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E, sendo 2 horas e 30 minutos, disse que estava fechada a Sessão.

SESSÃO DE 10 DE FEVEREIRO.

Ás 9 horas e 40 minutos da manhã, pela chamada, a que procedêo o Sr. Deputado Secretario Ribeiro Costa, se acharão presentes 85 Srs. Deputados, faltando, alem dos que ainda se não apresentarão, 17; a saber: os Srs. Marciano d´Azevedo - Barão do Sobral - Leite Pereira - Araujo e Castro - D. - Francisco de Almeida - Bettencourt - Tavares d'Almeida - Izidoro José dos Sanctos - Cotta Sampaio- Mouzinho da Silveira - Rebello da Silva - Luiz José Ribeiro - Manoel Sintonia de Carvalho - Gonçalves Ferreira - Pereira Coutinho - Azevedo Loureiro - Mouzinho d'Albuquerque - todos com causa motivada.

Disse o Sr. Presidente que estava aberta a Sessão; e, sendo lida a Acta da Sessão precedente, foi approvada.

Dêo conta o Sr. Deputado Secretario Ribeiro Costa de um Officio do Ministro dos Negócios da Fazenda, remettendo uma Consulta do Conselho da Fazenda relativa á isenção de Direitos das Batatas das Ilhas, que se mandou remetter á Commissão de Fazenda. E dêo igualmente conta das Escusas, que mandarão de não podêr assistir á Sessão os Srs. Deputados - Costa Sampaio - Carvalho - Mouzinho d'Albuquerque - Tavares d'Almeida.

Teve a palavra o Sr. Deputado Cupertino da Fonseca para dar conta do Parecer, da Commissão Central sobre o Projecto N.º 102, que ficou reservado para segunda leitura.

Seguio-se o Sr. Deputado Bispo de Cabo Verde, o qual lêo urna Proposição, tendo por objecto differentes melhoramentos na Administração Ecclesiastica, Civil, e Militar da Provincia de Cabo Verde, que ficou reservada para segunda leitura.

Então o mesmo Sr. Bispo de Cabo Perde disse:

