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APPENDICE Á SESSÃO N.° 30 DE 24 DE FEVEREIRO DE 1896 336-A

Discurso do sr. deputado Bernardino Camillo Cincinnato da Costa que devia ler-se a pag. 330 da sessão de 24 de fevereiro

O sr. Cincinnato da Costa: - Sr. presidente, mando para a mesa a justificação das minhas faltas ás sessões anteriores.

Não compareci pelo motivo para mim dolorosissimo do fallecimento de meu pae, Bernardo Francisco da Costa, funccionario do estado, em serviço na India portugueza.

E venho aqui cumprir um dever sagrado. Venho pedir a justa reparação ao enormissimo aggravo recebido que lançando o luto sobre mim e sobre toda a minha familia, veiu ferir-me no que tenho de mais caro e santo no meu coração!

Sr. presidente, Bernardo Francisco da Costa, meu pae, leal servidor da patria e portuguez de lei, amigo dedicado de Antonio Rodrigues Sampaio e de Fontes Pereira de Mello; que muito o queriam, foi victima de uma odienta, repellente e criminosa perseguição!

D'isto venho pedir contas ao governo.

Mas antes de proseguir, algumas explicações necessarias.

Careço de dizer á camara qual a minha attitude nesta casa do parlamento, a que vim, e qual o desassombro com que posso fallar. Entrei n'esta casa, não por simples politica, não por ambições ou desejos de subir, nem pelo prurido de me exhibir em discussões estereis, que, se por vezes aproveitam aos homens que n'ellas mostram mais argúcia e habilidade, nada interessam ao paiz. Entrei para,o parlamento, e está presente o sr. ministro do reino que o póde attestar, com o desejo nobre, alevantado e patriótico, que talvez os meus fracos recursos na o permitiam satisfazer, de concorrer com o meu insignificante trabalho, e o meu conselho, para o levantamento da causa nacional, para o desenvolvimento do paiz no campo agricola e economico.

E isto vinha fazel-o com enthusiasmo, sem nenhuma outra preoccupação que não fosse a de ser util ao meu paiz, sem compromissos de qualquer ordem que me embaraçassem é meu campo de acção.

Nenhuns laços especiaes. me prendem ao governo que actualmente está á frente dos negocios do estado, e nenhum outro alvo tinha eu em mira, quando acceitei uma candidatura para vir como deputado ao seio da representação nacional, que não fosse o de contribuir para o bem commum e prosperidade do paiz.

Creio que isto o sabem muitos da illustres deputados presentes, e mais particularmente o conhece o sr. ministro do reino.

O sr. Ministro do Reino (Franco Castello Branco):- Apoiado, apoiado.

O Orador: - Careço, pois, de accentuar bem a minha situação politica nesta casa, para tirar força á calumnia que, assim como armou a mão cobarde que traiçoeiramente victimou o meu chorado pae, não vá tambem deturpar o sentido das minhas palavras, e se imagine que faço opposição systematica ao governo. Ataco-o hoje como o defenderia amanhã. Venho aqui simplesmente desaggravar-me da tremenda affronta que me lançaram; venho defender-a saudosa memória de meu pae; venho, como disse, cumprir um dever sagrado.

É indispensavel, sr. presidente, exige-o o decoro nacional, exige-o o prestigio de um governo que se diz seguidor das tradições gloriosas de Antonio Rodrigues Sampaio e de Fontes Pereira de Mello, que se dê uma reparação immediata e terminante, sem hesitações, sem tergiversações, a um facto da ordem d'aquelle que eu, acabo de communicar á camara, e que dando a morte a meu pae, victima de uma perseguição odienta e criminosa, me veiu ferir no mais íntimo da minha alma.
E não venho aqui pedir nenhum favor ou implorar o auxilio do governo para me desaggravar de tão terrível affronta. Venho pedir justiça.

Não vejo presente o sr. ministro da marinha, mas está representado o governo por quasi todos os srs. ministros, e 6 ao governo do meu paiz que me dirijo, pedindo justiça no seio da representação nacional. Peço justiça ao paiz inteiro, para uma acção que eu não sei classificar, mas, que numa idade provecta, numa idade de setenta e cinco annos, vindo trazer a morte a um funccionario do estado, servidor leal e honrado, como foi Bernardo Francisco da Costa, fechando-o caprichosamente em uma praça de guerra, na praça de Diu, onde o clima mortífero, o veneno local havia de fatalmente produzir o seu effeito, é tão criminosa e punível como a que leva o veneno directamente á victima que o assassino escolheu para satisfação de seus odios.

Vou provar isto que affirmo, e meço bem a gravidade das palavras que pronuncio para duvidar de que possa provar aquillo que avanço.

Releve-me a camara, releve-me v. exa., sr. presidente, se conturbado como está o meu espirito, porque ha três dias e três noites que não sei ligar duas idéas, methodisar o meu pensamento, releve-me a camara, se eu não conseguir ser claro e preciso no que vou dizer. E não trato, nem disso precisa a minha causa, não trato de impressionar a camara com a eloquência das minhas palavras, eloquência que nunca tive nem sei ter; apenas peço que se attente na eloquência dos factos, que singelamente vou narrar.

