista, se denota a influencia fatal dos habitos politicos do partido, e o esquecimento completo do que fizeram no dia de hontem.
Por exemplo, a tendencia do sr. Thomás Bastos para basear a sua argumentação na obrigação imposta pelo governo aos guardas de se alistarem voluntariamente, recorda-me a emigração espontanea que um illustre ministro progressista pretendia promover... (Riso.)
(Interrupção do sr. Laranjo.)
Agora levanta-se o sr. dr. Laranjo e diz noa a sua voz auctorisada (seja isto dito sem nenhum tom do gracejo), com a competencia que lhe advém da especialidade que particularmente tem estudado como professor da faculdade de direito, e observa que essa é a expressão usada pelos tratadistas das materias de emigração. Perdão; o que se lê n'esses livros é o estudo dos meios mediatos, indirectos, de influencia grande ou pequena nos movimentos de emigração. O que nenhum publicista faz é chamar espontanea á emigração, incitada conscientemente pelos orgãos dirigentes da nação. (Apoiados.)
Pelo que toca á infracção dos direitos adquiridos, é curioso notar tambem, sr. presidente, que esse argumento foi especialmente aproveitado pelos deputados progressis-

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tas. Desejo sómente que s. exas., depois do tão asperas censuras, conservem d'ellas sufficientes reminiscencias para que, em as voltas da politica os levando outra vez ás cadeiras do poder, não ponham de novo em pratica o funesto regimen da perseguição barbara e iniqua de 1879 a 1881 a todo o funccionario, não particularmente affecto á causa progressista. (Muitos apoiados.) Isso sim; isso é que é respeito pelos direitos adquiridos... no entender de s. exas. (Muitos apoiados.)
A verdade é que o principio do respeito pelos direitos adquiridos, estabelecido no n.° 1.° do artigo 1.° da lei de 31 de março de 1885, de maneira a abraçar todos os serviços publicos comprehendidos na auctorisação parlamentar, se acha completado, no que toca á fiscalisação externa, pelo outro principio mais adiante fixado de que os corpos da fiscalisação terrestre e maritima serão constituidos á similhança dos corpos militares, principio este completado pela declaração legal de que os guardas e empregados menores até chefe de posto s era o considerados como praças de pret. (Apoiados).
Portanto, a interpretação juridica da lei, levava a entender e modificar aquelle texto, que é geral, pelos outros preceitos particulares á reorganisação da fiscalisação externa e que se acham collocados entre as bases que formam pariu integrante da lei de 31 de março de 1885.
Póde alguem, que julgue imparcialmente a questão, suppor compativel com a organisação militar a existencia simultanea de duas classes de guardas, com obrigações differentes, em situações perfeitamente diversas?
Como manter a disciplina severa, base de toda a organisação militar, quando sobre os individuos de igual graduação não pesarem responsabilidades completamente identicas? (Apoiados.)
Como responder pelo cumprimento fiel dos preceitos legaes sobre fiscalisação externa das alfandegas, se a acção do poder central não contar firmemente com as garantias de uma uniforme organisação militar, que a lei estabelece, e cuja necessidade ainda o anno pastado a opposição reconheceu expressamente? (Apoiados.)
A lei entendida por esta fórma, como o devia ser, foi acatada pelo sr. ministro da fazenda. Demonstrou-o s. exa., provando como em nenhuma derivão tinha havido quebra dos preceitos formulados na lei, demonstração completada, no terreno dos factos, pelo sr. Franco Castello Branco; e ainda ultimamente o sr. Thomás Bastos, citando-o equivoco de que ía sendo victima innocente o nosso collega, o sr. Antonio Centeno, poderia, se quizesse, ter explicado á camara como o equivoco nascêra da execução de uma ordem de serviço, cujo fim era verificar se a ausencia de certos guardas só justificava por doença, ou se os guardas que faltaram ao serviço se achavam em condições legaes de aposentação. (Apoiados.)
Tambem o sr. Thomás Bastos, tomado de irreprimivel colera contra a conducta do sr. Hintze Ribeiro, affirmou que os erros da politica do gabinete ciavam em resultado o engrossamento das fileiras do partido que lucta contra as instituições vigentes.
Não é a primeira vez que o partido progressista lança essa accusação ao governo, sem que eu tenha conhecimento de um só desertor politico que houvesse por bem passar-se do partido regenerador para o partido republicano. (Apoiados.) Dou pois de barato aos progressistas que sejamos nós os instigadores de um movimento favoravel ao partido radical, se s. exa. concordarem commigo em que lhes pertence a materia prima da deserção... (Muitos apoiados.) E não ha mais onde escolher entre os partidos monarchicos, sr. presidente, desde que as contingencias e transformações da nossa vicia politica nos levam a considerar o sr. conselheiro Dias Ferreira como pertencente á classe dos addidos, muito embora na categoria de chefe de partido... (Riso.)
Não quero fatigar a attenção da camara, e por isso restringirei as considerações que me propozera fazer sobre os outros abusos da que o sr. ministro da fazenda é accusado, taes como a alliciação de menores, a perseguição dos guardas e a transferencia arbitiaria d'estes empregados da fiscalisação.
Dá-se um facto excepcional e curiosissimo.
A opposição narra a proposito um certo numero de factos; levanta-se o sr. Hintze Ribeiro, levanta se um membro da maioria e reduzem a zero, ponto por ponto, minudencia por minudencia, as allegações apparentemente fundadas dos oradores opposicionistas. Não obstante, a opposição continua inclemente a vociferar contra a administração do sr. ministro da fazenda, exactamente a respeito do serviço que motivára uma defeza brilhante e completa da conducta d'este illustre estadista.
Faz-me isto lembrar um caso de tão justa applicação na hypothese presente que não resisto a pedir licença a v. exa. e á camara para o narrar succintamente.
Um general portuguez, cujos ditos de perfeita bonhomia têem sido muito peioradas pelo sal da critica dos commentadores, recebeu certo dia no seu gabinete um soldado que impetrava de s. exa. um favor qualquer. Tendo-se o general negado terminantemente a satisfazer ao requerido, o soldado comprimentou militarmente o encaminhou-se para a porta. Ao transpol-a, chama-o o general e pergunta-lhe:
- Olhe lá, de que regimento é você?
- Sou do 5, respondeu pressuroso o soldado.
- Pois deixal-o ser! concluiu o general. (Riso.)
Assim acontece no caso premente: a opposição apresenta o seu libello, o governo e a maioria contestam facto por facto; mas a opposição é que nada se importa com isso e continúa bradando: diga o sr. ministro da fazenda o que quizer: s. exa. é um momento e os pobres guardas são uns desgraçados! (Riso. - Apoiados.)
Não esqueceu ao sr. Thomás Bastos notar que o sr. Franco Castello Branco advogára a conveniencia de que não mediasse largo espado de tempo entre a feitura de uma lei e a sua execução, parecendo ao illustre deputado opposicionista que o sr. Castello Branco defendia um parecer cujo resultado pernicioso seria a execução de leis pouco maduras, pouco reflectidas, sem conhecimento seguro do meio para que se legisla. Oxalá não houvera tambem esquecido ao sr. Thomás Bastos o reconhecimento das vantagens concedidas pelo decreto n.° 4 de 17 de setembro aos guardas fiscaes, confrontando o regulamento de 1 de setembro de 1881 com o citado decreto n.° 4, nos artigos 39.°, 41.°, 50.º, 51.º, 67.º e outros. (Apoiados.)
Quanto ao parecer exposto pelo sr. Franco Castello Branco, é evidente que para s. exa., assim como para mim, a maduração dos preceitos legislativos constitue um phenomeno que deve preceder a promulgação da lei e não succeder-lhe. (Muitos apoiados.)
Não julgue todavia o sr. Thomás Bastos que me causou espanto essa observação de s. exa.; comprehendo perfeitamente que s. exa. advogue a opinião de que devo mediar um praso longo, e até longuissimo, entre a promulgação das leis e a sua execução, visto que s. exa. se acha filiado n'um partido politico, o qual redigiu ha dez annos um programma que até ao presente ainda não executou. (Muitos apoiados.)
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem.
(O orador foi comprimentado.)
O sr. Carlos Loto d'Avila: - Sr. presidente, declaro francamente a v. exa. que, quando entrei hoje n'esta casa, estava bem longe de suppor que ainda teria de usar da palavra.
Ao terminar a sessão de hontem o espectro do albafarete pairava já sobre a camara, e eu saí d'aqui profundamente convencido de que o sr. ministro da fazenda estava já satisfeito de ouvir accusações a que não podia responder, e an-

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cioso por que a camara rejeitasse o inquerito, que tanto o perturba e apavora.
Como, porém, a discussão continuou até me caber a palavra, vou usar d'ella, mas dado o requerimento do sr. Avellar Machado para se terminar a sessão até se terminar o incidente, o que é bem um symptoma de que o sr. ministro da fazenda deseja terminal-o, vou tambem fazer-lhe a vontade, sendo o mais breve possivel.
Não seguirei passo a passo a argumentação apresentada pelo illustre deputado o sr. Arroyo, porque s. exa. pouco disse sobre o assumpto que se debate, e o que interessa á camara e ao paiz, o que se discute agora, não é a disciplina do partido progressista, é o procedimento do governo na questão dos guarda fiscaes, é a necessidade de um rigoroso inquérito aos serviços da fiscalização. (Muitos apoiados.)
Não quero discutir a disciplina do meu partido nem a disciplina, do partido regenerador, que tem um ministerio tão unido, tão harmonico, que hoje assigna com perfeita concordancia de todos um decreto, para o revogar ámanhã tambem por accordo mutuo! (Muitos apoiados.)
Nos ministerios progressistas os ministros que referendam decretos não os derogam, e, em caso de conflicto, largam o poder. Os ministros regeneradores fazem e desfazem, publicam e revogam decretos, mas ficam sempre, sempre unidos, sempre firmes n'aquellas cadeiras (as do governo). (Muitos apoiados.)
A união do partido regenerador é um exemplo edificante, sobretudo com o commentario das apreciações financeiras do sr. Antonio de Serpa. (Apoiados.) Mas, que nos importa a nós que o governo tenha uma grande disciplina, interna ou não, que os ministros se dêem muito bem uns com os outros?
O que nos importa é que cite esteja a indisciplinar o paiz e que seja o representante da desordem nas cadeiras do poder. (Apoiados.)
Se elle se servisse da sua união, da sua harmonia para bem dos interesses publicos, podia isso interessar-nos; mas elle apenas a usa em proveito dos seus interesses, e para nos dar o triste espectaculo de arranjar leis, que vão ainda alem das exigencias vertiginosas do sr. franco Castello Branco, que queria leis para se cumprirem no proprio dia em que se promulgam: as do governo não chegam a cumprir-se, porque antes d'isso já estão revogadas!
Como prometti ser breve, e a discussão está a findar, occupar-me-hei unica e simplesmente em repor a questão nos seus verdadeiros termos, n'aquelles em que a opposição parlamentar a tem posto desde o principio do debate, e do que os oradores ministeriaes têem procurado arredal-a com digressões mais ou menos habeis.
A questão resume-se em dois pontos capitaes. Primeiro: foi legal ou illegal o procedimento do sr. ministro da fazenda alterando a sua propria reforma, reformando-a em virtude da mesma auctorisação? Não vi que se desse resposta ao que a opposição disse a este respeito. (Apoiados.)
Segundo: qual tem sido o procedimento do governo para com os guardas fiscaes? Tem sido legal, correcto o conveniente? Tambem n'este ponto o governo se não justificou. (Apoiados.)
Esta é a questão, e tudo o mais são sophismas ou derivativos. Mas o que ha de mais singular n'esta discussão é que ella se póde dividir em duas partes, que formam um contraste verdadeiramente desastroso para o governo. A primeira parte vá e até ao discurso do sr. Mariano de Carvalho, e a segunda parte do discurso de s. exa. até agora.
Na primeira parte citava a opposição abusos e irregularidades no serviço fiscal, citavam-se violencias exercidas contra os pobres guardas, - e continuarei achamar-lhes assim por mais que as ironias da maioria queiram acrescentar á desgraçada situação em que elles se encontram commentarios que não são proprios de espiritos tão generosos como os dos illustres deputados. (Apoiados.)
Na primeira parte da discussão, citavam-se abusos, violencias e irregularidades, e nos apartes o discursos do sr. ministro da fazenda e dos seus amigos dizia-se invariavel e constantemente: «Venham factos, venham documentos, venham provas!»
Levanta-se o sr. Mariano de Carvalho, e começando por declarar que aceitava na sua proposta qualquer modificação que lhe tirasse o caracter politico, apresenta a indicação do unico meio legal, correcto e efficaz, que tinhamos ao nosso alcance para obter esses documentos,- o inquerito.
E quando todos julgavamos que o sr. ministro da fazenda ía applaudir com as mãos ambas a proposta do sr. Mariano de Carvalho, ergue-se s. exa. irado e não facundo, e diz que não quer o inquerito, porque é uma desconfiança, e até não sei se tambem lhe chamam uma illegalidade. (Apoiados.)
Oh! sr. presidente, querem provas, querem documentos, e nem nos mandam os que nós pedimos, nem querem permittir que nós os vamos procurar! (Apoiados.)
Pois o sr. Barros Gomes não pediu ha muitos dias copia de todas as portarias que têem sido expedidas pela administração geral das alfandegas, revogando e alterando a reforma do sr. ministro da fazenda? (Apoiados.) Por que ha muitas erratas; não ha só a celebre errata das continências que veiu no Diario do governo. S. exa. tem tido de emendar quasi diariamente o seu trabalho, que por ser muito volumoso, nem sempre foi maduramente pensado. (Apoiados.)
Pois nenhuma d'essas portarias aqui appareceu, assim como não foi enviado nenhum dos esclarecimentos requeridos.
Diz s. exa. que nós applatidimos a sua reforma. Nós unicamente nos reservámos o direito de a apreciar mais tarde, quando tivessemos os documentos indispensaveis para isso, occupando-nos agora apenas dos dois pontos a que me tenho referido.
De resto, eu não ouvi a nenhum dos oradores da opposição applaudir a obra de s. exa., o que ouvi aos meus collegas e amigos foi que reservavam para outra occasião a apreciação dos decretos da reforma. E s. exa. não quererá decerto, apesar do tom auctoritario com que nos fallou, ensinar á opposição como e quando ha de tratar as questões. (Apoiados.)
A opposição ainda não apreciou os decretos, e quando os apreciar terá occasião de mostrar, por exemplo, como s. exa. augmentou excessivamente as despezas, e como, julgando simplificar, complicou o serviço do despacho nas casas fiscaes, levantando o commercio contra os seus suppostos processos de simplificação, e tendo a pouco trecho de os modificar. (Apoiados) Isso fica para outra occasião.
A questão agora é da legalidade com que o sr. ministro procedeu na sua reforma, em virtude da auctorisação parlamentar, e do procedimento do governo para com os guardas fiscaes.
Não saírei d'aqui.
A auctorisação concedida pela carta de lei de 31 de março de 1881 era para o sr. ministro da fazenda fazer uma reforma geral no serviço aduaneiro e fiscal, sobre umas certas bases.
Já aqui se disse que as auctorisações concedidas pelo parlamento representam um voto de confiança no ministro a quem se concedem, e que só elle póde, portanto, usar d'ellas.
Peregrina affirmação esta, contraria a todos os principios e a todas as conveniencias!
As auctorisações parlamentares são delegações de um poder n'outro poder do estado, e não me consta que na carta de lei do 31 de março de 1881 se falle no sr. Hintze Ribeiro, mas sim na entidade governo.
Portanto, se a auctorisação não caducou, apesar do governo ter já usado d'ella, se pode, durante um anno, continuar, ao abrigo d'essa auctorisação, a alterar a sua obra, qualquer outro ministerio, que suba ao poder antes