Segundo o que ouço em Portugal, e leio em alguns Papeis Publicos a respeito das Ilhas de Cabo Verde, ou os Escriptores se enganárão no que escrevêrão, ou eu no que vi: Segundo elles, o Europea, que houver d'estabelecer-se naquellas Ilhas, deve levar comsigo a mortalha, o dispôr-se, senão pura soffrer a morte, ao menos, para soffrer uma molestia afflictiva, e prolongada. Não he assim; as Ilhas de Cabo Verde não são em Africa o mesmo, que na Europa se suppõe que ellas são. O Europeo, que n'ellas quizer estabelecer-se, não precisa levar mortalha; precisa sim levar probidade, honra, boa fé, Caridade Christã, e sobretudo Religião, e sã Moral. Munido d'estas qualidades, que constituem o caracter d'um homem de bem, pode ir seguro na certeza de que achará nos habitadores de Cabo Verde hospitalidade, bom acolhimento, e homens com quem possa tractar. Munido das qualidades acima dietas, elle não se entregará a bebidas, e muito menos ao tracto criminoso de prostitutas, e outros deboches, que tem por consequencia os molestias, e por fim a morte, que lá soffre a maior parte dos Europeos.
Seis annos ha que vivo nestas Ilhas; d'estes gastei mais de quatro na visita do Bispado; pizei todos os seus Terrenos; observei os seus productos, tanto os que elles produzem, como os que podem produzir, se o Agricultor quizer. Vi as suas Manufacturas, e a sua Industria; tractei toda a Classe de Pessoas, e as tractei muito de perto. Tive occasião de conhecer o seu obrar, e até de conhecer o seu pensar: Ah! E que vi eu, e que presenciei? Terrenos incultos, que nunca virão ferro do Lavrador, tão virgens como Adão os deixou; mas bem capazes de produzir todos os generos dos Tropicos, do Brasil, e em grande parte as especiarias d´Asia. Vi outros já cultivados, mas que podião dar outros generos, não só em mais abundância, mas d'um lucro mais vantajoso, como são o Café, o Arroz , o Tabaco, a Canafistola, o Sene, o Tamarindo, o Anil, o Algodão, e o Milho, que nestas Ilhas he abundantíssimo, apesar do desleixo, e irregularidade, com que os Lavradores o cultivão, e colhem; não lhe custando mais trabalho do que fizer na terra uma pequena cova, onde lanção tres grãos, um de milho, outro de feijão, e outro d'abobora, os quaes cobrem com aponta do pé; e assim mesmo, apezar do desprezo com que fazem a sua cultura, basta uma quarta parte para produzir sessenta alqueires (em algumas Terras), e do mesmo modo as mais sementes lançadas á Terra, Tal he o Terreno!! E qualidade de feijão ha, que nem se semêa, nem se cultiva, nem com elle se tem trabalho nenhum, mais do que, para colher em tempo competente cada um o que quer; e he tanta a abundancia, que assim mesmo fica muito, que, cahindo no chão, serve de semente para o anno seguinte; com esta mesma negligencia cultivão os mais fructos, de que muito abundão as Ilhas.
Não ha Arte, que dirija as suas Manufacturas. Os instrumentos, de que se servem, como = v. g. Teares = são os mais imperfeitos, toscos, e irregulares, que podem fazer-se. Uns páos pregados na terra, e por cima deitadas algumas canas, de que pendem os fios do Algodão, que estão tecendo, cm cuja extremidade está ligada uma pedra tosca , eis-aqui os seus Teares, em que tecem os pannos, de que vestem, e negocêão na Costa, recebendo em troca escravos, cêra, marfim, ouro etc. etc. etc. Eis-aqui os Teares, em que tecem as cobertas, de que usão, que «ao os tecidos de mais estima. Só sabem fazer tinia azul, e amarella, e de tal modo fixas, que jamais se vão, por muitas vezes que vá á agua. Nem todos sabem tecer; mas todos sabem tingir. Nada sabem fazer por Arte, mas sabem usar bem do que a natureza lhes mostra; tudo reduzindo a prática com uma facilidade incrivel, porque todos tem viveza, e engenho. A priguiça, e a moleza, (carecteres proprios de Paizes quentes,) os faz ser pouco emprendedores, e contentar-se com a sua sorte, ainda que desastrosa; e, quasi sem cuidarem do dia d'amanhã, passão a vida de muitos annos. Digo de muitos annos; porque não he raro achar na mesma Ilha ires, e quatro Pessoas de cem , e mais annos, e he então que se lhe fazem os cabellos brancos, e quasi nunca antes d'esta idade. Eu conheço nas Ilhas algumas Pessoas de mais de 116 annos: duas de mais, e muitas de cem, e todas robustas. Uma mulher chrismei de 118 annos, que me disse = Nada mais me lembra, que comer;

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e, tendo que, como de dia, e de noite, a toda a hora, sem comida alguma me fazer mal.

He gente muito docil, e muito respeituosa aos seus Superiores, principalmente aos Bispos; mas muito cheia de práticas supersticiosas, e gentilicas, principalmente nos casamentos, e enterros, cuja historia por decencia passo em silencio, rematando com dizer, que a má educação pode ir até o ponto de suffocar os sentimentos da natureza. Sim: que cousa mais natural a uma mulher, que o pudor, e o recato? Pois quasi nuas se me vinhão apresentar; e pelo muito que as via satisfeitas, eu ajuizava que ellas estavão persuadidas que vinhão muito compostas e asseadas. Felizmente pude atalhar este mal, empregando somente os rocios da persuasão, e da brandura; ensinando-lhes mesmo a fazer as saias, e o modo d'usar d'ellas. Hoje he raro vêr-se unia mulher, que não traga saia, camiza, e panno. Isto, que levo dicto, he no interior das Ilhas, porque nas Povoações maiores, quasi todas vestem á Europea, e já principia a vêr-se bastante luxo, não só entre os filhos da Europa, porem mesmo entre os do Paiz. Nada mais feio do que ver uma mulher, cingida somente com um panno, e com o filho ás costas. Nada mais opposto á decencia do que certas práticas nos casamentos; mas já a decencia não terá de soffrer estes ultrajes, porque desapparecéo por força das minhas persuasões, ainda que com muito trabalho.. Costumes velhos, e authorisados com exemplo de Pais, e Avós custão muito a extirpar; e, muito mais, quando elles favorecem as paixões, que nos Paizes são dominantes, e obrão com toda a fôrça de que são capazes.