Sr. presidente, este facto tristíssimo que tão inesperadamente me veiu ferir e me enlutou de cima abaixo, que de uma maneira tão cruel como criminosa me veiu arrancar e dilacerar as fibras mais santas do meu coração, este acontecimento para mim ainda hoje quasi inacreditável da morte de meu pae, Bernardo Francisco da Costa, liga-se immediata e directamente com a desgraçada questão da índia. E eu posso estar á vontade para fallar n'ella, e de fronte erguida, porque afastado ha muito da índia, onde nasci, e desviado de tudo quanto de longe pareça estar ligado às questões politicas d'aquella nossa importantíssima colónia, estava bem longe de ter que tratar aqui deste tristíssimo assumpto, em um. momento em que parece haver empenho em fazer-se uma campanha de descrédito contra os filhos da índia. Nasci na India. Nascer na Índia não é vergonha, como o não é nascer em Sines, Sacavem, Porto ou Lisboa.

Em qualquer parte onde o indivíduo nasça, vale pelo seu sentimento, pela elevação do seu caracter, pelo seu mérito pessoal ou pelas suas qualidades de trabalho, sem motivo para distincções entre os filhos deste ou daquelle torrão de todo o território portuguez, que todos são irmãos e devem viver abraçados na commum bandeira da pátria, sem dissidências ou malquerenças, sem o espirito mesquinho de infundados odios ou o lastimavel preconceito de raças, impróprios sentimentos em uma nação civilisada. Cada um vale pelo que é e pelo que faz, e tanto maior direito deve ter á consideração dos outros, quanto mais recto é o seu proceder e honesto o seu trabalho.

Nasci na India, é facto. Trinta vezes o repito, se preciso for, para que a maledicencia, que infelizmente tudo envenena, me não aponte com o index, como motivo de vexame, o acto, para mim glorioso, de ter nascido n'aquella parte da, nação portugueza.

Nasci na India, fique bem claro, e sou filho de Bernar-

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do Francisco Costa, portanto portuguez sou, evidente mente. Não sei se ha duvidas a este respeito.

Cheguei a Portugal com dezoito mezes, e n'essa idade creio que não se póde sustentar qualquer campanha, de onde possam advir responsabilidades politicas.

Aqui fiz a minha educação. Aqui creei as minhas relações. Aqui tenho amigos o inimigos, porque os devo ter visto só não ter inimisades quem de todo nada vale, quem não sabe olhar de frente e cabeça erguida a quem que seja, e não tem a coragem dos seus actos.

Mas quem tem algum valimento, quem adopta uma linha recta de conducta, é perseguido vil e traiçoeiramente por todos aquelles que não podem ver de frente, desassombradamente, os que combatem no campo serio.

Sr. presidente, é facto averiguado que o tristissimo acontecimento da morto de Bernardo Francisco da Costa foi devido a uma revoltante perseguição politica, que tem a sua origem filiada na questão da India.

Não vou fazer grandes divagações. Não vou expor á camara, nos seus pormenores, as origens da revolta, por que neste momento isso nada interessa. Vou simplesmente referir os principaes factos que produziram a situação anormal que hoje se encontra na India e tem trazido como consequência a perseguição propositada feita n'aquella colonia a alguns dos nossos irmãos de alem-mar, a portuguezes tão portuguezes como os que se encontram no continente, a honrados funccionarios e leaes servidores da nação.

Todos sabem que, devido a causas ainda mal esclareci das, talvez a ordens precipitadas ou a instrucções ma comprehendidas, se insubordinaram na India umas companhias de soldados marathas, que se projectava organisar como contingentes a enviar para Africa, para o nosso campo de operações militares em Lourenço Marques. Era sabido, e supponho que não faltou quem disso informaes o nosso governo em Lisboa, que os soldados marathas com as suas tradições especiaes de religião e como simples merceuarioB que eram, só iriam sem reluctancia para Lourenço Marques, caso lhes assegurassem o rito religioso às suas familias que deixavam na India, e lhes garantissem o augmeuto de soldada, conforme elles pediam e lhes foi promettido.

N'este mesmo sentido creio que resolveu o governo, mas havendo-se mandado ordem de marcha para a India por meio de telegramma, e não podendo chegar a tempo o officio em que iam mais circumstanciadas instrucções, aos soldados marathas foi dada ordem para se apromptarem a partir para a Africa, sem lhes garantir o que se lhes havia promettido, o que elles julgaram significar recusa das suas pretensões e falseamento dos contratos. Insubordinaram-se por este motivo, ao que se diz, recusaram-se a marchar e procuraram resistir á força armada.

Embora eu veja, por esta origem da revolta na India, motivos de certo valor para de alguma forma explicar esto acto de rebellião das tropas marathas, não serei eu quem defenda este acto de indisciplina, que, motivado ou não motivado, foi de facto indisciplina, e para elle entendo que não havia outro modo de proceder senão o castigo. Castigo a tempo e com o fim disciplinador, de modo a não auctorisar que, sob qualquer pretexto, embora muito ponderoso, militares enfileirados e que juraram fé á nação portugueza, se insurgissem contra as ordens superiores emanadas da metrópole.

Até aqui muito bem. Mas que tem a insubordinação dos marathas, e a justa punição que estes deviam ter, com a campanha que logo em seguida só levantou, dizendo-se existir um movimento nativista na India contra o dominio portuguez? Que ha de verdade em todas essas invenções, arranjadas expressamente para dar logar a toda a sorte de desmandos e de atropello dos direitos mais sagrados dos habitantes pacificos da nossa India portugueza?

