182 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
Ora, assim como desappareceram já os velhos odios, e vão desapparecendo os ferrenhos antagonismos contra os nossos inimigos, é necessario que desappareçam tambem as complacencias exageradas, a sujeição cega e o apoio decidido a todas as exigencias e caprichos dos nossos amigos. (Apoiados.) A politica das complacencias exageradas em favor dos amigos é parceira da politica do facciosismo contra os adversarios, e uma e outra são por igual funestas á boa orientação dos partidos e á boa governação do estado. (Muitos apoiados.)
Póde ser que n'isto, que venho dizendo, haja uma tal ou qual abjuração de doutrinas antigas, e penitencia por passados erros. Se ha, o que não contesto, dou-me por contente em poder hoje fazer confissão da culpa e protestar mudança de rumo.
O conflicto entre Braga e Guimarães, que ameaça entrar no periodo da irritação febril, teve e tem ainda como estimulante a formula os nossos amigos.
Na sua origem ainda é peior do que isso, porque o plural uca reduzido a um singular pouco agradavel. Em vez dos nossos amigos, achamos, como rasão determinante do procedimento do governo, o nosso amigo. E que amigo!
Não sei muito bem como hei de entrar n'este capitulo especial, que é escabroso. Todavia, necessario é que entre, porque a politica seria uma cousa muito miseravel, se, tendo liberdade para certas fraquezas, não tivesse energia para certas censuras. Procurarei sair de dificuldades com o auxilio de alguns circumloquios.
O sr. presidente do conselho não é um litterato, porque desde a sua mocidade teve de dar-se a estudos de administração publica. Mas o sr. ministro da marinha, que padece muito d'aquella doença, suggeriu-lhe talvez a idéa de fazer na politica uns ensaios de Renascença, como se fez nas bellas artes, e em outros ramos da cultura do espirito humano. Assim como Boito poz a Renascença em musica no seu Mephistopheles, assim o sr. presidente do conselho quiz pôr no governo civil de Braga uma Renascença dos costumes antigos.
Levado por esta ideia, o sr. presidente do conselho despiu a sua farda, sempre correcta, despojou-se da sua sobrecasaca, sempre fidalga, por sentir appetites de se entrajar com a toga dos imperadores romanos. É um traje magestoso.
Houve em Roma um imperador, chamado Nero, que mandou incluir o seu macaco no numero dos deuses.
Outro imperador famoso, Calligula, nomeou o sen cavallo consul. Mas Nero, que era um espirito superior, um grande artista - pelo menos assim o pintam alguns historiadores que se incumbiram caridosamente de lhe rehabilitar a memoria - procedeu assim, certamente por ter uma intuição, ainda que vaga, das doutrinas de Darwin. Sendo o macaco o pae commum dos homens, não ficava mal entre os deuses. (Riso.)
Calligula, que ainda não achou quem o rehabilita-se para a historia, tambem merece desculpas. Porque em sumiria, tanto na antiguidade, como nos tempos modernos, têem sido nomeados consules pachydermes menos nobres do que o cavallo. (Riso.)
(Com vehemencia.)
Mas nem Calligula, nem Nero escolheram para essas exaltações o porco!
(Sensação.)
(Pausa.)
Era isto o que o sr. ministro da marinha (só como litterato que é) devia ter explicado ao sr. presidente do conselho, se s. exa. se deixou dominar pela phantasia de fazer na politica uma evolução da Renascença romana.
Talvez fosse phantasia litteraria. O sr. presidente do conselho, apesar de absorvido em cuidados pela governação publica, não deixa de ler os bons livros. Um dos melhores livros, senão o mais profundo e brilhante, que Victor Hugo escreveu, foi o que tem por titulo William Shakespeare, e que serve de introducção á traducção das obras do grande tragico inglez.
N'esse livro, Victor Hugo falla dos genios, que são, no mundo dos espiritos, como no mundo physico, as grandes montanhas. Todas ellas topetam com as nuvens, estão em contacto com os céus, e conversam com os astros, qualquer que seja a sua estructura e constituição, em qualquer latitude, que estejam situadas. Todas ellas, quando se contemplam de longe, alvejam com as neves eternas, que scintillam, reverberando feixos de luz, que cegam os olhos miseros, e que só as aguias podem afrontar impavidas.
Victor Hugo falla assim de Homero, a poesia immensa, Eschilo a tragedia titanica, Juvenal o látego sibillante, Tacito o ferro em brasa da historia, Dante a epopeia dos espectros, Miguel Angelo a idealisação gigantea da humanidade e de outros. Entre estes, inclue Ezechiel...
O sr. ministro da justiça sorri-se! É que já percebe!
A Ezechiel chama Victor Hugo le porc prophéte, o porco propheta. E diz que elle é sublime, porque ingeria no estomago o que os magnates do seu tempo tinham na alma.
Quiz acaso o sr. presidente do conselho, por uma phantasia litteraria, arranjar tambem para interprete da sua lei, para oráculo dos seus principios, para vidente e guia do seu partido um propheta assim?! Se tinha a immundicie, faltava-lhe o genio!
Oh! Mas a litteratura, com ser uma dama de muito mais pudor e recatos que a politica, tem liberdades e arrojos, que a politica não póde ter.
Victor Hugo podia escrever aquellas palavras, como escreveu outra ainda mais arrojada a respeito de Waterloo; mas o sr. presidente do conselho é que não podia sem desdouro levar á assignatura regia o decreto da nomeação d'aquelle governador civil. (Apoiados.)
O antigo governador civil substituto de Lisboa, demittido... por irregularidades na sua representação exterior, só podia ser propheta em Braga com as trapagens da procissão dos farricôcos; mas, como governador civil, nem em Braga nem em parte alguma. E a nomeação de um tal individuo para um tal cargo é que foi a origem primaria do conflicto que todos deploramos. (Apoiados.)
Detestavel litteratura, e, em todo o caso, depravada politica essa, que suggeriu e resolveu uma tal nomeação!
O que havia a esperar de uma tal auctoridade? Se os precedentes conhecidos, se um desprestigio completo, se uma carencia absoluta do senso moral podem dar garantias de boa administração n'um districto, então mudemos os nomes ás cousas, e refundamos o codigo das leis moraes.
Succedeu o que devia succeder. O governador civil começou por ser um elemento dissolvente entre os amigos politicos do governo, e acabou por ser um instigador da desordem, que originou o conflicto gravissimo, de que nos occupâmos !
E este governador civil, depois de tudo isto, só é demittido porque elle proprio se digna pedir a sua demissão! E pede-a, declarando que procede assim por muito bem o querer, e que o governo ainda demorou por vinte dias a satisfação a este pedido! Não queria desfazer-se de tal prenda! (Riso.)
Elle tinha dito numa carta, celebre como documento de ira dementada, que havia de ser governador civil emquanto quizesse, e que o sr. presidente do conselho preferia perder tudo a perdei-o a elle! Pois esta vergonha, esta aberração, este atrevimento de insania, confirma-se ser uma verdade! Que grande tristeza isto causa! (Muitos apoiados.)
Oh! srs. deputados, aqui ha alguma cousa de extraordinario! (Muitos apoiados.) Estas anomalias, que não estão á altura do governo actual, porque não estão á altura de nenhum governo, só podem explicar-se rasoavelmente por uma causa mysteriosa. Confesso que o meu espirito hesita entre esta explicação, e a que attribue tudo a um