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Esperavam o sr. Sant'Anna milhares de pessoas no caes I da Madeira. Era um filho que queria abraçar seu pae e a sua familia, que queria entrar na sua casa, onde ha mezes não entrava, e que já via a pouca distancia. Pois não lh'o deixaram; e não lh'o deixaram pela impunidade da auctoridade administrativa; não consentiram que elle abraçasse a sua familia. E talvez fosse pela ultima vez, porque esses acontecimentos impressionaram um homem já de bastante idade, e aliás respeitabilissimo, o sr. visconde das Nogueiras; e quem sabe se esses successos a esta hora o terão já levado á sepultura!
Eu peço portanto os documentos, pelos quaes se prove que o governador civil d'aquelle districto deu um unico passo tendente a facilitar ao sr. Sant'Anna a entrada em sua casa. Cubriu-lhe a retirada, e não fez pouco, diga-se em boa verdade, porque as cousas chegaram a esse ponto; mas não ha documento nenhum, repito, que prove que se lhe facilitou a entrada em sua casa, que se lhe garantiu a segurança de ir ao menos ver a sua familia!
E, antes de continuar esta narração, devo dizer a v. ex.ª e á camara, como acto de respeito e homenagem a um collega nosso que esta presente, e que julgo ser irmão ou parente muito proximo do actual governador civil da Madeira; devo dizer que, individualmente, eu tenho pelo irmão do nobre deputado todas as attenções que se devem ter com cavalheiros muito respeitaveis, e a quem não se é devedor senão de muitas attenções e consideração. Eu porém não trato de pessoas, trato de auctoridades. A pessoa do sr. governador civil d'aquelle districto póde ser aliás prestavel para muitas cousas, e é-o de certo, mas para governador civil da Madeira, nas circumstancias actuaes, nas circumstancias mesmo em que foi nomeado, parece-me que a escolha foi pouco feliz.
Mas continuemos. No dia 8, ás dez horas da manhã, o tal grande numero de pessoas que se tinha reunido para ouvir a satisfação que o governador civil tinha indicado, recebeu, como todos sabem, o sr. Jacinto Sant'Anna, que chegava pacificamente á sua terra. As cousas subiram a ponto que foi necessario mandar fazer fogo sobre o povo! Devia ser cousa muito custosa, muito dura; dura para quem o mandou e dura para quem o executou!
O regimento que esta na Madeira, caçadores n.° 12, é todo formado de individuos d'aquella ilha, portanto em grande parte eram filhos atirando contra paes, irmãos contra irmãos, parentes contra parentes. Obedeceu o batalhão, porque não podia deixar de obedecer. Foram 5 os feridos, 2 morreram pouco tempo depois, 1 morreu um pouco mais tarde, aos outros 2 não sei o que succedeu.
Os que morreram primeiro tiveram um acompanhamento funebre aliás muito respeitavel, fechando o préstito a primeira auctoridade administrativa do districto) Não acho n'isto nada que possa ser censurado; mas que diria aquelle governador civil, que vénias cantaria á beira da sepultura daquelles dois extremados campeões, que tinham perturbado a paz do districto? Que diria elle em elogio daquelles dois cidadãos? Que diria? Teceu-lhes o elogio funebre naturalmente, esquecendo-se que fôra elle quem os tinha mandado metralhar em virtude da sua triste missão!! Aqui temos pois a primeira auctoridade administrativa de um districto fazendo assim a apologia de dois desordeiros! Que triste exemplo, que deploravel incitamento para os mais correligionarios daquelles dois, para todos os que estavam no préstito!!!
Acabaram as honras funebres, desceram os dois corpos á terra, e sabe v. ex.ª onde foram d'ali? Toda aquella gente, porque as lagrimas seccaram em breve, continuou na sua vida tumultuosa, continuou nas suas excursões com foguetes e musica; e no dia seguinte áquelle em que o sr. Sant'Anna saíu da Madeira, foi cumprimentar o candidato que se propunha, dando-lhe os parabens por se ver livre d'aquelle competidor. Foi essa mesma gente que em seguida procurou a casa do parocho da freguezia de S. Luiz, arrombando-lhe as portas, espesinhando e cortando tudo quanto era possivel cortar no seu passal.
Para não cansar a camara, passarei em claro muitas cousas que occorreram desde este celebre dia 8 até ao dia 15 de março.