Não ha que encobrir; fomentou-se uma revolta, inventou-se uma sedição de caracter geral em toda a India, cousa que nunca existiu, como bem claramente estão provando os factos, para se arranjar o pretexto suasório que servisse de defeza aos actos de vingança e perseguição, ha muito appetecidos, contra funccionarios do estado, leaes e honrados, que justamente pelo seu valor e trabalho honesto mereceram a confiança dos governos para occupar logares de certa importancia na India.

Eram nativos! Eram intelligentes o honrados; tanto bastava para que se desejasse mover-lhes uma campanha de descredito e de desconfiança, para que elles fossem demittidos dos seus logares, que honradamente exerciam, cedendo o passo a funccionarios ambiciosos e sem escrupulos, que de cá mandâmos da metropole para as colonias.

Assim se visou a pessoa de meu pae, Bernardo Francisco da Costa, embora ninguem podesse acreditar que meu pae se houvesse envolvido em qualquer movimento. Não era possível acreditar-se em tal, nem o governo em tal acreditou.

Um homem servidor leal e honrado, sabe-o muita gente que é ainda do seu tempo, apesar dos seus setenta e cinco annos, e hoje os velhos já não merecem o respeito e a consideração que nos tempos antigos tinham; hoje enxovalha-se facilmente um velho que não tem a energia physica bastante para se defender - como poderá alguém acreditar que se tivesse envolvido em qualquer movimento na India, sendo trabalhador leal e dedicado á nação?

Foi Bernardo Francisco da Costa nomeado inspector dos estudos na India portugueza por um governo regenerador, por decreto referendado por Manuel Pinheiro Chagas.

Monarchico e regenerador, leal servidor da patria e portuguez de lei, militando activamente na politica, parlamentar durante muitas legislaturas, fazendo ouvir a sua palavra em varias questões e deixando um nome respeitável pela sua seriedade, pela correcção das suas animações e pela sua firmeza de convicções, ninguém que o tivesse conhecido será capaz de acreditar que n'elle existissem sentimentos menos patrióticos e que, por seu conselho ou por seu exemplo, se induzisse a qualquer movimento contra o governo da metrópole, a população da India.

Mas appareceu esta questão da India, cuja origem o governo deve conhecer e estar bem elucidado a tal respeito, segundo documentos recentissimos recebidos de fonte authentica e parte dos quaes se acham já publicados na folha official.

No relatorio do governador geral da India, agora inserto no Diario do governo tirou-se cautelosamente a parte que diz respeito às origens da rebellião, das grandes luctas que se travaram na India. Se tal se fez, é porque ha questões seriissimas, a que o governo entendeu não dever dar publicidade.

O que é certo é que se imaginou uma grande rebellião chamada dos marathas, como ha pouco disse.

É possivel, quando fallo em cousas da India, que as pessoas entendidas n'estas questões achem ridiculo que eu allegue a minha ignorancia a tal respeito; mas a verdade é que eu sou muitissimo leigo em tudo o que se refere á India, de onde tenho vivido afastado ha muitos annos.

Mas, surgiu a rebellião, e longe de se procurar abafar este movimento, chamando, por medidas convenientes e mandadas executar com energia, os soldados marathas á ordem, parece que justamente se aproveitou o ensejo para incitar os animos, pondo em alvoroço toda a população pacifica da India, e se preparar o terreno para as campanhas gloriosas de alguns ambiciosos que a todo o custo desejavam sor notaveis. Assim, appareceu, de entre outros, um heroe, o capitão Gomes da Costa, que tem uma parte importante em todos estes acontecimentos.
Triste, tristissima approximação!

Ha poucos dias ainda tomava eu parte na manifestação a camara ao exercito e á marinha portugueza; fazendo-o,

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fil-o com todo o calor da minha alma, e se não o fiz tambem com a palavra é porque não sabendo exprimir com a mesma eloquencia com que o fizeram alguns oradores d'esta camara, illustres parlamentares conhecidos, tudo quanto se passava no meu intimo, preferi ficar calado. O que posso affirmar, porém, a v. exa. e à camara é que n'essa manifestação aos bravos militares que enalteceram o nome portuguez e o fizeram repercutir até os confins do globo, não fui eu dos que menos sentiram esse abalo enorme ao ver levantada a patria pelo esforço de um punhado de homens; esses sim, que são verdadeiros portuguezes! Mas triste approximação, como ia dizendo.

A par d'esses heroes, que ha dois dias o povo inteiro, n'uma acclamação unisona victoriava, apparecem agora esses outros, querendo tambem passar como taes, sendo apenas embusteiros, farçantes, pretendendo subir os degraus da escada social por meio de pavorosas, inventando cousas falsas, falsas, falsas, digo-o bem alto. O documento firmado pelo funccionario que está actualmente á testa dos negócios da India, parece tombem querer chamar a si o quinhão destas glorias vergonhosas, armadas sobre um montão de ruinas e alguns centenares de victimas, que hão de sempre deixar gravado o ferrete da ignominia no glorioso pendão das quinas.

A camara já conhece...

