Página 1
APPENDICE Á SESSÃO DE 10 DE FEVEREIRO DE 1888 464-A
O sr. Julio de Vilhena: - A camara acceitou a minha proposta e admittiu que a discussão do projecto se fizesse na generalidade e na especialidade. Não tomei a palavra na generalidade, porque voto a generalidade do código commercial; quero dizer, reconheço que é indispensavel e que é opportuno revogar o codigo de 1833.
Debaixo d'este ponto de vista, eu não só voto com' todo o prazer a generalidade do projecto que se discute, mas não tenho duvida nenhuma em vir dar ao illustre ministro da justiça toda a Homenagem pelo serviço que 8."ex.a prestou ao paiz, organisando o projecto do código commercial.
Tive a honra de ser ministro da justiça, mas não" consegui apresentar á camará projecto algum do codigo commercial; sei que dificuldades havia para a organisação d'esse projecto, e por consequencia sou inteiramente insuspeito declarando ao illustre ministro da justiça que venceu essas dificuldades e prestou um relevantissimo serviço ao paiz.
Todavia a discussão não é inutil, e embora s. exa. prestasse esse serviço, não lhe ha de ser desagradavel, de certo, ver que da parte da opposição se entra na discussão' do projecto que s. exa. sujeitou á nossa apreciação, unicamente animado pelos desejos de o modificar consoante as necessidades do meio commercial para que elle é estabelecido.
Feitas estas considerações preambulares, vou entrar na analyse do projecto
O projecto do codigo commercial envolve uma discussão muito larga, e não póde por isso deixar de ser, embora analystica, uma discussão precisa e resumida em que cada um apresente com toda a nitidez as considerações sobre cada um dos artigos, na mais apertada synthese.
Por consequencia, eu vou ser muito resumido n'esta discussão, sem embargo, já se' vê, dê apresentar os argumentos que entender que servem para fundamentar as minhas considerações.
Não concordo com o artigo l.° do projecto, este artigo é perfeitamente dispensavel; que a lei commercial rege os actos de commercio, é uma afirmação completamente inutil, é a afirmação de um principio que não carece de ficar consignado na legislação commercial; é exactamente como se no codigo civil se começasse dizendo:
A lei civil rege, os actos civis; é exactamente como se o codigo penal começasse dizendo: O codigo penal estabelece os delictos e as penas; é como se o codigo do processo civil começasse declarando: este codigo trata do processo civil. A lei commercial rege os actos do commercio. Evidentemente não póde reger outros actos que não sejam os do commercio. Não se comprehende que este codigo fosse feito senão para reger os actos commerciaes. Portanto ó escusado declaral-o na lei commercial.
Por parte do governo e da illustre commissão póde dizer-se que o pensamento do legislador não foi esse, foi affirmar que a lei commercial comprehende os actos de commercio, ainda, quando praticados por pessoas que não são commerciantes. Mas sendo assim, ainda o artigo 1.° é perfeitamente dispensavel, porque esta idéa traduzia-se perfeitamente no artigo 2.° desde que fosse redigido n'estes termos:
"Serão considerados actos de commercio todos aquelles que se acharem especialmente regulados n'este codigo, quaesquer que sejam as pessoas que os praticarem..."
D'esta maneira a idéa que porventura póde estar no artigo 1.°, fitaria manifestamente consignada no artigo 2.°, dispensando se por consequencia completamente o artigo 1.° do projecto.
Vamos ao artigo 2.°
O artigo 2.° do projecto representa um dos principaes pontoa do nosso direito commercial. Este artigo define o que sejam actos de commercio, e por consequencia firma os principios em que assenta a competencia do fôro
privilegiado, chamado fôro commercial. É evidente que o alcance do artigo é grande, por isso mesmo que é a definição dos actos de commercio que serve para constituir á independencia e o exclusivismo dos tribunaes commerciaes.
