198 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
A temporada da pesca foi má, e quando os contratados esperavam a remuneração, a que tinham direito, pelos contratos feitos com conhecimento das nossas auctoridades, foram ameaçados de ser expulsos violentamente da Hespanha, porque estavam atacados de epedemia!
Appareceu ali, ou disse-se ter apparecido, a epidemia do cholera, e os hespanhoes, tentando expulsar os portuguezes, sob similhante pretexto, liquidavam assim rápida e simplesmente os contratos realisados!
O governo portuguez em logar de admittir desde logo o repatriamento regular e successivo, por via dos lazaretos, porque para isso é que elles se organisaram, ou de os receber em massa em Monte Gordo, onde era facilimo isolal-os, e sujeitando-os ali, ou em Sagres, a um regimen quarentenario mais ou menos aturado, mas sob a vigilância directa das auctoridades pátrias, preferiu conserval-os em Hespanha, a menos de alcance de tiro de espingarda da nossa fronteira, sob a tutela das auctoridades consulares em conflicto, e á mercê de todas as exigencias da exploração a que aquelles infelizes têem servido de pretexto.
Diz-se n'uma carta, que tenho presente, que aquelles desgraçados, que estão ha cinco mezes sem recursos, se lhes dá para sustento 10 réis de aguardente de dois em dois dias a cada um, e de comer de vinte em vinte horas. «Muitas das vezes quando nos vem dar o alimento já nós estamos desfallecidos!»
Para cozinharem toem que ir apanhar á costa bocadinhos de cortiça para fazer lume; finalmente, uma parte foi alojada num enorme armazém, que serve para deposito e salga de peixe, e outros em choças immundas, quasi ao desabrigo, sem nenhuma das condições hygienicas necessarias para fazer debellar o mal real ou fictício, que os obriga a permanecer ali.
Os que ainda tinham alguns recursos, acodem, como podem, às suas necessidades, e alguns se toem repatriado, entrando por Badajoz, sem que a epidemia nos invadisse, comprando os passes pelo preço desde 7 a 25 reales! Outros toem tentado atravessar o cordão sanitario; e n'uma das noites do mez passado, as vedetas de Monte Gordo tiveram de disparar, disseram-me, cerca de trezentos tiros sobre umas embarcações que conduziam esses infelizes, que a final são nossos compatriotas, e que, torturados por tanta miséria, procuravam regressar á pátria, ao seio da sua familia, e ao trabalho de que viviam nas suas terras. As canhoneiras de guerra no rigoroso cumprimento das ordens superiores, o nem melhorias de vencimentos, que outros percebem, dão-lho caça como a piratas; as forças de terra fazem fogo, como a inimigos, sobre esses infelizes, que de joelhos levantam as mãos pedindo soccorro com o desespero dos famintos.
E têem fome aquelles desgraçados!
Consta-me, que o commandante de uma das canhoneiras do serviço do cordão sanitario, tendo de intimar a uns foragidos que retrocedessem,, ou que os metralhava, elles do joelhos e levantando as mãos supplices, lhe responderam que tinham fome; esse official, sem quebrar a observancia da sua penosa missão, não hesitou um momento, e bem haja, em mandar-lhes lançar por cima da borda uns saccos com bolacha, a que elles se lançaram sofregamente! E este estado de cousas continua, talvez para justificar as excessivas despezas e extraordinarissimas gratificações de duas e tres libras por dia a diversos empregados, que em grande numero passeiam por Lisboa e pelo paiz. (Muitos apoiados.)
E depois d'isto não querem ouvir dizer que BC esbanjam os dinheiros públicos!
O regulamento geral de contabilidade publica, diz, que o governo é responsável pelas despezas que não satisfizerem a todos os preceitos legaes. Onde está a legalidade com que se auctorisam gratificações exageradissimas?! Os desgraçados que vivem do seu trabalho, que têem de ganhar o pão de cada dia, trabalhando de dia e de noite, porque o serviço da pesca a isso os obriga, esses desgraçados não toem podido alcançar o patrocínio, nem das associações commerciaes, nem dos poderosos bancos ou de dinheirosos patronos, que reclamem do governo, que acabem, ou que ao menos se modifiquem esses rigores sanitarios de incommunicabilidade, que vão tão longe, que nem a correspondencia de Hespanha póde atravessar o rio, e vir soffrer beneficiação no lazareto, e que dando a volta por Badajoz, gasta cinco dias de Ayamonte a Villa Real, que pouco mais distam entre si que 1 kilometro!
Diz-se que as medidas sanitárias foram reclamadas pela opinião publica, e essa foi a defeza do governo no anno passado, quando apresentou á camara as medidas dictatoriaes de que usou para esse fim. Mas a opinião publica começa a manifestar-se contra estes rigores. São os próprios jornaes do governo que o dizem, como passo a demonstrar lendo á camara alguns trechos d'esses jornaes. Por exemplo, o Jornal do commercio:
«... Não têem caracter permanente as despezas que somos os primeiros a pedir que cessem, ou que só moderem como as do cordão sanitário e de outras providencias que reputamos inefficazes e desnecessarias.
Um outro jornal diz também sobre o mesmo assumpto:
« ... curioso seria tambem ver, por quanto ficava ao paiz, só em despezas ordinárias, não fallando nos prejuízos causados ao commercio e ao paiz, e que são incalculaveis, cada dia deste regimen quarentenario nos portos e fronteiras.»
Quer a camara fazer uma pequena idéa dos prejuízos materiaes, que esto regimen tem causado? Vamos ainda á industria da pesca, visto que se trata de pescadores. Uma companhia de exploração de pesca, a única que publica as suas contas, porque é uma associação com estatutos, dá-nos um movimento em 1885 igual ao de 1884, mas com um prejuízo de mais de 30 por cento. Este prejuízo da companhia reflecte-se respectivamente nas percentagens das companhas, e bem assim nos rendimentos da fazenda publica com a diminuição do imposto do pescado e seus addicionaes, e o que se diz com respeito a uma, succede igualmente com as restantes.
Ainda outro caso. O imposto do pescado, que em Quarteira, por exemplo, rendeu no anno de 1884, mais de 2:000$000 réis, o anno passado rendeu apenas 1:600$000 réis, apezar de ter augmentado o numero das emprezas de exploração de pesca.
E porque? Por causa da incommunicabilidade com o reino vizinho, que é o principal mercado d'aquella industria, reflectindo-se estes prejuizos nos pescadores, pela diminuição das suas percentagens, nos armadores, pelo pouco lucro dos capitães empregados no material das armações, e na fazenda publica pela diminuição dos respectivos direitos.
Desde fins de novembro não consta que tenha havido caso algum de cholera, ou de moléstia suspeita entre os pescadores portuguezes, que se acham em Hespanha e nas povoações visinhas.
Os jornaes até já disseram, que se tinha celebrado um Te Deum em acção de graças pelo desapparecimento da epidemia.
O que significa, pois, a continuação das medidas de extremo rigor?
Quando pensará o governo tomar providencias sobre este assumpto? Quer a camara saber qual foi a resposta que obtive na secretaria às minhas solicitações particulares? Que não se sabia qual era a capacidade dos lazaretos de Eivas e de Villa Real para receberem os quarentenarios, quando estes lazaretos existem organisados ha mais de oito mezes!
Quando foi ouvida a junta de saúde sobre o regimen repressivo, por que se não pediu logo a parte complementar, indicando, em que condições de decrescimento da