O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 356

356

Discurso que devia ser transcripto a pag. 335, col. 2.ª, lin. 45.ª no Diario de Lisboa, na sessão de 4 de fevereiro

O sr. Ministro da Marinha (Mendes Leal): — Nunca talvez a minha posição foi tão difficil, n'esta casa e n'este lo-

Página 357

357

gar, como agora. Duas grandes e principaes dificuldades se me offerecem com effeito. A primeira vem da pessoa do illustre orador que me precedeu na tribuna; a segunda vem da sua propria oração.

Consiste a difficuldade proveniente da pessoa do orador... que sinto não, ver presente, o que me obrigará a tornar-me ainda mais reportado do que geralmente costumo, e do que sempre desejo... consiste, dizia, a difficuldade proveniente da pessoa nos eminentes dotes que a distinguem. Esta camara em tres sessões successivas mais uma vez observou como em s. ex.ª se realisa o conceito: que o primado dos partidos pertence á primazia da palavra. Manifestou em verdade s. ex.ª, por muito brilhantes qualidades oratorias, quanto é justificada a sua posição n'esta casa, na politica do paiz, e nas tradições do seu partido.

Vem a difficuldade, ou antes difficuldades, da sua oração: primeiro, do parenthesis com que s. ex.ª me honrou quando tomei a liberdade de pedir a palavra; depois das recommendações que me fez; finalmente dos predicados com que me prendou. Constituiu-me essa munificencia em duplicada obrigação; já porque devo o presente immerecido unicamente a extrema benevolencia e generosidade sua, não admirando todavia que seja tão prodigo nas dadivas quem tanto possue de seu;, já porque, reconhecendo sinceramente e verdadeiramente a minha inferioridade, tenho de corresponder a um estremado talento cumprindo um arduo dever, mais arduo em presença dos muitos meritos do orador. Explicar-me hei quanto ao parenthesis. Não sei que motivo provocou a distincção das intimações com que fui especialmente honrado. Não o prevejo, não o adivinho; mas as intimações subsistem, e complicam o desempenho do meu encargo. Recommendou-me s. ex.ª: «respondei precisamente, exactamente nos termos em que vos argumento; mas não irriteis os animos, mas não exciteis as paixões»; e na sequencia do seu discurso acrescentou: «não exhumeis tambem o passado»!

Como conciliar e cumprir estes antinomicos preceitos? Em todo o correr da sua oração s. ex.ª exhumou constantemente o passado (apoiados). Não sei se excitou os animos! O meu não, porque o dever e o logar me impõem a obrigação de ser superior a quaesquer irritações. Creio porém que se não absteve completamente de appellar para as paixões, como prova o final do seu discurso de hontem.

Uma voz: — Ahi está o sr. Fontes.

O Orador: — Tanto melhor. Fallarei agora mais desafogadamente. Estimo ver presente o illustre deputado, e pois que está presente, na sua presença recopilarei o que havia começado a endereçar-lhe, e summariamente repito.

Em grande obrigação me constituiu a oração do illustre deputado pelos relevantes dotes do seu espirito, dotes que admira a camara e o paiz, e que eu do mesmo modo admiro, sinceramente, sem reserva, aqui e em toda a parte. Devo este testemunho á minha consciencia e aos seus ta lentos.

Relevantes são effectivamente as prendas de espirito de s. ex.ª, e esta é difficuldade summa para o orador que tem de se lhe seguir na tribuna. Outra porém, não menos grave, procede do antagonismo das intimações que me dirigiu, recommendando-me a um tempo que respondesse nos proprios termos era que assentava a questão, e que me abstivesse de exhumar o passado, quando s. ex.ª não fez, insisto, senão constantemente exhumar o passado (apoiados).

«Não appelleis para a historia. A historia!... A historia pertence-nos (apoiados). A historia é exclusivo nosso. A historia fez se mais um monopolio, e defendem'o-lo. Não toqueis ahi, n'essa arca santa; não lhe toqueis, porque profanaes as cinzas dos mortos; não lhe toqueis, porque offendeis as immunidades dos ausentes!...»

Oh! sr. presidente, mas a quantos ausentes, mas a quantos mortos, pelas proprias conveniencias do seu discurso, se não referiu s. ex.ª! (Apoiados.) Nem podia deixar de o fazer. Já vê s. ex.ª que lhe não dirijo, remotamente sequer, a mais leve censura. Quero sómente mostrar a forçada perplexidade em que me lança a contraposição d'essas recommendações S. ex.ª, compulsando os successos do paiz, referindo-se ao passado, ao seu passado só que fosse, não podia deixar de alludir aos que viveram em torno de s. ex.ª, ou que em torno de s. ex.ª caíram para sempre, mortos para a terra, mas não mortos para a historia. Não podia deixar de o fazer, não. Era necessidade, era obrigação, era invencivel attrahimento.

Se s. ex.ª pois com tantos recursos, e com tão justo empenho, se não póde esquivar a faze-lo, como o farei eu? Porque rasão se ha de antecipadamente, precatadamente condemnar quem o fizer? Com que justiça e plausibilidade se impõe: «o que eu estou fazendo, não o façaes vós?» (Apoiados.)

Intimação irrealisavel, seja qual for a minha boa vontade! Intimação incomprehensivel, porque recommendar assim: «não exhumeis o passado», tanto vale como dizer: «só eu tenho a faculdade de folhear essas paginas; só eu tenho a faculdade de indagar esses factos; só eu tenho a faculdade de averiguar essas acções; vós, nada d'isto vos é permittido nem mesmo no uso do sagrado direito da defeza, sagrado para todos, extranhissimo em vós!»

Intimação incomprehensivel, repito. Não haveria parlamento que a reconhecesse por valida, nem homem publico que a ouvisse sem protesto!

Não sei eu se é costume dictar o arguente, os termos da resposta. Se o fosse, nada mais commodo. Estavam desde logo, e previamente, superadas todas as objecções. O logar de orador, sobretudo do orador que atacasse, não teria senão faceis glorias, seria uma sinecura, seria a cousa mais invejavel d'este mundo.

«Olhae! Posso praticar nos termos que entender; mas vós... Alto... reportae-vos ao que vos eu designar; não vos pertence senão responderia esse dictame. Tendes aqui pautado, riscado, antecipado o modo porque haveis de retorquir, e sou eu que me incumbo da tarefa!»

Que extremos de prevenção! Estou que não haveria muito quem se conformasse com tal! (Riso.)

Não sei se este é o costume; não sei seja se tem feito alguma vez; mas é tal a minha consideração pelas qualidades de orador e de estadista do illustre deputado, é ao mesmo tempo tão profunda a minha fé na causa que sustento, que aceito. Aceito resolutamente o conselho, na parte possivel, apesar das suas infinitas desvantagens. E não o aceito só pelos motivos expostos, aceito o ainda por outros. S. ex.ª póde ter mui sinceros desejos de ser conciliador; mas de certo não os tem maiores do que eu, e supponho have-lo provado. Se alguma cousa me admirou, foi que s. ex.ª julgasse necessario dirigir me aquella advertencia de moderação. Acaso costumo ser immoderado, provocador irritante?

E vede até onde chega a antinomia que inspirou esta inesperada apostrophe! «vós, ministro da marinha, sede moderado!» Excellente, ainda que superfluo. Mais ao diante exclamou se: «vós, ministro da fazenda não soubestes guardar a vossa dignidade, porque fostes moderado!» Moderação advertida! Moderação condemnada!

Moderado!... Julgando vós assim!... Serei, serei moderado; sê lo-hei sem esforço, porque o sou naturalmente, porque entendo que é obrigação minha e utilidade de todos.

Tenho pois muita satisfação em acceder ao convite... chamar-lhe-hei convite?... de s. ex.ª, posto que não era preciso; (posto que taes recommendações produzam de ordinario o effeito contrario; posto que, finalmente, sem prejuizo da minha reverencia ao illustre deputado, mais do que essas recommendações me actuam no animo o decoro devido a esta casa, o sentimento do meu dever, e as conveniencias publicas, que estão acima de quaesquer suggestões ou conselhos (apoiados).

Antes de passar adiante, seja-me licito agradecer... e folgo summamente sempre que tenho alguma cousa para agradecer aos meus adversarios, sobretudo quando o agradecimento me não é pessoal... seja-me permittido, digo, agradecer ao illustre orador a breve mas eloquente commemoração que fez das qualidades de um benemerito cidadão, que ainda hontem era nosso camarada nas lides parlamentares, que hoje repousa na terra e pertence á eternidade.

Sentiu s. ex.ª não ter podido acompanhar no derradeiro transito aquelle que eu tive a honra de o acompanhar na sua ultima viagem, honra dolorosa porque mais me fez apreciar esse nobre caracter para mais vivamente sentir a sua perda!... Patenteou s. ex.ª o seu sentimento por não ter tomado parte no préstito. Ainda bem que assim se exprimiu... nem outra cousa era de esperar de s. ex.ª! Ainda bem que teve no coração essas palavras aquella memoria, para nós tão saudosa e veneranda! (Apoiados.) Ainda bem que a numerosa opposição d'esta casa estava ainda representada n'esse prestito por tres dos seus dignos membros, os srs. visconde de Pindella, Cyrillo Machado e Mártens Ferrão! Ainda bem que estes tres cavalheiros se despreocuparam de todas as suas obrigações para acompanharem a mesa d'esta casa, e os srs. deputados da maioria, no cumprimento d'aquelle extremo e piedoso dever! Ainda bem que teve logar essa manifestação, extremamente agradavel aos amigos do finado.

E se elle podéra reviver, agradavel lhe seria tambem, muito agradavel de certo, tanto mais agradavel quanto se lhe tornaria compensação aos porfiosos baldões e dissabores com que nas vesperas da sua morte a paixão partidaria lhe amargurou o espirito, como se não bastasse uma vida já tão trabalhada de provações! (Apoiados). E é tal, senhores, a obcecação das paixões — obcecação que eu condemno esteja onde estiver — que se estranhou ao sr. Thiago Horta que fizesse a viagem ao Porto (apoiados); censurou-se-lhe nos termos mais acres e mais vehementes a translação de um para outro logar, o uso de um direito commum; foi-lhe estranhado e censurado, de um modo tal que não o repetirei agora (apoiados)... o que?... O que é licito ao ultimo dos cidadãos!

Ainda bem, pois, que da parte do nobre orador, da parte dos cavalheiros que mencionei, e mencionei-os com tanto respeito como satisfação, houve essa manifestação ao mesmo passo nobre e humana! (Apoiados.)

As lides politicas têem tambem as suas victimas e os seus martyres. Este anno acompanhámos á ultima morada o que nos foi auxiliar poderoso e amigo fidelíssimo como outros da mesma tempera e escola (apoiados), o que se mostrou sempre esclarecido e recto espirito (apoiados), caracter desambicioso (apoiados), provado em todas as occasiões, e em todos os logares, e em todas as crises! (Apoiados.) Ha pouco mais de um anno acompanhávamos igualmente á sua final mansão o orador eminente, por quem está ainda de luto a tribuna portugueza (apoiados).

No meio de todas as difficuldades, o espectaculo desses dois féretros, ou antes d'estas duas memorias, me dá maior animo, porque felizmente da parte da maioria d'esta camara, e do gabinete que a representa, — e isto é o legitima e verdadeiramente constitucional (apoiados), — ha principios definidos (apoiados), ha principios fundamentaes, ha principios manifestos era actos que o paiz póde apreciar (apoiados). Da parte dos cavalheiros que formam a colligação, sem deixar de haver principios que não lhes nego, não ha, não póde haver igual franqueza... Indico isto apenas como fatal necessidade de posição e sem censura para ninguem. Da parte de todos os cavalheiros que impugnam o gabinete não sei com effeito se póde haver a mesma franqueza, não sei se os principios, por diversos e ás vezes oppostos, poderão ser do mesmo modo claramente expressos e manifestados (apoiados)...

E da virtude desses principios, da sua ingenita vitalidade, tal força resulta, que temos podido apesar de tantas perdas; apesar d'essas e outras grandes perdas successivas (apoiados), apesar de golpes tão profundos e sensiveis continuar o nosso caminho! (Apoiados.)

Pois a falta de homens como estes, de cidadãos d'esta importancia e d'esta valia, produz em toda a parte invencivel commoção, perigoso abalo, e muitas vezes determinam a mudança de uma situação, já porque lhe fallece o auxilio do conselho, já porque lhe desmaia a eloquencia da palavra (apoiados).

Aqui não. A energia moral das idéas suppre a grandeza das catastrophes. Deploram-se triste e ardentemente os que succumbem, mas não esmorecem os que sobrevivem. As fileiras, rareadas pela morte apertam-se e proseguem. Para o logar desses homens mandam os suffragios da uma livre novos soldados, que acharão n'elles memorias para venerar, e exemplos para seguir! (Apoiados.)

Isto é historia tambem, historia de hoje para acrescentar á historia de hontem, instructiva como toda a historia.

Ouvi já dizer n'esta casa a um distincto ornamento d'ella, — que não sei se está presente, e que não é menor ornamento das letras patrias, — a um membro da opposição, excellente orador e poeta eminente (apoiados), — creio poder lhe dar aqui este titulo de poeta sem o arriscar a desdéns (apoiados),

— ouvi-lhe dizer: «é a historia um cemiterio.» Com a devida venia não a considerarei cemiterio; e tanto não é, que s. ex.ª mesmo se fez viva prova de como d'ali se desentranha vivida e fulgente a inspiração, que leva á immortalidade nos mais patrioticos e elevados cantos (apoiados); s. ex.ª mesmo é o eloquente certificado de como da historia, do espirito que revoa n'essas regiões verdadeiramente animadas, emanam as fontes de perenne instrucção, que vem depois vivificar em lições para o presente os exemplos do passado (apoiados).

Vozes: — Muito bem.