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de 31 de março, póde revogar toda a reforma do sr. Hintze e lá se vae toda a sua obra gloriosa.
E vae-se sem a emenda, porque, o grande volume que aqui tenho, apesar de ser distribuido aqui ha poucos dias ainda não correm a famosa reforma da reforma.
O sr. Hintze vae á immortalidade, em brochura, sem errata! (Apoiados. - Riso.)
O sr. ministro protesta que não foi por medo do exercito que alterou o decreto n.° 4; diz que foi por grandeza de animo, que não quiz sacrificar a uma questão mesquinha de continencias a sua obra prima.
Não quero agora averiguar nada d'isto, basta-me affirmar que, em todo o caso, o governo praticou um acto illegal e que exorbitou da auctorisação que lhe foi concedida.
Tão pouco quero discutir agora se a modificação da reforma é mais conveniente ou não, o que quero dizer é que o sr. ministro, que durante dois annos andou trabalhando em uma reforma dos serviços aduaneiros, devia ter pensado primeiro se era ou não conveniente organisar o corpo fiscal, como o fez no decreto n.° 4, ou como o fez depois na errata.
Uma reforma d'aquellas deve ser meditada reflectidamente.
Não se comprehende, pois, como s. exa. dois mezes depois de publicada a reforma, mudou de idéa, fazendo muitas e importantes alterações, porque não se resmem á questão das continencias.
Todas as attribuições, por exemplo, que no decreto n.° 4 pertenciam aos inspectores dos circulos, foram passadas para uma nova entidade, o commandante do batalhão, obrigando esta mudança a alterar grande numero de artigos. (Apoiados.)
O que ainda menos se comprehende é que o sr. ministro da fazenda redigisse o decreto n.° 4, o submettesse á assignatura dos seus collegas da guerra e da marinha, e continuasse no poder desde o momento em que lhe exigiam a alteração d'esse decreto, que nunca chegou sequer a publicar-se na ordem do exercito! A situação do sr. ministro da fazenda ao lado do sr. presidente do conselho, depois da publicação do decreto n.º 4 e da sua errata, é urna situação menos correcta, que póde traduzir-se por um grande afferro ao poder, mas que não se coaduna com os mais elementares principies de coherencia e de dignidade politica, e seria bem para desejar que entre os srs. ministros houvesse menos harmonia de pessoas e mais harmonia de idéas. (Apoiados.)
Relativamente ao serviço e ao pessoal da fiscalização o que se tem narrado neste debate é verdadeiramente espantoso, e, por mais que o sr. ministro da fazenda diga que não ha provas, o discurso do sr. Mariano de Carvalho produziu uma grande impressão na camara, como a estará causando a esta hora em todo o paiz.
Os factos apresentados pelo illustre deputado da opposição são gravissimos, e o sr. ministro da fazenda, que nos pedia factos e documentos para justificar as accusações que lhe eram feitas, agora não quer que uma commissão de inquerito parlamentar vá averiguar se o que se diz é verdade, se as accusações que se fazem são bem fundamentadas! (Apoiados.)
Não se comprehende similhante procedimento.
O sr. ministro da fazenda disse-nos hontem que sabia cumprir o seu dever, que sabia mandar instaurar os processos competentes aos empregados que se tornassem réus de faltas graves, e que não queria sair dos meios legaes para os castigar, nem para obter o exacto conhecimento dos factos, chegando assim a insinuar que o inquerito parlamentar não era um expediente legal.
Oh! sr. presidente, pois não se fazem em todas as nações inqueritos parlamentares? (Apoiados.) Não se fez entre nós, ainda ha pouco, com a approvação d'este ministerio e da maioria que o apoiava, um inquerito parlamentar aos serviços do arsenal da marinha? (Apoiados.) Não é um meio legal o inquerito parlamentar? (Apoiados.)
O sr. ministro da fazenda argumentou com o processo que está instaurado, e de que o sr. Mariano de Carvalho mostrou aqui a edificante contrariedade, para se oppor ao inquerito; mas todos sabem, porque não é preciso para isso ser um grande jurisconsulto, que o juiz não póde conhecer senão o objecto da causa, emquanto que uma commissão de inquerito parlamentar póde conhecer de todas as irregularidades que descobrir. (Apoiados.)
Mas apesar de tudo o sr. ministro da fazenda rejeita, indignado, o inquerito, não quer por forma alguma que só faca luz sobre as irregularidades de um serviço tão importante, quer que continuo tudo no mesmo estado desgraçado e contentando--se com a invenção peregrina de auctorisações parlamentares, que não caducam nunca, e que elle transforma em garrafas do Hermam de onde se tiram todos os licores. (Riso. - Apoiados.)
E como a opposição não pensa do mesmo modo, como ella se não dá por satisfeita com este proceder ministerial, o sr. Hintze Ribeiro diz-nos, muito inflamado que não tem medo de nada, que responde aqui e lá fóra, tudo isto com uma catadura ameaçadora verdadeiramente pavorosa. (Riso.) Ora eu percebo perfeitamente o motivo da irritabilidade nervosa de que anda pussuido o sr. ministro da fazenda. A gravidade da situação financeira, a descida dos fundos, o augmento da divida fluctuante, as nenias que todos os dias entôa á sua capacidade financeira um seu corrolegionario, antigo ministro da fazenda regenerador, tudo isto é para fazer nervoso o mais fleugmatico; mas, francamente, a opposição é que não tem culpa de nada d'isso, para soffrer os seus maus modos. (Apoiados.) Zangue-se s. exa. por exemplo com o seu collega o sr. Pinheiro Chagas, que ahi está seu lado, e que, não contente de augmentar consideravelmente o orçamento do ultramar, faz concessões sobro concessões, todas onerosas para o thesouro, o ainda em cima manda escrever no sou jornal que uma nação sem deficit é uma nação estacionaria...
O sr. Ministro da Marinha (Pinheiro Chagas):- Todos os jornaes têem os seus redactores que não recebem ordena sobre a maneira por que hão de escrver. S. exa. é jornalista e sabe respeitar a dignidade dos outros jornalistas.
O Orador:- Bem, não foi o sr. Pinheiro Chagas que mandou escrever. Acceito a rectificarão, embora não houvesse a menor intenção offensiva para ninguem nas minhas palavras.
Em todo o caso, recommendo, como calmante, ao sr. ministro da fazenda a leitura do Correio da Manhã, de hoje, que diz que não se aflija, porque o deficit e uma cousa que revela a prosperidade do uma nação, e que emquanto á divida fluctuante, não fallemos n'isso, é o apogeu da felicidade de um paiz florescente. (Riso.)
Leia s. exa., e talvez depois, serenado o seu animo, que anda visivelmente perturbado, o sr. Hintze Ribeiro nos possa responder com a correcção aprumada que fazia d'elle o melhor discipulo parlamentar sr. presidente do conselho, e de que s. exa. infelizmente tem andado tão esquecido n'este debate. (Riso.)
Não quero comparar o sr. ministro da fazenda com Mousinho da Silveira, nem ninguém o comparou. (Apoiados.) Tão pouco o quero comparar com o marquez de Pombal, embora s. exa. o anno passado, num discurso a que tive a honra de responder, mostrasse um desdem pelo parlamento e pelas formulas parlamentares, que, se não era pombalino, era pelo menos bismarkiano. (Riso.)
O que digo é que o sr. ministro da fazenda deve dar-nos menos palavras e mais factos, menos indignação a frio, porque creio que ella a final é a frio, e mais documentos que provera o zelo e seriedade com que tem gerido a pasta da fazenda. (Apoiados.)
N'estas questões não basta a rhetorica, e s. exa. que falla