Depois da espreitar cota muita attenção, e por muitos tempos o obrar destes Povos, e de muito reflectir sobre o remedio, que podia curar seus males, assentei representar ao Governo o triste estado, em que elles se achavão por falta de educação, apontando-lhe, como unico remedio, a Creação de um Seminario, ou Casa de Educação Publica, onde fossem aprender o que devem a Deos, a si mesmos, e aos mais homens. O Governo quiz; mas não lhe foi possível por então dar as providencias, que se pedião; e nestes termos botei-me a fazer o Seminario á minha custa, ainda que esgotado de meios, porque alguns, que podia offerecer-me a pequena Congrua de 1:300$000 reis, pagos sabe Deos quando, e como, tudo tinha consumido na Obra do Paço, que acabava de fazer tambem á minha custa; mas tudo está acabado, consumindo 20 mil cruzados no Paço, e mais de 35 dictos no Seminario; alem de soffrer muitos trabalhos, e de esgotar quasi todos os recursos d´uma paciencia soffredora, e de soffrer muitas privações. Deixo á consideração de quem ler o avaluar o que levo dicto, lembrando-lhe somente que nestas Ilhas todos os materiaes para obras vem de fora, sobrecarregados com mais 60, e ás vezes 100, e mais do que elles custão nos Paizes, que para alli os importão; e assim mesmo nada ha prompto; e para se apromptar, que trabalhos! Pois officiaes, e trabalhadores!! Que paciencia não he necessária para soffrê-los!!!

He n'este Estabelecimento, que eu tenho posto toda a minha esperança; he aqui que eu espero achar remedio a tantos males, de que vejo sobrecarregado o meu Rebanho; porque quero neste lugar com uma nova creação crear novos homens, novos costumei, novas idèas um novo modo de pensar, e com tudo isto felicitar o meu Povo, quanto possa ser; mas que pode um Bispo de Cabo Verde, tendo somente de Congrua 1:300$000 reis? Assim mesmo estou na resolução de soffrer todas as privações, e dispender o que poder neste tão necessario Estabelecimento , que de certo vem a acabar com a minha administração, se as Côrtes não providenciarem para o futuro do modo, que no Projecto aponto.

O Governo destas Ilhas he puramente Militar, em que eu acho grandes males, e poucos bens; grandes inconvenientes, e pequenos recursos, e tudo em desfavor das Ilhas, e isto alem de maiores despezas, e menores vantagens; e por isso convidei a Camara dos Srs. Deputados da Nação a tomar muito em consideração, se será de mais vantagem para as Ilhas de Cabo Verde o dirigirem-se por um Governo composto de Membros de cada uma dellas, sendo somente Militar, e de menor Patente o Governo das Armas das mesmas, devendo aquelle administrar ao mesmo tempo as Finanças, visto que a Carta dá faculdade para lançar mão desta medida, no caso de se julgar mais vantajosa, e necessária para o maior augmento do bem geral da Provincia.
Os rendimentos destas Ilhas consistem no producto da Urzella, que triennalmente mette no Erario 500 mil cruzados; e em Dizimas, Alfandegas, Gizas, etc. etc., que annualmente rendem 75 mil cruzados. O Governo, deixando para supprir ás despezas da Provincia o segundo, lançou mão de todo o producto do primeiro, que todo entra no Thesouro Publico Nacional.

O Negocio, que se faz nestas Ilhas, assim de importação, como de exportação, he todo em desvantagem das mesmas, pelo excessivo dos Direitos, da que se acha sobrecarregado; e pelo modo de negociar, em que os Habitadores daquellas Ilhas, recebendo fazendas, e fatos velhos por commutação de seus Generos, e Manufacturas, são por extremo prejudicados, assim pelo excessivo do preço, por que as recebem, como pela má qualidade das mesmas. O unico Negocio, que lhe he vantajoso, he o da Costa de Guiné, onde vão commutar seus Generos; a saber: Agua-ardente, Pannos de agulha, e Tabaco, por Escravos, Ouro, Marfim, Cera, e Arroz. Os Inglezes, e Americanos Inglezes são os que alli fazem maior Negocio, importando Farinhas, Manteigas, Bolaxas, Chilas, Algodões, Riscadilhos, etc. etc., levando em troca Dinheiro, e Pelles de Boi, e Cabra, que vão manufacturar Do seu Paiz, e que outra vez tornão a trazer em Çapatos, e Bolai, que reputão por alto preço. Tambem vem negociar alguns Navios Francezes, trazendo só Quinquilharias; e tambem vem refrescar muitos Vasos de Guerra, Mercantes, e Baleeiros, que vão para Africa, Asia, e para o Brasil. O Sal, que nas Ilhas do Mato, Ilha do Sal, e Boavista se forma sem trabalho mais do que carrega-lo para os Navios (excepto o que ha no Porto de SalRei, na Ilha da Boavista}, era um dos maiores Negocios destas Ilhas no tempo, em que alli concorrião Navios exportadores; mas hoje está, como tudo o mais, reduzido a bem pouco, motivado (em parte) pela irregularidade, com que alli se faz este Negocio, sem que o Governo tenha dado a este respeito providencias, que atalhem semelhante mui.