A historia não morre; na historia não se morre. Podem para ali decretar sentenças de morte; não serão executadas pela posteridade (muitos apoiados). Não se morre, não; e tanto se não morre, que mesmo quando vós, nossos impugnadores, nos dizeis: «era nome do respeito pelos mortos não venhaes a estes logares», lá nos achaes tambem, lá ides procurar a inspiração, lá vos ides embevecer nas lições, lá estaes consultando os espiritos, os espiritos que não perecem... (Vozes: — Muito bem.) E vindes prevalecer-vos do seu testemunho para vossa justificação! E vindes evocar a sua memoria para vosso louvor.

Mas a historia, sr. presidente, a verdadeira, não é só de um dos lados da camara, nem para um dos lados da camara; é de todos e para todos (apoiados). Supponho pois que tenho direito de a consultar como todos.

Não sei ha quanto tempo é de uso considerar os homens que se sentam n'aquellas cadeiras (as do ministerio), como réus confessos e convictos, a quem nem é permittido levantar a cabeça diante das arguições dos seus adversarios, que são apenas seus contendores. Não aceito tal papel (apoiados), não ha o menor motivo para que o aceite (apoiados). Se é livre a arguição, deve ser livre a defeza. A liberdade é isto ou não é (muitos apoiados).

Sr. presidente, não tinha contado levantar a voz n'este debate; não me competia, porque não sou financeiro, e elle tem levado desde o principio uma direcção exclusivamente financial. Não lh'a deu nem o discurso da corôa, nem a resposta da camara a esse discurso: deu lh'a a vontade e a iniciativa dos illustres deputados que abriram o debate; tinha-lh'a já dado antes d'isso a sua imprensa (apoiados).

Não levantaria, pois, a voz n'este debate se não fosse instigado por outra questão, não menos importante porque interessa grandes principios; te não fóra arguido, como membro do gabinete, de violação ás leis constitucionaes, infringindo as condições da solidariedade. Perante similhante imputação reputaria indecoroso ficar em silencio (apoiados).

Não, não faria á alta e esclarecida competencia do meu collega, o sr. ministro da fazenda, não faria nem á camara nem ao paiz a injuria de suppor que seriam necessarios, ou que poderia eu dar mais esclarecimentos onde tinham elles sido multiplicados até á saciedade (apoiados), quando o governo fez publicar tudo o que d'elle dependia, quando até os particulares entregaram á publicidade as suas correspondencias (apoiados). Uma questão assim instruida pelos documentos officiaes e pelas cartas particulares, não estará exhausta, ainda precisará de mais? Não o creio; não presumo tanto de mim, que julgue adianta la depois de naturalmente terminada.

Resurgiu-se porém o passado para condemnar o presente. Sou em nome d'elle attrahido ao debate. Não quero censurar; preciso justificar, preciso restabelecer. Exhumarei do passado o menos possivel; mas não posso desviar os olhos do que exhumou o illustre orador que me precedeu. O que está á vista já não pertence á terra! Fez-se depois uma intimação ao discurso que eu ainda havia de proferir. Hesitar, esquivar-me, seria já cobardia; e essa é a ultima cousa que farei na minha vida (muitos apoiados).

Entende-se acaso que ainda não está informado o parlamento e o paiz depois de tantas publicações e republicações? Houve todavia uma epocha em que os documentos, os documentos não, as proprias condições de um contrato, celebrado por uma somma de 16.000:000$000 réis, foram negadas não sómente ao conhecimento do paiz mas ao da camara, não sómente ao da camara mas ao da commissão de fazenda! (Muitos apoiados.)

Não exhumo essa epocha; acho-a diante de mim; não posso evitar lhe o encontro.

Sr. presidente, foi arguido o governo e foi arguida a maioria de ter suscitado uma questão politica na discussão da resposta ao discurso da corôa. Arguição inedita, abso-

Página 358

358

lutamente inedita e insolita! Pois o que é a resposta ao discurso da corôa senão uma questão politica, o que foi sempre quando d'ella se fez questão?

Nos tempos, de que s. ex.ª fez a historia, professava-se uma doutrina mais commoda. Dizia-se: «é um mero cumprimento, não discutamos cumprimentos». Afastava se a questão politica, e ficava para as differentes especialidades o tratar cada assumpto sobre sr. Agora porém quem abriu o debate, quem o guiou, quem o conduziu? Quem n'este caso costuma faze-lo? A opposição, não o governo. O governo esperou, e esperou no seu posto. Não podia nem de via deixar de esperar.

O thema, o ponto de ataque havia sido muito antes preparado, escolhido, designado pela propria opposição; os seus orgãos mais auctorisados tinham ameaçado o governo e a maioria com essa aggressão de que dispozeram todos os meios. Perante uma formal ameaça ha quem recue, e se occulte, e evite o combate? Póde faze-lo quem quizer; não eu, não o governo, não a maioria d'esta casa (muitos apoiados).

Lançastes a luva e não querieis que os vossos adversarios a tivessem levantado! E logo mostrarei que a levantámos como deviamos, não nos termos que censurastes, mas nos mais convenientes e medidos.

Como havia de o governo guardar silencio sobre a operação do emprestimo no discurso da corôa? Se o fizesse, diríeis vós de certo, e diríeis com rasão, e o paiz havia de achar vos muito mais justiça para a censura, diríeis então: «recusastes o combate, porque vós temíeis d'elle!» (Apoiados.)

Qualquer adiamento de tal questão seria um justo motivo de suspeita, e seguramente o faríeis valer. Isso nos aconselháveis e isso nos exigíeis! N'isso fazíeis consistir a gravidade e a dignidade, vós que tanto de gravidade e dignidade nos fallaes! Agradecemos a indicação, mas não a seguimos!

«Porque vos não guardastes para o exame da questão de fazenda?» acrescentaes. Pois uma simples operação de credito é toda a questão de fazenda? Naturalmente porque não sou financeiro, causou-me singular estranheza ouvir similhante proposição a um illustre deputado, que foi ministro da fazenda, e que o foi por tanto tempo.

«Não tinheis logar mais apropriado ao exame da questão de fazenda quando se tratasse d'ella?» insiste-se. Tratou-se acaso até agora d'essa questão de fazenda? repetirei. Tratou-se apenas de uma operação de credito, só d'isso, exclusivamente d'isso. Mas uma operação de credito a respeito da qual se tinham diffundido boatos, espalhado suspeitas, intimado ameaças; a respeito da qual se havia feito correr as mais sinistras vozes; a respeito da qual emfim estava por vós solemnemente reptado o governo. E vós mesmos nos reprehendeis que não nos dissimulassemos, ou não nos retirassemos da liça! Fa-lo-ieis vós? Entenderíeis assim a gravidade e a dignidade? Não posso, não devo credo. Convinha talvez á vossa politica. Não convem, nem ao decoro do governo, nem ao decoro d'esta casa (apoiados).

Se alguma cousa fosse necessario ainda para demonstrar as excellencias do systema representativo, estava as certificando este debate. A reunião dos representantes do paiz é com effeito mais um penhor de paz do que um signal de guerra, como pensam muitos. N'esta luta incruenta e pacifica as coleras apparentes cedem o logar aos sentimentos da justiça. A maior parte dos rumores, dicterios, invenções e novellas com que se alimenta a credulidade ou se promove a inquietação, felizmente nem chegam a transpor aquellas portas. Vê isto o povo, e aprende a conhecer a significação de taes phantasias. Muitas questões aqui se illustram, muitas aqui se reduzem ao seu verdadeiro valor. Muitos vulto temerosos aqui se esvaem em bem tenues realidades. As prevenções partidarias, engrossadas, excitadas pela voz das paixões ou dos interessei, aqui se attenuam por mais que as estimulem. Aqui perdem as accusações violentas o maior da sua efficacia. Aqui finalmente aprendemos a conhecer-nos e estimar-nos uns aos outros; não como nos fazem apparecer em objurgatorias funestas (funestas direi, e não é excessivo o termo), que se fossem verdadeiras fariam d'este paiz um antro de feras; não como nos desenham em accusações pueris á força de lhes faltar a base; mas taes quaes somos, taes quaes nos encontrâmos.

E quanto a excitar paixões, bom é certamente que tal se não faça n'esta casa; mas é igualmente bom que não se excitem por nenhum outro meio; é bom que não se passe um anno a provoca-las, a irrita-las, porque haverá mais força e auctoridade em quem no fim vier dizer: «não as exciteis agora» (apoiados). Res, non verba!

Res, non verba! Thema foi este invocado e largamente analysado pelo illustre orador. Com rasão, com muita rasão, que merece e precisa muitos commentarios. Res, non verba! É o mais vasto programma que se tem feito, e é tambem menos seguido e observado (apoiados). Res, non verba! Examinaremos logo, á luz d'esse facho levado ás obscuridades da historia, o que foi d'ella exhumado. Faremos o inventario do que lá dentro apparece.

O illustre deputado, o sr. Carlos Bento, que por fortuna vejo presente, exerceu a sua veia festivamente satyrica (e quando digo festivamente, digo tambem innocentemente) sobre o que chamou lyrismo encomiastico de um orador da maioria, respeitavel pelos seus talentos, respeitavel pelo seu caracter, respeitabilissimo pelas suas convicções, que teve a audacia de não achar este o peior de todos os gabinetes, e de julgar que os ministros de que se compõe têem feito alguma cousa (apoiados). O que não terá dito agora para si a musa jovial de s. ex.ª observando... não se lhe poderá chamar só lyrismo... observando a glorificação dos seus proprios actos feita em tres sessões pelo eminente orador a quem respondo! Em tres sessões, disse. Ia quasi dizendo em tres actos (riso) com as saudades e as memorias do meu antigo e presado officio litterario.

Não é já um homem de crenças illustradas e firmes que diz: «creio em outros homens; posso estar em erro, que sou homem tambem, mas creio...» e todos sabemos que, se tal affirma, é porque na verdade crê... Por minha parte, prestando a homenagem devida á candura e á integridade do joven e esperançoso — mais do que esperançoso, prestantissimo — orador da maioria e da commissão, pela minha parte attribuo a extrema benevolencia sua, e supponho esta demasiada para comigo, o que a meu respeito se dignou mencionar... Não é já, dizia, um homem, louvando outros homens, acto que parece extravagante. É um orador, revendo-se em si mesmo, festejando-se e encarecendo se do alto da tribuna! Em que basto chuveiro de epigrammas se não terá interiormente desatado a inspiração familiar do nobre deputado o sr. Carlos Bento, perante este mais que lyrismo!

Mas se o motejo chronico acha ahi que reprehender, eu não. Reconheço que tem o illustre orador, que me precedeu, muito de que possa tirar justo orgulho. Tem a iniciativa que exerceu, tem o impulso que deu a muitas cousas. Recordou-me s. ex.ª que eu tinha feito opposição aos seus actos e á situação politica que representa. E verdade, a muitos; e sem diminuir a minha consideração pessoal, persisto em reputar menos conveniente o modo por que os negocios publicos foram então conduzidos. Mas essa opposição não era preciso que m'a recordasse. Assás me deve ella lembrar. Não a esqueci, e tanto que por essa causa fui demittido... em nome da tolerancia. Fui demittido, sem ser empregado de confiança, por ter a ousadia de fazer opposição! Nada influiu isso todavia no meu animo...

O sr. Fontes Pereira de Mello: — Peço perdão; quando v. ex.ª foi demittido era ministro o sr. duque de Loulé, não era eu.

O Orador: — Não podia demittir-me o sr. duque de Loulé, que não era ministro do reino, e a bibliotheca nacional de que fui demittido pertencia ao ministerio do reino. Não me demittiu o illustre orador, nem eu lh'o attribui. Demittiu-me a situação que representa, em nome da tolerancia que exaltou. Engana-se s. ex.ª no ministerio, como se equivocou em algumas datas, umas remotas, outras muito proximas (apoiados).

Fui demittido, como dizia, e isto é apenas um incidente; mas não conservo nenhuma especie de indisposição, nem de resentimento. Não me inspirei d'esse acto para censurar o que só á luz da analyse condemnava. Não me queixei sequer. Não haveria fallado em tal, se não tivesse havido então um jornal que, depois de me haverem já demittido, combatia os meus escriptos escrevendo esta liberal argumentação: «pois estaes vivendo á custa do orçamento, e atreveis-vos a levantar a voz contra o governo?» Fui assim obrigado a fazer publico o acto demissorio que provava a injustiça da aggressão, e tornei a ser injuriado por isso. «Queixaes-vos porque querieis comer!» Tal foi a phrase amavel e o raciocinio concludente com que se justificou a imputação infundada. Superior stabat lupus! Discutia e tratava os seus adversarios com esta benevolencia a regeneração triumphante!

Fiz opposição franca, e muitos que a principio davam auxilio valioso aquella situação, successivamente desenganados, se fizeram opposição tambem. Fiz opposição, e justificaram essa opposição as mil difficuldades, que s. ex.ª mesmo confessou, e que provieram, não d'essa opposição como as que actualmente se suscitam, mas de erros originarios, cuja responsabilidade a alguem pertenceu (apoiados).

Bem que de leve, faço muito a meu pesar estas excursões retrospectivas. Se me força a intimação sempre presente: «respondei exactamente nos termos em que se apresenta a questão!» Ao retrospecto só póde responder o retrospecto. São «os proprios termos» da questão. Continuo pois, conciliador mas verdadeiro!

E tal o pruido e o desejo que o illustre deputado tem de arguir os actuaes ministros por tudo e a proposito de tudo, que ainda hontem, ouvindo algum murmurio (creio que dos seus amigos que atrás de s. ex.ª conversavam), n'um rasgo de enthusiasmo bradou para nós, ministros, tranquillos e immoveis nos nossos logares: «ah! não quereis escutar? é porque vos não faz conta ouvir: trataes já de nos tolher a palavra!» E esta exclamação prorompia no fim de cinco dias e de tres sessões em que s. ex.ª usou da palavra (apoiados). «Não quereis escutar!» E a camara estava escutando, e tinha escutado com exemplar e pacientissimo silencio! (Apoiados.) «Não quereis escutar? pois haveis de ouvir!» Queremos ouvir, sim; comtanto que nos deixeis responder. Queremos ouvir tudo; mas queremos que não se desfigure nada, ou pelo menos que não nos seja extranhada a liberdade de repor os factos na sua exactidão, (apoiados). Queremos ouvir, comtanto que na hora de acudir por nós, não nos atalhem cautelosamente a palavra com essa especiosa intimação: «não exciteis as paixões, não irriteis os animos, porque as paixões excitam-se, os animos irritam-se sempre que fallaes do passado, deste passado, propriedade nossa, exclusivo nosso, em que mais ninguem póde bulir!»