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sempre da rhetorica da opposição, tem usado e abusado tanto d'ella, que até a sua voz, que era um orgão tão bem timbrado, já lhe tem fallecido em algumas occasiões. (Riso.)
S. exa. já não tem folego para tanta rhetorica, e em medidas financeiras já deu o que tinha a dar; e por me parecer evidente que o sr. ministro da fazenda está cansado de proferir phrases inanes e de ver gastar dinheiro aos seus collegas, é que entendo conveniente que vá descansar para ver se o contribuinte descansa também. (Apoiados.)
Vozes : -Muito bem.
(O orador for muito cumprimentado.)
O sr. Azevedo Castello Branco (para um requerimento): - Requeiro a v. exa. que consulte a camara sobre se o assumpto está suficientemente discutido.
Julgou-se discutida a materia.
O sr. Luciano de Castro: - Eu tinha pedido a palavra para um requerimento.
O sr. Presidente : - Depois da resolução da camara, ácerca do requerimento do sr. Azevedo Castello Branco, darei a palavra a s. exa.
O sr. Luciano de Castro: - Eu tinha pedido a palavra para um requerimento, a fim de que v. exa. fizesse saber aos srs. ministros que acabam de retirar-se, que precisava da sua presença ainda n'esta sessão para lhes fazer varias perguntas. Peço, portanto, a v. exa. que faça constar isto a s. exas.
O sr. Presidente: - Satisfarei o desejo de v. exa.
Estão sobre a mesa duas moçõe : uma, apresentada pelo sr. Franco Castello Branco e a outra pelo sr. Marianno de Carvalho.
A primeira, pela ordem da antiguidade e pelo modo por que está formulada é a do sr. Franco Castello Branco, é esta que em primeiro logar tenho de pôr á votação da camara.
O sr. Arroyo (para um requerimento):-Peço a v. exa. que consulte a camara sobre se quer votar nominalmente a moção do sr. Franco Castello Branco. (Apoiados.)
Decidiu-se que a votação fosse nominal.
O sr. Mariano de Carvalho (sobre o modo de propor):- Desejo simplesmente saber se v. exa. entende que a votação da moção do sr. Franco Castello Branco prejudica por qualquer forma a minha proposta.
São assumptos inteiramente diversos.
O sr. Presidente:- Qualquer que seja a opinião que possa haver demasiadamente escrupulosa no sentido de se julgar prejudicada a proposta do sr. deputado, estou na intenção de submettel-a á votação da camara.
Feita a chamada sobre a moção de ordem do sr. Franco Castello Branco
Disseram approvo os srs: Sousa Cavalheiro, Agostinho Lucio, Moraes Carvalho, Garcia de Lima, Alfredo Barjona, Silva Cardoso, Sousa e Silva, Garcia Lobo, Moraes Machado, Carrilho, Mendes Pedroso, Santos Viegas, Athaide Pavão, Pinto de Magalhães, Sieuve de Seguier, Arthur Hintze Ribeiro, Urbano de Castro, Lobo Poppe, Pereira Leite, Neves Carneiro, Caetano de Carvaro, Sanches de Castro, Conde de Thomar, Cypriano Jardim, Estevão de Oliveira, Affonso Geraldes, Filippe de Carvalho, Correia Arouca, Guilherme de Abreu, Costa Pinto, João Antonio Pinto, Scarnichia, Franco Castello Branco, Arroyo, Teixeira de Vasconcellos, Ponces de Carvalho, Germano de Sequeira, Teixeira Sampaio, Amorim Novaes, Avellar Machado, Azevedo Castello Branco, Lobo Lamare, Pereira dos Santos, Figueiredo Mascarenhas, José Maria Borges, Oliveira Peixoto, José Maria dos Santos, Luciano Cordeiro, Luiz de Lencastre, Reis Torgal, Luiz Osorio, Pedro Guedes, Marcai Pacheco, Guimarães Camões, Miguel Dantas, Pedro de Carvalho, Pedro Diniz, Tito de Carvalho, Visconde de Ariz, Visconde das Laranjeiras, Visconde de Reguengos, Henrique de Mendia, Souto Rodrigues, Silveira da Mota.
Disseram rejeito os srs.: Albino Montenegro, António Candido, Antonio Centeno, Antonio José Ennes, Moraes Sarmento, Lobo d'Avila, Conde de Villa Real, Eduardo Coelho, Elvino de Brito, Emygdio Navarro, Francisco Beirão, Francisco Vanzeller, Barros Gomes, João Cardoso Valente, Melicio, Alves Matheus, Simões Ferreira, Ferreira de Almeida, José Borges de Faria, Elias Garcia, Frederico Laranjo, Luciano de Castro, Luiz José Dias, Luiz Jardim, Mariano de Carvalho, Gonçalves de Freitas, Thomás Bastos, Visconde do Rio Sado, Consiglieri Pedroso.
Foi, pois, approvada a proposta do sr. Franco Castello Branco por 64 votos contra 29.
O sr. Presidente: - Vae proceder-se á votação sobre a moção apresentada pelo sr. Mariano de Carvalho.
O sr. Mariano de Carvalho (sobre o modo de propor): - Requeiro a v. exa. que consulte a camara sobre se quer que haja votação nominal a respeito d'esta moção.
Resolveu-se affirmativamxente.
Feita a chamada.
Disseram approvo os srs.: Albino Montenegro, António Candido, Antonio Centeno, Ennes, Moraes Sarmento, Carlos Lobo d'Avila, Conde de Villa Real, Eduardo Coelho, Elvino de Brito, Emygdio Navarro, Francisco Beirão, Van-Zeller, Henrique de Barros Gomes, Cardoso Valente, Melicio, Alves Matheus, Simões Ferreira, Ferreira de Almeida, Borges de Faria, José Elias Garcia, Frederico Laranjo, Luciano de Castro, Luiz José Dias, Luiz Jardim, Marçal Pacheco, Mariano de Carvalho, Gonçalves de Freitas, Thomás Bastos, Visconde do Rio Sado, Consiglieri Pedroso.
Disseram rejeito os srs.: Adriano Cavalheiro, Agostinho Lúcio, Moraes Carvalho, Garcia de Lima, Alfredo Barjona de Freitas, Silva Cardoso, Sousa e Silva, Garcia Lobo, Fontes Ganhado, Moraes Machado, Pereira Carrilho, Santos Viegas, Athaide Pavão, Pinto do Magalhães, Sieuve de Seguier, Hintze Ribeiro, Urbano de Castro, Lobo Poppe, Pereira Leite, Neves Carneiro, Caetano de Carvalho, Sanches de Castro, Conde de Thomar, Cypriano Jardim, Estevão de Oliveira, Fernando Geraldes, Frederico Arouca, Guilherme de Abreu, Costa Pinto, João António Pinto, Scarnichia, João Arroyo, Teixeira de Vascon-cellos, Ponces de Carvalho, Germano de Sequeira, Teixeira Sampaio, Amorim Novaes, Avellar Machado, Azevedo Castello Branco, Lobo Lamare, Pereira dos Santos, Figueiredo Mascarenhas, José Maria Borges, Oliveira Peixoto, José Maria dos Santos, Luiz de Lencastre, Pedro Guedes, Guimarães Camões, Miguel Dantas, Pedro de Carvalho, Pedro Diniz, Rodrigo Pequito, Tito de Carvalho, Visconde de Ariz, Visconde das Laranjeiras, Visconde de Reguengos, Henrique de Mendia, Souto Rodrigues, Silveira da Mota.
Foi portanto rejeitada a proposta por 59 votos contra 30.
O sr. Presidente: - O sr. Luciano de Castro, tinha pedido a palavra para um negocio urgente, antes de se encerrar a sessão. Tem s. exa. a palavra.
O sr. Luciano de Castro: - Sr. presidente, desejo chamar a attenção do governo e a da camara para um assumpto muito grave.
V. exa. e a camara têem conhecimento das manifestações imponentes que tem havido na cidade de Braga, por causa de um projecto de lei de nosso collega o sr. Franco Castello Branco, que tem por fim a desannexação do concelho de Guimarães do districto de Braga. (Apoiados.)
A camara sabe quanto têem sido solemnes e decisivas essas manifestações, (Apoiados) e eu escuso de expor perante ella o que os jornaes de hoje, de hontem, e d'estes ultimos dias têem publicado.
V. exa. e a camara sabem muito bem que a commissão que hoje chegou a Lisboa, teve á sua saida de Braga e durante o seu trajecto demonstrações importantissimas de affectuosa consideração. (Apoiados.)
Parece-me que nem a camara nem o governo podem ficar indifferentes diante d'essas manifestações. (Apoiados.)
Não discuto agora as responsabilidades do governo por

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ter deixado medrar as dissidencias entre duas cidades importantes do norte do reino até ao ponto em que se encontram; direi apenas, sem querer entrar n'este momento n'uma questão tão grave que mais dia menos dia se ha de debater entra nós, que me parece que aos poderes publicos cumpre dar uma satisfação qualquer a tão solmnes e pacificas manifestações como as que acabam desse fazer na cidade de Braga, (Apoiados) na defeza dos seus interesses.(Apoiados.)
O meu desejo é conhecer a attitude do governo diante d'estes factos, que constituem verdadeiramente uma questão de ordem publica. (Apoiados.)
Não podemos prever hoje até onde chegarão essas manifestações, se não lhes dermos condigna satisfação; (Apoiados.) por isso digo que esta questão é de ordem publica.(Apoiados.)
Eu entendo que é preciso que os poderes publicos tomem a tempo providencias convenientes para que a questão não assuma tal gravidade que não seja possivel evitar-se o emprego de meios extraordinários. (Apoiados.)
O parlamento, pois, tem todo o direito de saber como pensa o governo a respeito destas manifestações. (Apoiados.)
Desejo, portanto, saber qual é a sua opinião a respeito do projecto do nosso collega o sr. Franco Castello Branco, para a desannexação do concelho de Guimarães do districto de Braga. (Apoiados.)
E peço esta explicação porque, na altura em que estão os acontecimentos, é impossivel que o governo não tenha pensado no assumpto, é impossivel que elle não tenha a sua idéa formada. (Apoiados.)
A sua opinião deve estar assentada o resolvida. Portanto, pergunto simplesmente, se acceita ou não acceita o pensamento do projecto do lei apresentado n'esta camara pelo sr. Franco Castello Branco.
Peço ao governo que, sem evasivas, diga o que pensar ácerca d'esta questão, e isto antes de se encerrar a sessão, porque este é um assumpto de ordem publica, altamente urgente, de uma grande importancia e gravidade, e que exige que o governo diga sobre elle franca e claramente a sua opinião. (Muitos apoiados.)
Depois da resposta do governo pedirei novamente a palavra.
O sr. Presidente:-Eu, pelo muito respeito que tenho pelos membros do governo e do parlamento, proscrevi as prescripções do regimento, consentindo que o sr. Luciano de Castro entrasse na discussão de um assumpto urgente, quando s. exa. não me communicára particularmente qual o objecto sobre que queria fallar. Entretanto, este assumpto é de tal ordem, que entendo, que não posso do forma nenhuma consentir, que entre desde já em discussão. (Muitos apoiados.)
Por outro lado as considerações do sr. Luciano de Castro versam, em parte, sobre um projecto de lei que foi apresentado n'esta camara, foi admittido á discussão, e... (Muitos e repetidos apoiados)
(Protestos da opposição. Susurro.)
Vozes:-Ordem, ordem.
O sr. Presidente (continuando): - Dá-se outra circumstancia: o que era mais regular, era que o sr. deputado, visto que quer fazer algumas accusações ao governo, mandasse uma nota de interpellação para a mesa. (Muitos apoiados.)
(Grande susurro. Protestos da opposição.)
Vozes: - Queremos uma resposta! ...
O sr. Presidente: - Amanhã ha trabalhos em commissões e a ordem do dia para sabbado, é a resposta ao discurso da corôa.

Está levantada a sessão.

Eram cinco horas e meia da tarde.

Projecto de lei alterado diversos artigos do codigo civil portuguez, apresentado pelo sr. Deputado Alfredo Filgueiras da Rocha Peixoto na sessão de 3 de janeiro de 1886, e que devia ter-se na pag. 8 d'este Diario.

Meus senhores.-Entre os artigos do nosso codigo civil que regulam as segundas nupcias, ha disposições communs para o viuvo e para a viuva que as contrahir; e outras especiaes para a viuva.

D'estas ultimas distinguem-se evidentemente duas ordens: uma determinada pelas leis da natureza; e outra que apenas tem por fundamento uma mera convenção.
Os artigos 1235.° e seu correlativo 1109.°, n.° 4.°, 1236.° e seu correlativo 1103.º, n.° 3.°, 1238.° e 1230.° são applicaveis tanto á binuba como ao binubo. Representam urna bella, util e fecundissima conquista social; traduzem para os descendentes da mulher e para os do varão um mesmo direito civil, como o mesmo é o direito natural para a mulher e para o varão.
Os artigos 1233.° e 1234.°, consequencias necessarias da differença sexual, não constituem um privilegio, nem um vexame para a mulher; traduzem simultaneamente direitos da binuba; de um ser ainda não nascido, mas como tal havido por ter já sido procreado, posto debaixo da protecção da lei pelo artigo 6.°; e do novo marido da mãe viuva.
Emtim os artigos 159.° a 164.° e 1237.° preceituam para as binubas disposições particulares, para as quaes só póde ser invocada como fundamento a fraqueza da mulher diante da vontade do segundo marido, pelo qual esqueceu a memoria do primeiro e os interesses dos filhos que d'elle houvera.
Julgo de manifesta conveniencia o artigo 1237.°, com modificações que vou indicar á vossa recta apreciação, logo que for applicado tambem ao varão que contrahir segundas núpcias, depois de ter completado sessenta annos de idade, para não poder alhear por titulo algum, d'esde o dia em que houver contraindo o segundo matrimonio, a propriedade de uma porção de seus bens determinada pelas regras da legitima, segundo os artigos 6.° e 7.° d'este projecto de lei: dos bens que tiver ao tempo do casamento ou que vier a adquirir depois, por doação ou herança de seus ascendentes ou do outros parentes, bens mencionados no artigo 1235.° do codigo civil; emquanto tiver descendentes que possam haver os referidos bens.
Julgo de muito bom senso esta disposição em geral; mas é necessaria muita prudencia na sua applicação.
Pensem v. exas. um pouco no artigo 1237.º
A mulher que, com filhos ou netos, contrahir segundas nupcias, aos cincoenta ânuos de idade ou mais velha, não poderá por titulo algum alhear certos bens que, por sua morte, hão de entrar na legitima de seus descendentes, os bens mencionados no artigo 1235.°: os que tiver ao tempo do segundo casamento ou que depois vier a adquirir por doação ou herança de seus ascendentes ou outros parentes; mas poderá alheal-os, á vontade, se tomar relações de concubinato !
A lei protege os legitimos e naturaes interesses dos descendentes contra os prejuizos que possam resultar-lhes do casamento de uma sua ascendente nas referidas condições de familia e idade. Bem está.
Mas, contra os prejuizos que do concubinato de uma sua ascendente possam resultar-lhes, onde está a protecção da lei? Não a encontro; não sei onde descobril-a; ou antes sei que similhante questão escapa à natural acção das leis. Ha questões para as quaes só regulam as leis do decoro publico o proprio: e essas leis são feitas nos seios das familias pela educação e sanccionadas no seio da sociedade pela reputação.
É evidente que a lei não póde conceder ao ministerio publico a faculdade de promover qualquer acção de prova ou investigação sobre relações intimas de familia. Obvias são e attendiveis as rasões por que o agente do ministerio

