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APPENDICE Á SESSÃO DE 18 DE FEVEREIRO DE 1888 514-A

O sr. Julio de Vilhena: - Apesar de, por motivos de saude, não me ser possivel fazer largas considerações sobre este titulo, é todavia tão importante a materia d'elle, que se inscreve Das sociedades, e um dos seus capitulos das sociedades anonymas, que não posso deixar de dizer algumas palavras, simplesmente para que a materia d'este titulo não passe sem discussão.

É escusado exaltar a sociedade anonyma. A sociedade anonyma é a grande força do progresso economico da actualidade, e póde-se dizer que o desenvolvimento material do paiz tem sido n'estes ultimos tempos devido quasi exclusivamente á essa instituição, regulada pela lei de 1867, e denominada a «sociedade anonyma». (Apoiados.)

Eu sei que a sociedade anonyma tem muitos inimigos. Sei que a sociedade anonyma era Portugal tem sido altamente combatida, e que até se tem imputado a ella um facto altamente importante no nosso mundo economico. Refiro-me á crise de 1876. Ainda, porém, que a sociedade anonyma em Portugal, regulada tão livremente como o foi pela lei de 22 de junho de 1867, fosse a causa primordial da crise de 1876, o que aliás é muito contestado, os effeitos das sociedades anonymas entre nós têem sido tão importantes, que de bom grado lhe perdoo a crise de 1876, attendendo ás vantagens que esta instituição tem produzido para o progresso economico e material do paiz. (Apoiados.)

A lei de 1867, por si só, constitue sem duvida um monumento de gloria para o ministerio que a promulgou. (Apoiados.) Essa lei tinha sem duvida nenhuma defeitos, como tudo n'este mundo, mas o que resta saber e se o projecto, que se discute, supprima os defeitos da lei de 1867.

O illustre ministro entende que deve continuar como até hoje a liberdade na constituição das sociedades anonymas. Quer dizer, s. exa. entende, e a meu ver muito bem, que não se deve admittir o estabelecimento de sociedades anonymas com previa approvação do governo. As sociedades anonymas constituem se independentemente da approvação do governo; o que é preciso é que os estatutos sejam elaborados em conformidade com a lei.

O que resta saber é se o sr. ministro altera a lei de 1867 de maneira tal que, embora não exija approvação do governo, estabeleça condições taes que impeçam até certo ponto a constituição de novas sociedades e o regular funccionamento das que se acham organisadas.

Já declarei que estou longe de concordar com algumas das alterações que s. exa. fez á lei de 1867.

Assim o artigo 162.° d'este projecto exige para a constituição de qualquer sociedade anonyma, em primeiro logar a existencia de dez, pelo menos, do numero de socios que constituem a sociedade.

Este numero era igualmente exigido pela lei de 1867; mas esta lei exigia que estivesse pago 5 por cento do capital subscripto, e que este capital estivesse depositado n'um banco nacional; e o illustre ministro exige que esteja subscripto 10 por cento e que o deposito se fica na caixa geral de depositos.

Por consequencia, o projecto que se discute estabelece duas alterações, uma das quaes eu reputo essencial nas sociedades anonymas. Quer dizer, até hoje, para que uma sociedade anonyma se podesse constituir bastava que estivesse subscripto 5 por cento do seu capital. Assim, por exemplo, uma sociedade anonyma estabelecia-se com o capital de 1.000:000$000 réis; desde que estivesse subscripto 5 por cento d'este capital ou 50:000$000 réis, casa sociedade anonyma, observados os outros requisitos, podia reputar-se legalmente constituida.

Hoje é necessario que esteja subscripto 10 por cento d'esse capital.

Eu desejava saber quaes foram as rasões que o illustre ministro teve para fazer esta alteração, que é substancia no regimen das sociedades anonymas. Que inconveniente havia para que uma sociedade anonyma se declarasse estabelecida tendo apenas subscripto 5 por cento do seu capital e não 10, como actualmente se exige?

Os 10 por cento, condição essencial para a constituição de uma sociedade anonyma, hão de necessariamente difficultar a formação d'essas sociedades.

Ha outra circumstancia.

Até agora as sociedades anonymas podiam fazer emissão do seu capital em series. Por exemplo, uma sociedade anonyma podia emittir um capital de 1.000:000$000 réis em series de 200:000$000 réis. Fazia-se a subscripção com relação á primeira serie, e depois de subscripto o capital da primeira serie, emittia se a segunda, depois a terceira e assim as restantes.

Agora o sr. ministro no seu projecto acaba com a emissão por series. O capital emitte-se na sua totalidade.

Desta fórma é me licito suppor que uma sociedade que se constituir com um certo capital por series fará a sua primeira emissão de um capital muito mais diminuto do que o fará se porventura não houver a emissão por series, e portanto a exigencia dos 10 por cento aggrava ainda muito mais a constituição das sociedades anonymas, e por consequencia difficulta a formação de associações tão necessarias e uteis para o progresso do paiz.

A primeira duvida que tenho com relação a este artigo, à primeira rasão da minha impugnação á disposição d'este 3.° do artigo 162.° consiste precisa, clara e nitidamente n'isto.

Acho muito exagerado que para a constituição de uma sociedade anonyma se exija a subscripção de 10 por cento do capital, parecendo me que bastaria apenas 5 por cento para que a sociedade anonyma se podesse constituir como até agora.

O illustre ministro tambem exige que esse capital seja depositado na caixa geral de depositos, e a lei de 22 de julho de 1867 não marcava precisamente o estabelecimento onde se devia fazer o deposito, e dizia que se podia fazer em qualquer banco nacional. Não sei porque se não póde fazer o deposito no banco emissor, por exemplo, ou em qualquer outro banco nacional.

Não acho que seja essencialmente exigido e rasoavelmente defensavel a necessidade de fazer o deposito na caixa geral de depositos, e não permittir o uso da mesma liberdade que existia, até hoje de fazer o deposito em qualquer estabelecimento bancario da capital, quando a sociedade fosse ahi estabelecida, ou do paiz quando a sociedade fosse estabelecida fóra da capital.

O illustre ministro, como disse, não permitte a emissão por series, de sorte que uma sociedade constitue se logo com todo o seu capital, e não póde fazer nova emissão a não ser pelo reforço do capital.