O sr. Presidente: - Peço ao sr. deputado, que não faça referencias a pessoas que estão ausentes e que não se podem defender, porque não têem voz n'esta casa.

O Orador: - Desculpe-me v. exa. e a camara se acaso proferi algum termo que sõe-menos bem aos ouvidos de pessoas prudentes. Estou analysando os actos de funccior narios e nunca os de homens que, por fortuna minha nem conheço, e pelo governo foram investidos no alto cargo da governação da India. Refiro-me a documentos publicados no Diario do governo. Sinto que o sr. ministro da marinha não esteja presente, mas está presente o governo, que responde pelos actos d'aquelle funccionario. Entretanto, agradeço muitíssimo a v. exa. a sua admoestação, porque o meu fim não é vir aqui melindrar ninguem, venho aqui tão sómente desaggravar-me.

Tenho a honra de conhecer a v. exa. ha muito pouco tempo, mas desde o primeiro dia em que o vi, notei em sua physionomia uma tal expressão de bondade, que logo attrahiu a minha sympathia, e me não permitte crer que v. exa. queira impedir-me de continuar a expor á camara o que tenho a expor, e que é indispensavel para o meu desaggravo. Mas comprehende v. exa. a situação excepcionalissima, em que me encontro exactamente n'este momento, e por isso v. exa. e a camara me desculparão alguma palavra menos correcta. Peço desculpa á camara; a minha intenção não é ferir, a minha intenção é, como disse, desaggravar-me.

Disse eu que essa rebellião dos marathas, cujas origens eu não conheço exactamente, fora um acto de indisciplina, um acto de insubordinação.

Com alguma rasão ou sem nenhuma, os marathas recusaram-se a marchar para Lourenço Marques quando lhes foi ordenado fazel-o, o ordens terminantes foram dadas para que se punissem os insubordinados. Ato aqui nada de anormal embora prudente fosse evitar o succedido, e sou eu o primeiro a applaudir, como disse, as instrucções do governo da metropole ou as ordens de quem quer que seja, para que fossem justamente castigados todos aquelles que se indisciplinaram e não souberam cumprir como deviam!

Mas nada tem essa rebellião, que é um facto effectivamente grave de disciplina, que se deve punir com toda a severidade, com uma campanha torpissima - creio que não offendo ninguem - feita contra uma pessoa veneranda e respeitavel, que produziu como consequencia o afastamento desse funccionario o a sua deportação para Diu, homem digno de toda a consideração, considerado sempre como um funccionario recto e leal.

Sr. presidente, que tem uma cousa com outra? Era Bernardo Francisco da Costa um homem recto, era um homem serio, e os homens serios, honrados e leaes fazem sombra aquelles que nem sempre procedem da mesma fórma.

Depois encetou-se uma perseguição...

São tantas as cousas que tenho que dizer ao parlamento, é tal a confusão em que tenho o meu espirito, que as minhas idéas se atropellam ao descrever esta campanha aggressiva, em que as auctoridades superiores que estão a testa do governo da India se assignalaram.

Alguns funccionarios e empregados europeu começaram a receber os seus vencimentos com 60 por cento de augmento, como o governo póde attestar, e até foi perseguido um funccionario muito serio e honrado, porque não acceitou a proposta do augmento do seu vencimento em 60 por cento; retirou da capital, e foi fazer uso do seu ministerio em Salsete... um pouco longe - refiro-me ao arcebispo da India e primaz do oriente, a osse illustre prelado honradissimo, a esse personagem prestigioso, que é europeu e está isento de qualquer suspeição.

Como era natural, desagradou a attitude correctissima e independente d'este illustre prelado. Foram aproveitadas as mais pequenas cousas para o maguarem e o incommodarem. E assim o fizeram, tanto nas questões relativas ao seu alto ministerio, como mesmo nas que diziam respeito á sua vida particular.

Desconsideraram-no quando se fez uma missa campal. E embora fosse prudente e até de boa tactica evitar qualquer conflicto, em tal se não pensou. Appareceu o conflicto. Houve queixas á auctoridade superior. E não só isto. As cousas tomaram depois outra feição. Quando o capellão do palacio do Cabo ia dizer a missa costumada, o governador geral mandou-o retirar, dizendo-lhe: "Vá-se embora, não precisamos de missas, estamos em tempo de guerra e em estado de sitio! O governador não precisa de missas".

Isto, numa colonia como a da India, em que as tradições religiosas estão tão arreigadas e tem sido respeitadas através de seculos! A desorientação era completa. Desejava-se sobretudo o fim ha muito appetecido de incommodar e perseguir os naturaes da India, e a mais nada se attendia. Mesmo aquelles dos europeus de cá mandados, que não commuugavam nos mesmos sentimentos de odios e vingança, eram perseguidos.

Visou-se naturalmente a cabeça de Bernardo Francisco da Costa, como honradíssimo que era, homem serio e afastado de tudo, como eu hei de provar com cartas particulares, especialmente uma que eu me permittirei ler á camara, embora a enfade, porque a verdade deve sempre mostrar-se - carta que me chegou às mãos dois dias depois do seu fallecimento. Como disse visava-se a cabeça de um homem prestigioso, como era Bernardo Francisco da Costa. Desculpe-me a camara esta maneira de fallar a respeito de meu pae. Hoje quando tanta gente tem receio de dizer quem é seu pae, eu orgulho-me em dizer que sou filho de Bernardo Francisco da Costa. Isto não offende ninguem, e enaltece-me a mim, filho de tal pae. Repito, visou-se a cabeça d'aquelle funccionario.

