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APPENDICE Á SESSÃO N.° 19 DE 3 DE FEVEREIRO DE 1896 186-A

Discurso do sr. deputado Eduardo Cabral que devia ler-se a pag. 160 da sessão de 1 de fevereiro

O sr. Eduardo Cabral: - Sr. presidente, pedi a v. exa. a palavra na sessão transacta, porque queria tambem mandar para a mesa uma proposta analoga á do meu collega o sr. deputado Boavida, que a camara acaba dignamente de approvar por acclamação.

A minha proposta era concebida nos mesmos termos e apenas continha o seguinte additamento "que esta expressão de condolencia fosse não só transmittida á familia do illustre extincto, mas tambem ao Instituto Pasteur, que celebra e commemora as virtudes e sciencia daquelle grande e benemerito vulto".

Precederam-me na commemoração feita a Pasteur, o sr. deputado Boavida e o meu illustre amigo o sr. Aarão de Lacerda; fizeram-no s. exas. em termos rapidos, mas vehementes. Eu, porém, que de ha muito trazia no meu espirito o luto d'esta morte, como s. exa. o sr. ministro do reino póde testemunhar, eu, que trazia no meu pensamento a intenção de convidar a camara a associar-se a este acto de dignidade e de sentimento, não posso furtar-me a este dever, que não só me impõe a minha profissão, mas que me é ditado pela memoria que tenho do carinho, da singeleza, da candura e do interesse, com que Pasteur tratava aquelles que iam beber a sciencia no seu laboratorio, que foi o presepio, a Bethelem, onde, pela primeira vez, brilhou a estrela dessa nova sciencia, que elle creou, a bacteriologia.

Impõe-me tambem esse dever - porque não dizel-o? - o facto de ter um logar nesta casa. Parece-me, que uma camara que se lisonjeia de moldada em novas formas, uma camara, que se ufana de representante das forças vivas do paiz, e na qual avulta, principalmente, o elemento industrial e agricola, não se desdenha, não se rebaixa, ao contrario, cumpre a sua missão prestando as suas homenagens ao sabio, que estudou a doença dos vinhos, dos vinagres; ao homem que salvou a industria da seda, a Pasteur, que igualmente salvou a industria pecuaria, periclitante em Franca, com a descoberta da vaccina da carbunculose.

Vale a pena contar o facto.

A França, essa valente e generosa nação, que tão galhardamente guarda, e sustenta a nobre tradição intellectual e o primado scientifico moderno da raça latina, acabava de pela ambição louca de um imperador e pela fraqueza inepta de um governo, ser lançada nas germonias de um caminho, ao cabo do qual as ovantes aguias germanicas ergueram as forças caudinas, sob as quaes teve de passar o velho espirito gaulez. (Apoiados.)

A esta desventura, a mais cruciante para a dignidade de um povo, aos sacrificios exigidos pela Allemanha para a obtenção da enorme, montanha de oiro - a contribuição de guerra - veiu juntar-se a crise agricola manifestada pela mortandade dos seus rebanhos.

N'esta afflictiva conjunctura a França appellou para a sciencia e patriotismo dos seus sábios. E não foi illudida neste appello, porque Davaine e Toussaint metteram com affinco hombros á empreza.

Aquelle chegou á descoberta de uns filamentos vivos no sangue dos bois carbunculosos, a bacteridea, causa da doença; este esforçou-se em balde por encontrar no dominio da chimica modo de attenuar a virulencia da bacterides.

Foi então que Pasteur, para o qual ainda não havia sequer raiado o diluculo da sua gloria, tomando as experiencias de Toussaint e estudando as condições biologicas da bacteridea, encarando o problema pelo lado da physio-chimica e não exclusivamente da chimica, como até antes d'elle se fazia, achou o remedio da terrivel doença depauperisadora da riqueza economica da França, com a descoberta portentosa da vaccinificação do virus carlunculoso.

Calcula-se, que Pasteur com este seu achado scientifico ganhara para a França quantia igual aos tres milhares com que a Allemanha a vexára, imaginando anemial-a por largos annos.