Queremos ouvir tudo, queremos condescender em tudo. Só não podemos concordar na nossa mudez; só não podemos consentir que se cite imperfeitamente o passado. Quando se lê apenas meia historia, pertence aquelles, contra quem se quer voltar a historia assim interpretada, ler a outra metade. Não é historia sincera metade da historia; e espero demonstrar que só foi lida meia historia, naturalmente porque ss. ex.ªs lhe voltaram as costas, ou a tomaram de revez. Queremos que nos seja permittido ler a metade que não lestes. Nada mais justo, creio. É um direito perfeitamente igual. E se a vossa metade póde ser evocada sem irritar os animos, nem excitar as paixões, porque o não ha de ser a nossa?

Como e porque daes por cerceadas as larguezas da tribuna! Assistiam todos hontem á opportuna applicação d'este fulminante argumento (apoiados). Cerceadas as larguezas da tribuna contra um orador, que tinha fallado tres dias, e que não fallou oito porque não quiz. (apoiados). Cerceadas as larguezas da tribuna quando o anno passado levou quasi um mez a discussão da resposta ao discurso da corôa! (Apoiados). Cerceadas as larguezas da tribuna, onde e quando a diffusão da palavra é vicio predominante! Quando houve mais largueza? Quando a discussão politica do discurso da corôa se reduzia a uma formalidade de etiqueta! E citou-se com a mesma feliz opportunidade o exemplo de um grande paiz, que aspira a maior liberdade, no qual um só orador n'um só discurso trata uma d'essas questões importantissimas que podem agitar o mundo, sem ponderar que o mesmo acontece na poderosa nação onde as praticas parlamentares são mais antigas e a tribuna é mais respeitada!

Vociferar os logares communs de pathetica objurgação contra as tyrannias ao cabo de um curso completo de historia retrospectiva, não podia ser mais a proposito na verdade! Admiro sinceramente em s. ex.ª a fluência da palavra; admiro-lhe a deducção das idéas, a correcção da phrase, a alteza dos conceitos; admiro-lhe a erudição e tacto politico. Tudo isto admiro em summo grau; mas admiro ainda mais a confiança que mostra no esquecimento publico (muitos apoiados).

Apresentou-se todavia s. ex.ª n'uma posição definida. Tanto melhor; são as posições definidas as que eu prefiro. Definindo essa posição, suppoz o ministerio n'outra igual. Tambem se não enganou, porque o está. Prosigo respondendo nos proprios termos. D'este lado um partido; d'esse outro. O gabinete á frente d'aquelle, emquanto merecer a sua confiança. Eis já uma das condições da solidariedade. E o gabinete responde pelos seus actos, como constitucionalmente se costuma responder; e por esse modo só; não obedecendo á voz e á intimação dos seus contendores. S. ex.ª se estivesse n'este logar não seguia outra doutrina, aliás todo o gabinete seria ephemero. Tomaria conta um dia dos negocios publicos. No seguinte, os seus adversarios, e sempre havia de ter alguns, diziam-lhe: «deixae as pastas que nos pertencem.» Ao terceiro, inevitavel substituição de ministros. E assim successivamente com todos. Haveria governo possivel? Seriam estes os elementos de liberdade e ordem em que se deve fundar a sociedade! Póde ser esse um recurso partidario, e não prima pela novidade; mas não é um argumento grave e serio como s. ex.ª os exige, e nós todos desejâmos.

Definiu o nobre orador as posições, e concluiu: «tende a coragem de votar!» Já porventura faltou a coragem á camara? (Apoiados.) Votará certamente, votará quando entender, votará como entender. Nunca a provocastes que ella vos, não correspondesse (apoiados).

É verdade que se inventou o anno passado uma novissima theoria de maiorias. Em a maioria chegando a tal numero, já não era maioria, ainda que o numero opposto fosse menor. Era talvez uma modificação á arithmetica de Bezout tão fallada n'este debate. «Bezout está velho», dizem-nos com modo desdenhoso. Perdão, não está só velho, está morto (riso). Está morto o auctor, mas não está nem morta nem velha a sciencia. A sciencia não envelhece, e as sciencias exactas muito menos. Envelheceu a arithmetica. Então como envelheceu?

Lembra-me aquelle medico de Molière, que, indo visitar o doente, quando este se lhe queixou de uma dor no lado direito, lhe atalhou n'um d'esses tons de arrogancia que intimam superioridade incontestavel: «Bem sei, é mal do coração.» «Mas o coração é do lado esquerdo», observou timidamente o enfermo. «Isso é antigo» redarguiu o doutor improvisado, «isso é da sciencia velha; nós agora mudámos tudo; passámos o coração para a direita: nous avons changé tout cela». Quem sabe? Talvez a arithmetica fizesse iguaes evoluções. (Apoiados. Riso. Vozes: — Muito bem.)

Desejo abreviar o mais possivel, e espero em Deus não fallar tres sessões, nem mesmo duas. Permitta-se-me resumir. Hontem s. ex.ª referiu-se á questão do tabaco. Não quiz prejudica la esperando que viesse em seu tempo e logar, e apenas a preveniu. Não a prejudicarei eu tambem, porque opportunamente virá ella. Mostrou s. ex.ª graves apprehensões e receios de que as rendas publicas chegassem a padecer diminuição, e d'ahi derivasse a necessidade de aggravar o imposto á propriedade. Não sei como se possam ter esses receios, nem em que elles se baseiam. O governo declarou que tem as mais fundadas esperanças no contrario. E por minha parte não hesito em asseverar que tenho profunda fé em que o rendimento ha de crescer (apoiados), e que os principios da liberdade gradualmente applicados ao tabaco hão de ser tão proficuos e fecundos como n'outros casos analogos. Tem fé o governo, e não tem uma fé implicita e supersticiosa; mostrou já que essa fé repousava sobre calculos, francamente expostos e ainda não confutados.

Estranhou s. ex.ª que se jungisse, formaes palavras, a abolição da pena de morte á abolição do monopolio do tabaco. Se tivesse uma grande predilecção pelos paradoxos, sustentaria a approximação, porque as vexações d'aquelle monopolio, que usurpava até os direitos magestaticos, justificaria assas tal approximação (apoiados). Mas por mais que procure onde estão jungidas no discurso da corôa estas duas propostas, não acho. Vejo pelo contrario, entre o periodo que se refere á proposta da abolição da pena de morte e o que memora a abolição do monopolio do tabaco, outro que menciona diversa proposta, como vou ler:

«Ser-vos-hão submettidas, entre outras importantes provi-

Página 359

359

dencias, as propostas para a abolição e substituição da pena de morte e correspondente modificação no codigo penal; para reforma do codigo commercial na parte respectiva á fórma do processo e á da competencia; para abolição do monopolio do tabaco, etc.»

Se este é o modo de jungir, não sei qual seja o de separar. Primeiro trata-se da abolição da pena de morte, depois do codigo commercial...

O sr. Fontes: — É no projecto de resposta.

O Orador: — Muito bem. Podiam porventura deixar á vir no mesmo papel mencionadas as duas cousas propostas, quando de ambas se tratava? Não insisto no incidente, nem s. ex.ª lhe liga de certo grande importancia. Referi me a elle, porque lhe mereceu um reparo, e o reparo não era dos mais justos. E, seguramente, ou eu tenho andado muito enganado até agora na idéa que formava do que são os discursos do throno e as respostas a estes, ou essas estranhezas, essas admirações, que hoje é moda, ou tactica, levantar a proposito de tudo, e n'esta occasião não faltaram, são para mim absolutamente novas e inexplicaveis (apoiados). Fallaes do monopolio do tabaco! Fallaes do emprestimo! Fallaes da abolição da pena de morte! Porque não haviamos de fallar? Creio que o deixar de fallar é que seria digno de nota (apoiados).

Viu tambem s. ex.ª nos termos em que está redigida a resposta ao discurso do throno uma especie de desconsideração para com todos os gabinetes que tinham até esta data celebrado emprestimos. E o illustre deputado o sr. Carlos Bento fez mais; suppoz que até ía ali envolvida uma censura ao emprestimo de 1862, pois que tendo este emprestimo sido declarado bom não se podia considerar outro melhor. Conclusão tambem singularmente nova! Uma vez que tal emprestimo te reputa bom, absoluta impossibilidade de se julgar qualquer outro melhor! Theoria até hoje desconhecida! (Apoiados.) O bom não exclue o melhor, acreditava-se até aqui (apoiados). Nous avons changé tout cela. A explicação inversiva do medico de Molière surge a cada passo.

Com estes e outros fundamentos suppozeram ss. ex.ªs que havia desconsideração para as administrações anteriores que tinham celebrado outros emprestimos, e n'esse presupposto assentaram as bases da sua argumentação.

Tal presupposto é completamente injusto. Vejamos os termos exactos da resposta, que são os proprios termos do discurso, n'esta parte.

Diz ella:

«...e folga (a camara) sabendo que o emprestimo de libras 2.500:000 nominaes ultimamente levantado na praça de Londres, para as continuar (as obras publicas), foi realisado em mais avantajadas condições do que as operações anteriores de igual genero; prova incontestavel do augmento do credito publico, elemento essencial da prosperidade das nações.»

Note-se bem: a commissão usou de um termo comparativo, e não absoluto como se suppoz. Não disse: «vantajosas»; disse: «avantajadas». E n'este termo comparativo não se comprehendem, nem se podem comprehender, as circumstancias em que foi celebrado cada um dos anteriores emprestimos. Essas circumstancias podiam determinar, ou não, o menor ou maior preço dos contratos e a necessidade de os fazer. Nenhuma desconsideração portanto para aquelles que os celebraram. Consequentemente, as questões sobre apreciação das operações, e da sua valia relativa, ficaram ali absolutamente intactas. Nem o governo, nem a camara fez mais do que expor um facto. Quanto maior é o valor que adquire um titulo nominal, coo: o mesmo juro, isto é, com o mesmo sacrificio do paiz, tanto maior é a vantagem para o paiz que d'esse valor precisa. Este o facto consignado; 48 são mais que 44, e tambem, com a devida venia, mais que 47 1/4 algarismos recentes citados pelos illustres deputados.

«Mas olhae ás circumstancias em que nos achámos, em que fomos obrigados a contratar esses empréstimos». Peço perdão. Taes circumstancias, repito, só as mencionam os illustres deputados, não as mencionou o discurso da corôa, não as mencionou a resposta, nem levemente alludiu a ellas. «Está ahi comprehendida virtualmente a comparação das operações anteriores, visto que em anteriores se falia». Creio ainda que o não está. «Anteriores» reporta-se evidentemente ao conjuncto dos factos comparados, mas por nenhum modo ás circumstancias relativas a cada um d'esses factos, nem apparece a mais remota referencia aquellas circumstancias. Os illustres deputados, servindo-se exclusivamente da ponderação dessas circumstancias, suscitaram uma proposição nova e não comprehendida nos termos exactos do discurso e da resposta, para investirem com um inimigo phantasiado, mas não real. Desculpe-se-me esta minuciosidade; mas isto é questão de interpretações, e as interpretações só se averiguam em presença do texto devidamente commentado e entendido.

Desconsideração, com toda a certeza nunca esteve na mente nem do governo, nem da commissão. Desconsideração a qualquer administração ou a qualquer pessoa, por nenhum modo. Para que?

Comprehendo, que diante de taes apprehensões, fundadas ou infundadas, se levantem susceptibilidades. A susceptibilidade é uma virtude quando corresponde a um justo sentimento de propria valia, e á consciencia de actos sinceros.

Mas não ha verdadeiramente rasão para justificar susceptibilidades, nem existiu, quer intencional, quer expressamente, a menor idéa de desconsideração para as pessoas, para os gabinetes, para os partidos, que anteriormente contrahiram quaesquer emprestimos. Para confirmar o que levo explicado, servirá ainda o proprio testemunho de s. ex.ª Disse o illustre orador: «se vós celebrastes o emprestimo em tão avantajadas condições não mereceis por isso gloria, porque as circumstancias eram na actualidade mais vantajosas, e o credito havia-se elevado». Exactamente. Por se ter elevado o credito folga o governo e folga a camara (apoiados). A elevação do credito não póde ser indifferente para esta camara, porque o não é para o paiz. Similhante indifferença ou esquecimento seria imperdoavel da parte do gabinete e da parte da maioria. Não havia de a camara regosijar-se com o paiz pelo desenvolvimento do credito que lhe afiança os instrumentos da prosperidade? (Apoiados.) Acrescenta-se: «d'ahi não vem gloria para o governo; todos concorreram para isso». Pois se todos concorreram para o resultado, que é só o que menciona o governo, onde pretendeis ver a desconsideração! Vós mesmos vos refutaes e convenceis. Derribaes pela base o fundamento da objecção. Quero suppor que ao actual governo nada toca na elevação do credito, ainda que seja difficil que se eleve o credito sem participação do governo, ainda que seja inadmissivel que, sob uma administração tal como os illustres orado res pintam esta, o credito possa prosperar; quero conceder que aos esforços anteriores se deve tudo e nada á gerencia presente. Similhantes argumentos só provam contra a these fundamental dos illustres deputados, pois que a sua glorificação annulla todo o presupposto de desconsideração, e n'esse ponto o governo, limitando se exclusivamente a exarar o facto «elevação do credito e vantagens connexas», nem se engrandeceu como dizem, nem deprimiu ninguem como pretendem, visto que deixou completamente á apreciação do paiz as causas efficientes d'aquella elevação.