Bernardo Francisco da Costa, como inspector dos estudos, tinha obrigação de inspeccionar as escolas da India. Servindo-se deste pretexto, a coberto da lei, desejando incommodal-o e desfazerem-se d'elle, mandaram-no para, Diu. Ora o clima de Diu é o mais mortifero da India, e tanto que quando se manda para lá um individuo na occasião der ali grassarem com mais intensidade as febres, costuma dizer-se coitado, aquelle tem pouco tempo de vida... vox populi, vox Dei. Meu pae partiu. Qualquer dos membros do governo que vejo presentes póde dizer se eu pedi para elle não ir. Degredaram para Diu um homem de setenta e cinco annos, com serviços relevantes prestados ao paiz, homem respeitabilissimo que mereceu sempre a confiança e a estima de Fontes Pereira de Mello e Sampaio. Esse homem não é respeitado em tão avançada idade.

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Podia ter com effeito de desempenhar ali serviços; já lá houvera ido em outras vezes, mas não tão precipitadamente e em estação tão impropria.

Velho, alquebrado, com setenta e cinco annos, este facto parece-me que devia pesar num coração humano para não se mandar este homem para Diu, como agora se fez, obrigando-o a uma viagem difficil e incommoda, tendo que atravessar maus caminhos, de matos e rocha, a pé durante horas.

Mas estava na lei, e elle foi sem protestar. Incommodou-o é certo, elle não m'o disse a mim, mas tenho a certeza, a forma menos correcta; a forma, que eu não classifico, porque se mandou um funccionario civil d'aquella categoria sair no praso de quarenta e oito horas, por ordem verbal, para a praça forte de Diu para ir inspeccionar uma escola de instrucção primaria!

Facto urgentissimo! Mandou-se pela secretaria que partisse no praso de quarenta e oito horas, e particularmente lhe foi dito que não voltaria sem ordem expressa do governador!

Nenhum documento ficou registando esta ordem, que foi verbal. Estando suspensas as garantias, prohibida a imprensa, deportava-se assim no praso de quarenta e oito horas, por ordem verbal, sem mais explicações do que a necessidade urgente do se inspeccionar uma escola de instrucção primaria em tempo de revolta.

Foi, obedeceu; era lei; a lei dizia que havia de ir inspeccionar uma escola, e elle foi.

Note-se que já um outro governador tinha dado licença a meu pae, attendendo á sua idade e porque era um trabalho fadigoso, e mesmo por não sor indispensável a sua presença, que fosso em seu logar um ajudante pago por seu bolso, fazer a inspecção, o informal-o depois; mas agora foi necessario que elle fosse em pessoa; e elle foi.

Quanto tempo leva a inspeccionar uma escola de instrucçao primaria? O governador da India com a sua grande competencia nesta materia poderá dizer que são necessarios dez annos, e eu digo que não, porque tambem teuho alguma auctoridade para o dizer. Quando as auctoridades militares fazem o que fazem, tambem eu não desejo abdicar da competência que tenho para dizer que é inaudito pensar-se que para inspeccionar uma escola de instrucção primaria seja necessario muito tempo. E depois, que necessidade havia, urgentissima, do se mandar inspeccionar em uma praça de guerra, na praça de Diu, uma escola de instrucção primaria, quando se dizia estar a India em revolta?

O que houve foi o fim premeditado de obrigar meu pae a estar lá; e elle a quem nunca faltou, até nas horas ultimas, o zelo e a intelligencia para se desempenhai- das suas obrigações, respondeu dentro do tempo que lhe pareceu conveniente á commissão de que tinha eido incumbido. Mas era preciso que ello lá ficasse, e o governador nomeou-o contra lei para uma nova commissão á industria da tecelania.

Em tempos houve na India a industria da tecelania, circumscripta sobretudo às povoações da proximidade de Diu; mas depois desenvolveu-se na India ingleza, em Surrate e ara Bombaim principalmente esta industria, e a industria mechonica veiu supplantar os trabalhos manuaes, fazendo estas duas Manchesters da India ingleza concorrencia á propria Manchester de Inglaterra a ponto de exportarem pannos para Africa.

Esta industria na nossa India está morta, e ha de estar. Faltam braços, falta dinheiro, e, sobretudo, faltam as condições para uma industria se desenvolver, quando a dois passos, no territorio inglez, ha grandes manufacturas que dominam os mercados, e que de ha largos annos destruiram por completo os primitivos teares á mão. Pois era necessario uma commissão especial a essa industria, e Bernardo Francisco da Costa, que não era obrigado a desempenhar essa commissão, acceitou-a por disciplina e porque não queria que se dissesse que tinha o espirito do rebellião. Sempre habituado a mandar, quando tinha de o fazer ou na vida particular ou na vida publica, tambem sabia obedecer. Por isso obedeceu, embora contra lei; e terminou a commissão.

Não era só elle; mais quatro funccionarios tinham sido nomeados, e deram fim ao seu trabalho.