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No interior gira muito pouco numerario; e algum, que gira nas Terras mais proximas aos Portos, e onde ha mais Negocio, he tudo em Patacas Brasilicas, que valendo 960 somente alli ninguem ai quer receber para extrahir para outras partes, onde se perde muito, e porisso alli he o dinheiro commum: todo o mais dinheiro, soja de que Nação fôr, corre sem rebate, e em grande augmento as Patacas, e Onças Hespanholas.

A sua Agricultura, e Manufacturas achão-se em muito atrazo, por isso mesmo que tem sido pouco favorecidas. Apezar disso: tudo alli produz em muita abundancia, e pouco trabalho; o milho, o arroz, a canna de assucar, a mandioca, o feijão, a farinha de páo, o café, o assucar, etc. etc. etc.: o vinho he muito bom, e do mesmo modo a agua-ardente. O vinho em algumas Ilhas pode fazer-se duas vezes no anuo; e com e licito se faz na Brava. O de Santo Antão he o melhor de todas as Ilhas. Este genero pode dar-se em todas as Ilhas; mas infelizmente só o ha na Brava, S. Nicoláo, Santo Antão, e Fogo; se bem que em pouca quantidade, por isso mesmo que cia sua cultura se não faz caso. Em S. Thiago vi que a mesma videira dêo uvas quatro vezes no mesmo anuo, e uvas perfeitas e saborosas. A Urzella cria-se pelas fendas das rochas, e naquella parte em que os ventos batem com mais força. Não se semêa, não se planta, não se cultiva, só ha o trabalho de apanha-la, e nada mais. Os que se dedicão a este trabalho correm um grande risco; e poucas Ilhas ha em que por anno não morrão seis ou oito precipitados das Tochas abaixo; este risco soffrem para receber 40 réis por cada arratel, recebendo o Estado 500 mil cruzados triennalmente = ductis expensis = da quantidade que vai pura Inglaterra, e França. Dá Deos as nozes a quem não dêo os dentes; aos Portuguezes dêo a Urzella, e aos Inglezes e Francezes dêo o saberem prepara-la para as suas tinturarias, e tirar della maior proveito do que nós tirâmos. A que desgraça temos chegado!! Remediar os males acima dictos, agricultando os Terrenos, que ainda o não estão, ou fazer com que os que já estão agricultados por novas plantações e sementeiras produzão maiores vantagens só pode fazer a creação de um Inspector, a quem se entregue o cuidado da Lavoura e Manufacturas, o qual tenha a seu cargo mandar vir de fora do Paiz as plantas e sementes que nelle não ha; reparti-las pulos Lavradores, e vigiar sobre a sua cultura, visitando em todos annos as Ilhas para providenciar de mais perto o que fôr necessario, ficando obrigado a dar conta ao Governo da Provincia, e este ao de Portugal naquella Estação, que melhor convier = v. g. a uma Junta Promotora da Agricultura e Industria. Com esta e outras providencias os Inglezes de Gambia, e os Francezes do Senegal melhorárão um Paiz, que não he comparavel ao nosso em bondade de terreno.

Ha n'estas Ilhas Coqueiros de 70, e mais palmos, e Cibes quasi da mesma altura; ambos estes são excellentes para madeira, por isso mesmo que são rijos, e de uma longa duração. Não se conhece bicho que os corrompa, nem temporal que os prejudique. Prego que lhe entre não sabe mais; o mesmo succede a respeito do Espinho preto, arvore que cresce por alto, e que nas Ilhas tem muito uso, principalmente para fazer engenhos de moer cana.