Eis-aqui, sr. presidente, como uma nação, pelo unico esforço e saber de um homem resurge e se levanta dos escalabros devidos á guerra mais temerosa, que a historia regista.

Eis-aqui como a sciencia de Pasteur póde mais em favor da sua patria, que as armas dos seus soldados, os canhões das suas tropas e a coragem dos seus generaes. (Apoiados - Vozes: Muito bem )

Dizia eu, pois, que pelas rasões expostas a esta camara, mais que a qualquer das que têem gerido os negocios publicos do meu paiz incumbe o dever de honrar a memoria de Pasteur. (Apoiados.)

Tenho ainda a incitar-me n'este proposito, alem dos motivos de coração, que já referi, o exemplo do que se praticou em todos os parlamentos do mundo culto, que celebraram alevantada e dignamente o infausto passamento, que orphanou a sciencia e a humanidade, roubando áquella um dos seus maiores nomes, e a esta a individualidade mais benemerita de todas as que até hoje têem figurado na vasta, santa e fulgida galeria do Bem e do Altruismo.

Uma camara em que, tão ao invez das suas congeneres, o elemento politico e bixrocratico está n'uma espantosa minoria perante o elemento commercial, agricola e industrial, enaltece-se e eleva-se, enaltecendo e elevando a memoria de Pasteur, e tem a corroboral-a n'este caminho a opinião do illustre publicista belga Laveleye, que no seu estudo sobre o Regimen Parlamentar e Democracia affirma que, o que principalmente assegura o triumpho da politica liberal, é a applicação da sciencia á industria. Ora, ninguem como Pasteur realisou este desideratum tão larga e profundamente.

Apesar de nunca ser tarde para celebrar a gloria de um genio e para cumprir um dever, permitta, sr. presidente, que eu muito perfunctoriamente exponha-as rasões, que me impediram de não ter mais cedo tratado este assumpto, como desejava.

Nas primeiras sessões d'esta camara compartilharam os seus representantes da alegria e do enthusiasmo, que electricamente se apoderou de todo o paiz ao serem conhecidos os feitos epicos, a intemerata coragem e a tradicional bravura dos nossos valentes soldados nas plagas africanas.

O sopro da gloria, que através os tempos tantas vezes agitou o ovante pendão das quinas, continuou a fazel-o ondular nos inhospitos climas africanos.

Após um negro periodo de amarguras e de desesperos veiu a campanha de Africa, qual balsamo lenitivante dar-nos conforto e energia. (Apoiados.)

Na atmosphera de desconfiança que de ha muito envolvia o paiz, começava de rasgar-se uma nesga do azul, devido ao sol brilhantissimo da esperança, que o successo das armas d'esse punhado de heroes dava a uma nação inteira.

Parecia que se renovavam as colossaes e homericas epopêas da nossa antiga historia, tanta era a alegria, do paiz, tanta a satisfação da camara. (Apoiados.)

Não quiz eu, no meio d'esta festa, em que todos os corações vibravam de santo contentamento, em que todas as vozes entoavam justas hossanas ao nosso exercito, em que todas as mãos procuravam engrinaldar as frontes dos nossos valentes com o anadema dos heroes, não quiz eu pôr a nota triste de uma funebre commemoração.

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186-B DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Seguiu-se depois outra sessão, em que se honrou a memoria e os actos de illustres homens politicos, antigos membros d'esta camara, onde a sua saudosa memoria ha de sempre permanecer, porque a sua falta é aqui insubstituivel, como o é a sua acção politica no resto do paiz.

Com este luto nacional, com esta dôr tão intima, com esta homenagem tanto da nossa casa, não quiz eu vir misturar o luto estranho, embora se tratasse de um vulto tão grande, que não enche só uma enorme nação, enche toda a humanidade.

Após isto veiu a impiedosa doença impedir-me daqui comparecer por muitas sessões, e eis, sr. presidente, n'uma rapida exposição, os motivos, que fizeram com que eu só hoje possa aqui levantar a voz em homenagem ao grande sabio a quem a França concedeu as honras civicas de exequias nacionaes.

Não teve Pasteur, como Tasso, como Victor Hugo, como Zorrilla e como ha pouco João de Deus, a ventura de assistir á sua apotheose em vida, ao ensaio geral das suas exequias, na phrase do maior poeta da França e direi mesmo do mundo no presente seculo.