No dia 15 de março houve um tumulto em Porto Moniz, é uma terra d'aquella ilha, mas note v. ex.ª e a camara que os auctores d'esse tumulto foram um irmão do administrador, um empregado da administração, e um escrevente de fazenda; e levaram a sua audacia a ponto de forçar a casa de um velho cidadão, aliás muito respeitado, tio do nosso antigo collega o sr. Antonio Gonçalves de Freitas, e do sr. Pedro Gonçalves de Freitas, que se acha presente, obrigando-o a acompanha-los, a dar vivas a quem elles queriam, a pagar-lhes aguardente, e a viver n'aquella vida desregrada em que andavam elles todos, sendo aliás certo que ninguem decentemente podia andar em companhia de similhante turba, ou da maior parte d'ella.
Salto do dia 15 para o dia 27, mas não julgue a camara por isto que a ilha esteve em socego durante esse tempo; faço-o, para não cansar a sua "attenção.
No dia 27, um dictador que se arvorou naquella ilha, correligionario politico do sr. governador civil, um homem que se chama Estrella, estrella funesta que seguia o sr. governador civil, um barqueiro que vivia do seu trabalho, foi á praça, e obrigou os donos de cereaes a vende-los pelo preço que elle lhes impoz! Não ía só, levava o acompanhamento do costume; e o sr. governador civil tambem não tardou, veiu logo garantir aos compradores com a sua palavra honrada o preço que tinha sido imposto ou taxado pelo dictador.
No dia 28 as cousas deviam continuar da mesma fórma, appareceu o mesmo homem na praça do peixe, e taxou o preço por que o peixe devia ser vendido. Reagiram os vendedores, como era natural, mas ameaçou-os logo com um foguete, que era o signal convencionado para acudirem todos os seus satélites, e os pobres resignaram-se.
No dia 31, o mesmo dictador com os seus numerosos companheiros prepararam-se para ir á freguezia de Santo Antonio obrigar o parocho a sepultar uma mulher de graça! Já V. ex.ª vê que elles se occupavam de tudo. N'um dia eram os cereaes, no outro o peixe, no outro os enterros! E n'esse mesmo dia á noite em todas as ruas da cidade do Funchal eram levantados vivas ao candidato que queriam, cavalheiro aliás muito respeitavel.
No dia 1 de abril, dia memoravel para Camara de Lobos, uma villa daquella ilha, entenderam os homens da terra que tambem lhes competia marcar o preço por que se devia vender o peixe na praça, seguindo n'isto o exemplo que a cidade lhe havia dado. Aos vendedores não agradou esse preço, e revoltaram-se; a consequencia foi estabelecer-se uma luta entre elles, da qual resultaram alguns ferimentos bem notaveis! Note v. ex.ª que ainda não fallei em procedimento da auctoridade, porque o não houve!!
No dia 4 de abril houve tumultos em Machico, outra villa da ilha. Aqui abandonou-se tudo; o escrivão de fazenda e muitas pessoas decentes fugiram para a cidade, porque suppunham que onde estava a auctoridade estava a segurança; mas chegando á cidade obrigou-os o centro a voltarem para o mesmo sitio.
No dia 12, dia notavel para S. Vicente, deram-se morras a tudo, e vivas ao sr. D. Miguel II.
No dia 15, em Sant'Anna, ás horas do dia, diante de toda a gente e entre grandes vozerias e tumulto queimaram o retrato da senhora D. Maria II, que foram tirar á casa da camara, onde eu o tinha visto quando lá estive.
Sr. presidente, n'uma galeria de retratos dos nossos réis de mais moderna data falta agora um, que foi queimado impunemente na villa de Sant'Anna no dia 15 de março! O sr. ministro do reino não sabia isto, porque se o soubesse, faço-lhe essa justiça, não consentiria de certo que deixasse de haver o mais pequeno procedimento contra estes vandalos que queimaram o retrato de uma Soberana respeitavel, e cuja memoria se não ha de nunca extinguir no coração dos portuguezes (muitos apoiados).
Raiou o dia 19, que era o dia das eleições, e para chegar a ellas é que se tinham preparado todos estes tumultos; porque, sr. presidente, para o triumpho dos candidatos do governo a desordem era necessaria; porque era apenas por ella que se podiam pôr no esquecimento os nomes dos cavalheiros que tinham prestado serviços áquella terra, e apoiar individuos que não eram conhecidos, e que ainda não tinham posto o seu desinteresse e a sua dedicação á prova, como aquelles que guerreavam.