O sr. ministro da justiça encontrou-se em frente de duas escolas; uma que define o que sejam actos commerciaes, e outra que enumera esses actos pela sua ordem. S. exa. sé não se declarou partidario da primeira escola, porque
quando há uma definição de actos commerciaes, essa definição nunca póde ser tão bem redigida que comprehenda na sua esphera de acção toda é qualquer acto que seja necessariamente commercial. Ao mesmo tempo abandonou o segundo systema por entender que era absolutamente impossivel fazer o inventario completo dos actos commerciaes, e não podendo fazer o arrolamento de todos esses actos, convinha mais não os referir especialmente.
E então o que fez? Achando difficuldade nos dois systemas, seguiu, por assim dizer, um systema intermediario, e é o que está no artigo 2.° Mas permitta-me s. exa. que o diga que o systema que adoptou tem tantos defeitos como qualquer dos que abandonou, e nenhuma das vantagens que já tinha o systema do nosso actual codigo commercial, interpretado pela pratica de mais de cincoenta annos.
Eu digo que o systema adoptado pelo illustre ministro era todos os inconvenientes, dos dois systemas que abandonou, e porque?
Diz o artigo 2.°:
"Serão considerados actos de commercio todos aquelles que se acharem especialmente regulados n'este codigo..."
Evidentemente, todos os actos que estão regulados no codigo commercial, são actos de commercio, e não póde reputar-se que deixem de o ser. Visto que estão regulados no codigo commercial, são actos de commercio.
Diz mais o artigo:
"... e, alem d'elles, todos os contratos e obrigações dos commerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrario do proprio acto não resultar."
Em primeiro logar este artigo está enygmatico. O pensamento da expressão "se o contrario do proprio acto não resultar", é muitissimo difficil de apurar n'uma boa interpretação.
O sr. ministro traduziu este artigo do codigo commercial italiano, mas não traduziu bem, porque não é isto o que está no codigo commercial italiano.
O sr. ministro diz: "Serão considerados actos de commercio todos aquelles que se acharem especialmente regulados n'este codigo, e, alem d'elles, todos os contratos e obrigações doa commerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrario do proprio acto não resultar".
Ora no codigo italiano está: os contratos e obrigações dos commerciantes, que não forem de natureza essencialmente civil, e os contratos e obrigações dos commerciantes se o contrario do proprio acto não resultar.
Quer dizer: segundo o codigo italiano ha duas espécies de actos commerciaes praticados pelos commerciantes; emquanto que segundo o projecto do illustre ministro ha apenas uma especie de actos commerciaes.
O codigo italiano reconhece como actos commerciaes:
1.° Todos os contratos e obrigações dos commerciantes, que não forem de natureza essencialmente civil.
2.° Todos os contratos e obrigações dos commerciantes, se o contrario do proprio acto não resultar.
São duas hypotheses que vem no codigo italiano, emquanto que na traducção do sr. ministro apparece uma unica hypothese, cujo pensamento não posso comprehender.
São actos commerciaes todos os actos e obrigações dos commerciantes que não forem de natureza exclusivamente civil.
Mas todos os contratos e obrigações de individuos que
25
Página 2
464-B DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
não são commerciantes, mas contratos e obrigações que não forem de natureza exclusivamente civil, o que são? São tambem actos commerciaes.
Os contratos e obrigações dos commerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, são actos commerciaes; mas para excluir d'aqui a idéa de que os contratos e obrigações dos individuos que não são commerciantes, mas que não são de natureza exclusivamente civil, sejam commerciaes. Elles porém são commerciaes.
Por consequencia o artigo 2.° não está bem redigido.
Este artigo tem um pensamento de difficil comprehensão.
Considera como actos de commercio todos aquelles que se acharem especialmente regulados n'este codigo, e, alem d'elles, todos os contratos e obrigações dos commerciantes que não forem de natureza exclusivamente civil; excluindo d'esta natureza os contratos dos individuos que não são commerciantes, contratos que, não sendo de natureza exclusivamente civil, são actos commerciaes.
Mas todos os actos regulados pelo projecto são actos commerciaes.
O contrato de emprestimo e o de penhor são actos commerciaes?