Tambem ha algumas fructas da Europa, como são melancias, melões, marmelos, figos, uvas, optimas laranjas, optimas hortaliças; vi melhores repolhos do que na Europa. Vi maçãs, peras, cerejas, mas imperfeitas, e dissemelhantes no gosto. Ao Norte de Santo Antão he onde eu vi arbustos e fructos, quasi como os da Europa. Disserão-me que já aqui se creava trigo.

O annil, o tabaco, o sene, e outras plantas dão-se em copiosa abundancia, e sem trabalho. He pena, ver de rastos tantas plantações que podião ser de tanto proveito! He pena vêr enterrados debaixo da terra tantos mineraes excellentes! He pena ver em desprezo tantas riquezas! He pena que os Portuguezes tenhão deixado em abandono tantos Terrenos, que lhes podião trazer tantos e tão ricos productos! Não se pode ver sem lagrimas um tal desamparo!! Ah! Oxalá que os Portuguezes, ensinados pela experiencia do passado, saiba o providenciar o futuro ! Oxalá !!!

Um mal, e talvez dos que mais affligem e atrazão estas ilhas são os degradados, que para lá são transportados. Não se faz idéa da sua grandeza, nem se podem calcular os seus effeitos desastrosos. Nota-se nestas Ilhas milhares de homens deste genero; o Governo pode faze-los mudar de terra, mas nunca de costumes; e por isso he forçoso que o ladrão vá roubar na Africa, como roubava na Europa, e que todos fação o mesmo, que fazião d'antes; tudo em desvantagem das Ilhas, e prejuiso de seus habitadores. Ah! E que mal fizer ao estes povos para soffrerem a pena de um crime, que não comettêrão? São estes os homens, com que o Governo quer melhorar Colonias? Em Portugal não os poderão conter tendo cárceres, cadêas, calcetas, Relações, e hão de conter-se n'um Paiz onde nada disto ha? Se estas Ilhas são tão desgraçadas que devão soffrer o pezo de um crime, que não comettêrão, então faça-se-lhes menos pezado, obrigando os degradados, que para ellas forem mandados, a viver debaixo de certas Leis regulamentares, e da vigilancia de um Inspector, occupando-os em rotear os Terrenos, ainda incultos, e abrir os estradas que não ha; porque assim tirão-se dous proveitos, o 1.º he que ganhão o pão que comem; o 2.° he que não poderão (ao menos tão facilmente) fazer em Africa o que fazião em Portugal.

A Tropa de Linha, que ha nestas Ilhas, he em tudo irregular, principalmente antes do ex-Governador João da Malta Chapuzet, que lhe dêo uma melhor forma'. irregular lhe chamei, até mesmo porque tem quasi tantos Officiaes, como Soldados. Os Governadores, levados do interesse que percebem das Patentes, fize-rão Officiaes a torto e a direito, sem distincção, ou qualidade! Homens ha, que pela manhã me apparecião acarretando barro com trolhas, e de tarde vestidos com a farda de Capitães. Hoje guardando o gado, e fazendo o officio de Pastor, e amanhã representando do Officiaes Militares no Quartel General; quasi todos sem saber a que Corpos pertencem, nem o serviço , que corresponde á sua Patente. Elles querem esta graduação para se isentarem do serviço, a que estão sujeitas as Milicias; e os Governadores querem mesmo vender-lhes estas Patentes, porque percebem interesses não pequenos, sem lhes importar ornai, que daqui resulta, tanto a elles Officiaes, como ao resto da Sociedade. Ha dous Regimentos de Milicias, que

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são obrigados a fazer serviço activo, como a Tropa de Linha, assim na Cidade, como na Villa da Praia, onde vem comer o que não tem, e gastar em serviço desnecessario o tempo, que devião gastar na cultura das suas terras, e colheita de seus fructos; e por isso propuz como medida necessaria o serem isentos delle, e principalmente no tempo das sementeiras.