Não lhe fizeram essa justiça os seus contemporaneos, e não lh'a fizeram, porque se a sciencia é a resultante do sentimento humano, a poesia é a base, a essencia d'esse mesmo sentimento. (Vozes: - Muito bem.) Já Taine dizia: "a arte tem de especial o ser ao mesmo tempo superior e popular, manifestando o que ha de mais elevado nas cousas e manifestando-o a todos."

Por isso, a poesia, requintada manifestação da arte, empolga, fascina e arrasta as multidões, que deslumbradas, collocam os poetas na euthanasia dos deuses, ao passo que, pelas condições de mentalidade e de mesologia d'este fim de seculo, pouco se preoccupam com os problemas philosophicos e com a paixão dos sabios pelas cousas infinitamente pequenas, embora de resultados scientificos e praticos infinitamente grandes, mas pelos quaes ellas se não interessam, porque esses resultados são colhidos no recinto obscuro e modesto dos laboratorios, não por processos brilhantes, que se imponham á sua admiração, mas por processos complexos e fastidiosos, que ellas não comprehendem, embora o alvo d'estes esforços seja o bem estar d'essas multidões.

Aproveitam em seu beneficio a actividade e intelligencia d'esses obscuros e indefessos trabalhadores e não poucas vezes os lapidam em vida e até desconsideram na morte.

Não quero com isto significar, que o povo de hoje seja melhor ou peior do que o de outras eras, nem que o pessimismo moderno de Schopenhauer valha mais do que o optimismo antigo de Pangloss, mas apenas accentuar o facto triste e verdadeiro da tardia justiça feita na morte umas vezes, outras nem mesmo então aos obscuros e corajosos cavouqueiros do edificio da sciencia, cujas conquistas, em favor da humanidade, são, não raro, ganhas á custa da propria vida.

Não podia, pois, Pasteur excepcionar-se a esta commum lei, e como succede ás arvores colossaes, a que só depois de abatidas se póde avaliar a gigantesca corpulencia, assim succedeu a Pasteur, que só depois do seu passamento se podesse bem medir a grandeza scientifica do gigante sabio. Assim como aquellas deixam na floresta uma larga clareira, assim este deixou na sciencia um vácuo talvez nunca mais preenchido. (Apoiados.)

Eu não venho aqui fazer o elogio historico e biographico de Pasteur, porque para isso não tenho envergadura. Para fallar de um colosso só uma aguia. Não me esqueço de que não estou n'uma academia, mas na camara dos senhores deputados e que por isso devo ser breve, ainda que os echos d'esta casa (se eu o não fosse, e para isso tivesse competencia) não se molestariam, nem estranhariam, porque muitas vezes foram aqui acordados pela palavra quente e burilada de distinctos oradores, celebrando as acções e dotes de muitos academicos e homens de grande marito, mas que não tinham a fidalga vida scientifica de Pasteur. (Apoiados.)

Foi nas pugnas vehementes, e para sempre rememoradas nos annaes da sciencia, ácerca da geração espontanea, que o nome de Pasteur, já muito conhecido pelos seus trabalhos de chimica molecular, começou de ganhar a celebridade, que mais tarde o havia de aureolar, canonisando-o santo no céu da sciencia.

Tinha então Pasteur trinta e nove annos e achava-se á frente do grupo panspermista que atacou a geração espontanea, defendida pelos heterogenistas, sob a conducta de Gabriel Pouchet e Soly, dois grandes chimicos.

A questão, transportada para a academia, foi ali affincadamente controvertida e por esta resolvida em favor de Pasteur, a quem foi concedido o grand prix em 29 de dezembro de 1862.

No anno seguinte foi a questão renovada pelo notavel sabio Mantegazza, e Pasteur, em cujo auxilio veiu o chimico o biologista inglez Tyndall, foi de novo consagrado pela academia, onde demonstrou as relações de causalidade, que existem entre certas doenças e alguns micro-organismos especiaes, e onde foi acremente atacado, porque sendo apenas chimico se abalançava a irreverentemente interferir no campo da medicina.