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publico não tem a iniciativa livre para accusar quem haja commettido o crime de adulterio, crime declarado e punido pelo codigo penal; pois as mesmas rasões subsistem para que não possa ser publicamente investigada qualquer falta nas relações de familia sem que os legitimamente interessados assim o queiram.
Mas, no caso em questão, os legitimamente interessados são os descendentes da viuva e noiva com mais de meio seculo de idade.
E hão de os descendentes, filhos ou netos, proclamar perante os tribunaes a deshonra de sua mãe ou avó? Para filhos ou netos capazes de tão repellente vileza não póde haver protecção no codigo civil; bastam-lhes o silencio do codigo penal e a maldição do codigo moral.
Mas, se reconheço a conveniencia d'estas observações, não deixo de reconhecer a das rasões que determinam o artigo 1237.°, em principio.
A prohibição ahi prescripta não será applicavel ao viuvo que, tendo filhos eu outros descendentes, vá contrahir segundas nupcias em idade provecta? Eis a primeira questão que encontrei ao estudar o referido artigo.
Nem haverá excepções que o legislador deva respeitar e estabelecer, inspirado pelas mesmas justas conveniencias de familia? Aqui está outra questão do summa importancia.
Só com a rasão perdida, pelo menos perturbada, pela paixão dos sentidos, e que alguém póde lembrar-se de contrahir segundas núpcias, depois dos cincoenta annos de idade e tendo filhos ou netos. Por esta singela observação, que é uma verdade incontestavel, claro é que applaudo todas as providencias que tendam a por interesses legitimes de descendentes ao abrigo ao vil exploração e triste fraqueza.
Mas será o varão só a explorar pelo casamento as fraquezas de uma viuva em idade de já não poder conceber? Pois não sabe toda a gente que tambem ha mulheres- e tantas ha ! - que bem hábeis são para explorar viuvos, com filhos ou netos, e em idade provecta?
Se é para temer a influencia do novo marido no animo da viuva binuba, não o é menos a que a segunda esposa exerce sobre o marido que a escolheu para companhia da sua velhice e alivio da sua viuvez.
As leis civis não podem ser producto unico da rasão; os povos não são governados per principios abstractos; os interesses legitimos da familia não estão subordinados a regras fataes como as da geometria. As leis civis hão de ser determinadas pelo; factos e pelos costumes. Para deduzil-as, devemos seguir o processo da descoberta das leis naturaes.
Observemos bem os factos.
Ha padrastos capazes de prejudicar os filhos das primeiras nupcias de sua mulher; é certo. Mas quantas madrastas são capazes do mesmo !
Ha madrastas que têem sido mães extremosissimas para orphãosinhos que como filhos receberam, perante o altar, pelo casamento; mas quantas e quantas ha tão differentes d'essas!
E aqui encontro caminho aberto e franco a uma digressão para os artigos 162.° e 163.°, os quaes é preciso estender ao viuvo, com filhos ou outros descendentes, que contrahir segundas nupcias. A mais extravagante imaginação não descobre rasão para que continue a administrar e usufruir os bens dos filhos menores o pão viuvo que contrahir segundas núpcias, sendo privada dessa administração e d'esse usufructo a mãe viuva que o mesmo fizer. E certo que a mãe binuba poderá ser mantida na administração dos bens dos filhos menores por deliberação do conselho de familia; mas perde, ainda n'este caso, o usufructo dos mesmos bens, usufructo que só poderá rehaver por nova viuvez (artigo 164.°).
Não conheço factos que justifiquem esta distincção, a qual não só representa um arbitrio, mas tambem assenta em erros de facto. E, se v. exas., meus senhores, reflectirem com attenção nos factos observados todos os dias, estou certo de que, sem preoccupações por eu não ter a honra de ser jurisconsulto, sem prender--vos a circumstancia de ser apenas de um deputado a iniciativa modesta do projecto de lei que venho apresentar, haveis de dispensar-lhe a vossa approvação.
E, para não ter de voltar aos artigos 162.° e 163.°, permitti que eu desde já solicite a vossa attenção para a responsabilidade que assume o conjuge de um binubo com filhos ou outros descendentes menores do matrimonio anterior, se este é conservado na administração dos bens dos mesmos menores. Para que tão grave e melindrosa responsabilidade seja effectiva, essencial é que não seja imposta contra a vontade ou com repugnancia do conjuge que haja de compartilhal-a; é mesmo essencial que este a conheça bem. Por esto motivo entendo que é indispensavel o consentimento previo e expresso do conjuge do um binubo para que este seja conservado na administração dos bens de seus filhos menores do anterior matrimonio.
Se, para a plena justificação dos artigos 1.°, 2.°, 3.° o 5.°, são necessarias mais algumas observações, tão naturaes, obvias e de exactidão clara são, que ocioso e enfadonho fora demorar-vos a attenção com ellas.
Voltarei ao artigo 1237.°, para o qual termino por indicar duas excepções.
A primeira sei que é rarissima; mas a ninguém é licito affirmar que seja impossivel. Então, se a natureza, mesmo por mysterioso esforço, conceder a consagração suprema a esse matrimonio, a lei civil deve acompanhal-a ou antes submetter-se a ella.
Seja a segunda excepção traduzida n'uma hypothese.
Uma mulher solteira teve um filho; por circumstancias quaesquer, não casou com o pae d'este filho; casou com outro; e ficou viuva com filhos legitimos depois dos cincoenta annos. Deve a lei favorecer ou impedir ou punir a legitimação do primeiro filho? Todos darão a mesma resposta. A lei devo favorecer a equiparação do primeiro filho aos outros, já que não póde impol-a. Mas o artigo 1237.° prescreve uma pena á mãe que cumprir este dever, porque pena é a restricção de um direito.
É certo que esta excepção póde aproveitar a um adultero; mas quando? Quando se torna regular, como a lei permitte fora do caso do n.° 3.° do artigo 1058.°, para beneficio de filhos communs, a mutua situação do conjuge adultero e do seu cumplice.

"É licito aos esposos estipular, antes da celebração cio casamento e dentro dos limites da lei, tudo o que lhes aprouver relativamente a seus bens": é o artigo 1096.° do codigo civil portuguez.
Como consequencias desta faculdade derivam os seguintes regimens de casamento relativamente aos bens dos conjuges, regimens estabelecidos no mesmo codigo, em artigos que indicarei ao lado da disposição que for apontando:
a) Communhão, entre os conjuges, de todos os seus bens, presentes e futuros, não exceptuados na lei; communhão que póde ser estipulada por escriptura publica (artigos 1099.° e 1108.° a 1124.°); ou (costume do reino} accordada e convencionada tacitamente, entendida como se fora expressamente declarada, na falta de qualquer accordo ou convenção (artigo 1098.°), excepto quando o casamento tiver sido effectuado nos casos em que é prohibido pelos n.ºs 1.° e 2.° do artigo 1058.°, casos em que o codigo civil determina que se fique entendendo que os cônjuges são casados com simples communhão dos bens adquiridos por titulo oneroso, durante a constancia do matrimonio (artigo 1098.°);
b) Separação dos bens que cada conjugo leva para o casal ou haja depois por titulo gratuito (successão, testamento ou doação), ou por direito proprio anterior (arti-

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gos 1101.° e 1125.° a 1129.°); separação que póde ser estipulada unicamente para o caso de não haver filhos, nem outros descendentes communs, na epocha da dissolução do casamento; ou pode ser estabelecida mesmo para este caso, visto que o codigo civil não faz distincção alguma n'este ponto; como tambem póde abranger ou não os adquiridos por titulo oneroso durante a constancia do matrimonio, sendo que não se haverá por excluida a communhão nestes sem expressa declaração (artigo 1125.°);
c) Doto (artigos 1102.°, 1134.° a 1160.°).
Póde pois dizer-se que ha dezoito regimens distinctos de casamento.
1.° Communhão de todos os bens em quanto durar o casamento : dos bens que cada um dos conjuges leva para o casal; dos que recebe depois do casamento, por qualquer via ou titulo; dos que adquire pelo seu trabalho; havendo portanto communhão tambem nas dividas e em quaesquer outros encargos; e tanto no caso de haver, como no do não haver filhos ou outros descendentes communs, quando for dissolvido o casamento. Este regimen é tão portuguez, que sempre tom conservado, atravez de todas as modificações feitas na legislação patria, a denominação de costuma do reino, desde que esta honrosissima denominação lhe foi consagrada.
2.° A mesma communhão só para o caso de haver filhos ou outros descendentes communs, na epocha da dissolução do casamento; no caso contrario, separação dos bens que cada conjuge tenha levado para o casal ou havido, depois do casamento, por titulo gratuito, com a communhão dos adquiridos por titulo oneroso durante a constancia do casamento.
3.° O 2.° com a differença do ser estipulado tambem para o segundo caso a separaçcão dos adquiridos por titulo oneroso durante a constancia do casamento.
4.° Separação de todos os bens que cada conjuge leva para o casal; dos que cada qual recebe, depois do casamento, por titulo gratuito; e simples communhão dos adquiridos por titulo oneroso durante a constancia do casamento; quer haja ou, não filhos, ou outros descendentes communs na epocha da dissolução do casamento. 5.° O 4.° com a communhão dos bens adquiridos por titulo oneroso durante a constancia do casamento, só para o caso de haver filhos, ou outros descendentes communs, na epocha da dissolução do casamento.
6.° Separação de todos os bens, quaesquer que sejam a sua natureza e a sua proveniencia, tanto para o caso de não haver, como para o de haver, filhos ou outros descendentes communs, na epocha em que o casamento for dissolvido.
7.° Regimen dotal com a estipulação, que póde ser tacita, de que ficarão pertencendo exclusivamente á mulher como proprios os bens que possuir ou adquirir depois do casamento e que não forem havidos como dotaes (artigo 1153.°); subsistindo a separação de bens mesmo no caso do haver filhos, ou outros descendentes communs, na epocha da dissolução do casamento.
8.° O mesmo regimen 7.°, havendo communhão de todos os bens no caso de haver filhos, ou outros descendentes communs, quando o casamento for dissolvido.
9.° O 7.° com a estipulação expressa de que sejam communs os bens que a mulher possuir ou adquirir depois do casamento e que não forem havidos como dotaes.
O artigo l:104.°,a pplicado a cada um dos regimens indicados, conduz a dezoito distinctos, conforme a mulher reserve ou não para si o direito de receber, a titulo de alfinetes, uma parte dos rendimentos dos seus bens e dispôr d'ella livremente, comtanto que não exceda a terça parte dos mesmos rendimentos liquidos.
O casamento effectuado sem qualquer accordo ou convenção entro os conjugues relativamente a seus bens, excepto quando for violação das disposições dos primeiros dois numeros do artigo 1:058.°; é propriamente o regimen do costume do reino; nem escriptura publica existe entro os conjuges n'este regimen. Mas, nos effeitos civis, é esto exactamente o primeiro que considerei, estipulado por escriptura publica.
Não é distincto do sexto regimen o casamento contraido por menores do vinte e um annos e por maiores inhibidos de reger sua pessoa e seus bens, som o consentimento de seus pães ou d'aquelles que os representam, nos termos do artigo 1:061.°: e a, disposição do artigo 1:060.°, § 3.°; o mesmo succede (artigo 1:063.°) no casamento de um tutor ou de qualquer descendente seu com a pessoa tutelada, antes de ser finda a tutela e antes da aprrovação definitiva das contas da menina, sem que o pae ou a mãe o tenham permittido, com licença concedida em testamento ou em outro escripto authentico.
Tenho pois motivo para considerar dezoito regimens ou systemas distinctos do casamento permittidos pelo nosso codigo civil.
Entendo que é repugnante indigno de logar na legislação de um povo que recito a familia, mesmo immoral, o regimen do matrimonio que admitia a separação de bons quando haja filhos eu outros descendentes communs. Não hesito em fulminar esses desgraçados systemas com a excommunhão de uma consciencia honesta - e de excommunhão são elless -, como o sagrado concilio tridentino fulminou a mancebia com a excommunhão da fé.
Eu poderia tratar d'esta questão no campo dos sentimentos, só ahi comprehendesse debate sério.
Quem póde defender a separação dos bons terrenos onde ha a união intima das almas nas ratonas aspirações, na mesma fé, nas mesmas virtudes, na mesma honra? Os talentos ficam prostrados diante da, luz immensa da verdade.