Tambem não sei a rasão que teve o illustre ministro para acabar com a emissão do capital por series. Sei que a maior parte d'esse capital é ficticio, e as sociedades anonymas annunciaram nos seus cartazes e programmas a foi mação de sociedades com grandes capitães, de réis 500:000$000 e 10.000:000$000 réis, e a final nunca passava do capital de primeira emissão, e a primeira emissão quasi nunca chegava a ser integralmente subscripta.

O que é certo é que embora esse capital fosse, para assim, dizer, ficticio, não é todavia isso uma circumstancia indifferente para o credito da sociedade e, para, que as transacções da sociedade anonyma se realisem com melhor acceitação da parte do publico, não é indifferente para os actos praticados por uma sociedade anonyma, que o seu capital seja de 10.000:000$000 réis, embora a primeira emissão seja apenas de 1.000:000$000 ou 2.00:000$000 réis.

Bem sei que este capital é apparente; mas no mundo economico, como no mundo social em geral, a apparencia é tambem ás vezes uma força.

O facto de uma sociedade se firmar com um grande ca-
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pital muitas vezes tem inspirado credito á associação fundada n'essas bases.

O illustre ministro diz que, se porventura a sociedade não puder satisfazer as suas transacções com o seu primitivo capital, póde reforçal-o. Perfeitamente de accordo, mas que vantagem ha em haver uma nova assembléa geral, em fazer novos estatutos e em redigir nova escriptura de associação, porque tudo isso se ha de realisar para o reforço do capital? Não vejo inconveniente algum em continuar a permittir, como até agora, a emissão por series do capital das sociedades anonymas, visto que nenhum inconveniente, nenhum mau resultado tem dado que, eu saiba, a emissão por essa fórma, em vez de se fazer immediatamente a emissão da totalidade do capital.

Ha outro ponto em que o illustre ministro alterou tambem a lei de 1867.

É aquelle a que se refere o § 3.° do artigo 164.°

Em primeiro logar a disposição não está clara.

Qual é a idéa do sr. ministro? É acabar absolutamente com as acções beneficiarias, ou é acabar com as acções beneficiarias como premio aos fundadores?

O paragrapho dá logar ás duas interpretações porque diz: É absolutamente prohibido que os fundadores se reservem acções ou obrigações beneficiarias, sendo-lhes só permittido reservarem uma percentagem não superior a um decimo dos lucros liquidos da sociedade por tempo não excedente ao de um terço do periodo da duração social, e nunca superior a dez annos, a qual nunca será paga sem se achar approvado o balanço annual.

Parece-me por consequencia que a acção beneficiaria fica supprimida, mas fica supprimida para os fundadores.

Quer dizer, os fundadores não podem reservar se acções beneficiarias, mas não fica prohibida a emissão de acções beneficiarias. A acção beneficiaria póde crear-se ou para galardoar os serviços como fundador, ou para ser dada a todos os subscriptores.

Ha sociedades anonymas que emittem acções beneficiarias, as quaes acções não são distribuidas como premio aos socios fundadores, mas são distribuidas proporcionalmente pelos accionistas.

Ha sociedades anonymas que têem nos seus estatutos a disposição de que cada subscriptor de cinco, dez ou quinze acções tenha direito a uma, duas ou tres acções beneficiarias.

Evidentemente estes subscriptores não são sempre os fundadores; podem ser ou deixar de o ser, mas muitas vezes não o são. São fundadores os que constituem a sociedade, e cujos nomes estão indicados na escriptura, e são sempre em numero limitado com relação á totalidade dos subscriptores.

Portanto a acção beneficiaria, que eu saiba, representa dois papeis n'uma sociedade anonyma: podo representar o papel de remunerar os serviços aos socios fundadores, e póde representar tambem o papel de servir para distribuir por todos os subscriptores na proporção das acções com que subscreverem.

Ora pela leitura do § 3.° do artigo 164.° parece que o que fica prohibido é que os fundadores possam obter acções beneficiarias como premio dos serviços que fizeram para fundar a sociedade, mas não parece que fique prohibido a emissão de acções beneficiarias, uma vez que estas acções tenham outro destino que não seja o de retribuir os pagar os serviços aos fundadores.

Eu sei que a faculdade de que têem usado as sociedades anonymas de crearem acções beneficiarias, tem dado logar a especulações; mas note o sr. ministro que estas acções beneficiarias têem contribuido em larga escala para a constituição de muitas sociedades.

Eu conheço uma sociedade anonyma, em cujos estatutos ha a disposição de que por cada cinco acções o subscriptor tem direito a uma acção beneficiaria.

Esta clausula, que parece á primeira vista indifferente, tem sido estimulo para que aquella sociedade prospere.

Tanto faz ter cinco acções pagas por um certo preço, como ter mais uma que não é paga. E comtudo a circunstancia de se dar como premio ao subscriptor das cinco acções uma acção beneficiaria tem contribuido immenso para augmentar os subscriptores n'aquella sociedade, e evidentemente para a sua prosperidade.

Peço com relação a este artigo uma explicação ao sr. relator da commissão ou ao sr. ministro, para que me digam qual foi o seu pensamento ao redigil-o.

Se foi acabar com as acções beneficiarias, ou se foi prohibir a entrega d'essas acções aos socios fundadores, podendo a direcção dar lhe outra applicando que não seja a remunerarão de serviços, como parece que é a idéa do artigo 164.°, § 3°

Vamos ao artigo 169°

Qual foi a rasão que levou o sr. minisro da justiça a permittir que as acções das sociedades anonymas só sejam negociaveis depois de se ter realisado o pagamento de 50 por cento do seu valor nominal?

Segundo a lei de 22 de julho de 1867, as acções podiam ser negociadas apenas tivessem sido pagos 10 por cento do seu valor nominal?

Eu não acceito nem o system da lei de 22 de julho de 1867, nem o systema do sr. ministro da justiça; o que eu desejava, era que as acções das sociedades anonymas podessem ser negociadas logo que tivessem a sua primeira prestação entrada, e isto pela simples rasão de que a acção tem em regra o valor maior ou menor, conforme a entrada feita.

A acção que tiver 50 por cento entrados, tem metade do seu valor, mas se tiver apenas entrada a primeira prestação não deixa de ter um valor real, embora mais diminuto.

Qual a rasão, pois, porque se modificou a lei de 1867, e o sr. ministro da justiça foi exigir 50 por cento do seu valor nominal?

Eu acceito apenas uma solução, que é a das acções poderem ser negociadas desde que tenha sido paga a primeira prestação.