E ainda bem que na sua bagagem scientifica não tem o diploma de medico, porque a meu ver foi esta circumstancia feliz, que muito contribuiu para o exito d'este Colombo em demanda do novo mundo micro-biologico.

Se fôra medico, enredado em as noções de contagios, miasmas, constituições medicas, genio morbido, que era tudo o que então constituia a pathologia das doenças zymoticas, poderia ser, e seria decerto, um notavel discipulo do Esculapio, um Galeno, um Petter, um Wirchow, um Sousa Martins, mas não seria um reformador, um demolidor de tantos erros, um Messias de uma nova religião scientifica, não seria, emfim, o grande, o universal Pasteur. (Apoiados.)

E agora, sr. presidente, muito de leve, permitia v. exa. e a camara que eu n'um vôo rapido siga a luminosa orbita traçada no espaço infinito da sciencia por este astro, que se apagou nas profundezas do tumulo no dia 29 de julho de 1890.

Estudando a fermentação alcoolica, phenomeno chimico, descobriu que esta era devida a uns pequenos animaculos, que tinham a singular propriedade de serem anerobicos, isto é, capazes de, apesar da sua pequenez e insignificancia, arcarem com a força da affinidade, que mantem o oxygenio n'uma combinação, e desaggregam esta para se apossarem d'aquelle em favor da sua existencia.

A natureza, que por um lado fôra tão madrasta para estes seres, a ponto de os crear tão fracos e desprovidos de armas para a rude batalha da vida, por outro foi-lhes tão caroavel, que até para elles fez um novo typo de vida, a anerobia, que veiu acrescentar os classicos moldes da respiração aerea e aquatica.

Foi, pois, a fermentação o altar em que Pasteur, Luthero de uma nova reforma, consorciou, para não mais se separarem, a chimica e a phisiologia.

Os resultados d'esta descoberta, que poderiam passar desapercebidos a um espirito menos finamente observador e menos tenazmente experimentador, antepuzeram-se a Pasteur repletos de extraordinarias consequencias scientificas, foram os alicerces do edificio bacteriologico, foram a antevisão da grandiosa obra com que elle munificiou a humanidade.

Com esta descoberta e com a das culturas artificiaes caíram esfarrapadas as theorias do vitalismo e a das fermentações, defendida por Liebig, e dos seus escombros resurgiram estas duas verdades basilares em bacteriologia. "A mataria organica não se decompõe espontaneamente; permanece inalteravel, coma a materia mineral, emquanto

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causas estranhas vivas ou sem vida sobre ella não actuarem".

"Ha microbios capazes de, após muitas gerações e através de muitas culturas esterilisadas, conservarem intacta, diminuida ou augmentada a sua primitiva virulencia."

A França era já pequena para conter a pujança do nome de Pasteur e a sua honrada fama começava de echoar em toda a Europa culta, quando a industria sericola d'aquella nação e nomeadamente da sua segunda cidade Lyon, ameaçava de totalmente se aniquilar.

N'esta conjunctura, Dumas, o grande chimico professor de Pasteur, dirigiu-se a este não como a discipulo, mas como a mestre e pediu-lhe que mais uma vez valesse com a sua sciencia á sua patria, como já o havia feito a respeito da carbunculose.

Applicou Pasteur os seus processos de observação e de exame á pebrina, que desimava em hecatombe titanica, o humilde Bombix, a laboriosa larva productora da seda, e usando d'aquella paciencia, com que elle premia um phenomeno até d'elle resaltar uma verdade, surprehendeu a genese, a transformação, os habitos do microbio promotor da doença. Novo Promotheu, mas mais feliz que o heroe mythologico, quasi conseguiu arrancar á natureza o segredo da vida. É bello, sr. presidente, este lance, em que um homem só pelo esforço da sua intelligencia se volve quasi um Deus. (Vozes: - Muito bem). Como Cesar, podia dizer veni, vidi et vici.

Não parou o sublimado experimentador no caminho traçado; os resultados obtidos davam-lhe justificados alentos para novas emprezas e assim, estudando o cholera aviario chegou á demonstração cabal da attenuação dos virus, da vaccinificação da virulencia.