No dia 19 de abril, em que se deviam fazer as eleições, não se poderam ellas fazer em Ponta do Sol; mas em toda a parte triumpharam os candidatos do governo. Os tumultos foram contraproducentes. O povo exigiu, e com muito boa rasão, uma declaração das auctoridades, em que lhe assegurasse que, votando nos candidatos ministeriaes, nunca mais pagariam tributos. Exigiram esta declaração, porque isto tinha sido dito por editaes.
Creio que na secretaria do reino devem existir, e se não existem, devem exigir-se os editaes que se aí fixaram nas povoações ruraes da ilha.
Isto é um facto. A auctoridade administrativa promettia que nunca mais pagariam impostos se os eleitores votassem nos candidatos ministeriaes; e isto dizia-se sem auctorisação do governo, mas em todo o caso com uma certa responsabilidade, da qual o governo lhes deve tomar conta.
Note a camara que os habitantes da Ponta do Sol não se fiaram em editaes, e exigiram da auctoridade administrativa uma garantia de outra ordem, em que lhes assegurasse que nunca mais pagariam impostos se votassem nos candidatos do governo. Queriam um documento mais authentico; mas a auctoridade não lh'o deu; e sabem V. ex.ª e a camara o que resultou? Foi não haver eleição, e o candidato do governo perder toda a popularidade. Quebraram a uma, a mesa e tudo; já não queriam deputados, visto que da eleição de deputados lhes não resultavam os beneficios que se lhes haviam promettido.
Foi este dia, note a camara que é p dia 19 de abril, o primeiro em que a auctoridade administrativa se mostrou energica; primeiro dia em que houve, não sei se auto de investigação, mas prisões; o primeiro em que a auctoridade entendeu dar um passeio ás povoações ruraes, para deixar a cidade do Funchal completamente desamparada de toda a segurança. Partiu pois para a Ponta do Sol, e levou 60 homens, uma peça de artilheria e 6 artilheiros. Foi, mas julgo que já não chegou a tempo de fazer vingar a eleição, porque chegou lá de noite e muito de noite. No dia 20 fez prisões, e no dia 21 appareceram os primeiros presos na cidade do Funchal.
Notem V. ex.ª e a camara, desde janeiro ate 19 de abril não houve um unico procedimento. Morreram dois individuos metralhados pela tropa, porque assim foi necessario, não se investigou quem foram os cabeças de motim, e a ninguem importou saber quem tinha levado as cousas ao ponto de se fazer fogo contra o povo.
Repito, no dia 21 entraram na cidade do Funchal os primeiros presos, em numero de 28; não sei como se passaram as cousas na Ponta do Sol, mas julgo que se não levantou nenhum auto de investigação.
Eu não dou credito senão a um certo numero de cartas, não faço uso de todas, mas dizem-me que as prisões foram feitas sem auto de investigação, e prenderam-se 28 não obstante a auctoridade administrativa ter sabido, no canto do seu gabinete, que apenas tres ou quatro individuos tinham sido os culpados de quanto succederá.
Sinto ter vindo tão tarde dizer estas cousas ao sr. ministro do reino, porque estou certo que se s. ex.ª tivesse conhecimento de todos estes tumultos, faço justiça á inteireza do nobre presidente do conselho, não teria deixado a ilha tanto ao desamparo, limitando-se a mandar uma corveta de guerra saber noticias, quando é certo que ellas poderiam aqui chegar muito antes pelo paquete da carreira.
A corveta não me consta que levasse nenhuns soccorros; a corveta não foi mais do que fundear airosamente em frente dos castellos da ilha; colheu algumas noticias, trouxe-as, e ficou o negocio concluido.
Daquella terra teve de fugir o sr. Jacinto Sant'Anna, n'aquella terra ficaram inhibidos de entrar tambem os dois srs. deputados, Pedro Gonçalves de Freitas e Freitas Branco, que estavam em Lisboa, e só por suppor que tinham ido na corveta, foi muita gente ao caes espera-los, para lhes fazer, talvez, o que fez ao Sant'Anna. D'aquella terra teve de fugir o bispo da diocese!
Corria perigo a vida do illustre prelado, ancião respeitabilissimo, e amado por todos os seus diocesanos; corria, e por isso teve de fugir da diocese, e deixar a cadeira episcopal para se refugiar em Lisboa.