N'esta enunciação de um facto, tão singela, e ouso dizer tão modesta, faz-se porventura censura a alguem? Ou eu não sei perceber o valor dos termos e idéas, ou o sentido das palavras que se acham consignadas rio discurso da corôa e na sua resposta não é realmente o que lhe corresponde (apoiados).

Grande peccado! Inconcebivel temeridade! «Atreveste-vos a dizer que o paiz folgava com a elevação do credito, para o qual nós concorremos. Não vedes que n'isso apoucastes todas as administrações passadas!» Não sei como os illustres deputados podem conciliar estas duas proposições oppostas! Não sei como podem ver desar para todos na commemoração d'aquillo em que todos cooperaram. Forçoso é que seja grande a prevenção, e se empregue muito engenho para se extrahir de tão claras phrases o que n'ellas se não contém. Realmente não valia a pena erguer similhante celeuma (apoiados).

O nobre deputado mesmo achou que o emprestimo não era mau. S. ex.ª chegou a confessar que não era mau, e tal confissão na sua bôca é muito expressiva. A commissão diz o mesmo; e o governo se julgasse desvantajoso o emprestimo não o contrahia, que era o seu dever. «Quanto mais sobe o credito mais vantajosamente se póde contratar» e mais lucra a nação. Tambem se não disse outra cousa. A habilidade está em fazer elevar o credito.

N'estas questões de emprestimos, se não fossem as obrigações do meu cargo, que impõem o cuidado de examinar e avaliar as circumstancias de que se acompanha uma operação de tal natureza, inclinar-me-ia a julga-las antes sob o seu aspecto geral, ao modo popular pela arithmetica... pela arithmetica de Bezout se quizerem. Quem contrata, insistirei, para receber o equivalente, pelo mesmo valor nominal, com o mesmo encargo, a 48 em vez de 47 1/4, de 46, de 44 ou 43 avantajou proporcionalmente o thesouro, que é da nação e não dos gabinetes.

Não tratemos já dos emprestimos recentes, que os illustres oradores adversos apenas de passagem mencionaram. Vamos mais longe ou mais fundo no que do passado se exhumou. Diz textualmente o discurso da corôa, e diz a resposta, cujos termos sou forçado a repetir, para sempre os trazer presentes á memoria: «esta operação effectuou-se em mais avantajadas condições do que as operações anteriores de igual género». Aqui está indicada a natural limitação do tempo e da qualidade. Sabem todos que o vocábulo anterior, supposto possa comprehender todo o passado, no sentido geral e commum se refere sempre a uma epocha proxima. Que fizeram os illustres deputados para fundamentar a affirmativa de que a commissão de resposta ao discurso da corôa não fôra rigorosamente exacta n'este ponto? Compararam o emprestimo actual, não aos emprestimos anteriores, mas aos antepassados. Recorreram a periodos de trinta e quarenta annos para achar apparencias de plausibilidade! (Apoiados.) Em vez de refutarem, confirmaram. Anteriores disse a commissão. Quem leva as investigações a tal distancia não está com effeito confirmando a asseveração?

Sr. presidente, estas materias especialissimas são naturalmente aridas; e eu, já o disse, nem sou competente para entrar n'ellas, nem me havia predisposto para tal, nem me faltam outras occupações e deveres! Creio porém que ha uma competencia geral, uma com que todos podem habilitar se: é examinar o que se escreveu.

Lendo o que está escripto vê-se que nas comparações citadas ha mais apparencias do que realidades. N'essas comparações apparece entre os oradores que impugnam a resposta uma especie de porfia de ancienidade. O illustre deputado o sr. Carlos Bento foi até 1834, e parou modestamente ahi. O illustre deputado o sr. Fontes, disputando-lhe a palma, repetiu o que estava dito de 1834, e foi até 1823.

«Fez-se um emprestimo em 1823 por preço muito superior ao do actual.» Fez. Mas foi sobre fundos de 5 por cento e não sobre fundos de 3 por cento. Mas ainda não havia a separação do Brazil. Mas não se nos apresentam as condições d'esse emprestimo, nem se nos diz o que d'elle entrou no erario, nem se nos refere o destino que teve. Essas eram todavia condições essenciaes á procedencia do exemplo. Basta a diversa natureza dos fundos contratados para annullar e invalidar toda a comparação.

Venhamos agora aos emprestimos de 1834. Tres foram elles n'um anno, ou antes dois, porque os primeiros se identificaram n'um só.

O emprestimo de 4.000:000 esterlinos de 3 de abril de 1834, que absorveu em si o de 1 do mesmo mez e anno, foi effectivamente contratado com a casa Rotschild & filhos ao preço de 67 1/2. Cumpre observar porém que era o cambio n'aquella epocha 4$000 réis por libra, o que, se não me engano, dá logo uma differença de 11 por cento para menos (apoiados). Esse emprestimo na sua maxima parte era applicado á conversão de titulos de 5 e 6 por cento, tornando-se por este modo, não uma operação sobre si, mas um complexo de operações, que se ligavam com outras, sendo preciso reduzir a calculo todas essas operações para se verificar o preço real. D'esse emprestimo, quasi uma quarta parte, 800:000 libras, foi vendida por preços diversos, descendo os mesmos preços a 56 e até a 55. Finalmente as condições do respectivo contrato foram ulteriormente e essencialmente alteradas. Ha pois elementos de comparação?

No emprestimo de 2.000:000 esterlinos celebrado ainda com a casa Rotschild, em 29 do mesmo mez e armo, as condições ordinarias foram tambem posteriormente modificadas, e o artigo 14.° do contrato d'aquella data dizia textualmente: «que se ao sr. Rotschild e ao agente financeiro occorressem outras condições, que podessem promover o objecto d'aquelle contrato, formariam essas a base de um ou mais artigos addicionaes». Poderão estas illimitadas e indefinidas concessões offerecer base de comparação?

Mas ha mais. No relatorio, que apresentou em data de 10 de maio de 1839, a commissão especial, nomeada por decreto de 18 de julho de 1838 pelo ministro da fazenda d'essa epocha o sr. Manuel Antonio de Carvalho, depois barão de Chancelleiros, a fim de examinar o estado da divida externa consolidada; n'esse relatorio, largamente instruido e acompanhado de todos os documentos que poderam ser colligidos, diz-se expressamente, de pag. 24 a 27, creio, como os srs. deputados podem verificar, que nunca se conseguiu saber ao certo a percentagem que d'estes emprestimos entrára no thesouro publico porque o agente não deu contas (apoiados).

Onde ficam, em presença de taes documentos, os 72 e os 67 por cento, onde estão os termos comparaveis, qual é a base em que se póde exercer um criterio imparcial e justo? Proporiam, approvariam, sustentariam os nobres oradores operações assim realisadas? Faço-lhes a justiça de acreditar que não.

E comtudo Deus me defenda de censurar quem as realisou. Não censuro, porque as circumstancias justificaram esses contratos, circumstancias cuja apreciação deixou de parte, segundo já demonstrei, o texto do discurso da corôa, e o texto da resposta correspondente. Taes como foram celebrados, esses emprestimos foram um grande serviço, deve-lhes muito a causa da liberdade, muito por tanto lhes devemos nós todos. Satisfizeram grandes e importantes necessidades, resultaram d'elles infinitas utilidades. Não censuro, historio; mas historio repondo os factos na sua verdade, historio completando o que se deixou truncado.

Desejo abreviar. Está exgotado o assumpto, e não posso lisonjear-me de captar sobre elle a attenção, necessariamente cansada de tão longo debate. Não o exijo tão pouco, nem tenho direito de o fazer. Não imitarei o nobre orador que me precedeu, reprehendendo a camara (apoiados). Se a camara quer conversar, converse; se quer passeiar, passeie... Pode ser tambem um meio politico... Quem o quizer empregar, empregue-o. Não me queixarei, nem irei por isso obsecrar nenhuma das fracções d'esta casa. Cumpro aqui o meu dever, e não me cabe empunhar a ferula parlamentar.

A preferencia fez hontem objecto especial da oração ou antes da objurgação do illustre deputado. Aos olhos de s. ex.ª a preferencia foi solemnemente estipulada, foi contratada, apesar de não entrar em nenhuma das condições do contrato. Mas como? Mas em que? Em dois telegrammas ao agente financeiro do governo. Nem sequer ao banqueiro. Uma simples prespectiva, uma possibilidade, foi por s. ex.ª convertida em solemne promessa, em palavra dada, em condição irrevogavel. D'ahi deduziu o nobre orador, com os muitos recursos do seu brilhante engenho, a existencia de um grave perigo. Não póde o governo contratar com outros sem dar logar a que este reclame. Peço licença para observar que estes perigos são puramente imaginarios; que os engrossa a voz da paixão, mas não têem fundamento real. Afasta-os de todo a igualdade de circumstancias. Sendo iguaes as circumstancias, isto é, sendo iguaes as vantagens offerecidas, que mais importa que se contrate com este ou com aquelle?

Se podesse haver perigo de reclamações, estaria unicamente na opinião exposta por s. ex.ª, sobretudo se a camara a approvasse, porque poderia fundamenta-las. Na falta de qualquer outro motivo, allegar-se-ia esse, e n'esse ficaria o perigo. Não é, não póde ser tal o intuito de s. ex.ª, porque seria contra os interesses do paiz.

A mais completa refutação d'este parecer de s. ex.ª acha-se nas palavras que depois lhe ouvi, que lhe ouviu a camara, e de que tomei nota textual. «O que importa obrigações reciprocas não se trata por cartas particulares». Se se não faz por cartas, como se ha de fazer por telegrammas? Supponho que nada mais preciso acrescentar...

Uma voz: — Por cartas particulares é que se não fazem.

O Orador: — De certo. Mas assim como ha cartas particulares, ha telegrammas particulares. Um telegramma que approvasse um contrato, que ratificasse as suas estipulações, seria tão válido como uma assignatura. Achar-se-hão estes telegrammas n'esse caso? Eis o que o nobre orador não demonstrou. Reputando a preferencia clausula integrante do contrato, suppoz s. ex.ª que havia sido ella imposta ao governo por invencivel necessidade e rigorosas circumstan-

Página 360

360

cias. Se assim fosse estaria o meu collega plenamente justificado aos olhos mesmo do nobre orador, visto que o nobre orador com igual rasão se justificou. Mas se assim fosse tambem a condição teria sido expressa no contrato, como cousa forçosamente derivada d'essa necessidade e d'essas circumstancias, do mesmo modo e pelo mesmo motivo que se deu com s. ex.ª quando contratou sob o imperio de taes circumstancias e necessidade (apoiados).

Nunca de certo aconselharei, nunca sustentarei que faltem os governos á palavra dada. Se a palavra obriga o homem, muito mais obriga a entidade moral chamada governo, que não falla só em seu nome. Forçoso porém é distinguir entre promessa e expectativa. Não seria decoroso illudir ninguem. Não concorreria eu para tal; mas onde as obrigações differentes rigorosamente procedem da diversidade intrinseca dos actos, não ha possibilidade de illusões, e se a houvesse os interessados saberiam acautela-la.

Pondera s. ex.ª, insistindo nas circumstancias que o obrigaram: «que o seu contrato foi celebrado ad referendum.» Não negarei nem impugnarei o valor das circumstancias allegadas. Não é esse o meu fito. Não desejo entrar no campo esteril das reconvenções que nada adiantam. Posto que a habilidade do negociador esteja em escolher as melhores circumstancias, se o póde fazer, reconheço que nem sempre se dá essa possibilidade diante de instancias de ordem superior, e ahi vejo um justo motivo de absolvição.

Pondo pois de parte as circumstancias que levaram s. ex.ª a celebrar tal contrato, e considerando unicamente as suas condições ad referendum, seja me licito observar que entre ellas figurava uma de qualidade necessariamente definitiva. Refiro-me ás 43:000 libras, quasi 200:000$000 réis, que s. ex.ª confessou haver logo saccado. Um Baque ad referendum! Mal sei como se poderá comprehender. Quem respondia por esta somma? S. ex.ª pessoalmente? E como respondia? Effectuado o saque não ficava logo inevitavel e forçada essa condição? E note-se que não havia opção, nem possibilidade de have-la. Era um acto consumado, era um encargo a que já se não podia fugir. Explicou o nobre -orador que a somma saccada era apenas um pagamento por conta de divida muito maior. Não o impugno, e acredito que assim fosse. Mas estava essa divida competentemente liquidada e devidamente legalisada? Havendo-se suscitado duvidas, questões — as mil difficuldades a que s. ex.ª se referiu —; questões e duvidas que deram logar a communicações e impressos que li, e com as quaes podéra por muito tempo entreter a camara e o publico; duvidas e questões que tanto se complicaram e tamanho rebate deram á opinião; era o governo o unico juiz e arbitro de taes contendas e d'aquella liquidação? Sem entrar mais na analyse d'estas particularidades, provando com isto o desejo sincero de não resuscitar um pleito findo apesar de chamado a isso pelo convite formal de s. ex.ª; sem entrar mais no exame d'estas particulares, basta o exposto para se concluir que a ponderação de ter sido feito aquelle contrato ad referendum, não colhe inteiramente, pois que uma parte d'elle, e parte essencial, era necessariamente obrigatoria, e como tal influia no resto.

Suppõe tambem s. ex.ª, e isso principalmente determina as suas censuras, que a preferencia actual, a preferencia não estipulada, prejudica os capitães nacionaes. Dada a igualdade de circumstancias o supposto prejuizo desappareceu; e a preferencia refere-se a igualdade de circumstancias. Mas s. ex.ª refutou a sua propria objecção, refutou-a do modo mais concludente, reconhecendo, como não podia deixar de reconhecer com a sua alta illustração e lição copiosa d'estes assumptos, reconhecendo e declarando — que os capitães não têem patria, são cosmopolitas, não passam de um instrumento. O capital nacionalisa-se com a applicação que recebe, nem tem outro cunho de nacionalidade. Nacionaes são, podem ser os seus possuidores. Por desgraça os possuidores nacionaes de fundos nem sempre mereceram, como hoje, os affectos e predilecções de s. ex.ª, predilecções que eu compartilho com o nobre orador, mas que applico por modo diverso. O beneficio de 1 1/2 por cento eventual, concedido em 1853 aos possuidores estrangeiros, com exclusão dos capitalistas portuguezes que tinham igualdade de direito, insurge-se contra esta recente dedicação. Justificar-se-ha s. ex.ª com as circumstancias que a isso o obrigaram; e tambem ahi o não censurarei, porque deixo as circumstancias de parte, e não entro na averiguação d'ellas, bem que a responsabilidade respectiva a alguem deva tocar. Não é todavia menos certo que se a nacionalidade dos capitães lhe deve agora grandes extremos, os seus actos como ministro não estão inteiramente de accordo com este novo sentimento.