A definição do artigo 2.° comprehende-se perfeitamente. Tudo que é regulado pelo codigo commercial é commercial.
Mas a difficuldade não está n'isto; a difficuldade está em saber se é ou não commercial um acto que é regulado pelo codigo commercial, e ao mesmo tempo pelo codigo civil.
Por exemplo, ura contrato de emprestimo é um acto commercial e um acto civil; é ambas as cousas.
Diz o sr. ministro que tudo que está no codigo commercial é acto commercial; logo o contrato de emprestimo é um acto commercial.
Mas póde ser ou deixar de ser, porque póde ser um acto civil.
Por consequencia, a primeira affirmação que o projecto faz, é uma affirmação que não corresponde á realidade dos factos.
O projecto diz claramente que o contrato de emprestimo só se considera acto commercial quando se refere a acto commercial, por consequencia quando se realisa um contrato de emprestimo para que elle seja um acto commercial é preciso que se refira a um outro acto commercial.
Logo, não é verdade o que diz o artigo 2.°, que estabelece o principio de que são actos de commercio todos aquelles que se acharem especialmente regulados n'este codigo. Com relação a contratos que estão no codigo civil, não basta que estejam no codigo commercial, é indispensavel mais alguma cousa, isto é, que se refiram a actos commerciaes.
Se nem o illustre ministro da justiça, nem a commissão definem o que é o acto commercial, se não se sabe o que é, como é que o contrato de emprestimo que está no codigo civil se ha de reputar acto commercial quando se refere a um acto commercial?
Creio que o artigo 2.°, longe de destruir todas as controversias que acerca d'este assumpto se têem levantado na nossa jurisprudencia, serve pelo contrario para levantar um grande numero do questões que até agora imo existiam na nossa jurisprudencia pratica, e por consequencia não Corresponde, nem póde corresponder, ao pensamento que naturalmente deveria ter em vista o illustre auctor do projecto, ainda que o systema do nosso codigo commercial actualmente seja defeituoso, todavia já está interpretado pelos arestos dos tribunaes, a competencia commercial já está fixada o mais precisamente possivel pelo direito consuetudinario, e é por isso conveniente manter a jurisprudencia do nosso codigo commercial actual, de preferencia a estabelecer uma disposição nova, que ha de dar logar a, controversias e á anarchia na fixação da competencia dos tribunaes de commercio.
Eu preferiria, por conseguinte, que o illustre ministro deixasse ficar a jurisprudencia assente, reconhecida e adoptada pela pratica do nosso fôro, a lançar-se n'um caminho de aventuras com relação ao estabelecimento de principios que se devem reputar fundamentaes no codigo commercial.
Vamos no artigo 3.°, que diz que se as questões commerciaes não poderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei commercial, nem pelo seu espirito, nem pelos casos analogos n'ella prevenidos, serão decididas pelos principios geraes do direito civil.
Este artigo estava redigido de outra maneira na proposta do illustre ministro da justiça.
S. exa. reconhecia que acima dos principies geraes ao direito civil se deve admittir o uso commercial para regular os casos omissos da legislação commercial, quer dizer, segundo o systema do illustre ministro, quando uma questão não póde ser resolvida pelo texto da lei, tratava se de saber se essa questão podia ser resolvida pelo espirito da lei, e se não podia ser resolvida nem pelo texto nem pelo espirito tratava-se de ver se podia ser resolvida pelos casos analogos, prevenidos na legislação commercial, e se ainda assim não podia ser resolvida, recorria-se aos usos do commercio, e só no fim de tudo isto se recorria aos principies geraes do direito civil, vem a illustre commissão e expunge do artigo os usos commerciaes. Que motivos teve a illustre commissão para condemnar á morte o uso commercial?
A illustre commissão começa por exautorar o uso commercial, dizendo que nada valia o uso no imperio do direito anterior, e que já o proprio Ferreira Borges, n'uma parte das suas obras, dizia muito mal do uso commercial, a ponto de o abandonar quando tratou de regular os casos omissos no seu codigo commercial.