[Ver legenda na imagem]

Para i=1 podiam ser considerados dois casos em geral: 1.° o que cada conjuge leva para o casal; 2.° o que cada conjuge recebe, depois do casamento, por titulo gratuito ou por direito proprio adquirido anteriormente: mas esta distincção não me consta que tenha sido estipulada, nem sequer lembrada até hoje.
Para i=2 tambem dois casos podiam ser considerados: um determinado pelo que cada conjuge recebe pelo seu trabalho, outro determinado pelos rendimentos dos bens proprios de cada um. Esta distincção consta-me que tem sido lembrada em alguns casos raros ; mas não sei se já foi estipulada em alguma escriptura, a não ser no caso excepcional permittido pelo artigo 1:104.° e nos limites ahi fixados.
Distinga-se pela plica o caso de haver filhos ou outros descendentes communs na epocha da dissolução do casamento.
Ha então 70 regimens não dotaes do casamento algebricamente distinctos, pois tantas são as combinações de 8 objectos 4 a 4. Mas nem todos estes systemas são acceitaveis na pratica.
Por exemplo, fora absurdo o systema:

[Ver tabela na imagem]

Os systemas usados, além do dotal, mais ou menos frequentemente são as do texto, os quaes podem ser representados do seguinte modo:

[Ver formula na imagem]

Os regimens detaes podem ser representados pelos mesmos sysbolos precedidos do symbolo s; por exemplo:

[Ver formula na imagem]

representaria o septimo regimen considerado no texto; e o oitavo seria representado por

[Ver formula na imagem]

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N'este campo, o debate é impossivel para quem queira, supprimindo a inspiração da propria consciencia, sustentar a idéa de qualquer separação. E demais, senhores, aqui não podemos tratar de questões de sentimentos. Diante de nós, sobre este assumpto, temos o codigo civil portuguez a regular contratos.
Vou pois considerar o contrato do casamento; continuo a apreciar o nosso codigo civil.
"O casamento é um contracto perpetuo feito entro duas pessoas de sexo differente, com o fim de constituirem legitimamente a familia": é o artigo 1:056. Ambos os conjuges estrio pois fundamentalmente unidos no mesmo fim a que se obrigam pelo matrimonio perante a sociedade civil: a constituição legitima da familia.
"Aos pães compete reger as pessoas dos filhos menores, protegel-os e administrar os bens d'elles; o complexo distes direitos constituo o poder paternal."
"As mães participam do poder paternal e devem ser ouvidas em tudo o que diz respeito aos interesses dos filhos; mas é ao pae que especialmente compete durante o matrimonio, como chefe de familia, dirigir, representar e defender seus filhos menores, tanto em juizo como fóra d'elle."
São estes os artigos 137.° e 138.° As mesmas são portanto para o pae e para a mãe as obrigações de mais grave responsabilidade que póde impor a sociedade civil: a educação dos filhos; a organização da futura sociedade, a honra da nação.
O codigo civil portuguez reconhece e proclama a responsabilidade do pae e da mãe por tão peremptoria forma que, no artigo 140.º, determina para os paes a obrigação, alias imposta pela, natureza, de dar a seus filhos os necessarios alimentos e o ocupação conveniente, conforme as suas posses e citado.
Mais ainda. O artigo 141.° chega, no § unico, a declarar inhabeis para reger as pessoas e os bens do seus filhos os paes que, na conformidade da lei geral, tenham sido punidos pelo crime de abuso do poder paterna;, a requerimento dos parentes ou do ministerio publico.
Desde que aos conjuges são communs estas augustas responsabilidades do poder paternal; desde que estão ligados por existencias igualmente caras a ambos; repugna que entre elles haja separação de bens, como se n'este mundo pudesse haver bens do valor d'um filho.
E, depois, quando é que póde ser de influencia sensivel a separação de bens? Quando são muito desiguaes as fortunas dos conjuges. Veja-se o que pude succeder então.
Se morre, primeiramente o conjugo mais rico, fica o outro em condições de fortuna inferiores ás de seus filhos, os quaes devem em todo o tempo honrar e respeitar seus paes e cumprir, durante, a menoridade, os seus preceitos em tudo que não seja illicito (artigo 142.°).
É certo que aos filhos é prescripta pelo mesmo codigo civil a obrigação de alimentar seus paes (artigo 172.°); em que desgraçada situação porém? Quando os pães precisam de alimentos (artigo 171.º)! Alem disto; n'esta mesma situação de horrivel miseria, ficam as necessidades dos paes dependentes do criterio dos filhos pelos artigos 179.°, 180.° e 181.°!
Conheço a disposição do codigo civil portuguez ácerca do apanagio dos conjuges viuvos; é regulado este direito, triste e excepcional, pelos artigos 1:231.° e 1232.°, os quaes constituem um outro argumento em favor da minha doutrina. Por estes artigos póde succeder que fique a receber um a esmola, depois de ter provado que d'ella precisa, um pae que, na vespera de cair na pobreza, ainda tinha sufficientes rendimentos de bens que tenham passado então para teus filhos.
Ora não merece logar em familia honesta, que se preze, não póde n'esta santa instituição ter abrigo, quem tenha alma para consentir que em tão miseravel situação cá a uma pessoa a quem tenha jurado, perante um altar de fé, amor e fidelidade por toda a vida. Para gente assim é demais o matrimonio, sacramento ou simples contrato legal, como queiram; basta-lhe a mancebia, um contracto que não tem logar na legislação patria.
E, se primeiro morre o conjuge menos abastado? Fica então o conjuge viuvo, gosando, elle só, fortuna superior á que tem de ser repartida pelos filhos, cujos interesses creados legitimamente pelo casamento são, n'este caso, prejudicados gravemente por uma clausula do mesmo casamento! E todavia os filhos são o principal fim do matrimonio!
Certo é, meus senhores, que a separação do bens, no caso mesmo de haver filhos ou outros descendentes dos conjuges, na época da dissolução do casamento, rarissimas vezes é da iniciativa dos noivos ; quasi sempre é exigencia dos paes da noiva. Mal se comprehende isto!
Ao esposo póde confiar-se sem precaução a felicidade de uma filha, que muitas vezes deixa o soberano dominio em casa de seus pães para ir ficar sujeita á obediencia imposta pelo artigo 1:185.°; mas todas as precauções serão poucas para segurar os bens da filha na sua familia! É repugnante ! É torpe!
Á esposa confia o marido a sua consideração social e a de sua familia, sem restricções, com a serenidade de quem cumpre um dever de consciencia; e hão de ser estipuladas restricções, para interesses pecuniários! E, se a esses pães é indiferente a consideração social do marido de sua filha, e portanto a de netos seus, não merecem elles ser considerados como paes, elles, que não sabem ser avós. "Póde haver paes que não estimem seus filhos; não póde haver avós que não estimem netos seus" lembro-me de ter lido esta maxima n'um livro monumental, obra celeste. E terá errado o auctor d'esse livro, Victor Hugo? Elle que, na sua enorme magestade, soube mostrar que era um avô extremosissimo, como ninguém póde sel-o mais, ter-se-ia offendido a si mesmo, pensando que todos os avós eram como elle? Talvez.
Estas singelas observações condemnam a separação de bens, na sua mesma origem, para o caso de haver filhos ou outros descendentes communs na epocha da dissolução do casamento.
Creio ter assim demonstrado com toda a evidencia o artigo 4.° d'este projecto de lei.

*

É reconhecido e acatado em Portugal o direito de propriedade em toda a sua plenitude: é uma das garantias individuaes e essenciaes consignadas na carta constitucional da monarchia (artigo 145.°, § 21). Como consequencia d'este direito, o codigo civil portuguez garante o detestar, no artigo 1:763.° a todos aquelles a quem a lei não o prohiba expressamente.
Ha fundamento para o direito de testar? E a lei ha de garantir este direito em absoluto ou regulai-o e restringil-o?
Depois da morte, os restos de cada qual pertencem á terra commum; e pertencerá tambem á patria ou ao mundo, a todos ou a ninguém, a propriedade do que em sua vida foi de cada um? Fique esta questão para os publicistas theoricos; mas observarei que não podem parar no estado os que tiverem a peregrina idéa de negar o direito do testar. Ninguém póde dispor de qualquer propriedade para depois da sua morte; e portanto o estado é o unico herdeiro de todos: creio que ha quem assim pense. Mas por que ha de ser o estado ? Só porque elle, nos seus códigos, garante a propriedade e a todos fornece os meios de sustental-a e defendel-a ?
Se pela morte o cidadão perde o direito de propriedade, como ha de então ficar sujeito a ligações com o estado ? Assim, depois da sua morte, a pátria havia do ser para elle o mundo inteiro; e seus herdeiros seriam todos, o que o mesmo fora que aniquilar a herança.
Certo é que o estado garante o direito de propriedade e fornece os meios para a plena fruição d'este direito ; não menos o é porém que o estado deve respeitar os direitos

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individuaes; o entre estes tão essencial como o da existencia, com o qual se consubstancia, é o do trabalho, do qual em meu entender, deriva o da propriedade.
Não é preciso e antes ocioso fôra proseguir n'esta ordem de reflexões. O direito de testar é uma expressão do direito de propriedade; um o outro são garantidos pela obrigação de cada um trabalhar conforme a sua aptidão. E, porque o direito de testar tem o seu fundamento natural e legitimo no da propriedade, é claro que por este ha de ser restringido.
Já tive occasião de expor-vos, meus senhores, a minha opinião ácerca da propriedade que os paes podem ter.
"Desde que um homem tem recebido n'um filho a benção de céo, em consciencia, conforme a grande e eterna lei do sentimento, deixou do ser proprietario de todos os bens que possuia, tanto dos adquiridos e recebidos por titulo gratuito, como dos que tenha alcançado e ainda venha a alcançar pelo seu trabalho, para ser administrador desses bens, que logo ficam sendo propriedade de seus filhos."
Isto disse eu, na sessão de 27 de maio do anno ultimamente findo; permitti que hoje o repita aqui.
Por estas razões e outras correlativas foi sem duvida que as nossas leis civis prescreveram a legitima em beneficio dos ascendentes e descendentes do testador.
A legitima consiste nas duas terças partes dos bens do testador, excepto quando este não tem descendentes, nem pae, nem mãe, e tem outros ascendentes, pois, em tal caso, a legitima perde uma sexta parte dos bens do testador, passando de duas terças partes para metade d'estes bens. Estas são as disposições dos artigos 1:784.°, 1:786.°e 1:787.° do codigo civil.
Mas, quando o testador tem filhos ou netos, deverá a lei civil conceder-lhe a faculdade de dispor de uma parte de seus bens?
Occorrem-me alguns casos em que é dever sagrado para um pae dispor de parte de seus bens em favor de pessoas que n'elles não tenham legitima ou de filhos em especiaes condições.
Quando a vida ou a honra de um filho tiver sido defendida, protegida e salva por outrem, deve o pae deixar o seu reconhecimento expresso no mesmo documento que transmite a seus filhos a fruição da propriedade dos bens que d'elle passaram para estes. Quando a um dos seus filhos faltam condições para trabalhar; quando, por exemplo, um é doudo ou cego ; é claro que a este o pae deve espoei ai benevolencia. Emfim, quando um filho tem prole muito mais numerosa do que qualquer dos outros e está em condicções menos prosperas que as dos mesmos, não podem estes ter motivo de queixa contra seu pae, se em favor d'aquelle dispozer de parte de seus bens.
Mas, em geral, a legitima ha de ser a mesma, quaesquer que sejam os encargos e as circumstancias do testador e de sua familia? Evidentemente não. A lei, para ser igual, a mesma para todos, tem de fazer variar as suas prescripções, na formula que as exprima ou traduza, com as variadas circumstancias das pessoas a quem haja de applicar-se.
Esta observação é abstracta: não é civil. E algebrica; não é juridica. Desde já reconheço esta verdade ; mas tambem não pretendo solução de rigor absoluto para este grande problema da familia.
O que pretendo é que a legitima varie com o numero dos filhos do testador. Tão rasoavel, tão natural, tão justo reputo este principio, ou regra, como queiram, que me cansa assombro não tel-o encontrado tanto no magnifico codigo civil que devemos a uma superior illustração da sciencia juridica, a um dos nossos mais conspicuos magistrados, como mesmo na anterior legislação civil. Não sei se em algum codigo do mundo está adoptado o principio que venho propor no artigo 6.°, o que sei e é fora de duvida, meus senhores, é que cada um o encontra na sua propria consciencia.
Empirica é a solução que lembro e tenho a honra de propor; mas assim ainda, e até por isto mesmo, terá logar proprio no codigo civil portuguez, monumento de sabedoria juridica, que para diversos problemas, e para os mais importantes, contem soluções empiricas.
Mo proprio codigo encontro este mesmo principio adoptado para um caso especial: a excepção, a que já me referi, do artigo 1:787.°; tem pois este principio o reconhecimento do sapientissimo auctor do nosso codigo civil.
Não me preoccupei com a reciprocidade entre as pessoas ligadas pela legitima. Conforme este meu projecto, ha casos em que um pae só póde dispor da sexta parte de seus bens, emquanto que cada um de seus filhos póde dispor da terça parte do que tiver. Mas d'aqui não resulta inconveniente que se sinta diante dos sagrados encargos de um pae de muitos filhos. E demais, meus senhores, n'esta mesma secção do codigo civil, encontrareis um caso em que a reciprocidade tambem não foi acatada : o mesmo doo artigo 1:787.° combinado com os artigos 1:985.° e 1:987.° A legitima de um neto que, seja unico descendente vivo do avô consiste, nos termos do artigo 1:985.°, em dois terços da bens do mesmo avô ; e a legitima do avô que seja o unico ascendente vivo do neto, nos termos do artigo 1:787.°, consiste em metade dos bens do mesmo neto.
É triste e duro que bens de uma pessoa som descendentes, sem pae, sem mãe, com irmãos e com qualquer da avós, tendo passado para a posse d'este ascendente, vão confundir-se depois na massa commum da herança d'este, para que, em seguida e pela ordem da successão, sejam repartidos não só pelos irmãos, mas tambem pelos primos do possuidor de quem o ultimo os tenha herdado, se não por estranhos em parte.
Mas, como o irmãos não estão ligados por legitima, julgo que a solução mais rasoavel e mais conciliadora de naturaes interesses, solução de manifesta prudencia, é a que tenho a honra de propor no artigo 6.° § 3.°
Resta me, para concluir as minhas observações ácerca da legitima, justificar a excepção proposta para os que tenham o impedimento da ordem ou se achem ligados por voto solemne reconhecido pela lei. Não é meu proposito justifical-a directamente. Apresento-a convencido da justiça e da conveniencia que lhe assistem, para compensar a excepção do n.° 5.° do artigo 1:058.°
Se não é licito constituir familia legitima aos que estejam nas condições d'este numero, não é justo impôr-lhes todas as obrigações que derivam da constituição da familia ou d'esta são elementos essenciaes.
Não quero discutir a justiça ou conveniencia da referida excepção; reconheço mesmo que é inopportuno qualquer debate sobre tão melindroso assumpto, que largamente, com profundos conhecimentos e notavel enthusiasmo, tem sido discutido nas assembléas parlamentares, nas escolas, em livros, folhetos e jornaes.