Escuso referir-me ás propostas em que mais se tem insistido, pois que o nobre orador não póde deixar de reconhecer que foram feitas depois de celebrado o contrato. Não podia haver risco em offerecer, porque não havia obrigação de cumprir.

Argumentação temerosa — temerosa não para o governo, não para a maioria, mas para os impugnadores do gabinete e os seus amigos — me pareceu a de s. ex.ª quando se referiu ao augmento de 1/2 por cento no preço primitivo do contrato. Condemnou-a por ser uma novação! Dado que o fosse, e não concordo que o seja, seria apenas novação para mais. As d'esta ordem não são vulgares na nossa historia financeira o economica. Com que rasão se condemnaria pois uma novação para mais, quando se tem approvado e applaudido, creio que até applaudido, tantas novações para menos!

«Concordou a casa Stern Brothers na elevação do preço a 48 por cento? Acto inqualificavel! perigosa vantagem! Os banqueiros não contratam senão para ganhar. Elles que proporcionaram essa vantagem é porque esperavam lucro equivalente». E onde estão os banqueiros philantrhopicos que despejam gratuitamente as suas arcas nos cofres do estado? Onde estão as casas bancarias que querem reduzir-se á mendicidade em beneficio exclusivo d'aquelles com quem contratam? Certamente o dinheiro é mercadoria como outra qualquer. Quem n'ella commercio não é para perder. Mas esse não é attributo especial e exclusivo da casa Stern Brothers. Se é perigosa a vantagem contratada com esse banqueiro, não vedes que suscitaes iguaes apprehensões contra quaesquer outras offerecidas? Perigosa!... Perigoso, mais que tudo perigoso, é esse argumento de suspeição que por este modo se volta contra os mesmos que o empregam.

Lucrara os banqueiros, quaesquer banqueiros, com o desenvolvimento do credito? Tanto melhor para elles; mas tambem tanto melhor para o paiz. Feliz coincidencia que permitte aos argentarios o ganho, e dá á nação os meios de adquirir os instrumentos necessarios para aproveitar a sua riqueza.

Queixou-se o illustre deputado do rigor com que nos tempos a que se referiu foram julgados os seus actos. Terá rasão; mas as contas d'essa epocha poderá toma las a muitos que são hoje seus amigos politicos. Se o calumniaram sinto-o por s. ex.ª, e sinto-o por todos. Ainda mal que assim foi, é ainda mal que o sestro se não perdeu. Podia s. ex.ª errar apesar de illustrado, como têem errado os homens mais notaveis, mais esclarecidos e mais conscienciosos, porque homem é tambem, e errare humanum est. Podia errar, erraria, mas nem por isso é a calumnia menos erro, menos vicio e menos crime. Extranhar-se-ha só que tendo tanto horror á calumnia quando o offende, não a condemne igualmente quando os tiros d'ella partem do seu lado.

Ha differentes especies de calumnias: ha a calumnia de Pasquino e a calumnia de D. Bazilio; ha a calumnia das praças e a calumnia que tanto ao vivo representou um espirituoso auctor dramatico n'uma das suas mais festejadas e applaudidas composições scenicas; ha esta calumnia tambem, calumnia apurada, calumnia perfumada, calumnia segredada, calumnia elegante, calumnia polida... Polida como o aço, mas cortante como elle. Essas calumnias detesto-as a todas igualmente! (Vozes: — Muito bem.)

Detesto, e o que me dá o direito de as detestar é que não censuro umas para incitar as outras, é que não afago nenhuma d'ellas, é que tenho por todas igual tedio e repulsão. Para mim a calumnia é sempre calumnia, sejam quaes for as vestes que trajar, seja qual for a mascara de que se cobrir, sejam quaes for os disfarces em que se envolver! (Muitos apoiados.) Pouco importam as exterioridades, o acto será sempre odioso. Não sorriu affavelmente á calumnia que punge os meus adversarios, não trato, não pactuo com ella. Ou vá ferir o meu mais encarniçado inimigo, ou se dirija ao mais dilecto dos meus amigos, abomino-a do mesmo modo, proscrevo-a igualmente. É calumnia, e basta. (Vozes: — Muito bem.) Não a quero para attacar, não a quero para me defender. Não festejo o vilipendio dos contrarios para só o maldizer quando me toca!

Não sei se ha quem acompanhe o apparato da urbanidade com o recurso ás saturnaes da palavra; quem na presença do mundo componha o rosto e os modos, e no recato do gabinete recorra ás velhas tradicções, aos sarcasmos decrepitos e ás diffamações caducas. Dizem que ha. Não sei. Não o conheço, nem o sigo. Que haja; não o censuro, deploro-o. Devo até suppor que não existe, porque seria uma monstruosidade moral, porque seria um absurdo politico. Absurdo politico certamente, porque essa politica passou! (Apoiados.)

Sou filho da imprensa, e glorio-me da filiação. Com anciã desejo e espero voltar a ella. Os abusos que se fazem d'essa instituição protectora das liberdades não me induzem a perder-lhe o amor. Os que abusara desacreditam-se, mas não conseguirão desacredita-la. «A imprensa — com muito acerto o disse o orador da commissão, cuja voz crente e juvenil, sincera e eloquente, tanto applaude e estima a camara - a imprensa a si mesma se corrige.» E será esse o mais efficaz e seguro correctivo. Será uma nova regeneração, regeneração verdadeira, porque modificará os costumes politicos, e substituirá ao tumulto dos convictos a influencia dos raciocinios. Começou já. Se alguns jornaes persistem nas praticas nefandas que a opinião condemna, outros, fazendo profissão de cordura e sizudeza, elevando o encargo á altura de um sacerdocio, honrando-se a si e ao paiz, attestam que o movimento das mais escolhidas intelligencias segue outra direcção. Estes exemplos são ao mesmo tempo uma condemnação do mal e um estimulo para o bem. Estes emendarão aquelles, ou os substituirão (muitos apoiados).

Terminarei ácerca da questão do emprestimo com uma expressiva phrase do nobre orador: «ha paizes onde os fundos de 3 por cento têem maior valor, porque esses paizes têem melhor politica». É justamente a paraphrase, senão é a confirmação, da famosa maxima do barão Louis, que, se não me engano, s. ex.ª quiz impugnar; «dae-me boa politica, dar-vos-hei boas finanças». Ha com effeito paizes, mais adiantados já em prosperidade, onde os fundos de 3 por cento têem maior valor. Sobe o valor dos fundos porque a politica melhora. Aceito a confissão, quando está mais alto o preço dos fundos. Noto o commentario ás difficuldades financeiras, que s. ex.ª mencionou fallando da sua gerencia. E pelo menos singular que profira tal sentença a mesma bôca d'onde saíram estas palavras: «quando negociei achei sempre obstaculos; não se me offereciam propostas, tinha eu de solicitar contratos!» Inútil seria ir mais longe. Que poderia acrescentar? (Apoiados.)

Entremos agora n'outra parte do discurso do illustre deputado, a quem respondo. Allegou s. ex.ª que a sua exhumação do passado fôra provocada por um sympathico orador da maioria. Observarei que o orador da maioria não fez mais do que responder ao illustre deputado, meu esclarecido amigo, que encetou este debate. Se houve provocação veiu d'esse lado. Desse lado partiu o doesto «não fazeis senão cartazes»! Foi um repto formal, que logo nos impoz a mais formal obrigação.

Pouco importa averiguar quem faz cartazes. O paiz só se preoccupa das realidades que se conseguem. Isso investigarei, porque unicamente isso é util. Insinuou o nobre orador que todos os grandes commettimentos pertenceram ás administrações de que fez parte. Da primeira, sobretudo, declarou que viu realisados todos os melhoramentos que emprehendêra. Se assim fosse, o que tocaria aos outros? Façamos justiça a todos. Justiça igual, para ser justiça (apoiados). Contemos a historia inteira, enchendo as lacunas da historia mutilada.

Vejamos primeiro o capitulo das promessas. Não irei revolver os archivos da camara. Seriam ahi innumeraveis os exemplos dos projectos abortados; e á camara nem sempre póde chegar o tempo para examinar n'uma só sessão tudo o que se lhe apresenta, principalmente quando se intercallam nas uteis discussões prolongados e diffusos debates de expediente politico, como se faz agora. Não revolverei os archivos da camara, ainda que s. ex.ª teve mais desassombrada vida parlamentar. Encontrarei a mais solemne promessa n'uma lei do estado. E não em qualquer lei, senão na propria lei fundamental, n'uma disposição proposta, apresentada e approvada pela situação a que me refiro e s. ex.ª representa. Diz textualmente o artigo 13.° do acto addicional: «nos primeiros quinze dias, depois de constituida a camara dos deputados, o governo lhe apresentará o orçamento da receita e despeza do anno seguinte». Era esta no regime representativo a obrigação das obrigações. E como foi desempenhada? Falle o argumento incontestavel das datas. Em 1852 foi a camara constituida em 17 de janeiro, e o orçamento foi apresentado em 15 de março. Em 1853 constituiu-se a camara em 31 de janeiro, e o orçamento apresentado em 19 de fevereiro com data de 12. Em 1854 foi constituida a camara em 5 de janeiro, e o orçamento foi apresentado em 28 com data de 20.

E a lei do estado dizia apresentar-se-ha, e não datar-se-ha!

Aqui está como se cumpriu a mais importante promessa do governo constitucional por parte de quem a fizera e a lavrara!

E não se podia n'isto allegar o impedimento das opposições, porque ahi o desempenho dependia exclusivamente dos governos. Podem todavia as opposições ser impedimentos. Podem. Tem-no sido, e bem vimos como o foram ainda o anno passado (apoiados). Tambem não as censuro. Procedem como entendem. Têem faculdade para o fazer, mas o paiz tem igualmente a faculdade de julga-las (apoiados). Usam de um direito, mas corresponde-lhes uma responsabilidade.

Já aqui ouvi na anterior sessão dizer-se: «que a opposição não tinha responsabilidade». Ouviram todos como eu. Não aceito por honra sua similhante doutrina. Como corpo politico, a opposição exerce uma acção directa ou indirecta nos negocios publicos. Pelo que resulta de tal acção responde ella e só ella. Para que não tivesse responsabilidade era preciso que não tivesse intelligencia, que não exercesse influxo, que não estivesse sui júris. Eis o que se não póde aceitar; eis o que a propria opposição não aceitará. Pois que! Ha de a opposição impedir, estorvar, pôr obstaculos, e não ha de responder por isso? Não póde ser, não póde ser porque não deve ser. «Se vos obstamos, passae» observam-nos. A maioria passa, e responde quando passa; mas dos actos da opposição responde ella. Usa de liberdade a opposição, e esse uso tem uma responsabilidade equivalente. Estes os verdadeiros principios constitucionaes. Não comprehendo opposição sem taes principios. É a homenagem que lhe tributo (apoiados. — Vozes: — Muito bem.)

Continuemos a indagar o cumprimento das promessas.

O decreto de 30 de agosto de 1852 foi tambem uma solemnissima promessa. Prometteu-se applicar o fundo especial de amortisação á construcção do caminho de ferro do norte. E o fundo especial de amortisação não se applicou a esse caminho (apoiados).

Prometteu-se no discurso da corôa prover legislativamente ácerca dos cereaes e dos vinhos. E as promessas ficaram em aberto (apoiados). Prometteu-se mais abolir o commando em chefe dentro em seis mezes ou um anno, e o commando em chefe continuou.

Quantas promessas não cumpridas se poderiam mais citar. Bastaria reler á camara as sessões do mez de abril de 1856, que o nobre orador poderá ter esquecido, mas que de certo não esqueceram nem ao paiz nem aos que n'ellas tomaram parte. Não o faço, não o farei agora, porque não desejo ir alem dos limites impostos, porque o meu fim não é retaliar, mas unicamente rectificar. Não arguo, porque se não realisou tudo; faço a justiça de acreditar que todos os homens publicos desejam o bem do seu paiz levando á execução quanto lhes é possivel. Indico sómente a profunda injustiça com que procedem os mesmos que d'essa injustiça se queixam.

Celebrou igualmente o nobre orador a economia da sua gerencia. Encaremos de perto essa economia. No orçamento de 1851-1852 assignado ainda pelo ministro da fazenda, o sr. Antonio José d'Avila, a despeza era de 12:600 e tantos contos. No orçamento de 1852-1853 assignado já pelo ministro da fazenda, o sr. Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello, a despeza era de 13:500 e tantos contos, 900:000$000 réis para mais. Não é grande a economia? (apoiados).

Effectuaram-se reducções, é verdade. Effectuou-se uma reducção nos vencimentos já exiguos dos servidores do estado, impondo-lhes mais meia decima. Effectuou-se outra reducção nos juros da divida publica por meio de uma conversão, não facultativa como é de uso, mas violenta e forçada. Reducções d'estas em epochas anormaes

Página 361

361

não são de grande difficuldade. Compare-se agora essa situação com os encargos que d'ella herdaram os seus successores. Veja-se como estes successores, comprehendendo o actual gabinete, começando pelas classes mais necessitadas, têem progressivamente procurado attenuar os sacrificios desigualmente impostos aos funccionarios de todas as ordens. Pondere-se tudo, e não tirarei eu as consequencias.