Todo o mundo scientifico se commoveu com esta descoberta, seguramente a maior de todos os tempos, pelas suas applicações, que Pasteur previa já não poderem limitar-se á prophylaxia das doenças dos animaes. (Apoiados.)

Só o austero sabio, que era um genio, por que tinha o maior talento compativel com um craneo alliado á maior bondade existente n'um grande coração se não ensoberbeceu, pois que a modestia é companheira inseparavel do me rito.

A proposito conto o seguinte facto bem conhecido. Estava reunido o congresso internacional de Londres, que entre outros assumptos se ía principalmente occupar da attenuação dos virus, da variabilidade da sua virulencia, da sua conservação em culturas e da sua acção prophylatica nas doenças dos animaes, n'uma palavra da obra de Pasteur. Era portanto Pasteur o heroe da sapiente reunião e o proprio principe de Galles, como homenagem de respeito pelo sabio, presidia á sessão. Faltava, só Pasteur, cuja chegada se aguardava impacientemente. Assomou á porta da sala abordoado ao braço do filho, o illustre biologo anciosamente esperado e a orchestra entoa o Goa Save the Queen, o hymno real inglez. Pasteur, em honra de quem tudo isto tinha logar, para, estaca e diz ao filho: estas notas de certo significam a chegada do principe de Gralles, deixemos que todos se acommodem, entraremos depois. Singular exemplo de modestia, que faz reviver a historia da antiga Sparta.

Da applicação dos virus attenuados á medicina dos animaes, como meio therapeutico, ou como fim prophylatico, facil foi transitar para a medicina humana, onde a experiencia feita com a hydrophobia, veiu confirmar o que a rasão à priori já havia feito presentir.

Está ainda na memoria de todos o enthusiasmo, a admiração, com que em toda a parte foi recebida a descoberta da vaccinação do virus rabico, que vinha assegurar ao homem a immunidade contra a raiva, essa doença terrivel e diante da qual a medicina tinha de confessar a sua impotencia.

A impressão produzida por esta nova conquista da sciencia foi tão funda, que de todos os lados, desde a Europa até ás Americas e ainda até á Africa e até á Asia, choveram subscripções a fim de se levantar um Instituto, que commemorando o feito, servisse de escola para o ensino da bacteriologia e fosse o templo augusto onde os discipulos não deixassem nunca apagar o fogo sagrado da nova sciencia creada pelo Mestre, a quem a Legião de Honra conferiu a sua mais alta dignidade, a de grã-cruz.

Náo triumpharam as novas doutrinas, senão á custa de uma encarniçada lucta, e o proprio Pasteur em 1884 confessava, que a doutrina microbiana applicada á etiologia e therapeutica das doenças fora vivamente atacada ao principio pelos que continuavam defendendo a hypothese da espontaneidade da doença.

No mundo da Idéa peleja-se por vezes tão asperamente como no mundo do Interesse, e não ha verdade scientifica que pertença ao numero das que batem em cheio na rotina e reduzem ás justas proporções os consagrados de uma sciencia oca, que consiga implantar-se sem um largo martyrologio.

Um dos argumentos, que nunca deixa de ser invocado pelos patriarchas da sciencia rotineira contra os iconoclastas que procuram novas verdades é o acaso.

Não podia este ser esquecido por aquelles que saindo ao caminho a Pasteur e assaltando-o se refugiaram logo nas trevas de onde tinham partido, como que espantados da propria ousadia.

Succede, porém, que o acaso ao defrontar-se com Gallileu descobre as leis do pendulo, ao deparar com Kepler encontra as leis da mochanica celeste, ao esbarrar com Newton acha as leis da gravitação e ao medir-se com Pasteur edifica a bacteriologia.

Tambem o accusaram de plagiario dando-lhe por antecessor Easpail, querendo assim offuscar a originalidade da sua grande descoberta, porque este dissera sem o demonstrar, muito antes de Pasteur, que as doenças eram devidas a certos fermentos.