Pois muito bem. Isso não bastou. Terminaram as duas commissões. Naturalmente meu pae, obedecendo sempre, nem seria capaz de pedir um favor ao governador geral, nem a ninguem, se motivos extraordinarios o não complissem a isso; ponderou todavia que seria conveniente regressar para assistir aos exames em Goa, e pelo telegramma seguinte presuppõe-se que já estaria doente. Sentia-se influenciado pelas febres. Naturalmente desejava ver a sua filha única que estava em Goa. Pois não lhe foi permittido regressar.

Passo a ler á camara o telegramma, depois do primeiro que nos veiu dar o golpe certeiro no que tenho de mais caro e querido no coração, veiu este em resposta a outro para saber qual a origem da morte; de proposito, devo dizel-o, se mandou perguntar por esta fórma: "explique origem morte", para não haver duvidas nem hesitações. A resposta é esta:

"Concluidas commissões ponderou regressar exames. Recusaram.

Morreu febres Diu."

Morreu victima das febres de Diu. Na idade provecta podia ter morrido de morte natural. O golpo era profundo. Mas morrer por esta forma, victima. de uma perseguição calculada, doe e fére cem vezes mais, e eu, deputado da nação, aqui está de novo o dedo da Providencia que às vezes parece ver as cousas, que vim aqui para defender os interesses nacionaes e os da agricultura, tudo quanto fosse a bem do paiz, vejo-me agora na necessidade, desculpe-me o governo, de não perdoar, e não poder attenuar a responsabilidade tremenda que tambem pesa sobre o mesmo governo que, conhecendo os factos que se deram na India, os actos de perseguição, não deu as ordens terminantes para que esse governador que abusava, embora em circuinstancias extraordinarias, para ser embusteiro, querendo ser heroe, não o demittisse immediatamente.

É essa reparação do meu aggravo que eu venho pedir á camara, e não ao governo, a única reparação possivel, porque não póde dar a vida a meu velho pae, embora se diga que era velho; um quarto de hora que tivesse de vida, devia tel-a, porque tinha direito a ella... Para que se veja quanto meu pae, estando afastado das cousas publicas...

O sr. Presidente: - Reconheço a posição especial em que o sr. deputado se encontra, mas lembro que a hora vae adiantada e vae passar-se á ordem do dia.~

O Orador: -A camara abriu às trea e meia horaa, e eu creio que não tem decorrido mais de meia hora, depois que estou fallando, cabendo-me o direito de fallar uma hora. V. exa. de certo não quererá obstar a que eu me desaggrave, estando ou de mais a mais dentro do regimento, entretanto requeiro a v. exa. que consulte a camara sobre se consente que se abra um incidente sobre este assumpto e eu continue com o uso da palavra.

Vozes: - Falle, falle.

O sr. Presidente: - Em vista da manifestação da camara póde o sr. deputado continuar.

O Orador: - Muito agradecido a v. exa. e á camara, e eu vou ler a carta a que desejava referir-me, carta sentidissima, não pelos tropos, mas simplesmente pela simplicidade e singeleza com que está escripta, que é a, prova mais evidente da sua innocencia em quaesquer suppostaa combinações políticas autonomistas, e a condemnação do actual governo, que lança ao abandono a vida e os interesses da nossa India; assim posso fallar porque não tenho compromissos que me agrilhoem ao governo, e se os tivesse teria a coragem de quebrar esses grilhões para defender a memoria santa de meu pae.

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APPENDICE Á SESSÃO N.° 30 DE 24 DE FEVEREIRO DE 1896 336-E

Sou indio! Venha a accusação!

Mas uma cousa, tenho, que respeito em mim proprio, a consciencia do meu dever, que não ha ninguem, que não ha politico nenhum, seja quem for, que m'o imponha de outra forma. Ninguem!

E n'este, ponto, a santa memoria de meu pae póde orgulhar-se; porque me ensinou o caminho recto de respeital-o, amal-o e conaideral-o, a única cousa, a melhor do mundo...

Miseria e tristeza! N'este paiz, em que se não faz justiça aos funccionarios rectos e honrados, para se proteger e estender a mão benéfica e indulgente áquelles que andam pelas viellas tortuosas, fazendo perseguições odientas, para incommodar e deprimir os que mais sérios sito e que de mais consideração são dignos!

Tristissimo! Profundamente triste!

Vou ler a carta. Desculpe-me a camara este desabafo; a situação presente da minha vida é unica e extraordinaria! Nunca imaginei, que ao occupar uma cadeira no parlamento, teria de defender d'ella a memoria de meu pae, e que elle havia de fallecer tão cedo... porque robusto era, e ainda pelas ultimas noticias sei que desfructava da melhor saude, apesar da idade de setenta e cinco annos!

A carta é dirigida a minha irmã, que está no Porto, e que ma remetteu para aqui, ainda sem saber da tristissima noticia; documento preciosissimo, para mostrar a sua innocencia, devido á simplicidade com que está escripta e por onde se vê a impossibilidade de poder acreditar-se em quaesquer ligações com os revoltosos, por parte de Bernardo Francisco da Costa, que foi deputado durante muitos annos, portuguez lealissimo, e que acima de tudo tinha a consideração do seu dever e amava a sua patria.

Eis a carta:

"Diu, 19 de janeiro de 1896. - Minha querida Sophia. - Recebi hontem a tua terna carta de 30 do findo e por ella deduzo que tu, o Frias e os pequenos passam todos bem. Eu tenho, felizmente, gosado aqui de saude nos dois mezes que por cá ando.