E não se diga que o prelado veiu para tratar da sua saude. Não se diga, porque antes d'elle vir chegou á secretaria da justiça um officio, no qual s. ex.ª annunciava a sua saída d'aquella ilha, porque não tinha segurança individual, e porque ainda mesmo que quizesse arrostar, com as suas cans venerandas, os furores do povo, não poderia livrar a mitra do enxovalho que lhe queriam fazer.
No paço episcopal tinham já deitado dois foguetes pelas janellas dentro, e na praça da Constituição tinham sido lidas umas proclamações em que era desacatada a primeira auctoridade ecclesiastica da diocese.
Teve prudencia, quiz guardar intacta a sua posição, e se me negarem isto, estou certo que não negam...
O sr. Ministro do Reino: — Nego eu.
O Orador: — Então peço a v. ex.ª que traga á camara o officio em que o bispo do Funchal annunciava a sua vinda para aqui.
O sr. Ministro do Reino: — Esta mal informado.
O Orador: — Peço perdão. Uma vez que v. ex.ª nega...
O sr. Ministro da Justiça: — Nega-o elle tambem.
O Orador: — Pois eu declaro a w. ex.ªs que foi elle mesmo que me disse que lhe tinham deitado dois foguetes pelas janellas dentro...
O sr. Ministro do Reino: — Foguetes para um 2.° andar... Eu explicarei isso.
O Orador: — Duvido muito que v. ex.ª me possa provar que a direcção dos foguetes foi casual, porque foram deitados pelos mesmos individuos que fizeram a leitura das proclamações, pouco respeitosas para s. ex.ª, na praça da Constituição.
Ligue V. ex.ª os factos anteriores aos posteriores, e verá que não se póde attribuir ao acaso a direcção dos foguetes. Tambem não insisto n'este ponto, isso para mim é secundario; mas ninguem dirá que as proclamações, em que era menos respeitada a auctoridade episcopal, foram tambem innocentes e sem significação.
Attribuam-se estes factos a que se attribuir; eu estou persuadido de que o sr. ministro do reino não tem perfeito conhecimento de muitos d'elles.
Eu, sr. presidente, tinha tenção de annunciar uma interpellação ao sr. ministro do reino, e eu vou dar a v. ex.ª a rasão por que o não fiz.
O vapor americano, chegado hontem ao porto, trouxe taes noticias do estado em que se acha a ilha, que me pareceu urgentissimo levantar hoje esta questão na camara, para pedir a s. ex.ª reparação para todos estes factos, ou pelo menos, que é a parte principal, garantias de segurança para os habitantes d'aquella ilha.
O governador civil foi á Ponta do Sol, como já disse, com 60 homens, 1 peça de artilheria e 6 artilheiros; constou-lhe que em S. Vicente havia grandes tumultos, teve medo, e requisitou toda a tropa que havia na ilha.
O sr. Camara Leme: — Teve medo?!
O Orador: — Quando me expressei d'este modo não quiz dizer que era medo pessoal, não foi essa a minha intenção; mas não se achou rodeado de força sufficiente para ir arrostar com o numero dos desordeiros, que provavelmente era grande, e requisitou, como já disse, quanta tropa havia no Funchal.
O sr. Ministro do Reino: — Isso não é assim.
O Orador: — Hontem vinha isto em quasi todas as cartas da Madeira, não só nas minhas, mas nas de muitas outras pessoas.
O sr. Ministro do Reino: — Não é exacto.
O Orador: — V. ex.ª ha de ter os documentos.
O sr. Ministro do Reino: — Tenho-os, e ter-me-iam acompanhado se tivesse sido prevenido competentemente.
O Orador: — Peço perdão; mas eu é que não podia annunciar esta interpellação no gabinete do sr. ministro.
O sr. Ministro do Reino: — Podia e devia annuncia-la aqui antes de a verificar.
O Orador: — Mas não será exacto que o governador civil requisitou toda a tropa que havia no Funchal?
O sr. Ministro do Reino: — Não é exacto.
O Orador: — V. ex.ª é digno de todo o credito, mas as cartas particulares dizem o contrario.
O sr. Ministro do Reino: — Tenho as participações officiaes, e têem-as o sr. ministro da guerra.
O Orador: — Eu estou persuadido de que v. ex.ª não tem sido enganado, porém não lhe têem contado tudo. A tropa foi para a Ponta do Sol com o governador civil, e a cidade ficou entregue aos mesmos tumultuosos que tinham incommodado toda a gente. Quem ficou fazendo a policia do Funchal foram os empregados do hospital. Tem-se lá hoje mais confiança na ronda do hospital do que nos soldados, porque