As chuvas nestas Ilhas, assim como fazem a sua abundancia, tambem fazem a sua escacez, ou por poucas, ou por muitas de mais; qualquer destes extremos he prejudicial; sendo poucas não fecundão a terra quanto baste para a fermentação das sementes e creação; e sendo muitas e destemperadas levão apoz de si os terrenos, e as sementes nellas depositadas; e qualquer dos dous extremos traz a fome ás Ilhas, em que de ordinario morre muita gente. Em seis annos que vivo nestas Ilhas duas vezes succedêo esta desgraça; em 1822 em S. Nicoláo onde em quatro mezes morrerão 700 pessoas: outra em Santo Antão, onde só n'uma das quatro Freguezias que tem a Ilha, morrerão 600 pessoas. Maens houve, que, por não verem morrer teus filhos, os largarão entre as rochas. Não vi isto; o que vi, e muito de perto, foi chegarem muitos meninos de ambos os sexos á Villa da Praia, conduzidos pelo Capitão de um Navio, que recusando trazer as Maens, ellas lhe arrojarão á lancha os pequenos filhos. Estas calamidades publicas serião menos prejudiciaes, se o Governo a tempo desse as providencias necessarias. As bexigas são um outro mal, que consideravelmente diminue a população destas Ilhas. Não he raro morrerem l$000 pessoas n'uma só Ilha, atacada, por este flagello, de que muitos annos depois não podem lembrar-se sem grande magoa, e que para elles faz uma época terrivel. Isto succede porque ainda alli se não predica o saudavel remedio da Vaccina. Em tanto desprezo tem estado esta pobre gente! Em tão pouco se aprecia uma vida, que pode ser de tanta utilidade ao Estado! Eis a razão porque propuz n'um dos Artigos da minha Proposta, que o Governo de Cabo Verde fosse authorisado para dispender da Fazenda Publica o que bastasse para occorrer a estes males.

As Casas de sobrado, e cobertas de telha, não só tem contribuido para aformosear os Lugares, mas tambem tem concorrido para promover a saude publica. Este bem podo continuar-se, se o Estado quizer, pelas Embarcações, que daqui vão para Cabo Verde, mandar, em lugar de lastro, Telha, Cal, e Forragens, que depositados, ora n'uma, ora em outra Ilha, sirvão para este fim; ficando os habitadores obrigados a pagar por parcellas a sua quantia.

Um ramo, que acarretaria grandes vantagens, o que tanto se acha em desprezo, he a salga de Peixe, que em tão copiosa abundancia se podia pescar em todas estas Ilhas. Particulares conheço, que em poucos dias, e poucas Lanchas, que nestas pescarias empregão, carregão muitos Barcos de Peixe, muito melhor que o Bacalháo, até mesmo por se conservar mais tempo sem corrupção.
Não he menor a utilidade, que podia tirar-se do Azeite de Purga, tão bom para as luzes como o de Oliveira. Eu não usava d'outro, nem mesmo as pessoas, de mais consideração das Ilhas. A Purga he um arbusto, que ha em todas as Ilhas, e em muita abandancia: dá um fructo do tamanho d'uma ameixa branca, e dentro desta existe uma semente preta, que elles pizão, e lanção em agua fervendo, para lhe extrahirem o Azeite, que, como mais leve, sobrenada em cima da agua. Se o Estado se quizesse dar ao trabalho de mandar alli fazer um Engenho, em que a Purga se fabricasse, como em Portugal o Azeite, que utilidade não tiraria? E que proveito para aquellas Ilhas, e mesmo para a Mãi Patria, que em lugar de Azeite de Peixe nojoso, e mal cheiroso; caro, e ás vezes difficultoso de apparecer, podia usar deste muito mais limpo, e barato.

A Ilha de S. Thiago he como a Mãi, donde todas as mais se abastecem, por isso mesmo que calhe mais fructos, e fructos que nas outras não ha. Tem muitas Ribeiras, e Fontes; e todas d'agua muito excellente. Não me lembro bebe-la tão saborosa em nenhuma das Provincias de Portugal. O mesmo pode dizer-se da agua das outras Ilhas, principalmente da de Santo Antão. He verdade que umas tem mais, outras menos. Ha tambem Fontes, que não são tão saborosas; mas pode dizer-se em geral, que a agua das Ilhas he boa, saudavel, que promove uma prompta digestão, e que he leve, e cristalina. Fazem pouco uso do Vinho, e muito da Agua-ardente, que bebem até o excesso de embebedar-se; excesso que leva á sepultura muitos milhares, principalmente Europeos. He um vicio muito commum, que pouco pude atalhar, por mais diligencias que fiz.