Mas, quem, antes de Watt, descobriu na gota de agua, que perla as petalas das flores, a força enorme do vapor, que mudou as condições economicas do trabalho social; quem antes de Galvanie Volta, no simples contacto do cobre e zinco mediando um liquido acidulado encontrou a mais portentosa invenção do homem, na phrase de Stuart Mill, o telegrapho electrico, que vence as distancias quasi com a rapidez do pensamento; quem antes de Pasteur achou na singela noção dos infinitamente pequenos a vaccinificação dos viras, a prophylaxia das doenças, que dá ao homem quasi os attributos da divindade? (Vozes: - Muito bem.)

A Pasteur cabem, pois, e só a elle, as honras de ter creado uma sciencia e uma arte novas, cuja luz irradiando até ao amago do campo da medicina, por completo a modificou, já na pathogenia, já na symptomatologia, já na anatomia pathologica, já na parte operatoria, já na therapeutica e já na hygiene, sendo tal o impulso dado a esta que não é possivel detalhal-o por muito que n'elle me detenha a fallar. (Apoiados.)

O vulto de Pasteur ergue-se n'uma tal culminancia de luz, que se divisa de todos os lados da sciencia.

As suas descobertas, fructo opimo do seu portentoso cerebro e bello coração abrangem todo o mundo, porque com ellas utilisa toda a humanidade, que o bemdiz e abençoa pelos beneficios recebidos.

Por isso, onde quer que haja um laboratorio, um gabinete de estudo, haverá um sanctuario onde se prestará culto a Pasteur, onde se guardará intemerata a memoria do Mreste, como nos pagodes orientaes as virgens asiaticas guardavam a branca flor do lotus.

E agora permitta-me o meu illustre collega o sr. Boavida, que eu muito summariamente me refira a uma affirmação que fez.

S. exa. negando, que Pasteur fosse positivista, revoltou-se contra a critica positiva, contra a philosophia de Comte.

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Não sei qual ha de ser a rasão por que, quer conservadores, quer catholicos, se hão de insurgir contra a philosophia de Augusto Comte. Elle teve apenas em vista dar ao naturalismo uma fórma scientifica, e foi tão pouco demolidor e irreverente, que na sua sociologia affirma que o perigo possivel para as modernas sociedades está, não no despotismo, mas sim na anarchia. Um catholico ou um conservador não teria dito melhor.

Eu respeito Leibnitz, admiro Hegel, o reformador da philosophia do seu tempo e curvo-me diante de Kant, o patriarcha da mctaphysica. Digo, porém, que se elle na critica da rasão pura, que é falsa como doutrina, é metaphysico; na critica da rasão pratica que é absolutamente verdadeira, é, sem o querer, positivista. (Apoiados.)

Não ha, portanto, motivo para s. exa. querer tão mal a Comte, que nunca atacou a religião.

Pasteur, nos seus processos não foi positivista, diz s. exa.; pois eu affirmo que não foi outra cousa. Nem hoje a sciencia caminha senão pelo methodo positivo. É a experiencia e a observação, que servem de base, que são por assim dizer o conductor unico, o fio de Ariadne, no labyrintho da sciencia, para todos os espirites, que a ella se dedicam.

S. exa. fundamenta a sua opinião no facto de Pasteur ter sido apontado como um crente, pelo grande escriptor e critico Renan, que é a consubstanciação mais surprehendente da vivacidade do espirito da raça franceza com a melancholia da raça simitica, e as opulentas fórmas do seu estylo oriental. Mas, negou Renan a Pasteur os fóros de positivista em sciencia?

Posto isto, direi que se um dia voltar a París, não será ao instituto Pasteur, que eu dirigirei os meus passos. Não será a essa molle enorme, á sombra da qual elle dorme o eterno somno e que a gratidão de todo o mundo levantou em honra da sciencia do Mestre, que eu irei levar os meus votos. Dirigir-me-hei á rua de Ulm a esse laboratorio modestissimo, a esse baptisterio de onde irradiou essa luz nova, que veiu allumiar o edificio da medicina desde os seus mais obscuros recantos até ás suas cupulas mais elevadas.

Pasteur, qual outro Pedro, o Eremita, lançou a palavra evangelica da nova cruzada, a qual foi religiosamente escutada por Koch, Roux, Babes, Lister, Brizororo, Duclaux, Kitazato, Metechnikoft, Behring, Pestana e tantos outros discipulos queridos que levaram essa palavra para a Inglaterra, para a Allemanha, para a Russia, para a Italia, para Portugal, para a America, para o Japão, para todo o mundo.