É evidente que será o mercado quem lhe dará o valor, correspondente aquelle que ella representar para com a sociedade.

Com a determinação do sr. ministro póde dar-se o facto seguinte.

Supponha s. exa. que uma sociedade anonyma emitte acções de 90$000 ou de 100$000 réis; que se pagou a primeira precação, que não foi necessario ser de 50 por cento do seu valor nominal, quer dizer, para as acções de réis 100$000 não foi necessario entrar com 50$000 réis, mas apenas com 30$000 ou 35$000 réis; não estão pagos 50 por cento do valor da acção, mas a sociedade não carece de fazer mais chamadas de prestações, porque a sua prosperidade é tal que não carece de mais capital alem do que foi realisado com as prestações cuja somma não attingiu na 50 por cento; n'estas condições, embora a acção de réis 100$000 represente valor inferior a 50$000 réis, todavia o mercado póde dar-lhe um valor grande, attento o dividendo distribuido.

Qual ha de ser a rasão por que as acções d'esta sociedade não hão de ser negociadas na praça, como outros titulos que têem realmente mu valor grande?

Póde acontecer que uma sociedade anonyma não queira chamar 50 por cento do capital realizavel das suas acções, porque as suas operações tenham tido uma grande prosperidade, e comtudo as acções não podem ser vendidas, não podem entrar na circulação porque não são negociaveis, por isso que a lei diz que só o podem ser quando tiverem um desembolso de 50 por cento.

O outro ponto em que o illustre ministro fez tambem

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uma alteração profunda na lei de l867, está no § 1.° do artigo 170.° do projecto.

Com relação á responsabilidade pelas prestações em divida, a lei de 22 de junho de 1867 tinha uma disposição que dizia que o primitivo subscriptor era obrigado a pagar as entradas das acções com que subscrevesse, sendo responsavel para com a administração da sociedade pela totalidade do valor da acção.

O valor da acção, segundo o costume, não era entregue por uma vez; faziam-se differentes chamadas, de maneira que o accionista pagava as prestações, mas ficava responsavel pelo valor total da acção.

Se o accionista transmittia a acção a outro individuo, com consentimento da direcção da sociedade, este individuo é que ficava responsavel para com a sociedade pelo resto do capital ainda não pago; mas, se a transmittia sem consentimento, ficava então obrigado para com a sociedade. Este systema era explicavel e sensato em boa theoria juridica.

O que fez o sr. ministro da justiça? Entendeu que a doutrina da lei de 1867 não se podia acceitar, porque a direcção da sociedade podia approvar a transmissão da acção a um individuo que não tivesse condições de solvabilidade. E esta uma hypothese pouco admissivel.

Não é de suppor que a direcção de uma sociedade anonyma permittisse a transmissão de acções para um individuo que não apresentasse condições de solvabilidade, nem se póde presumir que as sociedades escolham para administradores individuos que de proposito o fraudulentamente as prejudiquem.

Mas quando o argumento do sr. ministro da justiça fosse acceitavel, então eu não sei explicar como s. exa. deixa ficar a disposição do § 4.° do mesmo artigo que diz:

«No caso especial de sociedades, a que se refere o artigo 162.°, podem os respectivos estatutos permittir a exoneração da responsabilidade dos transmittentes das acções, verificada a solvabilidade dos adquirentes, e sem prejuizo do direito de quem a esse tempo for credor da sociedade.»

S. exa. duvida da probidade das administrações das companhias quando for nulla a sua theoria, e ao mesmo tempo acredita na honestidade das direcções das companhias de seguros.

Quer dizer, a rasão apresentada pelo sr. ministro da justiça, em primeiro logar, não póde servir de base á sua theoria, porque não póde ir buscar a circumstancia de administradores faltarem ao cumprimento dos seus deveres, e em segundo logar s. exa. é contradictorio comsigo mesmo porque estabelece depois doutrina differente em relação ás companhias de seguros.

Como é que se verifica a responsabilidade do primitivo subscriptor com relação ao valor total da acção? Pelo valor total da acção é responsavel o primitivo accionista, o segundo adquirente, o terceiro adquirente, o quarto adquirente, e todos os adquirentes por onde passarem as acções, de maneira que todos são obrigados ao pagamento das prestações em divida. Pergunto que especie de responsabilidade é esta? Peço ao sr. relator da commissão ou ao sr. ministro da justiça que me digam que responsabilidade é esta.

Parece que o primitivo subscriptor e cada um dos successivos possuidores da acção é responsavel pelo pagamento d'ella; a responsabilidade é solidaria, e então a direcção da sociedade tem direito do obrigar cada um d'elles a pagar e de os chamar aos tribunaes para obter d'elles o pagamento das prestações em atrazo ou em divida? Pergunto, fica á escolha da direcção o chamar o primeiro subscriptor ou qualquer adquirente, ou tem de chamar to dos elles aos tribunaes?

Mas o mais curioso não é isto, é que emquanto o illustre ministro admitte esta responsabilidade de todos os primitivos subscriptores de acções e de todos os outros portadores d'ellas; emquanto admitte uma responsabilidade que não sei bem o que é, ao mesmo tempo diz que os estatutos podem, estabelecer as penalidades em que os accionistas e subscriptores remissos incorrerão, salvos, porém, sempre os direitos dos credores consignados no artigo 147.°

Quer dizer, por um lado acho que a verdadeira maneira de exigir a responsabilidade no primitivo accionista e ao adquirente é a do artigo 170.°, § 1.°, e ao mesmo tempo abre uma porta nos estatutos, pela qual se podem lançar facilmente as sociedades anonymas, estabelecendo as penas que julgarem convenientes.

Pergunto ao illustre ministro, os estatutos podem estabelecer as penalidades em que os accionistas e subscriptores remissos incorrerem, e n'esse caso podem estabelecer a pena de commisso?

Não sei; o sr. ministro o dirá. Eu estou formulando uma pergunta e raciocinando sobre a hypothese de uma resposta. Os estatutos podem permittir que o accionista que não entrar com as prestações que dever, perca a propriedade da acção para a sociedade? Creio que sim. Logo, sendo assim, o § 3.° facilita um outro systema de effectividade da responsabilidade do primitivo accionista, que não é o systema que se encontra no § 1.° do artigo 170.°

Estou plenamente convencido de que a disposição do § 1.° do artigo 170.° é uma disposição completamente nulla, porque desde que o sr. ministro permitte que os estatutos da sociedade estabeleçam as penalidades que julgarem convenientes para os accionistas remissos, elles hão de estabelecer o perdimento das acções que é a pena mais simples e mais efficaz.