"A difficuldade era vir, porque a viagem é mais incommoda do que ir ar Lisboa; mas depois de já estar, passando bem como tenho passado, é melhor estar aqui do que em Goa, onde anda o diabo á solta. Agradeço mesmo ao Raphael de Andrade a feliz lembrança que teve de me exportar para aqui, de onde resulta- estar eu longe e fora aquelle foco de intrigas reles e patifarias de toda a ordem. Calumnias vis, prisões aos centos, de grandes e pequenos e até de senhoras para responderem pelas imputações feita a maridos ou parentes, cercadas de súbito pela tropa as casas de noite, incendiadas muitas aldeias, o diabo, tudo por parte do que se chama governo. Agora os ranes a tomarem a desforra às escondidas e de surpreza, queimando de noite postos aduaneiros, etc., e fuzilando os soldados que encontram isolados. E o pobre povo entre dois fogos.

"Os europeus dividiram entre si a fazenda publica, augmentando 60 por cento os seus vencimentos por ordem do governador, lançando 20 por cento a mais sobre os habitantes e extorquindo-lhes dinheiro a titulo de multas por parte do governo, e por parte dos ranes, reduzidos a miseria, havendo quadrilhas que assaltam e roubam.

"E a gente a fugir para o territorio inglez como que em massa, temendo mais o governo que ataca pessoas e bens, do que os salteadores que atacam só os bens. Em uma palavra, um inferno. Varios empregados demittidos sem motivo ou exportados, e os seus logares accumulados pelos europeus.

"Bem sabes que eu não me mettia em eleições nem em politica, nem mesmo me correspondo com o Constando, e, comtudo, o Diario de noticias me fez chefe de uma seita negra, que eu não conheço nem existe. E foi esta calumnia que me enviou aqui. Abençoada calumnia!

"Não careço de demittir-me, porque o governador não me póde demittir, sendo eu nomeado pelo governo de Portugal. Tenho direito á aposentação e para isso incumbi o Alfredo de me obter o meu diploma, que agora elle mandou pelo capitão do porto e ainda me não chegou às mãos. Logo que o receba e haja outro governador e junta de saúde regular, e tenhamos garantias que ha tres mezes não existem e vivemos sob o arbítrio, requererei a minha aposentação, e tudo se fará sem precipitação nem abalo.

"Saudades ao Frias e beijos saudosos e do fundo do coração, a ti, minha querida filha, de teu = Pae muito amigo, B. F. da Costa."

Esta carta é edificante!

É terrivel esta tortura em que me encontro, mas procurarei ir até ao fim.
Ha tambem a satisfação d'este desabafo.

Preciso mesmo de ir até ao fim; desejo desaggravar-me e nada mais.

Para que a camara veja e fique sabendo o estado em que ao tempo se encontravam- as cousas na- índia, passo a ler o final da um artigo editorial do primeiro jornal da India ingleza, que tem grande cotação em Londres, e que é muito considerado, o Times of India, cujo artigo, tambem devo dizer, para que não haja* sobre elle duvidas ou suspeições de que seja esoripto por um indio, é puramente da redacção do jornal; porque n'aquella jornal, qualquer póde escrever um ou outro artigo; mas, os artigos editoriaes, são artigos da exclusiva responsabilidade da redacção, dos redactores principaes, que são de estro os mais altos funccionarios inglezes.

E quer a camara ver como esse jornal friamente porque não tem a paixão que eu tenho neste momento, mas em todo o caso em termos bastante duros critica e historia, os acontecimentos da India.

Eu leio alguns trechos.

Artigo de fundo do Times of Índia de 30 de dezembro, escripto por um alta funccionario inglez:

"Se as noticias que têem chegado diariamente de Goa, durante as ultimas semanas, são só metade verdadeiras, o governador Andrade tem sido levado a praticar actos de uma oppressão quasi pueril, que perante o senso commum não podem ter nenhum outro resultado senão o de afastar os governados dos governantes, e de provocar da parte d'aquelles uma profunda desconfiança sobre a maneira de proceder de um governo que a pretexto de suppressão de uma comedia de sedição (toy mutiny) julga necessario amordaçar a imprensa e tyrannisar vergonhosamente (wantonly) um povo inerme que não teve nenhuma parte nem lote nos motins.

"Quando mesmo não podesse haver duvidas de que uma parte dos actos attribuidos às forças do capitão Gomes da Costa tenham sido exagerados, é impossivel imaginar que todas as noticias de oppressão que têem vindo á luz tenham sido inventadas.

"Pois de facto parece estar indisputavelmente provada a verdade de um ou dois dos mais graves desses actos, quando um só devia ter sido bastante para se ter effectuado ha muito tempo a destituição desse bárbaro (truculent) chefe de policia.

"Uma das mais desgraçadas circumstancias para o futuro de Goa é que o governo de Lisboa se deixasse enganar tão completamente n'esta deshonrosa questão.

"Agora, o unico caminho rasoavel a seguir; a fim de se restabelecer a estabilidade da administração e reganhar a confiança do povo, a substituir os funccionarios desacreditados por homens bem escolhidos, que possam offerecer garantias de procederem com tacto, dignidade e firmeza, e prevenir que no futuro não seja mais possivel que o governo de Lisboa fique exposto ao ridiculo aos olhos do mundo por funccionarios ambiciosos mas desequilibrados de um lado e por superiores doentios e fracos do outro.