Herdou, tambem a presente administração graves onus e deveres das administrações anteriores. Cumpria-lhe satisfazer ás despezas extraordinarias, tanto do novo systema de viação, como de muitos outros melhoramentos indispensaveis. Parece extranhar s. ex.ª que se recorra ao credito para pagar essas obrigações e acquisições. Professa uma nova doutrina, e entende que se poderia fazer face a estes encargos extraordinarios, que só nos caminhos de ferro não eram inferiores a 10.000:000$000 réis reduzindo as despezas ordinarias. Porque milagrosa operação tiraria s. ex.ª de taes reducções 10.000:000$000 réis n'um anno? Em que paiz se conseguiu jamais extrahir das despezas correntes estas verbas extraordinarias?

Em 15 de abril de 1856 um distinctissimo ornamento da maioria, que então apoiava o gabinete de que s. ex.ª era ministro da fazenda, dizia o seguinte:

«Eu não creio n'essas reducções de despeza, não creio n'essas economias como meio de crear receitas para os melhoramentos do paiz, para o desenvolvimento da sua riqueza; creio n'ellas, e desejaria que se dessem, para o augmento, a que é indispensavel e urgente attender, de certas despezas de serviço publico, d'isso a que se chama despeza corrente.»

Já vê a camara qual era n'essa epocha a doutrina da situação representada por s. ex.ª Doutrina que o nobre orador apoiou como sua, doutrina excellente, doutrina que eu não impugno quando sinceramente applicada, doutrina que muitas vezes sustentei antes de ser ministro. «É preciso alargar os serviços publicos», dizia-se então, e dizia-se bem, porque ao passo que a civilisação progride augmenta o quadro d'esses serviços, e ninguem póde obte-los sem os remunerar. As economias são justas, são necessarias; mas a verdadeira economia não é gastar insuficientemente para desaproveitar e desperdiçar muito; é zelar o emprego dos dinheiros publicos; é tornar a sua applicação a mais productiva e a mais fecunda (muitos apoiados). Os sacrificios violentos, as reducções forçadas, podem ter sido medida salvadora, mas não podem ficar para normas permanentes. Foram amputações dolorosas. Não se ha de amputar todos os dias. Uma amputação póde salvar uma vida, comprehende-se; mas é uma vez. Se a repetirem, se forem successivamente destroncando o enfermo, não escapa de certo. Não morre da doença, mas succumbe com o remedio (riso).

A mesma voz auctorisada, a que já me referi, continuava, com approvação de s. ex.ª: «a riqueza do nosso paiz não póde desenvolver-se sem viação, sem um systema bem combinado de communicações; é por isso que eu quero o credito, e não receio que para isso se applique».

E a que é hoje applicado o credito? Não é exactamente ao mesmo? Não é para effectuar e completar o desenvolvimento da viação, instrumento de publica riqueza, condição necessaria de toda a prosperidade, e até elemento indispensavel do mesmo credito? (Muitos apoiados.) Todavia receia-se agora o que se não receiava então! (Apoiados.)

«Mas nós iniciámos e realisámos os grandes melhoramentos». Quem tal ouvisse, quem exclusivamente acreditasse as descripções apaixonadas do espirito partidario, concluiria - que tudo ficou feito, que hoje o tempo se consome em ocio funesto, que as sommas levantadas se desbaratam em prodigalidades ruinosas. Contra similhante injustiça protesto em nome da rasão e da verdade (apoiados).

Iniciastes essa epocha. Não vos imitarei negando-vos a gloria e o louvor que vos cabe. Iniciastes muito na ordem dos interesses materiaes, que não são tudo, porque nem só de pão vive o homem. Mas o que deixastes para fazer era comparativamente immenso, e os vossos successores não pararam.

Iniciastes, e para iniciar lutastes com graves difficuldades. Não offuscarei os serviços que s. ex.ª prestou ao paiz; e para lhe provar a minha imparcialidade mencionarei o que s. ex.ª esqueceu. Tambem n'isso buscarei supprir as omissões da sua historia; porque s. ex.ª... ainda que não queira... tambem é historico, e é historico porque pertence á historia.

O sr. Fontes: — Sou historico da minha historia.

O Orador: — Seria só biographia. A sua historia entra na historia geral. Nem póde ser só de meia historia, porque seria apenas meio historico, e o paiz preza muito s. ex.ª para o executar com essa especie de sentença de Salomão. (Hilaridade. — Apoiados.)

Fez tambem o nobre orador serviços que não relatou e eu lembro agora; e um d'elles, e dos maiores, e dos de mais alcance economico, foi pagar em dia, exemplo fielmente seguido (apoiados).

Nada encubro; a ninguem deprimo; a verdade completa. E a verdade completa é que o espirito de iniciação não esmoreceu; é que os melhoramentos começados continuaram apesar de todos os estorvos; é que outros novos se têem emprehendido e proseguem.

Durou a primeira regeneração de maio de 1851 a junho de 1856, mais de cinco annos; durou a segunda de maio de 1859 a julho de 1860, pouco mais ou menos dezeseis mezes; ao todo seis annos e meio. O tempo de gerencia dos seus successores tem sido proximamente igual. Em estradas ordinarias, as duas regenerações construiram 553 kilometros, 90 por anno. Os outros gabinetes...

Uma voz: — Historicos.

O Orador: — Sejam historicos: para mim são todos historicos. Os outros gabinetes construiram 879 kilometros; 146 por anno.

Considerando separadamente as duas epochas da regeneração, porque a segunda foi n'esta parte muito mais activa —construiu a primeira 393 kilometros, 78 por anno; construiu á segunda 160 kilometros, 12 por anno. O actual gabinete, tomando o periodo de 1 de janeiro de 1882 a 30 de setembro de 1863, — vinte e um mezes, em que apenas se comprehende pouco mais de um mez de gerencia anterior, tambem historica, construiu 373 kilometros; 205 por anno.

Deixaram em construcção — a primeira regeneração 78 kilometros, a segunda 123. Acham-se em construcção 326 kilometros!

Em linhas telegraphicas as duas regenerações construiram 873 kilometros; os outros gabinetes construiram 1:331.

Em caminhos de ferro, a primeira regeneração deixou construidos 35 kilometros, isto é, a secção ao Carregado, que só foi aberta á exploração em 26 de outubro de 1856. D'esta data em diante abriram-se á exploração 408 kilometros. Todas as respectivas secções no tempo dos gabinetes historicos, pois que historicos lhes chamam; pertencendo todavia á segunda regeneração os trabalhos effectuados nos dezeseis mezes da sua gerencia. Acham-se promptos 700 kilometros; aberta á exploração a linha até Elvas; já inspeccionada a linha do Porto, que em pouco tempo se abrirá.

Uma voz: — E a linha de Beja?

O Orador: — É verdade, a linha de Beja tambem, que vae proximamente abrir-se.

Arguir-se-ha com rasão a inercia de uns para exclusivamente exaltar a actividade dos outros? Bem podia agora em presença d'este quadro fazer largas comparações! E não nos seriam ellas desvantajosas. Não faço. A camara apreciará se obedeço ou não aos conselhos da verdadeira moderação. O que está feito é do paiz. Quem o fez cumpriu o dever. Cada qual fez o que pôde: não disputemos o quinhão de cada um. Se n'isso ha honra, seja para todos. Das palmas d'esses melhoramentos não vos negámos o que vos pertence: esta é a justiça. Muitas vezes discordei no modo de os começar e realisar. Discordo ainda. Quanto á sua necessidade e conveniencia, o accordo é unanime (apoiados). E ninguem se ufane em demasia. N'um regime como o actual nenhum homem conseguiria similhantes resultados, se não fossem as forças collectivas e intelligentes da nação. Melhor é pois, melhor e mais justo felicitarmo-nos do que degladiarmo-nos (apoiados)!

Nesse quadro que vos apresentei está representado o valor dos emprestimos que impugnaes (apoiados). São novos meios de fortuna para o paiz.

Pois que de emprestimos tornei a fallar, seja-me permittida ainda uma observação. Todos sabem, todos ouviram como o emprestimo do anno passado foi combatido. Este anno já esse emprestimo parece excellente. Em 1863 a operação effectuada provocava todas as criticas, e sobretudo a reserva das 500:000 libras, aquella famosa reserva, era pintada com as mais odiosas côres. Em 1864 a reserva é applaudida, e a operação tem-se por tão boa, que o illustre deputado, o sr. Carlos Bento, até nem consente que outra se repute melhor. Ha n'isto um perigoso incitamento a fazer novos emprestimos. (Riso. — Apoiados.)

O emprestimo de um anno é a absolvição do emprestimo de outro anno. Não os aconselho ao meu collega, porque tambem entendo que cão se deve abusar do credito. E justo que pague o futuro os beneficios que ao futuro aproveitam; mas n'isto mesmo ha limites, e eu respeito esses limites. Estão porém os illustres deputados com este modo de impugnação provocando os governos a multiplicar os emprestimos. Se para o anno se fizesse outro (e espero que se não fará), seria este glorificado. Pois se fosse contratado a 50! Provar-se-ia até á evidencia que o preço de 50 é inferior ao de 58, como hoje se demonstra que o de 48 é inferior ao de 44! (Riso. — Apoiados.)

Passemos á questão que me forçou a pedir a palavra, como já disse. É a questão da solidariedade, na qual me não conformo com os novissimos principios e singulares doutrinas que ouço proclamar.

A camara permittir-me ha que descanse um instante (apoiados). Não tenho a fortuna de possuir pulmão assas robusto para trovejar nas assembléas, e fatigo-me.

Vozes: — A hora está quasi a dar, póde ficar com a palavra.

O Orador: — Peço á camara que me consinta acabar hoje. Não desejo arrastar a palavra de sessão para sessão, nem quero tão pouco abusar da sua attenção.

(Pausa.)

O sr. Sant'Anna e Vasconcellos: — Peço a palavra para um requerimento antes de se fechar a sessão.

O Orador: — Sr. presidente, requeiro a v. ex.ª queira consultar a camara para que se prorogue a sessão até concluir.

Vozes: — Falle, falle.

O Orador: — Abreviarei quanto podér. Entremos na questão da solidariedade ministerial.

O illustre orador, apesar da sua provada cortezia, exclamou em tom pouco lisonjeiro: «que nós, os ministros, só eramos solidarios com aquellas cadeiras (as do ministerio)». Não sei se póde isto reputar-se amabilidade, não sei se é assim que se amenisam os debates, se evitam as provocações, e as paixões se não irritam. Não sei, não quero sabe-lo. Se o illustre deputado quiz dizer que somos solidarios com Os deveres que n'aquelle logar se contrahem, de accordo. Sou solidario com esses deveres, e hei de cumpri-los (apoiados). Hei de cumpri-los, por mais amargos que elles sejam. Ignoro se as cadeiras de ministros fizeram jamais as delicias de alguem; as minhas ou dos meus collegas, não. Ainda lhes não experimentámos senão espinhos. É um supplicio continuo, que só um imperioso sentimento obriga a supportar. Nenhuma compensação em troca, nem mesmo a de poder fazer ao paiz todos os serviços que se desejam. E devo crer que não só a mim e aos meus collegas assim acontece; é a todos que ali se têem sentado. Admira só que nos inculque vinculados por qualquer consideração alheia ao estricto dever quem já deve apreciar o que ali se padece! A insinuação não tem o merito do nova, anda ha muito no arsenal das diatribes banaes, e deve reputar-se inferior á gravidade e recursos do illustre orador.

Dão-nos por afferrados ás pastas! Tendes diante dos olhos um exemplo. Ali está o sr. Braamcamp, hontem nosso collega; sempre nosso amigo, que mereceu a honra insignissima de ser atrozmente injuriado quando ha pouco deixava o ministerio por extremos de pundonor (muitos apoiados). E honra insigne chamo a essas injurias, porque são a prova mais cabal da certeza que se tem do seu firme caracter (muitos apoiados). Vede se lhe divisaes no rosto os signaes da inquietação turbulenta, da insoffrida impaciencia, que revela o fito unico e incessante do assalto ás pastas! Vede se esse nobre cavalheiro não saíu das cadeiras do governo para a de deputado, fiel aos seus principios, fiel aos seus amigos, inalteravel no auxilio aos seus collegas! Vede se elle, elle como alguns outros venerandos estadistas, faz da sua disponibilidade um motivo de opposição! Vede finalmente se lhe notaes saudade, ou se antes lhe não descobris satisfação. Pois como s. ex.ª pensâmos e sentimos nós todos!

Fui occupar aquelle logar com dolorosa e quasi invencivel repugnancia, porque já sabia o que ali me esperava. Fui á ordem... á ordem, sim, sabem-o muitos!... á ordem de uma patriotica voz, que já não pertence á terra, e que me intimou com o mais admiravel desprendimento - que esta era a obrigação (apoiados). O que n'essa occasião disse perante esta camara, repito-o agora com mais empenho. Entrei constrangido, sairei alvoroçado! O dia em que tal acontecer será um dos mais felizes da minha vida!

Dá-se a entender que só a ambição ali nos tem. Que tal dissesse um tribuno novato, entrando pela primeira vez na vida publica, aceitando com as illusões e a candura dos primeiros annos por genuina significação a deploravel phraseologia dos partidos, percebia-se. Mas um homem experimentado nas lides politicas, um homem que já foi membro do governo, que necessariamente aspira a se-lo de novo... porque a opposição é opposição para substituir o gabinete; porque s. ex.ª quando toma a vanguarda d'essa opposição não é certamente para a abandonar na hora opportuna; porque só justiça lhe faço pensando que ha de cumprir o seu dever em tal occasião!... um homem n'estas circumstancias não hesita na trivial e imprudente ironia, não resiste ao appetite de repetir a gasta e sempre eterna arguição «unicamente com essas cadeiras sois solidarios, porque vos não retiraes ao meu aceno!» Mas retirar porque? Mas retirar de que? Mas retirar em nome de quem? Da minoria? (Apoiados.) Se quereis verificar se somos solidarios com o dever, com os principios, com o espirito da constituição, fazei-vos maioria! (Muitos apoiados.)

Porque nos doestam? Porque não acompanhámos um nobre caracter, um honrado militar, um exemplar cidadão, o sr. visconde de Sá, em summa, quando ha pouco se retirou?