Por consequencia este § 3.° inutilisa completamente a disposição do § 1.°, porque entre a disposição d'este e d'aquelle creio que nenhuma direcção de sociedade anonyma hesitará e todas ellas abraçarão a idéa de estabelecer nos estatutos a pena de commisso, que é de muito mais facil applicação.

Por conseguinte, por um lado vejo estabelecer um processo para tornar effectiva a responsabilidade do accionista ou do possuidor remisso, processo que não supponho melhor do que o que se encontra na lei de 22 de julho de 1867, e por outro lado ás sociedades anonymas concede-se estabelecer nos seus estatutos penas que annullam o systema de exigencia de responsabilidade, que o illustre ministro proclama como o mais salutar de todos. Não comprehendo.

Vamos ao artigo 183.°, § 3.º

Diz assim:

«Nenhum accionista, qualquer que seja o numero das suas acções, poderá representar mais da decima parte dos votos conferidos por todas as acções emittidas, nem mais de uma quinta parte dos votos que se apurarem na assembléa geral.»

Qual foi a idéa que o illustre ministro da justiça teve em vista quando redigiu este artigo? Parece-me poder comprehender qual foi o seu pensamento. O illustre ministro limitou a representação na assembléa geral dos grandes accionistas. S. exa. não quiz que o accionista que possuia um grande numero de acções absorvesse completamente a deliberação e o voto do pequeno accionista.

É claro que attendendo ao que geralmente é estabelecido nos estatutos das sociedades anonymas, a votação faz-se sempre por grupos do acções, pertencendo um voto a cada grupo, e desta maneira é evidente, que quem tiver maior numero de acções, de maior numero de votos dispõe e conseguintemente o accionista poderoso supplantará sempre o pequeno accionista.

Em primeiro legar, é questionavel, se o accionista que tem mais votos, não deve ter ao mesmo tempo o direito de vencer os que têem menor numero de votos, porque esse maior numero de votos, representa maior capital empregado n'aquella sociedade e por consequencia mais interesse em velar pela sua boa administração.

Mas s. exa. o sr. ministro da justiça o que não deseja é que os grandes accionistas afoguem pelo seu numero de votos, os pequenos accionistas!

S. exa. viu a questão por um lado, mas não a viu pelo

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outro; quer dizer, s. exa. attendeu á circumstancia de que era necessario proteger os interesses dos pequenos accionistas em contraposição aos grandes accionistas, mas não viu que estabeleceu uma disposição, que dá logar exactamente ao inverso, isto é, que o accionista que tem um grande numero de acções, fica supplantado pelos pequenos accionistas quando unidos. E eu vou demonstrar isto.

Tomemos para exemplo uma sociedade anonyma de 10:000 acções em quer 9.000 acções estão na mão de um só accionista, o que póde muito bem succeder, podem pertencer a uma collectividade representando um só accionista, e as 1:000 acções restantes pertencerem a dez accionistas tendo cada um 100.

Admittindo que nos estatutos d'esta sociedade se declara, que cada accionista de 5 acções terá um voto, este accionista das 9:000 acções tem 1:800 votos, e os accionistas das 100 acções terão cada um 20 votos, total 200. Terá por consequencia cada um dois dez accionistas, 20 votos e o outro possuidor das 9:000 acções, 1:800 votos. Diz agora a lei; que na assembléa geral, nenhum accionista poderá ter mais da quinta parte dos votos que se apurarem. Ha de ser difficil executar isto, porque o voto é anterior ao apuramento. Mas vamos adiante.

Ora tratando se de grupos de 5 acções e cada 5 com um voto estes dez accionistas não podem ter mais de 40 votos e n'esta hypothese o accionista das 9:000 acções applicando-se a disposição do artigo que lhe dá a quinta parte, tem 40 votos, e cada um dos outros dez accionistas tem 20 votos: Por consequencia, bastam dois d'estes accionistas para contrabalançarem a preponderancia do accionista que tem 9:000 acções.

Isto é que de certo o sr. ministro da justiça não quer.

E o que é que se dá com relação aos accionistas estrangeiros?

No § 2.° do artigo 187.° trata-se da representação dos accionistas estrangeiros, o diz-se que os representantes dos accionistas estrangeiros têem na assembléa geral tantos votos quantos pelos estatutos pertençam aos accionistas committentes.

Ora, acontece o seguinte: esta disposição é transcripta da lei de 22 de junho de 1867, mas o artigo anterior, que acabei de ler, alterou n'esta parte a lei de 22 de junho do 1867 com relação aos accionistas nacionaes.

Quer dizer: o illustre ministro não reparou que tinha alterado o artigo correspondente da lei de 22 de junho de 1867, com relação aos accionistas nacionaes.

Com relação a estes a lei de 22 de junho de 1867 dispunha que os estatutos da sociedade é que haviam de estabelecer o numero de votos que cada um havia de ter.

O illustre ministro o que fez? Alterou a lei de 22 de junho de 1867 com relação aos accionistas nacionaes, e não a alterou com relação aos accionistas estrangeiros.

Mas, se a alterou com relação aos accionistas nacionaes, devia alteral-a tambem com relação aos accionistas estrangeiros.

De o não fazer resulta, segundo parece, que ha um regimen para a representação do voto com relação aos accionistas estrangeiros e outro regimen para a do voto com relação aos accionistas nacionaes.

Os representantes dos accionistas estrangeiros têem na assembléa geral tantos votos quantos lhes competirem pelos estatutos da sociedade; logo, para os accionistas estrangeiros regulam os estatutos da sociedade.

Para os accionistas nacionaes não regulam os estatutos da sociedade, porque nenhum accionista nacional póde ter na assembléa geral mais votos do que os que são marcados n'este projecto.

Em todo o caso ouvirei as explicações do governo a este respeito.

E peço explicações, principalmente sobre este ponto: ha um regimen para a representação de voto, com relação aos accionistas nacionaes, e um regimen differente para a representação de voto, com relação aos accionistas estrangeiros?

Se o regimen é o mesmo, como se explicam o § 3.° do artigo 183.° e o § 2.° do artigo 187.°?