O estado do Clero, bom como o desamparo, em que se achão as Igrejas nestas Ilhas, não pode pintar-se sem lagrimas. Quando desembarcava em alguma Ilha, conduzião-me, segundo o costume, á Igreja, ou antes a um monte de ruinas, a que chamavão Igreja. Um Edificio, que tendo porta, era tosca, e sem segurança; cujo tecto era uma esteira decanas, e sobre esta um monte de palha, que deixava cahir agua por todos os lados; um grupo de pedras, a que chamavão o Altar Mor; eis-aqui a Casa de Deos nestas Ilhas: uma Vestimenta, e uma Capa, que podia servir para todas as côres; por isso que, por velha, e safada, não tinha nenhuma. Eis-aqui as Vestes Sagradas, que servião á decencia do Culto. Uma Casa terrea, com repartimento de esteiras, e um Leito de cannas, eis-aqui a Cama do Parocho, e mais do Bispo, quando lá ia. Este desamparo não he em todas as Ilhas, porque Igrejas ha decentes; mas são muito poucas. Os Parochos são o refugio daquelles Povos, e a quem ouvem com a maior attenção, e a quem recorrem nas suas molestias, e necessidades; mas que hão da dar estes Parochos, se tendo uma Congrua tão pequena está sem se lhe pagar tres, e mau annos! Que hão de ensinar-lhes, se ninguem os ensinou a elles? Eu via com amargura esta ignorancia, mas não me atrevia a castiga-los, lembrando-me que ninguem está obrigado a fins, para que se lhe não derão meios. Assim mesmo não ha quem queira ser Clerigo, porque he estado que não dá consideração, nem interesse, e por consequencia ninguem o quer. He necessario affaga-los; he necessario fechar os olhos a quasi tudo quanto prescrevem os Canones ácerca das Ordenações. Que tormento para um Bispo! Eu ainda não sei se he melhor que uma Igreja não tenha Parocho, se tê-lo ignorante. E será possivel, que sendo o Bispado de Cabo Verde o mais antigo do Ultramar, á excepção do da Madeira, até agora nenhuma consideração tenha merecido? Será

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possivel que nestas Ilhas, as de maior População, que possue Portugal no Ultramar, á excepção dos Açores, e Madeira, não haja uma Casa de Educação Publica; um Seminario, ou pelo menos uma Aula de Filosofia, ou de Rhetoria; de Theologia, ou Bellas Letras? Será possivel que a tanto desprezo tenhão chegado, que nem attenção, nem cuidado tenhão merecido, e que ainda hoje ignorem os principios mais essenciaes á Vida Social, e Christã? Sim, he possivel, porque eu o vi, e com os olhos banhados em lagrimas. Foi por isso que propuz o promover-se a Instrucção Publica nestas Ilhas, e que aos Parochos se augmentasse a Congrua.
Quanto a Bissau, Cacheu, e mais Possessões, que a Corôa Portugueza tinha na Costa d'Africa, sou a dizer que ainda conservâmos uma pequena parte. Perdemos Serra Leoa; perdêmos tres Igrejas das oito, que lá tinhamos; e com ellas terrenos immensos. Se alguem me perguntar, por que razão se perderão? Responderei: he pela mesma, porque havemos de perder o que lá possuimos ainda: e que possuimos? Bissau com a Praça de Geba: Cacheu com as Praças de Faria, e Zeguichor, (se he que Praças podem chamar-se umas pobres Casas cobertas de palha, rodeadas de uma estacada, que facilmente se salta) e com ellas terrenos os mais bellos para a Cultura d'Arroz, Anil, Milho, Algodão, Canafistola, etc., etc., etc.; terrenos os mais proprios para um Commercio vantajoso, já seja pelo consumo, que alli podem ter as nossas Fazendas, já pelos Generos, que poderemos tirar do Paiz, como he o Marfim, o Ouro, o Páo Mogne, o Páo de Teca, e outras Madeiras de construcção, tão boas como as do Brasil, e que podem vir para Portugal por um preço mais cómmodo, e com maior brevidade; Rios navegaveis, e um Mar pacifico com Portos de segurança. Agora pergunto: quer Portugal, ou não quer conservar estes restos da sua antiga grandeza nestas Costas? Se não quer, então deixe ir como vai, porque em breve ficará sem nada; se quer, então he necessaria a creação de uma Companhia, a quem se concêdão os exclusivos necessarios para tirar um lucro razoavel, e poder empregar fundos na compra de Fazendas proprias do consumo daquelle Paiz, a fim de tornar a chamar aos nossos Mercados aquelles Povos, que a Política dos Francezes, a Inglezes dalli fez desertar, sem que até agora os Portuguezes tenhão reparado que os nossos erros tem feito a grandeza das Possessões daquellas Nações visinhas; sem que ate agora os Portuguezes tenhão advertido que em materia de Commercio he melhor mais cincos, do que poucos dezes.