São de tres ordens as considerações que n'este caso cumpre fazer: relativamente ao facto, relativamente á doutrina, relativamente aos precedentes.

Declarou já aqui o sr. presidente do conselho, o declarou a verdade — nem é preciso confirma-lo, basta have-lo proferido s. ex.ª porque á sua voz não faltou ainda a authenticidade (muitos apoiados) — declarou já o nobre presidente do conselho que a reforma do exercito, levada á execução em virtude da auctorisação parlamentar, não fôra submetida ao conselho de ministro. O nobre visconde de Sá da Bandeira, a quem ss. ex.ª não prestam de certo homenagem do mais sincero respeito do que eu, respondendo nobremente pelo que era obra sua, o só podia ser obra sua, retirou-se, porque o julgou conveniente, antes de haver votação da camara que o obrigasse. Um illustre deputado da opposição havia apresentado um projecto propondo a suppressão d'aquella reforma. Esse projecto foi enviado a uma com missão, não sem audiencia do illustre general como o nobre orador affirmou, mas só sem audiencia dos seus collegas porque elle tudo quiz tomar sobre sr. E não foi este só o equivoco do nobre orador. O decreto que approva a reforma não foi publicado a 23 de dezembro, como tambem expoz. Tem a data de 23, mas foi publicado a 30, e a reforma approvada só nos Diarios de 4, 5 e 7 de janeiro seguinte. Estava pois decretada mas não publicada quando no discurso da corôa se consignaram os factos principaes do periodo decorrido. Por isso tambem o discurso da corôa unicamente diz decretou-se. O governo não podia solidariamente responder por mais do que per esta affirmativa, porque não tinha conhecimento do mais. Expoz-se uma verdade, e o gabinete responde por essa verdade.

Celebrou a opposição com pomposos elogios a saída do sr. visconde de Sá, collega sempre presado e respeitado do nós todos, e de quem conservaremos as mais gratas recordações e as mais vivas saudades. Mas quem se illude com taes apotheoses? Elogiou-se o sr. visconde de Sá porque saíra, e esperava-se abalar por este modo o gabinete. O nobre visconde é muito superior a estes artificios, assas os conhece, e mal o aprecia quem pensa por tal modo attrahi-lo!

Está visto: os ministros só podem ter uma qualidade e uma virtude, é deixarem o logar aos pretendentes á successão. Para não irritar os debates favorecemos diariamente com os maiores vituperios. «Devassos, corruptos, insignificantes,

Página 362

362

ineptos», esquecendo unicamente as provas correspondentes. Não se enfraquece um determinado governo, torna-se impossivel todo o governo. Não se impugna um acto, arruinam-se todas as bases, destroem-se todos os principios da auctoridade. Servir-me-hei de uma imagem antiga, mas a verdade tambem é antiga, e não envelhece. Faz se como fazem os selvagens: corta-se a arvore para se lhe colher o fructo. Depois, quando se consegue ser governo, acham-se as difficuldades d'esta propaganda tumerosa, luta-se com o mal assim exercido e com as falsas noções creadas por tal perversão de idéas, não ha força moral diante das contradições flagrantes, succumbe-se tristemente affogado n'esta serie de erros que o paiz amarga. E é assim ha muito. E nem a experiencia trás o desengano. Não faltam exemplos d'estas verdades; estão até presentes. O illustre deputado, o sr. Carlos Bento, não vae longe o tempo, já foi victima d'essas licenciosidades da palavra. Deram-o tambem por corrupto, devasso, insignificante e inepto, não eu, não nós, mas aquelles ao lado de quem hoje se acha. De um dia para o outro mudou tudo. Em vinte e quatro horas recuperou os talentos, que sempre lhe reconhecemos. E d'onde procede a prodigiosa metamorphose? Tinha saído do ministerio (hilaridade). Tinha saído do ministerio, e esperava se que passasse para a opposição. Ser opposição dá o diploma de toda a capacidade.

Não ha de certo mais justos e merecidos louvores do que os tributados ao eminente caracter e ao grande coração do nobre visconde de Sá, ao honrado veterano, ao glorioso mutilado a quem tanto deve a liberdade e o paiz. Como haviamos de extranha-los, nós que sempre sinceramente os repetimos? Mas será a sua saída do actual gabinete o unico motivo de louvor para um homem que tem gasto a vida em continuos serviços á patria? Não repara o nobre orador que por este modo quasi offende a memoria d'aquelles serviços, nem sempre igualmente apreciados e reconhecidos pela opposição? Não se lembra a camara de como ainda o anno passado o illustre general foi aqui affrontado de doestos, que o respeito me véda repetir e manda occultar! (Muitos apoiados.)

Em presença de tão singulares procedimentos facil é perceber quaes os intuitos com que o illustre orador, citando o nobre visconde perante a lei de 23 de junho de 1855, e citando-o incompetentemente como logo mostrarei, nos declarou que o accusavamos, declaração que ninguem seguramente tomou a serio, começando por s. ex.ª (Muitos apoiados.)

Violação de lei! Onde está? Como se prova? Já examinâmos. Antes d'isso, seja-me licito recordar outra phrase do illustre orador que está em bem evidente desaccordo, já com os interessados e suspeitos encarecimentos de agora, já com o seu transparente desígnio politico. Disse s. ex.ª: «o governo não se retira diante de nenhuma manifestação, porque manifestações já ha de sobra para fazer caír dez gabinetes». Quaes manifestações? As da vontade de s. ex.ª? E não ponderou tambem s. ex.ª que n'essas palavras dirigia uma grave accusação e uma acre censura ao mesmo cavalheiro que pretendia lisongear? Não fazia o sr. visconde Sá ainda parte do gabinete quando tiveram logar essas alludidas e suppostas manifestações (apoiados), manifestações que não passaram de inversões da arithmetica? (Apoiados.) Se taes manifestações fossem o que inculcaes, como teria ficado no gabinete o sr. visconde, cuja nobreza de caracter agora reconheceis, cujo pundonor agora confessaes e ninguem põe em duvida? (Apoiados repetidos.) Não estava, e não ficou ao lado dos seus collegas? Teria deixado de cumprir então o dever que hoje cumpriu? (Apoiados.) Tal é a força de evidencia, tal é o resvaladio da posição, tal é a fragilidade dos pretextos, ou o perigo do costume, que o nobre orador, mesmo quando lhe convem louvar, não póde deixar de offender! (Apoiados.)

Este o facto, ou antes estes os factos.

Passemos á doutrina. A doutrina é a plena justificação do gabinete, e seria a do nobre visconde se precisasse d'ella como não precisa. Os novos principios de solidariedade que se proclamam hoje, chamando-lhes constitucionaes, têem-me causado a mais profunda estranheza. Quizera que ss. ex.ªs me indicassem que doutrinario, que auctoridade, que mestre de direito publico os ensina, taes como na actualidade se expõe na imprensa e na tribuna. E Chaning, Vitet, Tocqueville ou Laboulaie? Tenho procurado a confirmação d'essa theoria novissima, e não a encontro. Nem a encontrarão os nobres oradores para authenticar a sua interpretação. Não a encontrarão nem ao menos no diccionario politico de Garnier-Pagés, tão conhecido e consultado, onde nem sequer vem a palavra solidariedade.

E todavia a solidariedade existe, deve existir, é um principio; mas esse principio só ha de ser applicado nos limites do rasoavel e do justo, de accordo com o bom senso, de accordo com as praticas. Levar a solidariedade a tudo, fazer d'ella um perenne pretexto, não é torna-la respeitavel, é faze-la impossivel. Com as doutrinas dos nobres oradores não podiam os governos dar um passo. Era preciso que todos os ministros fossem universaes; era preciso que todos os pormenores da administração se sujeitassem á approvação previa e commum. Nos ministerios, como em todos os corpos politicos, ha a responsabilidade collectiva e a responsabilidade individual. Sem esta differença não podem elles viver. Um grande mestre de direito publico constitucional, um escriptor que se póde considerar o patriarcha das liberdades modernas, Benjamin Constant, ponderou com summo tacto e grande previdencia — que não havia maior perigo para as constituições do que fazer tudo constitucional. E é effectivamente assim. Igualar o que deve ser fundamental, como a justiça e como a rasão, ao que necessariamente varia com a variedade das circumstancias, é fazer acreditar ao vulgo que faltam aquelles preceitos, a solidez e estabilidade, é costuma-los a perder lhes o respeito, é finalmente lançar a perturbação nas sociedades.

São solidarios os governos, mas rio que o devem ser. Combinam-se, consultara-se em conselho de ministros os principios e as bases. Esta a responsabilidade collectiva. Na execução, sobretudo na execução especial e technica, principia a responsabilidade individual. Entendeu-o assim o nobre visconde de Sá, e entendeu bem.

Não é technica e especial a administração do exercito? Tão especial se julga, que a pratica tem consagrado o escolher-se para elle um homem especialissimo. Os principios da reforma, cuja auctorisação se pediu, foram concordados em conselho. Se a auctorisação fosse negada, o ministerio caía solidariamente no que era solidario. Se depois de concedida não fosse executada, e por isso desse o parlamento um voto de censura, caía do mesmo modo, e caía obedecendo aos verdadeiros principios de solidariedade. Não succedeu porém assim. Na execução technica da auctorisação, o nobre visconde de Sá tomou uma responsabilidade pessoal, e por julga-la pessoal se retirou, como fez. Se o nobre visconde pensasse que na parte executoria da auctorisação continuava a responsabilidade collectiva, de certo se não teria retirado sem para esse fim consultar todos os seus collegas. Os illustres oradores, que tão merecidamente o louvam, não poderão recusar-lhe este testemunho (apoiados).

Citou-se a lei de 23 de junho de 1855. O texto d'essa lei, que vou reproduzir integralmente, confirma em tudo esta doutrina. Diz ella no § unico do artigo 2.°:

«Todos os negocios importantes, especialmente os que, respeitarem a assumptos que tenham de ser levados ao corpo legislativo, ou que, na conformidade da carta constitucional e das leis, devam ser submettidos ao conselho d'estado, serão tratados e decididos em conselho de ministros.»

«Que tenham de ser levados á camara» se determina expressamente. O que para surtir effeito tinha de ser levado á camara eram as bases da auctorisação, e n'isso foi o ministerio solidario. A execução e desenvolvimento da auctorisação não tinha já de ser levada á camara para se tornar lei, em virtude da delegação concedida por quem a podia conceder. E tanto não tinha, que a reforma começou logo a produzir effeitos legaes e obrigatorios, por tal fórma que para suspender esses effeitos foi necessaria uma nova lei. Nem o espirito nem a letra do preceito de 1855 tem pois aqui applicação, e se a tem é para justificar plenamente o governo, para certificar como o nobre visconde se conformou aos seus preceitos (muitos apoiados).

Agora os precedentes. Quem ouvir a exposição da recente doutrina da opposição, dirá que os seus chefes e representantes procederam sempre rigorosamente segundo essa doutrina. Dirá que nunca o evangelho do constitucionalismo teve mais fervorosos e fieis apostolos.

De maio de 1851 a setembro de 1853 foram successivamente despedidos do serviço os srs. barão de Francos, duque de Loulé, Soure, Silva Ferrão, Franzini, bispo do Algarve, Pestana, visconde de Almeida Garrett...

Uma voz: — E o sr. Seabra.

O Orador: — Já vou fallar do sr. Seabra. N'este curto periodo oito decomposições e recomposições. Mais de uma vez duas no mesmo mez. Muitos dos cavalheiros que cito não fizeram mais do que passar pelo ministerio. E não é uma das feições menos notaveis d'essa epocha notabilissima, esta inconsistencia dos gabinetes, no periodo de força que dava uma insurreição triumphante. Entraram o saíram tantos estadistas, ficando sempre os representantes principaes da situação, entre os quaes figurava o nobre orador que me precedeu. Que solidariedade! Era esta, era porventura a vossa solidariedade de hoje? (Apoiados.)

O caso do sr. Seabra é ainda mais significativo e mais frisante. O decreto de 7 de agosto de 1852 reformava, ao menos em parte, o serviço judicial. Em 19 do mesmo mez e anno apparecia o decreto da sua exoneração. E apparecia de um modo desusado. Em vez de figurar na primeira pagina do Diario, como é costume, publicava-se como envergonhado na terceira pagina, nos typos miudos, na vizinhança das noticias estrangeiras...

Uma voz: — Isso não vale nada.

O Orador: — Nem digo que valha. Refiro-o apenas como incidente curioso e anecdotico, como circumstancia accessoria... mas característica.

No dia 21, ainda do mesmo mez e anno, para que não ficassem duvidas sobre o motivo d'aquella exoneração, um novo decreto suspendia a execução do primeiro, e outro nomeava uma commissão — de que era presidente o digno par, o sr. Aguiar — para propor nova reforma.

D'este modo se comprehendia então a solidariedade recommendada hoje! E note-se que, era aquella reforma assignada por todos os ministros, por todos, comprehendendo o nobre orador. Hoje, o ministro que assignou a reforma do exercito com o sr. visconde de Sá, só por ter assignado, entendeu do seu dever retirar-se. Então, o eminente jurisconsulto saíu, mas os seus collegas não o acompanharam, e o nobre orador tambem não saíu!

O sr. Fontes Pereira de Mello: — Peço a palavra para uma explicação se não me chegar sobre a materia.

O Orador: — Ouço o illustre deputado pedir a palavra pela segunda vez. Não me arrogo o privilegio de provocar reparos e fazer intimações quando se pede a palavra. Quem pede aqui a palavra usa de um direito. Reconhece-o de certo s. ex.ª como eu. Reconhece-o, mas extranha-o. Não o imito.

Saiu um só dos ministros e os outros ficaram. Para que seja completa a explicação doutrinal, cumpre acrescentar que a maioria d'esse tempo, a maioria de 1856 que hoje é minoria, entendia por modo muito diverso do actual o principio de solidariedade. O que hoje lhe parece inconstitucional e absurdo reputava-o natural e justissimo.