Projecto de lei

Artigo 1.° O pae ou a mãe que contrahir segundas núpcias, tendo filhos menores do matrimonio anterior, perderá o usufructo e a administração dos bens d'estes; mas poderá continuar a administrar os ditos bens, se o conselho de familia assim o deliberar e se o outro conjuge, antes do casamento, tiver dado para isso consentimento expresso; conservará o poder paternal no que disser respeito ás pessoas de sons filhos menores; e emfim poderá exigir que o conselho de familia arbitre para os mesmos filhos as mezadas convenientes.
§ unico. O pae binubo e a mãe binuba que, por deliberação do conselho de familia e consentimento expresso dado pelo outro conjuge antes do casamento, continuar na administração dos bens dos filhos menores, terá a obrigação de

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dar a caução que ao conselho de familia parecer necessária, se esto não julgar conveniente dispensal a, conforme o valor e o rendimento provavel dos ditos bens.
Art. 2.° Se o pae binubo ou a mãe binuba continuar a administrar os bens do seus filhos menores ; do matrimonio anterior, será o outro conjugo solidariamente responsavel com o primeiro pelos prejuizos que resultarem da administração dos mesmos bens.
§ unico. Se o pae binubo ou a mãe binuba não continuar na administração dos bens de seus filhos menores do matrimonio anterior, o conselho de familia nomeará pessoa que se encarregue dessa administração, com os mesmos direitos e as mesmas obrigações que toem os tutores relativamente aos bens dos menores.
Art. 3.° Se o pae binubo ou a mãe binuba tornar a enviuvar, recobrará o usufructo e a administração dos bens dos filhos menores, independentemente do deliberação do conselho do familia.
Art. 4.° Em qualquer regimen do casamento sei á prohibida a separação de bons, qualquer que for a sua proveniencia, no caso de haver filho:; ou outros descendentes communs na epocha da dissolução d'este contrato.
§ unico. Ficam salvas as disposições especiaes relativas às segundas nupcias (livro II, tit. II, cap. I, sec. XI do codigo civil); mas será prohibida tambem para as segundas nupcias, no caso considerado n'este artigo, a separação dos bens susceptiveis de communhão, qualquer que for a proveniencia d'elles.
Art. 5.° O varão que contrahir segundas nupcias depois dos sessenta annos do idade, e a mulher que as contrahir depois dos cincoenta, não poderá alhear, por titulo algum, desde o dia em que haja contraindo o segundo matrimonio, a propriedade de uma porção dos bens mencionados no artigo 1235.° do codigo civil emquanto tiver filhos ou outros descendentes que possam havel-os, sendo esta porção determinada pela legitima que a este pertence.
§ unico Exceptuam-se dois casos:
1.° Havendo filhos d'este matrimonio;
2.° Tendo o binubo e o novo conjugo filhos communs nascidos ou procreados antes d'este matrimonio.
Art. 6.° Legitima e a porção de bens de que o testador não póde dispor, por ser applicada pela lei aos herdeiros em linha recta descendente ou ascendente.
§ 1.° Esta porção será determinada pelas regras seguinte?:
1.ª Consistirá nas cinco sextas partes dos bens do testador, se este, ao tempo da sua morte, tiver mais de seis filhos, legitimos, legitimados ou perfilhados, vivos ou representados por descendentes, legitimos, legitimados ou perfilhados ;
2.ª Consistirá nas quatro quintas partes dos bens do testador, se esto, ao tempo da sua morto, tiver cinco ou seis filhos, legitimos, legitimados ou perfilhados, vivos ou representados por descendentes, legitimou, legitimados ou perfilhados;
3.ª Consistirá nas tres quartas partes dos bens do testador, se este, ao tempo da sua morto, tiver tres ou quatro Alhos, legitimos, legitimados ou perfilhados, vivos ou representados por descendentes, legitimos, legitimados ou perfilhados;
4.ª Consistirá nas duas terças partes dos bens do testador, se este, ao tempo da sua morte, tiver um ou dois filhos, legitimos, legitimados ou perfilhados, vivos ou representados por descendentes, legitimos, legitimados ou perfilhados;
5.ª Consistirá nas duas terças partes dos bens do testador, se este, ao tempo da sua morto, não tiver descendentes e tiver pae e mãe; ou só pae, ou só mãe;
6.ª Consistirá na metade dos bens do testador, se este, ao tempo da sua morte, não tiver descendentes, nem pae, nem mãe, o só tiver outros ascendentes em linha recta.
§ 2.° Se o testador tiver o impedimento da ordem ou se achar ligado por voto solemne reconhecido pela lei, não podendo portanto constituir familia legitima, em virtude do n.° 5.° do artigo 1058.°, a legitima consistirá em:
1.° Metade dos bens do testador, se este tiver pae e mãe, ou só pae, ou só mãe;
2.° Terça parte dos bens do testador, se esto não tiver pae, nem mil e, e tiver outros ascendentes em linha recta.
§ 3.° Nos casos da 6.ª regra do § 1.° e 2.º do § 2.°, se o testador tiver irmãos, legitimos, legitimados ou perfilhados, germanos, consanguineos ou uterinos, ou descendentes de irmãos, legitimos, legitimados ou perfilhados, poderá dispor da legitima em beneficio de todos ou de qualquer dos ditos irmãos ou descendentes d'estes, com inteira liberdade sobro a divisão dos bens da legitima; mas o usufructo da mesma legitima pertencerá aos ascendentes considerados n'este dois casos.
Art. 7.° Se o testador tiver, ao mesmo tempo, filhos legitimos ou legitimados e filhos perfilhados, observar-se-ha o seguinte:
1.º Se os filhos perfilhados o catavam ao tempo em que o testador contrahiu o matrimonio de que veiu a ter os filhos legitimos ou legitimados, a porção de cada um d'aquelles será igual á legitima de cada um d'estes, menos uma, fracção da mesma determinada pela relação entro a parto disponivel da herança e a herança toda;
2.° Se os filhos forem perfilhados depois de contraindo o matrimonio, a porção de cada um d'elles não excederá a legitima de cada um dos legitimos ou legitimados menos a referida fracção; e sairá só da fracção disponivel da herança a somma das porções de todos os perfilhados.
Art. 8.° Serio insertos no codigo civil portuguez:
O artigo 1.° em logar do 162.°;
O artigo 2.° em logar do 163.°;
O artigo 3.º em logar do 164.°;
O artigo 4.° entre os artigos 1:097.º e 1:096.º;
O artigo 5.° em logar do 1237.°;
O artigo 6.º em lugar do 1784.°, sendo supprimidos os artigos 1780.° e 1787.º;
O artigo 7.° em logar do 1785.°;
§ 1.° O governo é auctorisado a introduzir no codigo civil portuguez as modificações decretadas por esta lei o as provenientes d'ella.
§ 2.° Fica revogada a legislação em contrario.
Sala das sessões da camara da senhores deputados, 5 de janeiro de 1886.-.Alfredo Filgueiras da Rocha Peixoto, deputado.

Projecto de lei sobre nomeação e transferencia dos magistrados judiciaes, apresentado pelo sr. deputado Alfredo Filgueiras da Rocha Peixoto na sessão de 3 de janeiro de 1886, e que devia ler-se a pag. 8 d'este "Diario"

Meus senhores. - Homenagem de profunda admiração e sincero respeito á magistratura judicial portagueza é, primeiro que tudo, este projecto de lei; é para mim um dever de consciencia.
Com as primeiras orações da religião aprendi que acima do todos os interesses e affectos estuo os preceitos da justiça; e que a esta o mesmo direito têem todos. No meio dos variadissimos espectaculos que á infancia offerece a natureza, atravez do pequenos o mil accidentes, eu via também, em todos esses dias cuja recordação é uma das melhor e a porções da vida, como é forte e grande a aspiração do um homem de bem a descobrir e fazer valer o direito dos outros, tanto o de estranhos como o de seus mais dedicados amigos.
D'ahi, do tão longe, vem o meu sincero enthusiasmo para venerar a magistratura judicial da minha terra.
Assim e desde já, meus senhores, respondo a quem es-

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tranhe que eu tome a iniciativa, arrojada talvez, de uma reforma, na organizarão do pessoal judiciario.

*

"A divisão o harmonia da poderes publicos é o principio conservador dos direitos dos cidadãos e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias que a constituição offerece."
Tal é o artigo 10.º da carta constitucional da monarchia portuguesa, codigo que no artigo seguinte estabelece quatro poderes politicos: o moderador, o legislativo, o executivo e o judicial.
Para que efficazes sejam a divisão e harmonia d'estes poderes, é absolutamente indispensavel a independencia de cada um em relação a cada qual dos outros; ou antes, para que seja bem garantida esta independencia, lei fundamental do direito politico interno de uma nação liberalmente regida, é que a carta prescreve categoricamente a referida divisão.
Tem o poder judicial garantida, sufficiente e dignamente a sua independencia? Não; nem sequer bem definida. Aos magistrados judiciaes portuguezes nunca faltou a independencia de caracter; mas quantas e quantas vezes lhe têem faltado, para sustentar essa independencia, as garantias que o espirito da carta constitucional assegura, garantias que não podiam deixar de estar no animo liberal e valoroso do excelso principe que outorgou a seus reinos a carta constitucional!
O § 11.° do artigo 145.° do codigo politico e fundamental da nação estabelece que será mantida a independencia do poder judicial; e acrescenta que nenhuma auctoridade poderá avocar caudas pendentes, sustal-as ou fazer reviver os processos findos. Isto porém não basta; é absolutamente indispensavel que a independencia seja bem garantida ao poder judicial, desde a sua primitiva constituição, isto é, desde a encolha e a nomeação dos cidadãos a quem ha de ser confiado o exercicio de funcções tilo augustas, que não são menos soberanas que as do poder moderador, estabelecido e definido pela carta a chave de toda a organização politica.
Ora, n'este capital ponte, que é a fonte salutar o genuina da independencia, tem o poder judicial ainda menos garantias que os professores de instrucção superior.
O poder executivo podo escolher á vontade arbitrariemente, caprichosamente, os juizes de primeira instancia; tão latas são as leis que regulam o ingresso ha magistratura judicial (decreto de 21 de maio de 1841, reforma judicial novissima, artigo 91.°, § unico; lei de 29 do maio do 1843, artigos 2.° e 3.°; e outras)! Mais claro e ao alcance de quem rapidamente ler estas linhas: o ministro da justiça a póde escolher os juizes de primeira instancia entre os magistrados do ministerio o publico, os administradores de concelho que sejam bachareis formados em direito, os conservadores privativos do registo predial e os juizes ordinarios em determinadas condições, apenas com a restricção correspondente ao direito dos magistrados judiciaes do primeira instancia do ultramar á sua collocação na magistratura judicial do continente ou dão ilhas adjacentes, nos termos do regimento de justiça de 1 de dezembro da 1866 (artigo 149.°) e do decreto de 17 do novembro de 1869 (artigo 7.°).
Depois, para a segunda instancia, ainda podo escolher um, sempre no meio de tres propostos pelo supremo tribunal de justiça, de modo que assim tem um meio seguro e facil de impedir a promoção a um determinado juiz, embora justa e legitima.
A similhante arbitrio não está sujeito um professor da instrucção superior. Desde que um candidato for approvado em concurso e proposto para um determinado logar pelo jury respectivo, tendo sido satisfeitos os preceitos da lei e observadas as formalidades dos regulamentos, o ministro do reino, cedo ou tarde, ha de nomeal-o necessariamente. Póde o ministro demorar a nomeado quanto queira, por odiosa violencia; não o póde nomear outro candidato, que não seja approvado era concurso e proposto pelo jury; nem póde sequer alterar a ordem da nomeação, no caso de haver mais que um candidato, e mais que um logar. Póde passar por cima das mais justas conveniencias e dos mais legitimos interesses; não póde tomar effectiva qualquer perseguição tentada contra um candidato que haja incorrido nas das iras.
O conde, hoje marquez, do Thomar, cujos meritos superiores de estadista succumbiram por baixo do seu imprudente orgulho - orgulho que foi o seu mais formidavel inimigo entre tantos que lhe moveram guerra de morte! - o conde de Thomar teve forças e coragem para demorar a nomeação do dr. Raymundo Venancio Rodrigues para o logar de lente substituto extraordinario da faculdade de mathematica na universidade de Coimbra, por cerca da dois annos; mas a final, por decreto do 29 de novembro de 1843, teve a nomeação que houvera ganho no concurso, inerme do protecções, forte e valoroso de merecimentos e estudo, este meu antigo mestre, de saudosissima e veneranda memoria. Ha mais do quarenta annos, foi isto assim; hoje tanto não poderia ser.