Se o regimen é o mesmo, os accionistas estrangeiros devem ter, não tantos votos como os que os estatutos designarem, mas tantos quantos são os designados no § 3.° do artigo 183.°, isto é, os mesmos que os accionistas nacionaes.

Finalmente, sr. presidente, vou referir-me ao artigo 195.°, que trata da emissão de obrigações.

Já o illustre deputado o sr. D. José de Saldanha, que fez um excellente discurso ácerca do projecto que se discute, teve occasião de se referir a este objecto.

O projecto concorda com o systema da lei de 22 de junho de 1887, isto é, com a emissão de obrigações até á importancia do capital já realisado.

N'este ponto eu concordo plenamente com o illustre deputado o sr. D. José de Saldanha. Julgo indispensavel estabelecer um limite, umas condições sómente, verificadas as quaes se podesse permittir a emissão de obrigações ás sociedades anonymas.

O que é que se está fazendo praticamente? Emitte-se a primeira serie de capital; quando a subscripção chega a 50 por cento, isto é, guando falta pagar, por exemplo, 50$000 réis, de uma acção de 100$000 réis, o accionista que subscreveu não entra com mais prestações!

Então o que faz? Livra-se do encargo e defende a emissão de obrigações.

Portanto, eu não permittiria a emissão de obrigações senão no caso de estar pago integralmente o capital da sociedade.

D'esta maneira, e segundo o artigo, 195.º, apenas se tenha subscripto 50 por cento do capital, e até menos a sociedade anonyma póde affoutamente emittir obrigações; e d'este modo os accionistas deixarão de pagar integralmente o capital, isto é, revogam o contrato que fizeram com a sociedade anonyma, em virtude do qual se obrigaram ao pagamento integral das suas acções. Ora eu prohibiria á emissão de obrigações antes d'esse pagamento integral.

São estas, sr. presidente, as considerações que, por agora, me occorre fazer.

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APPENDICE Á SESSÃO DE 18 DE FEVEREIRO DE l888 514-E

O sr. Silva Cordeiro: - Está quasi a dar a hora, sr. presidente. São por isso muito breves as considerações que vou fazer, reservando-me entretanto o direito de amplial-as na proxima sessão e apresentar as convenientes propostas.

Começo por chamar a attenção do illustre auctor do projecto, para aquelle artigo que permitte ás sociedades civis constituirem-se sob a fórma commercial e portanto sob a fórma de anonymato.

O projecto sujeita aos preceitos e formalidades da lei commercial todas as sociedades que queiram gosar d'aquella faculdade, excepto quanto á fallencia e á jurisdicção. Quer isto dizer que, quanto aos prasos de prescripção, vigorará tambem para ellas a lei commercial? Se assim é, e não se póde em boa hermeneutica dar outra interpretação ao artigo, que é restrictivo, decretam v. exas. uma providencia arbitraria, iniqua e altamente perigosa, que levará muitas associações civis a constituirem-se sob a fórma de sociedades anonymas, só para aproveitarem a prescripção commercial que, como todos sabem, é mais favoravel ao devedor e sempre mais breve do que a prescripção civil.

O sr. Oliveira Valle: - Que artigo é?

O Orador: - É o artigo 160º, que no projecto do sr. Beirão vinha já assim redigido:

(Leu.)

É evidentemente um lapso que a commissão não corrigiu e que n'uma segunda revisão deve merecer-lhe particular solicitude. Nem este ponto é de tão pequena importancia, como a alguns se afigura. (Apoiados.)

É sabido que muitas associações de caracter puramente civil, como, por exemplo, as que só dedicam á exploração de minas, á compra e venda de terrenos e a outras operações que no commercio são accidentaes, procuram revestir a fórma commercial, para poderem dividir o seu capital em acções, contrahir emprestimos, emittir obrigações nominativas ou ao portador, dar acções beneficiarias a socios benemeritos e empregar outros expedientes e processos que a lei civil, por si só, não reconhece nem garante.

A faculdade que o projecto lhes dá de revestirem a fórma de companhias anonymas, do sociedades de commandita ou de nome collectivo, é uma lei de favor até certo ponto rasoavel e justa, porque satisfaz uma antiga aspiração de muitas corporações, collocando-as fóra da esphera do direito commum; mas é tambem um principio perigoso, desde que a excepção se converta em privilegio contra os credores de taes sociedades, que outra cousa não é permittir-lhes que se defendam nos tribunaes dois com a prescripção commercial.

Ora é precisamente isto o que o projecto permitte.

Se o sr. ministro da justiça quer equiparar taes corporações ás sociedades anonymas no que respeita aos prasos da prescripção commercial, tão breves e tão suaves para o devedor, vá então mais longe, seja logico e seja coherente, dando aos credores uma garantia efficaz na legislação relativa a fallencias, e estabeleça, como fez a legislação brazileira de 1882, o principio de que todas as sociedades constituidas sob a fórma anonyma, são para todos os effeitos consideradas commerciaes, seja ou não commercial o seu objecto ou o seu fim.

É tambem este o systema da legislação belga, que na lei de 18 de maio de 1873 reconhece o caracter mercantil a quaesquer associações momentaneas. Se, pelo contrario, s. exa. entende que aquellas associações não devem ficar sujeitas, quanto a fallencias, á legislação commercial, como parece deduzir-se do projecto, e quer portanto applicar-lhes os principios do direito commum no caso de insolvencia, regule-as pelo mesmo direito em materia de prescripção e terá assim dado aos credores uma garantia, sem privar as sociedades civis das vantagens que lhes proporciona a fórma do anonymato. Nem insisto mais n'este assumpto que me parece...

O sr. Alves da Fonseca: - Essa questão foi levantada já no seio da commissão.

O Orador: - Não sei o que se passa nas commissões de que não seu membro, principalmente quando ellas não publicam as suas actas, o que aliás, e va sans dire, não me pareceu muito correcto, tratando-se do projecto de um codigo que vae vigorar indefinidamente e que ámanhã vae ser digerido no ventre pantagruelico da nossa casuistica.

(Interrupção do sr. Vicente Monteiro, que não se ouviu)

O Orador: - V. exa. lembra-se de certo do que disse Napoleão I quando os advogados começaram a commentar o codigo civil: «Lá me estragaram o codigo». Pois, para que não aconteça o mesmo com este codigo, para que a analyse meticulosa dos jurisconsultos não venha a estragar o n'um esmerilhamento chinez de infinitas e abstrusas hypotheses, como fazia certo professor de direito que incluia os peixes na classe dos animaes ferozes, (Riso.) para que a chicana dos advogados, servindo-me de uma palavra que é do jargon forense, posto que não seja bem parlamentar...