Em primeiro logar o illustre relator, que é um jurisconsulto distincto, cuja competencia reconheço ha muito tempo, porque fomos condiscipulos na universidade, sabe que isto não é rigorosamente exacto. Ferreira Borges ligava muita importancia no uso commercial, e tanto que lá vem mencionado nos artigos 537.°, 642.° e 643.° do codigo commercial.
É preciso não fazer d'estas affirmações; não declarar que Ferreira Borges condemnava o uso, depois de o ter elevado ato ás nuvens.
Ferreira Borges não só regulava os casos omissos pelo uso commercial, mas indicava-o como meio de resolver muitas questões no fôro commercial, em differentes artigos do seu codigo.
Mas qual foi a rasão por que a commissão entendeu que devia condemnar o pensamento, aliás louvavel, do sr. ministro da justiça, amputando o uso commercial da providencia do projecto?
Diz o sr. relator:
«Demais, fóra de casos especiaes, era que o projecto do codigo ainda mantem os usos, mas com referencia precisa e como facto, nunca como direito, é tão difficil saber o que deva entender-se e a que deva satisfazer um uso para se considerar estabelecido, que deixar subsistir essa regra para resolver questões, o mesmo seria que nada dispor, ou deixar o arbitrio arvorado em lei.»
O illustre relator entende que o uso commercial não vem para resolver questões commerciaes. Mas, apesar de não servir, em muitos artigos do projecto approva o uso commercial para resolver questões occorrentes.
Mas, diz o sr. relator, que o uso é completamente arbitrario.
E então o que faz o sr. relator?
Km logar do uso colloca os principios geraes do direito civil.
Mas o que são os principios geraes do direito civil?
Página 3
APPENDICE Á SESSÃO DE 10 DE FEVEREIRO DE 1880 464-C
Os principios geraes do direito civil não estão classificados, enumerados, inventariados, ninguem os tem n'um livro, nem na sua gaveta, ninguem sabe o que elles são.
E tudo quanto ha de mais arbitrario e extraordinario exclusivamente da intelligencia do interprete.
O illustre relator, para, evitar aproveitar se do uso, e acceital-o para resolver as questões remissas no codigo commercial, vae lançar mão dos principies geraes do direito civil, que é uma cousa mais abstracta, mais metaphisica, porque o uso é uma repetição de factos, é uma cousa concreta: póde comprehender-se mais facilmente, porque é de uma precepção mais material, deixem-me assim dizer, do que os principios geraes do direito civil.
Portanto, não sei a rasão por que s. exa. acabou completamente com o uso commercial, e deixou ficar em logar d'elle os principios geraes do direito civil.
Ora eu proporia que se conservasse o artigo do primitivo projecto do illustre ministro, e por consequencia que se acceitasse o uso commercial, isto é, que se collocasse este uso acima doa principios geras do direito civil para resolver os casos omissos. Diz o artigo 4.°: (Leu.)
Declaro que não percebo esta distincção. Eu comprehendia que os effeitos das obrigações fossem regulados por certas leis; comprehendia que o modo do seu cumprimento fosse regulado por certas leis, e que a fórma externa o seja tambem.
Ora pergunto eu: porque não se substituo esta palavra paiz pela palavra logar?
Quando se interpretar este n.° 3.° do artigo 4.°, quem o interpretar está auctorisado a imaginar que ha duas cousas differentes; uma é a lei do paiz, outra é a lei do logar.
Por isso eu entendia que se podia substituir a palavra paiz pela palavra logar, ou então a palavra logar pela palavra paiz.
Parecia-me conveniente que o sr. ministro da justiça e a commissão reformassem estos numeros do artigo, de maneira que houvesse uma identidade completa na linguagem, e de maneira que esta diversidade de expressões não desse logar á diversidade de intrepretações.
Salvo se a idéa da commissão é outra; se a commissão entende que dentro do mesmo paiz póde haver differentes logares, com differentes leis commerciaes.
V. exa., que é um jurisconsulto distincto, sabe que uma das condições principaes exigidas a um codigo, e em geral a todos os trabalhos sobre direito, é a precisão dos termos que devem significar precisamente a idéa que tem em vista, para evitar a multiplicidade de questões que d'isso podem resultar.