A esta Companhia deverá encarregar-se o fazer uma Feitoria na embocadura do Rio da Cazamensa, não só para chamar alli o Commercio das Povoações visinhas, mas para impedir que alguma outra Nação o faça, como tambem deverá encarregar-se-lhe o crear Povoações nas bellas Campinas de Sansão, e Bolóla, a fim de que o Gentio, attrahido pelas doçuras, e commodidade da vida social, e civil, deixe a vida brutal, e rude, e pouco a pouco venha estabeler-se entre nós, do que resultarão grandes vantagens, assim á nossa Agricultura, como ao nosso Commercio. Para melhorar as nossas Possessões em Africa sigâmos os mesmos passos, que seguirão os Francezes, e Inglezes para melhorar as suas: aprendamos daquelles, a quem já dêmos lições, porque, quando se tracta de melhorar a sorte da Patria, tudo deve aprender-se, seja quem for o Mestre.

Declarou o Sr. Presidente que a Camara ia dividir-se em Secções Geraes.
E, sendo 11 horas e 35 minutos, disse que estava fechada a Sessão.

OFFICIO.

Para o Duque do Cadaval.

Illustrissimo e Excellentissimo Senhor. - Tenho a honra de participar a V. Exca. que, tendo recebido o Officio de V. Exca. em data de 29 de Janeiro proximo passado, contendo o Convite, que a Camara dos Dignos Pares do Reino fazia á dos Deputados, para que esta igualmente dirigisse a Sua Magestade, o Magnanimo Rei o Senhor D. Pedro IV respeito; as supplicas, a fim de se dignar haver por bem que a Rainha Fidelissima a Senhora Dona Maria II venha entre nós receber quanto antes aquelle tributo d'amor, respeito, e submissão, com que os Portuguezes em nenhum tempo faltarão aos seus Soberanos, immediatamente o communiquei á Camara dos Srs. Deputados da Nação Portugueza.

Nomeou ella uma Commissão, que, tendo maduramente examinado a Proposta, dêo na Sessão de hontem o seu Parecer, o qual junto por cópia conforme, e foi unanimemente approvado. ( Vide a Sessão antecedente). O que, em nome da Camara dos Deputados, communico a V. Exca. para se dignar de o fazer presente á Camara dos Dignos Pares do Reino. Deos guarde a V. Exca. Palacio da Camara dos Deputados em 10 de Fevereiro de 1837. - Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Duque do Cadaval, Presidente da Camara dos Pares - Fr. Francisco, Bispo Titular de Coimbra, Presidente.

SESSÃO DE 12 DE FEVEREIRO.

Ás 9 horas, e 40 minutos da manhã, pela chamada, a que procedèo o Sr. Deputado Secretario Ribeiro Costa, se achárão presentes 90 Srs. Deputados, faltando, alem dos que ainda se não apresentarão, 12; a saber: os Srs. Barão do Sobral- Leite Pereira - Araujo e Castro - Tavares d'Almeida - Izidoro José dos Sanctos - Rebello da Silva - Luiz José Ribeiro - Carvalho - Pimenta d'Aguiar - Gonçalves Ferreira - Sousa Cardoso- Mouzinho d'Albuquerque - todos com causa motivada.
Disse o Sr. Presidente que estava aberta a Sessão. E, sendo lida a Acta da Sessão precedente, foi approvada.

Dêo conta o Sr. Deputado Secretario Ribeiro Costa de um Officio do Ministro dos Negocios da Fazenda, remettendo uma Consulta do Conselho da Fazenda, relativa á reducção de Direitos, que pertendem os Proprietarios de Pomares de Fructas d'espinho das Villas de Setubal, e Palmella, que se mandou remetter á Commissão de Fazenda.

Teve a palavra o Sr. Deputado João Alexandrino de Sousa Queiroga, como Relator da Commissão de

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