*

O poder real, declarado, hereditario pelo artigo 4.° da carta constitucional da monarchia, foi pelo artigo 5.° conferido á dynastia da serenissima casa de Bragança na pessoa da princeza D. Maria da Gloria, pela abdicação e cessão de seu augusto pae; e o artigo 71.° da mesma carta constitucional pescreve que o poder moderador compete privativamente ao Rei, como chefe supremo da nação. Assim é conferido o puder moderador; de nenhum outro poder politico depende, em Portugal, a nomeação da pessoa que ha de exercel-o. A missão das côrtes, n'este grave e fundamental ponto do regimen constitucional, reduz-se-a verificar a identidade da pessoa a quem o codigo fundamental confia a chave de toda a organisação politica (artigo 71.° da carta, constitucional).
Pelo artigo 13.° d'esta, o poder legislativo compete ás côrtes com a sancção do Rei; e o artigo immediato determina que as côrtes sejam compostas de duas camaras: a dos dignos pares e a dos senhores deputados. A primeira, pelo artigo 39.º era constituida por membros vitalicios e hereditarios, nomeados pelo Rei e sem numero fixo; hoje, pelo acto addicional que teve origem n'esta mesma camara, é limitado o numero dos dignos pares, entro os quaes ha uma parte, a terça, que é de eleição o temporaria. A segunda camara era, como é ainda, como não póde deixar de ser, electiva e temporaria e a esta pertencem tres importantissimas iniciativas: pelo artigo 35.°, sobro impostos e sobre recrutamentos; e, pelo artigo 140.°, rara a reforma da carta constitucional.
Estabelece portanto o nosso codigo politico que um dos raros do poder legislativo, ao qual confere tres valiosissimas iniciativas de soberania, seja independente de qualquer outro poder politico da monarchia pela escolha das pessoas que hão de ser chamadas a exercel-o.
O poder executivo sob este ponto da vista, está dependente do moderador, pois que uma das attribuições d'este é nomear e demittir livremente os ministros d'estado (artigo 74.°, § 5.º, da carta constitucional); e, para o exercicio do tão importante attribuição, nem o Rei é obrigado a ouvir o conselho d'estado, como o é para, usar do qualquer das outras attribuições que pelo mesmo artigo 74.° lhe são conferidas. Pelo julgamento dos seus actos está dependente do qualquer das duas casas legislativas: praxe reconhecida por todos os partidos politicos e liberaes.
Mas esta dupla dependencia é uma necessidade determinada pelo equilibrio harmonico dos poderes politicos; é

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uma condição inherente á natureza e às mutuas relações, dos poderes politicos. Sem esta condição nem poderia existir o governo monarchico e representativo.
O poder judicial tem dependente do executivo a escolha dos cidadãos que hão de exercel-o; para isto não ha rasão constitucional, nem conveniencia de serviço.
Entre as principaes attribuições do poder executivo (artigo 75.° da carta constitucional) apparece a nomeação dos magistrados judiciaes. É já para notar--se a circumstancia, insignificante na apparencia, de vir indicada esta attribuição depois da que se refere á nomeação dos bispos e ao provimento dos beneficios ecclesiasticos.
Ora, em virtude do artigo 144.º da carta, é constitucional esta attribuição do poder executivo; e portanto não posso propor á vossa recta e illustrada apreciação a reforma que julgo justa e conveniente.

*

Seis são os meios que conheço adoptados até hoje, por vários diplomas legislativos, para garantir aos magistrados judiciaes a independencia; mas só são plenamente efficazes quando os magistrados têem chegado á relação de Lisboa ou á do Porto. São os seguintes:
1.° Perpetuidade do cargo;
2.° Inamovibilidade, illimitada ou limitada;
3.° Categorias fixadas para os candidatos legaes á magistratura judicial;
4.° Divisão das comarcas judiciaes em classes ;
5.° Propostas o consultas do supremo tribunal de justiça para a promoção em classe e instancia;
6.° Fôro especial para o julgamento dos magistrados judiciaes por qualquer delicto ou crime.
A perpetuidade do cargo é garantida a todos os magistrados judiciaes pelo artigo 120.° da carta constitucional; confirmada, sem necessidade de tal, pela reforma judicial novissima, decretada em 21 do maio de 1841: pelo artigo 12.° para os juizes conselheiros do supremo tribunal de justiça; pelo artigo 37.° para os magistrados de segunda instancia; pelo artigo 89.° para os de primeira instancia. Só por sentença poderão estes funccionarios perder o logar: artigo 122.° da carta constitucional e os ultimamente citados da reforma judicial novissima.
Para os juizes conselheiros do supremo tribunal de justiça e para os juizes das relações a inamovibilidade é illimitada: artigos 12.° e 37.°, já citados, da reforma de Antonio Bernardo da Costa Cabral. Para os juizes de direito fora limitada a tres annos pelo artigo 89.° da mesma reforma; a seis pela lei de 1 de julho de 1843: a quatro pela lei de 18 de agosto de 1848; e emfim a seis pela lei vigente de 21 de julho de 1855.
São quatro as categorias que têem sido fixadas para a candidatura legal á magistratura judicial de primeira instancia :
l.ª Delegados de procurador regio com seis mezes de serviço (reforma judicial novissima, artigo 91.°, § unico);
2.ª Administrador de concelho, reunindo a qualidade de bacharel formado em direito, e tendo as informações da universidade, exigidas para os logares da magistratura judicial (lei de 29 do maio de 1843, artigos 2.° e 3.°, que modificaram o artigo 241.° do codigo administrativo de 18 de março de 1842);
3.ª Conservador privativo do registo predial e hypothecario, e ajudante do mesmo, que tiver, nos termos da legislação em vigor ao tempo da sua nomeação, as habilitações necessarias para ser nomeado delegado do procurador regio (regulamento do rergisto predial, decreto de 14 de maio de 1868, artigo 22.°, cuja disposição foi confirmada, com outras, pelo artigo 14.° do decreto de 17 de dezembro de 1870); conservador approvado em concurso de provas publicas e que tiver as habilitações necessarias para ser nomeado delegado do procurador regio (disposição geral do artigo 14.° do regulamento do registo o predial de 28 de abril de 1870); conservador e seu ajudante despachado por decreto de 10 de novembro do 1864 e 19 de janeiro do 1865 (paragrapho do mesmo artigo ultimamente citado);
4.ª Juiz ordinario que tiver sido ou for approvado em concurso para delegado de procurador regio e nomeado para este cargo do ministerio publico, tendo seis mezes de serviço nos cargos de juiz ordinario e delegado de procurador regio (artigo 21.° da lei de 10 do abril do 1874, n.° 2.°, combinado com o já citado paragrapho do artigo 91.° da reforma judicial novissima).
A lei, já citada, de 21 de julho de 1855 estabelece tres classes para os juizes de primeira instancia; está em vigor esta disposição.
Esta mesma lei determina que as promoções de classe e instancia sejam feitas sobre proposta de lista tripla em consulta graduada do supremo tribunal de justiça.

mfim, para o julgamento dos crimes commettidos pelos juizes de direito de primeira e segunda instancia e membros do supremo tribunal de justiça, como tambem pelos agentes do ministerio publico, foi estabelecido foro especial pelo artigo 1235.° da reforma judicial novissima.

Para a limitada inamovilidade dos magistrados judiciaes de primeira instancia acceito, como regra geral, a disposição da transferencia necessaria, logo que terminado for o sexto anno de serviço do mesmo juiz na mesma comarca; mas esta disposição, no projecto que tenho a honra de submetter ao vosso exame, tem muito menos importancia que na legislação vigente, porque este projecto estabelece cinco classes nas comarcas judiciaes de primeira instancia.
Fora d'este caso, a transferencia na mesma classe só poderá effectuar-se por dois motivos:
1.º Manifesta conveniencia da administração da justiça;
2.° Requerimento do mesmo juiz.
O primeiro motivo é de extrema gravidade para o magistrado; a justiça e a bem merecida consideração da magistratura judicial exigem todas as cautelas e todas as garantias.
Seis são as garantias e cautelas que tenho a honra de lembrar-vos:
1.ª Audiencia previa do juiz de cuja transferencia se tratar;
2.ª Julgamento do mesmo motivo pela relação judicial, em sessão plena e publica de todos os juizes.
3.ª Votação nominal, para que a responsabilidade do julgamento corresponda á gravidade da questão;
4.ª Recurso para o supremo tribunal do justiça;
5.ª Julgamento em sessão publica de todos os juizes do referido tribunal supremo;
6.ª Votação nominal no julgamento do mesmo recurso.
A questão é de honra para um magistrado. Aqui está compromettida a consideração publica de um dos poderes do estado. Todas estas garantias são mais que justas; são impreteriveis.

É de vantagem evidente a distribuição das comarcas em cinco classes. Não só fica assim estabelecida promoção regular e segura; mas tambem cada magistrado mais facilmente escapa á vontade menos recta de qualquer governo e aos acasos da caprichosa sorte, que muitas vezes tem a parte do leão.
Não é prohibida a um magistrado a legitima ambição de promover os seus interesses; mas pelo estabelecimento das cinco classes é certo que esta ambição fica consideravelmente restringida.
Em taes circumstancias, muito menos frequentes, do que tem sido no vigente regimen, serão os pedidos de juizes para transferencia de uma para outra comarca ; mas ainda assim é preciso regular similhante processo de transferencia. E por esta razão, tão exacta como evidente, que en-

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tendo que o pedido de transferencia de um magistrado judicial de uma comarca para outra da mesma classe só poderá ser attendido quando tiver sido favoravelmente informado pelas relações judiciaes a que pertencerem a comarca onde o mesmo magistrado estiver a administrar justiça e a que elle pretender.
Como fonte segura de independencia, e garantia de consideração publica para o poder judicial, lembro-me de introduzir o concurso para o ingresso nesta elevada magistratura. Bastará o concurso documental; provas praticas e suficientes serão dadas por grandissimo numero do candidatos nos diversos e variadissimos processos que regularmente hão de subir á vista e ao attento exame dos juizes da respectiva relação.
É natural e bem provavel que este concurso será sufficiente para uma acertada escolha dos juizes; é todavia de manifesta prudencia estabelecer restricções e mais cautelas na promoção da ultima classe para a immediata; e tal é a doutrina do 7.° artigo d'este projecto. Observadas estas prudentissimas cautelas com todo o escrupulo, julgo que a ordem da antiguidade será a mais efficaz garantia de independencia; e assim foi, meus senhores, que cheguei á doutrina do artigo 8.°
Para a segunda instancia proponho duas classes, sem prejuizo de qualquer vantagem eventual de qualquer juiz. Introduzo assim, n'esta instancia, uma promoção convenientemente regulada; 6 proponho um meio seguro, sem que seja violento, para que a justiça pela segunda instancia seja administrada com promptidão em toda a parte.
Não me determinei, para a escolha das cidades em que hão de ficar as relações do 2.ª classe, por outras condições que não sejam as de topographia; não attendi á importancia das terras; nem ás sua categoria; nem às suas tradições. Inspirou-me só um dos principias fundamentaes d'este projecto : a promptidão na administração da justiça.
O augmento do pessoal que d'este projecto deriva para a magistratura judicial é uma necessidade impreterivel. Já, a reconheciam todos os que pensam n'estas questões de summa importancia, antes da lei eleitoral de 21 de maio de 1884.
Mas esta necessidade tornou-se muito mais urgente desde que as reclamações e os recursos sobro recrutamento militar passaram, pela referida lei eleitoral, para a competencia do poder judicial.
Não é meu intento, n'esta occasião, criticar esta lei, que, não obstante o recto e liberal espirito que a inspirou, contem disposições monstruosas, até impossiveis. Mas permittam v. exas que eu observe, á luz da verdade plena, que esta lei se propõe realisar a phrase, bem conhecida do povo da nossa capital, metter o Rocio na Bitesga!
Pois que, meus senhores? Desde o dia 20 de julho (artigo 17.° da lei) até ao dia 31 de outubro (§ 4.° do mesmo artigo) hão de ser resolvidos nas relações judiciaes todos os recursos sobre recrutamento militar! E hão de ser resolvidos pelo processo dos artigos 1070.°, 1072º, § unico, 1073.° e seus paragraphos e 1074.° do codigo do processo civil, que é o do julgamento dos aggraves em conferencia, processo demorado!
Tive idéa, meus senhores, de calcular quanto tempo seria necessario para que cada juiz da relação do Porto examinasse cada um dos processos d'este genero que lhe coubesse na distribuição; desisti porém d'essa idéa; e querem v. exas. saber porque?Por causa do artigo 17.° da referida lei, a distribuição dos processos de recurso sobre recrutamento militar no primeiro anno da execução da mesma lei, foi tão tumultuaria, que é empreza difficil verificar quantos couberam a cada juiz! No momento em que estou a escrever estas linhas, sei que os escrivães da mesma relação, com toda a sua immenda vontade, com a sua constante e decidida dedicação pelo serviço, ainda não poderam organizar os mappas da mesma distribuição em cumprimento de terminantes ordena que lhes foram dadas pelo dignissimo presidente da mesma relação, para satisfazer a um pedido feito pela repartição da estatistica do ministerio das obras publicas!
E acerca do segundo anno, cujos processos a lei determinava que tivessem sido resolvidos até 31 de outubro ultimo, quereis saber, meus senhores, o que ha? É certo que muitos e muitos estão já resolvidos; mas ainda não está finda a distribuição!
E o que será quando estiver em execução a secção 5.º da mesma lei? Quando efectivamente correrem perante os tribuuaes judicia a as execuções fiscaes administrativas por impostos e mais rendimentos publicos?
É sempre imprudente fazer leis com disposições que tornem impossivel a sua execução. Nem se comprehende que um poder do estado faça leis, para que outro poder necessaria e fatalmente, as viole. Mas este mal é muito mais para, sentir-se o lamentar-se, quando vae affectar o poder judicial, que tem sido constantemente solicito e escrupuloso no severo cumprimento das leis. Pois, quando os outros poderes do estado devem todos empenhar-se em seguir os honradissimos exemplos do judicial, ha de o legislativo obrigar este violentamente, por uma lei de monstruosas disposições, a preterir formalidades prescriptas e prasos marcados, em questões de valer capital n'uma nação liberal e respeitadora dos direitos individuaes?
Por estas razões e outras muitas que facil me fôra adduzir, meus senhcres, entendo que bem justificado é, como impreterivel necessidade até, o augmento que tenho a honra de propor para o pessoal da magistratura judicial da segunda instancia, augmento que apenas se eleva a oito juizes. Sabem v. exas. que, na actual organisação, ha tres relações judiciaes, cada uma, com seu presidente; que cada uma das relações judiciaes de Lisboa e do Porto tem duas secções; que cada uma d'estas é constituida por novo juizes; e que a relação dos Açores é do uma secção unica do sete juizes. Ora, na organisação que vos proponho, ha cinco juizes presidentes e sete secções, cada uma, de sete juizes; e portanto é o que deixo indicado o augmento que d'este projecto deriva para o numero dos juizes de segunda instancia.
É tambem para augmentar as garantias de independencia da magistratura judicial, e roborar as condições da sua respeitabilidade, que proponho que os presidentes e vice-presidentes do supremo tribunal de justiça e das relações judiciaes sejam nomeados pelo ministro o secretario d'estado dos negocios da justiça sobre listas triplas eleitas pelos juizes que constituirem os referidos tribunaes.
Esta liberal e sensata disposição está-nos indicada, meus senhores, por outra análoga relativa á nomeação do presidente e vice-presidente d'esta camara, artigo 21.° da carta constitucional, disposição que fui ampliada, pelo artigo 1.° da carta de lei de 3 de setembro de 1842, aos supplentes á presidencia e vice presidencia d'esta mesma camara. Pelo regimen que actualmente vigora, a romeação dos presidentes e vice-presidentes do supremo tribunal de justiça e das relações judiciaes é feita por disposição legislativa análoga á do artigo 21.° da carta constitucional para, a nomeação do presidente e vice-presidente da camara dos dignos pares do reino. Ora, creio que ninguém duvidará de que, para a nomeação de funccionarios de tão elevada categoria, devemos antes recorrer á legislação relativa á camara dos deputados, á qual competem, como v. exas. bem gabem e já tive occasião do lembrar, as tres principaes iniciativas na vastissima missão de legislar.
Resta-me justificar um preceito d'este projecto: o que determina que em cada uma das secções da tribunaes de segunda instancia haja um juiz que tenha sido lente cathedratico da faculdade de direito na universidade de Coimbra o conte quinze annos de serviço do lente. Póde esta minha proposta significar a minha profunda e gratissima affeição pela universidade, onde tenho a honra de ser professor ; asseguro-vos, meus senhores, que mais significa a