Com respeito ás disposições geraes, são estas as considerações que tinha a fazer.
O sr. Julio de Vilhena: - Os artigos 10.° e 12.° insertos n'este titulo, encerram disposições das mais importantes do nosso direito commercial.
A esta questão já se referiu o illustre deputado, que sinto não ver presente, o sr. Dias Ferreira, mas mio está devidamente esclarecida, não obstante a resposta que já deu sobre o assumpto o illustre ministro da justiça.
S. exa. sabe qual é o regimen que existe no codigo civil com relação á propriedade que constituo o patrimonio conjugal. O marido não póde contrahir dividas sem auctorisação da mulher.
Quando o marido, segundo o direito civil, contráe dividas sem auctorisação da mulher, ficam obrigados ao pagamento d'essas dividas, em primeiro logar os bons proprio do marido, em segundo logar a meação do marido, se o casamento é contraindo pela communhão de bens; mas o credor do marido que contráe dividas sem consentimento da mulher, não póde obter o pagamento d'essas dividas, pela meação do casal, senão depois de dissolvido o matrimonio ou havendo separação de bens.
S. exa. comprehende perfeitamente quaes são os principios de elevada moralidade social em que assenta a disposição do codigo civil. O marido não póde contrahir dividas sem auctorisação da mulher.
O codigo civil é suficientemente cauteloso e figurada hypothese em que o marido possa contrahir dividas quando a mulher está ausente ou impedida de prestar o seu consentimento. Se se prova que as dividas são contrahidas e aproveitadas em utilidade do cabal, n'este caso é obrigada a meação da mulher.
São estes os princípios que regulam no codigo civil. O codigo attendeu á estabilidade e felicidade moral da familia, e não é indifferente a esta a situação da propriedade conjugal.
E o que faz o projecto que se discute? O projecto altera essencialmente o regimen da propriedade conjugal.
O commercio é essencialmente egoista, não attende senão aos seus interesses. E então o que é que pede o commercio? Pode uma alteração profunda na propriedade domestica.
Até agora o marido contrahia uma divida sem outhorga da mulher; o credor exigia do marido o pagamento da divida, e a divida era paga pelos bens do marido; mas se não chegavam, o credor commerciante tinha que esperar que se dissolvesse o matrimonio, ou que houvesse separação de bens. Isto não satisfaz ao commerciante, porque elle o que quer é o pagamento do seu credito.
lias o codigo civil não lhe permittia a dissolução da propriedade conjugal. Esto sentimento é que o commercio não póde comprehender; e não me refiro a pessoas, refiro-me ao principio commercial. A manutenção da sociedade conjugal, o commercio não a póde comprehender por isso, que só trata dos seus interesses.
Mas este principio é que não póde ser attendido por homens d'estado, porque os homens d'estado têem de olhar para estas questões de um ponto de vista mais elevado. O que faz o projecto que se discute? O commerciante é credor, e como é credor acciona o devedor, procedendo á separação dos bens do casal. Paga-se ao credor pela meação de bens pertencentes ao marido.
O que se observa immediatamente na analyse da disposição do codigo é que o regimen estabelecido para a propriedade conjugal, pelo codigo civil, é essencialmente alterado; porque, com o codigo civil, o credor não póde obter o pagamento da sua divida senão depois da dissolução do casamento, ou havendo separação, e pelo codigo commercial obtem-na desde logo e faz immediatamente a separação de bens.
Calcula o sr. ministro da justiça o alcance de uma separação de bens n'uma sociedade conjugal? Esta separação existe no codigo civil, mas a requerimento da mulher, e quando ella quer premunir-se contra as dissipações do marido. N'este caso o codigo civil dá-lhe a faculdade de recorrer á simples separação de bens.
