116-D DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
Levantaram-se ao principio grandes clamores, e o paiz em attitude imponente condemnou o monumental desperdicio.
Mas depois tudo serenou. Se um governo e um partido subsidiou desde logo os salamanqueiros com 135 contos de réis por anno, mezes depois outro governo e outro partido, que tinham combatido aquelle esbanjamento, vieram eleval-o ao dobro, auxiliando os salamanqueiros, não simplesmente com 135 contos de réis annuaes, mas sim com 270 contos de réis por anno!
Nos ultimos tempos, nos tempos aureos da politica portugueza até eram presos deputados a ordem dos ministros, e declarava-se que tinham sido presos em flagrante delicto, tendo alias sido capturados com mandado de prisão!
Eu combati sempre, ainda que só, todos os esbanjamentos o todos os attentados contra as liberdades populares.
Não me importava ficar isolado. Pelo contrario mais de uma vez requeri votação nominal para accentuar a minha divergencia dos meus collegas! A unica companhia, que me preoccupava era a da minha consciencia.
Persisto hoje, como sempre, na mesma resolução.
Com este systema das grandes divergencias unicamente nos pequenos incidentes sobre o modo do propor, ou sobre a preferencia da palavra antes da ordem do dia, foi votada, quasi por acclamação, a famosa questão dos tabacos!
As camaras e os partidos, que entregaram a um syndicato mais estrangeiro do que portuguez o monopolio da primeira receita do estado por praso superior a trinta annos para liquidar difficuldades de momento, comquanto accumuladas durante annos, proclamavam que por este modo se endireitavam as finanças do paiz; que ficavam regorgitando de dinheiro as praças de Lisboa e Porto, então assoberbadas por contrariedades de toda a ordem, e que o systema de viver de empréstimos acabava agora: n'uma palavra, que no momento em que nos desembaraçassemos do rendimento dos tabacos tudo caminhava n'um mar de rosas!
Pois, sr. presidente, mal acabou de votar-se esta explendida providencia, que só teve contra si o meu voto e mais um ou dois, era decretada a inconvertibilidade das notas, desapparecia da circulação a moeda de oiro e prata, e declarava-se uma crise que teria produzido as mais graves consequencias, se o panico, natural em taes casos, tivesse invadido o espirito das massas!
Em Portugal, que é e foi sempre, em si, um paiz pobre, n'estes ultimos annos sobretudo não se quiz viver senão a grande!
Temos exemplos e muitos das pronunciadas tendencias dos nossos governos para o esbanjamento.
Do porto de Lisboa, por exemplo, ninguem quiz saber emquanto os engenheiros, e engenheiros especialistas, como alguns inglezes que ahi vieram, calculavam o preço das obras principaes e indispensaveis em 3:000 contos de réis!
Reputava-se tão modesto um projecto de trabalhos que 80 custava 3:000 contos de réis, que nem enviado era a junta consultiva de obras publicas para dar o seu parecer!
Quando veiu outro projecto com o orçamento de 7:000 ou 8:000 contos de réis já se lhe deu andamento nas repartições superiores do estado, e chegou a ir ás camaras!
Mas ahi morreu!
Só quando se poude conseguir um projecto em que se podiam gastar com as obras 15:000 contos de reis, é que o interesse pela construcção tocou os limites do enthusiasmo, e se obteve votação quasi unanime n'uma e n'outra casa do parlamento!
Escuso de fallar na questão da mala real e n'outras questões, igualmente extraordinarias, para demonstrar a minha these de que não ha conflictos nas côrtes geraes por via de questões gravissimas, que podem pôr em perigo as liberdades publicas e individuaes, ou a vida economica e financeira da nação, mas unica e exclusivamente por divergencias sobre o modo de propor ou sobre o uso da palavra antes da ordem do dia.
Quasi todas as medidas, que pozeram em perigo a solvabilidade do thesouro, que nos obrigaram a providencias odiosissimas, que crearam ao paiz uma situação difficil no estrangeiro, foram votadas sem grande reluctancia e por assombrosa maioria.
Os accordos não deixavam romper nem seguir as tempestades politicas.
Mas, sr. presidente, se as dificuldades parlamentares eram de tal ordem que o governo não podia coexistir com a camara, a sua obrigação era demittir-se, visto que, por uma disposição legislativa da responsabilidade de alguns dos srs. ministros, a camara não podia ser dissolvida sem terem decorrido tres mezes de sessão.
Eu porém tenho minhas apprehensões de que a sentença de morte já estava lavrada contra a camara antes do dia dos ultimos conflictos, porque era tão longo o decreto de encerramento nas suas allegações, e devia ter sido tão pensado o encerramento violento das cortes, que não é provavel ter sido estudado e resolvido o assumpto no curto intervallo que mediou entre as ultimas perturbações parlamentares e a data do decreto!
Alem d'isso os srs. ministros desejam viver uma vida tranquilla e commoda!
Incommodam-se com as visitas ás côrtes ainda por mera formalidade!
Preferiam descartar-se de uma camara em que podia haver opposição, fazer uma nova lei eleitoral a sua vontade, e escolher os juizes encarregados de julgar os dictadores.
São gravissimos estes factos. Mas o governo preferia estas responsabilidades platonicas a perder tempo em dar attenção aos representantes do povo.
Tivemos já durante muito tempo o systema das eleições directas como circulos grandes; mas com o concurso unanime de todos estavam adoptados os circulos de um deputado como melhor garantia da liberdade do suffragio.
Os circulos de um deputado não são essencialmente necessarios em paizes como a Franca, a Belgica, a Hollanda, e mesmo a Italia, onde ha partidos organisados e politica definida.
Mas em Portugal circulos de mais de um deputado são em regra circulos do governo.
O decreto eleitoral do 30 de setembro de 1852 é obra dos homens publicos importantes de todos os partidos, que se reuniram em 1851 em seguida a revolução feita pelo marechal Saldanha em volta do governo; pois então ficaram ao lado do ministerio tantos homens politicos quantos eram os inimigos de Costa Cabral.
Passados seis annos, depois da experiencia do decreto de 1852, era o marquez de Loulé presidente do conselho e ministro do reino, quem apresentava um projecto ás côrtes para nova divisão eleitoral com circulos de um, de dois e de tres deputados, sendo a grande maioria - circulos de um só deputado -.
A idéa de circulos de um só deputado tinha amadurecido por tal fórma no espirito publico, que o ministerio seguinte, presidido pelo duque da Terceira, em que entravam Fontes, Casal Ribeiro, Martens Ferrão e Antonio de Serpa, adoptou o projecto do marquez de Loulé, já revisto pela commissão, de que faziam parte homens como Oliveira Marreca e José Estevão, a qual fixara o principio absoluto e uniforme de circulos de um só deputado.
Em 1869 o ministerio Sá Vizeu tambem alterou dictatorialmente as circumscripções eleitoraes para eleger os juizes que lhe haviam de legalisar a dictadura. Houve-se, porém, com mais cerimonia. Não fez circulos por districtos. Fez um circulo que principiava nos Olivaes e acabava no Cadaval. Mas em todo o caso era circulo de um só deputado. Depois nas côrtes levantaram-se todos, amigos e adversarios do governo, contra o procedimento audacioso