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minha dedicação de sincero respeito pela magistratura judicial da minha terra e a minha intima e constante admiração pela vastíssima sciencia do direito.
As muitas, variadas e importantissimas obrigações dos magistrados judiciaes não lhes deixam tempo, nem attenção para seguir o andamento das legislações civis, commerciaes e criminaes, e de seus respectivos processos, nas mais cultas nações; nem para acompanhar as sciencias juridicas nos seus progressos, em cujo exame é indispensavel especial cuidado. Quantos homens eminentes apresentam em jurisprudencia uma idéa ou lembram uma formula de progresso na apparencia, para fazer triumphar na essencia um interesse ou um capricho! É por isto que para o estudo de qualquer questão de jurisprudencia entendo que é indispensavel especial cuidado.
Ora, pela missão de que officialmente estão encarregados, entendo que lentes da faculdade de direito hão de prestar bons serviços á administração da justiça e á illustração dos magistrados, desde que forem investidos do funcções de elevada importancia judicial.

Este projecto é uma consequencia necessaria e fatal do principio da independencia dos poderes, principio fundamental do direito politico, que não é mais do que a applicação do principio da independencia dos movimentos á politica, a qual é tambem mechanica. Este principio, procamado por Galileu para a natureza inteira, custou a ser implantado e reconhecido para a politica portugueza mais de dois seculos depois; é justo que agora não haja quem opponha obstaculos á sua natural e larga acção.

Projecto de lei sobre nomeação e transferencia dos magistrados judiciaes

CAPITULO I

Primeira instancia

Artigo 1.° As comarcas judiciaes serão divididas em cinco classes, conforme a sua importancia.
§ unico. É o governo auctorisado a fazer esta divisão, devendo dar às cortes conta do modo por que a tiver feito.
Art. 2.° A primeira nomeação de juiz de direito de 5.ª classe será feita pelo ministro e secretario d'estado dos negocios da justiça, sobre uma lista tripla proposta pela respectiva relação judicial para cada comarca.
Art. 3.° A lista tripla será organisada pela respectiva relação judicial, precedendo concurso documental, com votação nominal e publica, em sessão plena de todos os juizes.
§ unico. Será aberto este concurso, com a antecipação que o ministro e secretario d'estado dos negocios da justiça tiver por conveniente para que seja a menor possivel a demora na nomeação de juiz de direito para a comarca de que se tratar.
Art. 4.° Serão condições absolutamente indispensaveis para a admissão a este concurso:
1.ª Ser cidadão portuguez, com esta qualidade nascido ou estrangeiro naturalisado;
2.ª Estar no pleno uso dos direitos civis e politicos;
3.ª Ter cumprido o preceito do artigo 54.° da lei de 27 de julho de 1855, do recrutamento militar, ou remido a penalidade em que tenha incorrido por não tel-o cumprido, conforme o disposto nas leis de 18 de fevereiro de 1873 e 15 de junho de 1882;
4.ª Não estar pronunciado por qualquer delicto ou crime;
5.ª Ter bom comportamento;
6.ª Ser bacharel formado na faculdade de direito pela universidade do Coimbra;
7.ª Estar comprehendido em qualquer das categorias:
I. Lente da faculdade de direito na universidade de Coimbra;
II. Governador civil de districto administrativo, com quatro annos de serviço effectivo;
III. Doutor na faculdade de direito pela universidade de Coimbra, com quatro annos de exercicio na profissão do advogado;
IV. Magistrado judicial ou do ministerio publico do ultramar, com cinco annos de serviço effectivo;
V. Delegado de procurador régio com seis annos de serviço effectivo;
VI. Secretario geral de districto administrativo, com seis annos de serviço effectivo;
VII. Administrador de concelho, com nove annos de serviço effectivo;
VIII. Advogado, com nove annos de exercicio na profissão.
§ único. Esta ultima condição (7.ª) será dispensada para os candidatos que, em mais que um dos cargos publicos n'ella designados ou na profissão de advogado, tiverem tempo de serviço inferior ao fixado para cada categoria respectiva, desde que fôr igual a um ou maior a somma das fracções que representarem a relação entre o tempo de serviço prestado em cada cargo publico ou do exercicio da profissão de advogado e o tempo do serviço exigido na categoria fixada para o mesmo cargo ou para a referida profissão.
Art. 5.° Só não fôr admittido ao concurso algum candidato, com o motivo do faltar-lhe qualquer das condições do artigo immediatamente anterior, o presidente da respectiva relação fará publicar esta decisão em sessão plena de todos os juizes da mesma relação; e desde então, no praso de um mez, poderá ser interposto recurso para o supremo tribunal de justiça ou pelo procurador regio junto á mesma relação ou por qualquer dos candidatos a quem tenha sido negada a admissão ao concurso.
Art. 6.° Da decisão da relação judicial, na organisação da lista tripla por este tribunal proposta, haverá tambem para o supremo tribunal de justiça recurso, que poderá ser interposto, no praso de um mez, por qualquer das pessoas indicadas no artigo immediatamente anterior.
Art. 7.° A promoção da 5.ª para a 4.ª classe será feita em decreto referendado pelo ministro e secretario de estado dos negocios da justiça sobre lista tripla proposta pelo supremo tribunal de justiça.
Art. 8.° As promoções seguintes na mesma instancia serão feitas por antiguidade.
Art. 9.° O juiz de direito de uma comarca só poderá ser transferido para outra da mesma classe em qualquer da tres seguintes casos:
1.° A seu pedido, favoravelmente informado pelas relações judiciaes, a que pertencerem a comarca onde elle estiver a servir e a que elle pretender;
2.° Sobre proposta da relação judicial respectiva, determinada por manifestas conveniências da administração da justiça e approvada em sessão plena e publica de todos os juizes da mesma relação por votação nominal;
3.° Logo que na mesma comarca tiver completado seis annos de serviço.
§ 1.° A proposta da relação judicial para a transferencia de um juiz de direito no segundo caso considerado neste artigo ha de necessariamente ser precedida da audiencia do mesmo juiz.
§ 2.° Da mesma proposta póde o juiz recorrer para o supremo tribunal de justiça; e, se este tribunal, em sessão plena e publica de todos os juizes, e por votação nominal, for contrario á proposta, não será transferido o juiz do quem se tratar.

CAPITULO II

Segunda instancia

Art. 10.° O continente do reino e suas ilhas adjacentes serão divididos em cinco relações judiciaes, duas de 1.ª classe, uma com a sede em Lisboa e outra no Porto; e tres

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de 2.ª classe, uma com a sede em Bragança, outra em Faro e outra em Ponta Delgada.
§ unico. É o governo auctorisado a fazer esta divisão, devendo dar às côrtes conta do modo por que a tiver feito.
Art. 11.° Em cada uma das relações judiciaes de 1.ª classe haverá duas secções; e uma em cada uma das outras.
§ único. Cada secção será composta de sete juizes, alem do presidente.
Art. 12. O presidente de cada relação judicial ser um juiz da segunda instancia, da mesma ou do outra relação, da mesma classe ou de classe superior, com dois annos de serviço effectivo na mesma instancia, nomeado pelo ministro e secretario de estado dos negocios da justiça, sobre uma lista tripla eleita pelos juizes da relação respectiva, em sessão plena de todos os juizes.
§ 1.º Nas relações de 1.ª classe o preside até de cada uma das duas secções será o mesmo, o da relação.
§ 2.° O presidente, nos seus impedimentos, será substituido por um vice-presidente, que será um juiz da mesma relação nomeado do mesmo modo que o presidente.
Art. 13.° Será julgada pelo supremo tribunal de justiça em sessão plena de todos os juizes, no praso de um mez, qualquer reclamação contra a eleição referida no artigo immediatamente anterior, reclamação que só poderá ser interposta por qualquer dos juizes da mesma relação ou pelo procurador regio junto á mesma.
Art. 14.º Dos juizes de cada secção hão de ser seis saidos da primeira instancia e um encolhido entre os lentes cathedraticos da faculdade de direito com quinze annos de serviço de lente.
Art. 15.° Os juizes de primeira instancia serão promovidos á segunda por ordem da antiguidade, logo que o supremo tribunal de justiça, consultado ácerca de cada um d'elles, o tiver julgado digno da promoção, em sessão plena de todos os juizes, por votação nominal, publica e superior a dois terços do numero dos juizes que votarem.
Art. 16.° Os juizes escolhidos entre os lentes cathedraticos da faculdade de direito com quinze annos de serviço de lente serão nomeados pelo ministro e secretario de estado dos negocios da justiça, sobre esta tripla proposta pelo conselho da faculdade.
Art. 17.° Se houver qualquer reclamação contra a eleição d'esta lista tripla, será julgada, no praso do um mez, pelo conselho dos decanos.
§ unico. (Só poderão reclamar contra a mesma eleição lentes da mesma faculdade.
Art. 18.° Os juizes das relações de 2.ª classe serão promovidos para uma das de primeira por ordem cuja antiguidade; mas, querendo, poderão continuar a servir na 2.ª classe, sem perder qualquer direito que a antiguidade lhes dê.
Art. 19.° Os juizes de uma relação poderão ser transferidos para outra da mesma classe só por dois motivos:
1.° A seu pedido; n'este caso tambem poderão ser transferidos para uma de classe inferior;
2.º Por manifestas conveniencias da administração da justiça, sobre proposta do supremo tribunal de justiça, deliberada em sessão plena de todos os juizes e precedida da audiencia do juiz de quem se trata.

CAPITULO III

Supremo tribunal de justiça

Art. 20.° Os juizes de segunda instancia serão promovidos por ordem da antiguidade para o supremo tribunal de justiça, conforme o artigo 130.º da carta constitucional.
Art. 21.° O presidente e o vice-presidente do supremo tribunal de justiça serão norteados pelo ministro e secretario de estado dos negocios da justiça, em carta regia expedida para os juizes do mesmo supremo tribunal e sobre uma lista tripla por elles proposta em votação escripta e assignada por cada um.
Art. 22.º Fica revogada a legislação em contrario.
Sala das sessões da camara dos senhores deputados da nação portugueza, 5 de janeiro do 1886.= Alfredo Filgueiras da Rocha Peixoto, deputado da nação.

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