O sr. Oliveira Valle: - É até muito parlamentar, empregada pelo sr. visconde de Seabra.

O Orador: - Para que o espirito de chicana não venha a pôr escuro e torto o que de si é claro e direito, é que eu desejava que a commissão resolvesse esta questão, visto que a discutiu e que tivesse publicado as suas actas que tanta luz projectariam no debate. Fallo com esta liberdade, sr. presidente, porque vejo a camara convertida n'um gremio de jurisconsultos, onde o que se diz nem sequer chega a ser um discurso, porque não passa do uma palestra amavel, mas levantada e seria, como devera ser as discussões d'esta natureza. Demais reparem v. exas. n'aquillo (apontando para as lançadas vazias da opposição). Olhem para aquelle deserto onde, ha um mez esbravejava a paixão politica em apostrophes violentissimas e onde a fome do poder congestionava as cabeças e punha nos labios crispações epilepticas. Para onde foram aquelles estoicos zeladores da liberdade? Onde estão aquelles doentes sagrados da morbus comitialis que ha pouco juravam pelos seus manes combater à entrance o governo até o derribarem gastar o ultimo cartucho n'essa campanha uma campanha de furor, feita do gestos theatraes a murros nas carteiras e phrases carnavalescas? Vê-se, sr. presidente, que a cartucheira não vinha bem sortida e a polvoreira... trazia só polvora secca, como a d'aquelle rei de opera buffa que attribuia, tudo ás manobras do seu exercito, inclusivamente os netos que lhe appareciam. (Riso.)

Pois eu receio que esta rapida mudança de tactica n'aquelles arraiaes seja tambem o effeito das manobras de algum accordo que o sr. ministro da fazenda traga por ahi escondido nas dobras da sua pasta. Vá longe o agoiro, mas fique consignado aqui o meu protesto contra tal politica de accordos que tudo desaccorda e nos enxovalha a todos, fazendo crer lá fóra que valemos tanto uns como outros.

(Interrupção do sr. ministro da justiça que não se ouviu.)

Como v. exa. vê, apparent rari mantes in gargite vasto.

Pois faz isso muita honra ao sr. Julio de Vilhena que desde o principio nos tem acompanhado, prestando a este debate toda a illustração do seu estudo que é grande e variado, e toda a inspiração do seu criterio que ainda e maior. Fez hontem s. exa. observações e propostas a que terei de referir-me. Folgo por isso de o ver presente, porque é sempre com repugnancia que me vejo obrigado a alludir a um orador ausente. Uma das questões que s. exa. discutiu com o sr. relator, foi a de se prohibir ou facultar a emissão de acções beneficiarias. Nem me sorri a proposta de s. exa. que é larga de mais para por ella se introduzir a agiotagem da bolsa, nem me parece liberal a solução do projecto, tão habilmente defendida ha pouco pelo sr. Vicente Monteiro.

Comtudo, como a hora vão muito adiantada, explanarei
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514-F DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

ámanhã esse assumpto e vou por agora alludir a uma lacuna imperdoavel do projecto.

Estabelece o artigo 162.° condições essenciaes a que de vem submetter se as sociedades anonymas para se constituirem definitivamente. Especialmente o n.° 5.° consigna, a meu ver, uma acertada precaução, uma boa garantia para o publico e para os subscriptores, exigindo o deposito da importancia total da subscripção na caixa geral de depositos, á ordem da administração que for eleita e declarando, alem d'isso, indispensavel a realisação em dinheiro de 10 por cento do capital subscripto.

Onde está porém o artigo que declaro nulla a sociedade constituida em contravenção d'este preceito? E onde se define a responsabilidade dos fundadores ou installadores de uma companhia que venha a fallar, tendo preterido aquellas condições e quantas as vezes por isso mesmo? N'uma palavra, eu não sei o que seja uma lei, quando lhe falta a sancção que a torna exequivel.

O sr. Oliveira Valle: - Leia o artigo 107.°

O Orador: - Conheço essa disposição e v. exa. que um dialectico habil e um advogado distincto, comprehende de certo que eu não podia referir-me á disposição do artigo 106.°, como ha pouco fiz, sem conhecer a disposição subsequente e parallela do artigo que v. exa. cita. Mas, se a commissão se defende de uma lacuna tão grave invocando essa disposição, então as minhas duvidas recrudescem, é maior o meu espanto o tornam-se mais melindrosas as minhas apprehensões por uma disposição que eu suppunha simplesmente inutil e que agora vejo que póde ser perigosa.

Com effeito, sr. presidente, o artigo 107.° declara não existente toda a sociedade que para um fim commercial se constituir sem as formalidades preceituadas no codigo. Se n'este artigo está a unica sancção do artigo 162.°, se o artigo 107.° não é uma d'aquellas formulas puramente doutrinaes, - luxo de palavras ou alarde de erudição que tanto abundam nos projectos do sr. Beirão o que n'um codigo são absolutamente dispensaveis, porque o seu logar proprio é n'um comentario ou n'um livro de jurisprudencia, se n'este artigo está a unica sancção para o artigo 162.°, pensem então v. exas. nos corollarios que d'ahi se deduzem o tremam pelas consequencias que a pratica ha de mostrar-lhes, quando os especuladores e os agiotas comprehenderem que a maneira mais facil de se só subtrahirem ás formalidades exigidas pelo artigo 162.° o á responsabilidade correlativa está na aggremiação em sociedade civis sob a fórma de anonymato, porque o artigo 107.° não as abrange, como evidentemente se deduz das palavras "«ara um fim commercial.»

Que uma sociedade anonyma não se considera legalmente existente emquanto não cumprir as condições que a lei declara essenciaes, e que por consequencia a responsabilidade é n'esse caso pessoal e illimitada para os que em nome d'ella se obrigam, era escusado que viesse dizel-o o artigo 107.° porque é principio geral e corrente de direito em materia de responsabilidade civil e deduz-se, alem disso, da linguagem imperativamente restricta do artigo 162.° O que não era superfluo, sr. presidente, o que o projecto não diz e é indispensavel que o diga, é a quem compete a responsabilidade penal e o modo do a tornar exigivel e efficaz.