É de tão elevado alcance no lar conjugal a simples separação de bens, que o codigo não a permitte senão em certos e determinados casos e a requerimento da mulher; emquanto que agora, para desfazer a sociedade conjugal, o que póde originar questões entre os conjuges, para dividir immediatamente o que constitue o patrimonio da familia, basta um credor exigente, um commerciante egoista para abalar profundamente a propriedade domestica. (Apoiados.)
Eu combato este artigo, assim como muitos outros, mas este especialmente, com uma convicção mais arreigada e
Página 4
464-D DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
mais profunda, porque não me limito a fazer simplesmente considerações soffre a redacção d'elle.
O sr. ministro da justiça não tinha meio do resolver esta questão?
Qual foi a rasão por que s. exa. não estabeleceu aqui uma disposição em virtude da qual o marido não possa exercer commercio sem auctorisação da mulher? Se existisse essa disposição ficaria immediatamente estabelecido que todas as dividas contrabidas pelo marido em virtude ao seu commercio, o tinham sido com auctorisação da mulher; e por consequencia podia-se fazer a execução contra todos os bens do casal. A simples inserção d'esta disposição legitimaria sufficientemente todo o processo dirigido, não contra a meação, mas contra a totalidade da propriedade do casal.
Embora s. exa. esteja constantemente dizendo, e já o disse tambem o sr. relator, que apresentâmos as duvidas mas não tratâmos ao mesmo tempo do sanal-as, proponho uma maneira de regularisar, tanto quanto possível, a situação do devedor commerciante, para com o credor commerciante.
Ha mais alguma cousa. O artigo 12.° do projecto diz que, havendo separação entre os conjuges, qualquer d'elles pode exercer o commercio, podendo empenhar, vender, hypothecar e alienar de qualquer fórma os seus bens sem auctorisação do outro conjuge. Isto é um principio novo que altera profundamente o que está no codigo civil. Se porventura ha separação entre os conjuges, faz-se a partilha como se o casamento fosse dissolvido por morte de um d'elles, separam-se bens para cada um dos conjuges e cada um d'elles fica com a administração d'esses bens, mas nenhum d'elles póde alienar esses bens sem auctorisação do outro conjuge. E qual é a rasão?
É porque o codigo civil entendeu, e muito bem, que ainda quando houvesse separação entre marido e mulher, para interesse d'elles e para salvaguardar o futuro dos filhos, era precisa esta disposição.
O codigo entendeu, e muito bem, que, embora o marido esteja divorciado da mulher, elle não póde dissipar os seus bens sem auctorisação da mulher e vice-versa.
E um principio de uma grande importancia e de um grande alcance social, que tende não só a fazer com que a sociedade conjugal se não extinga completamente, e possa restabelecer-se pela reconciliação dos conjugues, como tambem a garantir e salvaguardar os interesses dos filhos.
Ora o que faz o projecto que se discute?
Permitte que o conjugue separado, exercendo o commercio, possa vender os bens á sua vontade; e sabe v. exa. o que acontece?
Nós estamos vendo todos os dias separações de conjuges, e com esta lei de certo vão augmentar de numero, porque o que faz o marido que deseja dissipar os seus bens?
Faz o que lhe diz o projecto em discussão. Estabelece-se como commerciante, e apenas exerce o commercio, está habilitado legalmente a vender á sua vontade toda a sua propriedade.
De sorte que, esta propriedade, a que o codigo civil dava uma garantia, a estabilidade da sociedade conjugal e a salvaguarda dos interesses e manutenção dos filhos, tudo fica altamente prejudicado com esta disposição do codigo.
Ora eu não posso admittir os dois principios em que assentam os dois artigos do projecto, porque são dissolventes da sociedade conjugal, porque dão logar a toda a ordem de questões no fôro, a questões complicadissimas; e por consequencia entendo que estes dois artigos devem ser completamente excluidos do codigo, e substituidos de qualquer maneira que o sr. ministro julgue conveniente; porquês. exa. deve ter em vista que, se os interesses das associações commerciaes traduzidas nas suas representações, são importantes, ha outros interesses, que não são menos importantes, que são os interesses domesticos, os interesses familiares, aquelles que o codigo civil com toda a rasão protegeu.
Tenho dito..