A doutrina de Pasteur não perecerá, permanecerá intacta, em quanto houver um coração, que se compadeça pelos que soffrem, emquanto houver um cerebro que pense, emquanto houver um espirito, que cultive a sciencia. (Apoiados.)

Li ha poucos dias num jornal que o departamento de Dole (Jura), onde elle nasceu, pretendia com o auxilio official do governo francez, levantar-lhe uma estatua. Pasteur não precisa de estatuas. O grande cirurgião francez Nélaton disse que se devia erigir uma estatua de oiro, áquelle que descobrisse o remedio para curar a infecção purulenta.

Em minha opinião nem este metal, causa de tantos crimes, alvo de tantas ambições humanas, é bastante nobre para modelar a estatua de Pasteur.

Não precisa de uma estatua, quem liga á posteridade obra tão grandiosa, que em magnitude corre á compita com as maiores maravilhas do mundo, desafiando os seculos e com a qual, para em tudo ser extraordinario, se dá o facto paradoxal de se ir avolumando e crescendo á medida, que se for restringindo e apoucando o seu alicerce, a medicina. A hygiene e á medicina, com o progredir da bacteriologia, se poderia applicar a bella phrase de Victor Hugo, ceei tuera cela.

Esta obra é cosmopolita, pertence a todo o mundo, o monumento, que a celebrar deve ter como pedestal todos os corações, todas as almas, todos os espiritos que amam a sciencia e se interessam pela humanidade, e a coroal-o como estrella a crystallisação de todas as lagrimas que Pasteur soube estancar e de todas as dores a que deu linitivo. Só esta seria a estatua digna de Louis Pasteur.

Á similhança do que usou a Grecia, chamando de Pericles ao seculo aureo da sua litteratura, por analogia com que praticou Roma, denominando de Augusto o periodo florescente dos seus maiores poetas, por imitação com o que fez a França appellidando de Voltaire o seculo XVIII, que consagrou os direitos do homem, querem uns, sr. presidente, que ao actual seculo se dê o nome de Pasteur, que concretisa a mais alta expressão da sciencia, querem outros baptisal-o de seculo de Victor Hugo, que symbolisa o supremo ideal da Esthetica, e opinam ainda alguns que deve ser cognominado de seculo da França.

Esto seculo é por demais complexo, e a historia, ao registar-lhe as suas descobertas, o seu trabalho social, as suas especulações philosophicas, as suas luctas, os seus receios, as suas esperanças, não póde synthetisal-o em nome de um homem, nem mesmo de uma nação, embora esta seja a França. (Apoiados.)

Não quero tomar mais tempo á camara; em demasia me tenha alongado, do que peço me relevem, pois que o assumpto é tão vasto, que por muito que me resumisse, não podia ser menos prolixo.

Para finalisar direi, que em frente do germanismo-moda, que hoje tudo pretende avassallar; que em frente da influencia germanica, que n'uma corrente caudal parece querer afogar a civilisação latina, como outr'ora os barbaros do norte, seus ascendentes sob Atala afogaram a civilisação romana; ergue-se o prestigioso nome de Pasteur como dique insuperavel, como barreira invencivel a deter-lhe a invasora marcha.

Direi que esse nome ficará como marco milliario da historia, affirmando a pujança e vitalidade da nossa raça e a supremacia scientifica da França.

Direi que esse nome, collocado no extremo limite do seculo XIX constitue uma montanha tal de benemerencia e de luz, que os seus raios projectando-se através as idades, continuarão a espargir sobre estas a sua luminosa e abundante chuva de beneficios por fórma a para sempre prenderem a gratidão dos sabios, pelos novos horisontes patenteados á sciencia; a das mães pela doce alegria de verem os filhos arrancados ao monstro da diphtheria; a dos homens pelos soffrimentos e pelos desesperos que Pasteur lhes poupou.

Vozes: - Muito bem.

(O orador foi comprimentado por muitos srs. deputados.)

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