Organisou-se, por exemplo, uma companhia com o capital nominal de 900:000$000 réis e registrou-se o seu titulo na repartição competente do ministerio das obras publicas: as suas acções o obrigações são cotadas na bolsa, funcciona regularmente na apparencia, o publico e, o que é mais, o governo o as estações officiaes, o proprio banco de Portugal acreditara na existencia legal d'esta sociedade e n'esse presupposto contratam com ella; mas ao cabo do um, dois, tres annos, a companhia quebra descobre-se então um vicio originario da constituição social. Vê-se, por exemplo, que a companhia, em vez de ter realisado 90:000$000 réis, como exige o projecto, converteu apenas 50:000$000 réis nominaes em dinheiro e em vez de fazer o deposito na caixa geral de depositos, fel-o em qualquer banco, d'onde podia levantal-o sem difficuldade, como ainda hoje fazem muitas companhias para ludibriarem os credores, apresentando como garantia um capital ficticio.

Quid inde, pergunto eu? A sociedade era nulla desde o começo: sobre a nullidade ainda não tinha caído a agua lustral da prescripção, a sociedade não existia, os preceitos relativos a sociedades fallidas não podem portanto ser-lhe applicados. A quem incumbe n'este caso a responsabilidade - aos administradores gerentes ao tempo da fallencia, ao conselho fiscal, aos accionistas, aos socios fundadores? E a responsabilidade penal por fraudes, de que nem uma palavra só diz no projecto? E mesmo quanto á responsabilidade civil, como ha de ella ser exigida nos tribunaes e por que lapso de tempo prescreva? Qual é o artigo do projecto que responde a estas interrogações?

Uma voz: - Deduz-se do artigo 165.°

O Orador: - Deduz-se? Pois é licito deduzir ou augmentar por analogia em direito penal? Pois o illustre deputado admitto que um juiz applique uma pena que não esteja taxativamente, restrictamente comminada na lei? É theoria nova em direito penal. Lembro alem d'isso a v. exa. que o artigo 165.° legisla para hypothese differente e não vae alem da responsabilidade civil.

(Leu.)

Regula, como v. exa. vê, a responsabilidade dos fundadores pelos actos praticados até á constituição definitiva da sociedade; mas a hypothese a que me retiro, é a de uma sociedade que chegou - a constituir-se, embora illegalmente, dando-se por habilitada o regendo se para com o publico, em tudo e mais, pela legislação relativa a sociedades anonymas. Isto é que eu não vejo tratado no projecto e, senão, v. exa. tem a bondade de esclarecer-me, cita o artigo?

(Pausa.)

É possivel que este silencio do projecto signifique que a responsabilidade se regula pelos termos do direito commum, como fazem algumas legislações estrangeiras, notavelmente a legislação belga; mas, n'esse caso, eu que reputo tal systema excellente e admiravel... para os agiotas, peço que um artigo especial ou, quando menos, uma referencia expressa do relatorio remetta para o direito commum e corte todo o pretexto á casuistica. As penas e as nullidades decretam-se, legislam-se em termos claros, não se presumem por analogia: só assim póde conseguir-se que ao ideal da justiça não se anteponha nunca o arbitrio, do julgador.

Esta lacuna do projecto é tanto mais estranhavel, quanto é certo que nos falta um codigo de processo commercial e que a jurisprudencia do foro é incerta e vacillante n'esta materia, o que dá logar a accordãos contradictorios e põe a justiça á discrição exclusiva dos banqueiros opulentos, unicos que se aventuram a intentar uma acção de nullidade, porque os que não são banqueiros transigem e recuam logo aterrados com a perspectiva de um processo dispendiosissimo em todas as instancias, sem que a previsão de um bom causidico possa jamais assegurar-lhes um resultado qualquer.

Da legislação estrangeira não conheço um só codigo ou lei que não trate d'este assumpto, embora cada uma com solução o processo proprios; mas, se leio este volume, não comprehendo qual systema adoptará a nossa jurisprudencia na questão de nullidades.

Será o systema de rigor, seguido pelo codigo allemão (artigo 211.°) e pelo codigo italiano (artigo 98.°)? Da leitura do artigo 165.° do projecto, assim parece; mas o sabio auctor do projecto já no final do mesmo artigo introduziu uma excepção que eu não quizer ver consignada em termos tão vagos, pois bem poderá o julgador fazer d'ella o que quizer. Refiro-me ás palavras «salvo o regresso (dos fundadores) contra ella (sociedade), se houver logar».

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APPENDICE Á SESSÃO DE 18 DE FEVEREIRO DE 1888 514-G

É o systema bem mais benigno da legislação belga (lei de 18 de maio de 1873, artigo 34.°), que attribue a responsabilidade proveniente de nullidades de constituição unicamente aos socios fundadores?

É o systema, um pouco analogo, da legislação suissa(codigo das obrigações, artigos 671.° a 673.°) que reparta responsabilidade pelos fundadores e administradores?

É o systema duro e atroz da legislação franceza (lei de 24 de julho de 1867, artigos 41.°, 42.°, 55.° e 56.°) que, segundo a maioria dos jurisconsultos, obriga os fundadores e administradores ao pagamento de todo o passivo social em caso de nullidade e ainda lhes aggrava a responsabilidade criminal com penas e multas excepcionaes?

Sabe v. exa., sr. presidente, que de um simples lapso de redacção em França, ao passar do regimen da lei de 23 de maio de 1863 para o da lei de 1867, surgiu uma questão tão grave, que ainda hoje divide n'este ponto a jurisprudencia d'aquelle paiz. Uns, quer dizer, a grande maioria, adoptam o systema de uma responsabilidade excepcional e durissima, tal como vinha no projecto da lei do 1863; outros, um pequeno numero em que admiravelmente se distingue o dr. Villard, de Lyon, optam pela responsabilidade do direito commum, muito mais suave e, a meu ver, mais em harmonia com o espirito da lei de 1867.

É comtudo certo, sr. presidente, que a letra d'esta lei fornece argumentos a todas as opiniões o que os melhores commentadores attribuem a questão a um equivoco de redacção.

Urge, portanto, que a commissão seja explicita n'este ponto e córte, quanto possivel, toda a margem a duvidas.

Na proposta que vou mandar para a mesa, resolve-se esta questão pela fórma que mais sensata se me afigurou deverem limitar-se e definir-se as responsabilidades dos fundadores de uma sociedade, quando annullada pelos tribunaes por vicios de constituição.