Tenho aqui extractada parte d'um discurso muito notavel, proferido então, e que se refere exactamente á applicação do principio de solidariedade. É doutrina de uma voz extremamente auctorisada...

Uma voz: — Quem é?

O Orador: — O nome vale muito, mas a doutrina não vale menos, e só a doutrina importa. Contava fazer uso d'este extracto, mas disseram-me que essa parte do discurso a que alludo vem hoje transcripta n'um jornal. Abstenho-me para que d'ahi se não tire a consequencia de que inspiro ou collaboro esse jornal. Não que me não honre em extremo da missão de escriptor, mas porque não posso aceitar solidariedade que me não pertença.

Vozes: — Leia, leia.

O Orador: — Querem? Lerei... um periodo apenas, é quanto basta. Exclamava-se n'essa epocha: «acho nova e insolita a pretensão da opposição em declarar as questões, nas quaes o governo deve julgar-se solidario (apoiados), isso pertence aos ministros»! (Apoiados.) É desnecessario mais.

Apoiados! E quem apoiava então, o que apoia hoje? «É triste — dizia ha dois dias indignado o nobre orador, que tambem apoiou essa interpretação de solidariedade na maioria que o sustentava — é triste presencear estes pareceres occasionaes que variam segundo as conveniencias». É triste, podia eu repetir agora! (Muitos apoiados.) Podia recambiar-lhe com usura as exclamações, as apostrophes e os epithetos, se o luxo dos epithetos podesse substituir a debilidade dos raciocinios! (Muitos apoiados.)

E ainda estas metamorphoses, estas modificações se quizerem, poderiam ser desculpada a se não tivessemos ouvido aqui proferir pelo nobre orador a sentença do arrependimento. «O arrependimento é macula no homem publico, é quebra de dignidade no ministro», declarou bem alto s. ex.ª referindo-se a uma honrosa franqueza do meu collega da fazenda, quando o mesmo meu nobre collega manifestou o seu pezar pela severidade com que julgára alguns passados actos de administração. O arrependimento é macula! O arrependimento é quebra de dignidade! Não esperava seguramente ouvir proposição similhante em pessoa de tão elevada capacidade. Julgava o nobre orador ferir o sr. ministro da fazenda, e descarregava o golpe ao lado. Seria uma grande ingratidão, se não fosse um grande equivoco. Não attendeu s. ex.ª a que a frecha, antes de chegar ao alvo, interceptada por um vulto distinctissimo a quem a primeira regeneração deveu grandes finezas e grande dedicação, se cravava inteira no amigo que lhe ficava mais perto. Confessou o illustre deputado, o sr. Casal Ribeiro, o seu arrependimento pelos rigores de estillo com que n'outra epocha tratára um caracter publico. Este nobre arrependimento foi julgado pelo illustre orador macula e quebra de dignidade (muitos apoiados). E não era, não. Aos olhos de todos os homens imparciaes e sensatos a dignidade do sr. Casal Ribeiro não se abateu, elevou-se (muitos apoiados). Elevou-se pelo sentimento e pelo coração, elevou-se pela justiça. Por minha parte, se alguma vez tivesse tentações de lhe recordar aquelle passado, não ousaria, não poderia faze-lo em presença d'esse honrado proceder. (Apoiados. Vozes: — Muito bem.) Todos podem errar. É condição humana. Corrigir-se é maxima virtude, e certamente se precisa muito mais coragem para confessar um erro do que para persistir n'elle. Nessa confissão ha uma grandeza de animo que só não comprehendem os instinctos estreitos e vulgares. O sr. Casal Ribeiro ennobreceu-se com aquelle acto: não succederia o mesmo a quem por elle o censurasse (apoiados).

«Não confesseis o arrependimento que pondes em perigo a dignidade: podeis ganhar por esse modo o caminho do céu, mas não ganhaes a auctoridade na terra!» Ah! sr. presidente, permitta Deus que nunca tão perigosa maxima ache echo nos homens publicos d'este paiz (apoiados). Pois a dignidade consiste na pertinacia do erro? Consiste na obstinação e na impenitencia? Ainda se o erro se não conhecesse, se podesse allegar-se ignorancia ou obcecação! Mas depois de reconhecido, ainda sustentado! (Apoiados).

Dizem os sagrados textos: «que ha mais alegrias no céu por um peccador que se arrepende, do que por cem justos que se salvam.» S. ex.ª, tão orthodoxo e tão crente, desvia os olhos d'estas salutares indicações, e assevera o contrario. Timor Domini est initium sapientice, é outro preceito salvador. S. ex.ª não o aceita, e quer que a auctoridade na terra se não ajuste pelos caminhos do céu. Que poderá esperar este paiz de quem professa e pregoa taes principios? Que idéas temerosas se não ligam á tenacidade que prefere a persistencia no erro á sua confissão, arriscando a patria a todos os sacrificios? Que dirão d'estas estranhíssimas affirmações as almas piedosas de que s. ex.ª é fundada esperança? Como se conciliará finalmente tanto zêlo pela puridade religiosa com tal desprendimento das suas venerandas inspirações (muitos apoiados)?

Terminou s. ex.ª a ultima parte do seu discurso perguntando «o que fez o governo á lei das congregações religiosas»? Essa lei está na outra casa do parlamento. Mais de uma vez instou já o competente ministro com a respectiva commissão para que ella apresentasse o seu parecer ácerca d'ella. Não póde o gabinete fazer mais, e seguramente aquella camara ainda não deixou de ter assumptos para occupar a sua attenção.

A proposito de tal assumpto proferiu s. ex.ª uma objurgatoria apaixonada sobre reacção. Não queria eu fallar de reacção, em satisfação das normas impostas pelo nobre orador ás minhas futuras considerações, pois que tal assumpto irrita de ordinario s. ex.ª e os seus amigos. Não é culpa minha se por este modo s. ex.ª quiz inflamar os debates.

Perguntou-se-me, creio, em nome de que doutrina estou ali (indicando as cadeiras do ministerio). Em nome de uma

Página 363

363

doutrina que sustentei annos antes de entrar para o gabinete, e sem em tal entrada pensar! (Muitos apoiados.) Não sei se todos poderão dizer o mesmo; sei só que se ha posição clara e definida é a minha (muitos apoiados). A convicção que me estava no espirito levou tempo a ganhar adhesões, mas ganhou-as. Tanto peior para quem as perdeu (muitos apoiados).

«A reacção está ali» bradou, o nobre orador apontando para o ministerio. A reacção está onde está, e o paiz sabe onde está! (Muitos apoiados.) No ministerio a reacção! Então porque tão encarniçadamente combate ella os ministros? (Apoiados.) Faz a reacção como Saturno devorando os filhos? Sabe de mais o que faz para fazer tal! (Apoiados.) Res, non verba, mais que nunca é este o caso de dizer-se! (Muitos apoiados.) Está pois a reacção onde está, e acha-se perfeitamente onde está.

O sr. Fontes Pereira de Mello: — Apoiado!

O Orador: — Apoiado, repetirei com s. ex.ª. Está com quem directa ou indirectamente a auxilia; não póde estar com aquelles a quem ella declarou guerra sem treguas! (Apoiados)!

Era a epocha da primeira regeneração uma epocha de conciliações e tolerâncias, explicou o nobre orador. Abraçavam-se os que vinham de um lado e de outro lado. Representava a liberdade e representava a ordem. Não era preciso mais para justifica-la. E porque não estará tambem hoje representada no governo a ordem e a liberdade? Porque não será igual a justificação?

Uma voz: — Ah!

O Orador: — Não se alegrem os illustres deputados, e essa alegria seria já expressiva. Não se alegrem. Se o seu exemplo nos póde justificar, o nosso não os justifica. Não ignora o nobre orador que se effectuou na Europa uma verdadeira transformação de partidos. Modificações profundas se têem operado nas tendencias e nas idéas; têem-se delimitado dois campos que não são os mesmos que eram ha annos; cada qual procura aquelle a que as suas crenças o levara. O mesmo que se vê na Europa se observa aqui. Já o reconheceram os principaes caracteres da opposição. As antigas divisas, as antigas bandeiras, podem ser tradições gloriosas, mas não actualidades reaes. Não é licito confundir os principios Com os nomes, nem dissimular atrás dos nomes os principios. A fé politica não está supersticiosamente vinculada a esses nomes. Vive das idéas e representa-se nos factos!

Sem já temer profanar as cinzas dos mortos, escudou-se o nobre orador com o nome glorioso do sr. duque da Terceira, e a memoria dos seus memoraveis feitos. Suppoz até que era uma affronta considera lo chefe do partido conservador. Em que poderia consistir a affronta? Em julga-lo chefe, ou em julga lo conservador? (Riso.) Chefe! Era-o: era-o pela sua posição, pela sua jerarchia, pelo logar que sempre occupou na vanguarda, quer nas regiões do governo, quer nos campos de batalha (muitos apoiados). Conservador! Declara s. ex.ª affrontoso o titulo! Não o tenho eu por tal. Que lh'o agradeçam os seus amigos que o usam, e creio que já lh'o terão agradecido. Conservador, é a qualificação de uma escola. Não ha desar em segui-la quando se segue conscienciosamente. Todas as opiniões respeito, e menciona-las não é offende las. Reaccionario era De-Maistre, e francamente o dizia, e não o dissimulava. Porque não hão de imita-lo os que adoptam a sua escola? Nega-la, equivale a duvidar da sua virtude, e a pôr em duvida a propria crença. É uma opinião, e a liberdade, como o sol, é para todos! (Apoiados.)

Vozes: — Muito bem.

Era o sr. duque da Terceira um grande caracter, um grande nome, e resumia grandes serviços. Digo-o hoje, como sempre o disse, na sua vida e na sua morte (apoiados). Não escureceu esses serviços quem sempre os celebrou. Se a alguem póde imputar-se o esquecimento d'elles, é a quem os ofuscou em violentas e injustas diatribes, a que o illustre marechal não escapou como tantos outros caracteres illustres! (Apoiados.) Para mim o sr. duque da Terceira foi sempre o heroe que, rodeado apenas de um punhado de valentes, n'um rochedo no meio do oceano, conservou hasteado e firme o pendão redemptor das nossas liberdades; foi sempre o vencedor da Asseiceira (apoiados); foi sempre o chefe audaz da arrojada expedição do Algarve, que tantas algemas quebrou! (Muitos apoiados.) Mas a que proposito vem a celebração d'esses feitos, sempre venerados, quando se trata de outras e mais modernas allianças?

Mencionando só aquelle nome s. ex.ª mostrou-se habil talvez, mas de certo menos grato a outro grupo politico, de que tem recebido valioso auxilio n'esta casa, e muito mais fóra d'ella. A actual significação d'esse grupo nas fileiras da opposição não póde encubrir-se. Reconheço n'elle caracteres respeitaveis e conto amigos predilectos, mas o conjuncto não é menos expressivo e as consequencias não são menos eloquentes. Ligados com esse grupo, ou revelaes uma fraqueza de posição, porque os vossos amigos de hoje seriam vossos adversarios se entrasseis no poder (apoiados), ou unidos n'um só corpo falta-vos a possibilidade de definir claramente as vossas idéas. (Muitos apoiados).

Invocou o illustre deputado a saudosa sombra do grande orador portuguez, o sr. José Estevão Coelho de Magalhães. Desejou n'esta questão — n'esta questão admire-se! — ouvir aquella voz que a morte cortou. Vem opportunamente. Não lhe lembrou talvez que essa voz é das que não se apagam da memoria, é das que vivem nos annaes publicos (muitos apoiados). Pois bem! Jaz o corpo, mas sobreviveu o espirito. Aquella poderosa palavra, que avassallava o coração e o espirito, o sentimento e a rasão (muitos apoiados); aquella palavra patriotica, que nunca faltou quando a chamavam em nome dos principios (muitos apoiados); aquella palavra reviverá ainda para dar, insuspeito, positivo, concludente, o testemunho a que appellastes (muitos apoiados). Quizestes ouvi-la? Ides ouvi-la!

Na sessão de 27 de janeiro de 1862 dizia o eloquente orador:

«Eu tenho obrigação de dar mais algumas explicações, para o que já pedi a palavra. É um acto de lealdade politica, e mesmo um preito de amisade para o gremio onde se agrupam os cavalheiros de que me separei; era uma cousa que se tornava necessaria a minha separação dos individuos que pertencem a esse mesmo gremio politico. Foi obrigado pela necessidade da minha situação que assim procedi, e foi o acto mais serio da minha vida; eu proprio o reconheço.»

Na sessão de 23 de maio do mesmo anno, quando se discutia a lei das congregações religiosas, ou do ensino, insistia:

«Esta questão foi uma festa partidaria para o sr. Pinto Coelho;...foi um acto politico para o sr. Fontes Pereira de Mello. Para a festa partidaria não posso concorrer; o acto politico considero-o indiscreto, intempestivo, mal calculado e impossivel.»

«Eu não sou opposição (a actual), nem pertenço, nem nunca estive em circumstancias de pertencer á opposição; separei-me d'ella por motivos verdadeiramente graves e tão serios como este debate o mostra.»

«Entendi sempre que o partido da regeneração era uma «parcialidade da familia liberal e muito conveniente para as necessidades publicas, para as instabilidades necessarias do governo representativo, para haver duas parcialidades ou dois naipes de governo que se revesassem successivamente; mas nunca suppuz que n'uma questão d'estas, em que parece impossivel que não tivessem todos crenças communs, como homens liberaes e como homens de estado, lançassem entre si uma barreira de receios, de desconfianças, que se não podem mais apagar. Eu não sei se sou ou não homem desconfiado. Da regeneração não desconfiava; desconfio hoje ou não desconfio de nada.»

Depois d'esta voz, que hoje se desentranha das profundezas da eternidade, que nos soa com a magestade do tumulo e a auctoridade da historia... depois d'esta voz — nada! Tenho concluido (muitos apoiados).

Vozes: — Muito bem.

(O orador foi comprimentado por grande numero de srs. deputados dos diversos lados da camara.)

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×