Impõe-se a responsabilidade primeiro aos fundadores, depois aos primeiros directores, porque a elles compete verificar as condições em que se constitue a sociedade que uns organisaram e outros vão administrar. Dá-se-lhes em todo o caso regresso contra os accionistas que votaram o pacto de constituição, porque na primeira assembléa geral, antes de emitirem o seu voto, presume-se que verificaram a legalidade da sua aggremiação.

Alem d'esta responsabilidade de natureza civil que nos termos do artigo 2361.° do codigo civil se deve sempre em reparação dos prejuizos causados, convem que o codigo commercial defina a responsabilidade criminal dos directores e fundadores que por fraude arrastam a ruina dos accionistas e ludibriam os que na boa fé contratam com a sociedade, julgando-a legal e perfeita.

Não encontro no projecto disposição alguma a este respeito.

Nem penas nem multas.

Sei que no codigo penal alguma cousa ha referente ao assumpto, nomeadamente o artigo 451.° e seguintes, que punem as fraudes e burlas no uso de quaesquer titulos ou fundos; mas a commissão sabe muito bem que o codigo penal, attendendo aos factos vulgares em que a ordem moral vae ferida, não podia attingir todas as hypotheses, e por isso estabeleceu ao principio geral do artigo 15'.°, no seu § unico, uma excepção para os actos declarados puniveis por legislação especial.

Porque não ha de seguir-se n'este codigo o systema do legislador francez, belga, italiano ou mesmo brazileiro, que todos decretam, além da comminação da lei commum, penas ou pelo menos multas especiaes contra a fraude e contra a especulação de titulos, que ainda em 1876 produziu nas praças de Lisboa e Porto o krach medonho que todos presenceámos com amargura?

Eu sei que se brada muito contra as importações do direito estrangeiro, principalmente de França; mas pergunto onde esta o jurisconsulto portuguez que, desde Mello Freire e Coelho da Rocha até os srs. Beirão e Dias Ferreira, não fizesse importações d'essa natureza o algumas bem flagrantes e refractarias aos direitos da alfandega?

A legislação comparada, sr. presidente, é hoje uma sciencia indispensavel ao jurisconsulto: se a sua applicação n'um codigo póde considerar-se uma excursão inutil ao passado quando feita sem criterio, ella é tambem, quando sensata, uma viagem para o futuro, d'onde se volta rejuvenescido e melhorado com germens novos de civilisação e de vitalidade.

Não mandarei para a mesa proposta nenhuma com o fim de definir a responsabilidade criminal, porque não sei ainda quaes os intuitos da commissão a este respeito; mas lembro a lei franceza de 1867, a que por mais de uma vez me tenho referido e onde poderá colher-se alguma lição util n'este ponto.

Ainda mesmo que, por um supersticioso culto da liberdade individual, não queiram ir além do direito commum no tocante a penalidades, imponham, pelo menos, multas elevadas á emissão irregular de acções e obrigações, á negociação de titulos illegamente praticada, á simulação de subscripções de capital, á publicação de annuncios capciosos, de balanços inexactos, dividendos ficticios, emfim a todas as fraudes ou ciladas que a agiotagem dos capitalistas immoraes estende á credulidade do publico. E se as multas forem elevadas, como são em França, e como devem ser entre nós, ahi tem o sr. ministro da fazenda uma boa fonte de receita, contra a qual ninguem se levantará a protestar, porque se resolve a final n'uma garantia de probidade e de boa fé prestada ao publico contra essa monstruosidade de torpezas em papel sellado que se alastra no Terreiro do Paço, e que se chama Bolsa. Podem protestar talvez os parasitas da especulação, que vivem d'ella e por ella; mas esse protesto, que não abalará nos seus gonzos o mundo moral, vale bem para um estadista a gloria de ter promulgado uma providencia moralisadora e util.

Quando penso nas mentiras convencionaes do governo representativo, sr. presidente, pergunto a mim mesmo porque será que as industrias honestas estão sobrecarregadas e impostos, e as industrias immoraes não pagam cousa nenhuma? Quem pediu jámais um imposto á prostituição ou ao jogo illicito? Eu sei qual é a resposta. São immoraes, é isso; mas deixam ellas de existir por esse motivo? E pelo que respeita ao jogo, eu não conheço especie mais torpe, mais perigosa, nem mais profundamente subversiva da ordem social do que a jogatina de bolsa.
Refiro-me, já se vê, a certas operações que lá se usam, reportes e deportes de titulos, mercados a premio, etc., que para mim não passam de contratos simulados, mais ou meãos aleatorios, em que os pactuantes procuram sempre defraudar-se reciprocamente e ao publico. Extranho por isso, sr. presidente, que tão descurada fosse no projecto a parte penal; mas sinto-me feliz ao lembrar que estamos ainda muito a tempo de fazer amende honorable, visto que o codigo vae ter uma segunda revisão. Em vez de darmos carta de alforria á agiotagem, façamos uma lei honesta que possa garantir a probidade nos contratos.

Vozes: - Deu a hora.

O Orador: - Sinto que a hora tenha dado, por ter de concluir ámanhã a exposição de idéas que o projecto me suggeriu. Tenho sempre repugnancia em ficar com a palalavra reservada, mas a camara comprehende que eu não sou culpado de que a palavra me coubesse a hora tão adiantada. Ainda peço licença para ler duas propostas relativas ao assumpto de que me occupei hoje, reservando as outras para ámanhã.

Proponho:

1.° Que ao artigo 106.° se additem as palavras «e á prescripção».

2.° Que na secção I do capitulo relativo a sociedades anonymas, se inscreva uma disposição nos termos do seguinte:

«Art. ... - É nulla de direito toda a sociedade anony-

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ma constituida em contravenção do disposto no artigo 162.°, mas a sociedade não poderá prevalecer-se d'esta nullidade contra terceiros.

«§ unico. Declarada pelos tribunaes a nullidade, poderão ser solidaria e illimitadamente responsabilisados por perdas e damnos os fundadores, e bem assim os membros da primeira direcção que não tenham accusado em assembléa geral o vicio da constituição social, com regresso para os accionistas que, nos termos dos artigos 163.° ou 164.°, § 6.°, tiverem affirmado a existencia legal da sociedade.»

Tenho concluido por hoje.

Vozes: - Muito bem.

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