Eu tenho pressa de concluir apesar de ter muito que dizer, mas não desejo deixar de tocar em um ponto. Pe-

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336-F DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

los propriso documentos que os heroes mandam para a metropole, para se enaltecerem, se vê o que são esses falsos heroes esses embusteiros. Appareceu publicado na folha official o relatorio do governador geral da India referente às oporeções militares n'aquellas colonias. Quer a camara ver o que ahi se diz:

(Lendo.)

"No dia 28 um destacamento commandado polo capitão Rosado destruiu as aldeias de Zeornem e Delem, e um outro commandado pelo tenente Sena destruiu Corqui.

"No dia 29 foram destruidas as aldeias de Pally e Nanelly por um destacamento commandado pelo capitão Albuquerque.

"A fuga dos rebeldes do forte de Nanuz fez evacuar das aldeias os que lhe eram afeiçoados, notando-se á chegada das nossas tropas às povoações o abandono por completo d'ellas, por isso que as povoações que lhe eram adversas, já se haviam refugiado no territorio britannico.

"No dia 30 um destacamento commandado pelo major Benjamim Pinto destruiu as aldeias de Sauvorchem, Golleli e Padelly, e um outro commandado pelo tenente José de Mello destruiu as povoações Hehpa-Cuido, Gaavem, Amosem, Sirçorem e Siramguhim."

Então se não ha ninguem, que pelejas são estas, que recontros são estes que fazem heroes?

(Continúa lendo.)

"No dia 7 de dezembro um destacamento commandado pelo capitão Rosado destruiu as aldeias de Vinquini e Maloli.

"No dia 3 foram destruidas as aldeias de Curchim, Sanvordem e Caramboli-Besuenio por um destacamento commandado pelo tenente José de Mello.

"No dia 6 saiu para Tanem um destacamento commandado pelo capitão Rosado, recolhendo a Nanuz no dia immediato, depois do destruir as aldeias de Ligonem, Helopa-Bedueneo, Chorondem, Zeorem-Cuido, Zorem-Boeneneo, Galanti, Campordem e Latorim."

Eu não sei quantas são, não quiz contar, mas para que a camara não imagine que são poucas as aldeias arrasadas e a campanha foi sem valor, continuo lendo.

(Continua lendo.)

Eu não sei se a pronuncia d'estas palavras é assim. Não conheço estes nomes, nunca estudei estes assumptos nem nunca os estudarei.

(Continúa lendo.)

E continua este documento, esta exposição que não sei que revela, porque nem habilidade houve para mandar ao governo um documento que não o envergonhe e que não mostre onde está a malvadez de ir arrasar aldeias de gente inerme. Pois não têem os ranes rasão de queixa para se insurgirem contra um governo que quer ter o prestigio de civilisar e colonisar, e que lhes ataca e arrasa todas as aldeias!

Tudo anarchismo! E nós que votámos ainda o outro dia uma lei contra os anarchistas!

Irrisoria, extraordinaria coincidencia! Não é anarchia isto?! Não é luctar contra a existencia da ordem social d'aquella gente?! Não é arrancar-lhe os bens, saqueal-os, um acto de malvadez?! Que cumulo de heroicidade!

(Continua lendo.)

"N'esse mesmo dia se destruiu a aldeia de Derodem.

Foi a marcha effectuada a Vaiguini, de modo a honrar o exercito portuguez."

Exercito portuguez! Estas palavras merecem-me tanto respeito que eu devo fallar sobre ellas.

Exercito brioso, sem duvida! Soldados valorosos, sem duvida, mas precisam de ser dirigidos. É preciso que não só sirvam do nome do exercito portuguez, para se vexar e esbandalhar o prestigio das quinas, o nome de uma nação gloriosa e as tradições de um povo de sentimentos nobres, que pela sua unidade e pelo seu trabalho tanto póde fazer, tão bello futuro tem diante de si, neste tempo
em que vivemos de mesquinherias, vindo até tirar o prestigio áquelles que o devem ter no brioso exercito portuguez.

Lembro-mo agora de uma phrase que ouvi a um brioso militar cujo nome tenho de calar. Eu estava calado nessa occasiã0 ouvindo fallar das questões da India, porque não queria que sobre mira lançassem a suspeição de que sustentava a tal inventada politica dos Costas.

Agora sim; agora, para defender meu pae, fallo aqui o fallarei em toda a parte. É possível que algumas almas modernas me lancem em rosto o tomar eu tanto calor na defeza de meu pae, mas eu envaideço-me por isso.

Mas, dizia aquelle brioso militar: "Eu não fui á Africa; mas se tivesse a dita de ter praticado uma acção heróica e contribuido com o esforço do meu braço para levantar o prestigio do nome portuguez, grande satisfação não seria a minha em pôr ao peito uma medalha, como que a testemunhar o meu feito valoroso. Trazer, porém, uma medalha que póde dar logar a uma suspeição, expor-me ao ridículo, dizendo que sou um heroe da campanha militar da India, quasi que preferia não ir á Africa, para, ao mesmo tempo que tinha a satisfação, a gloria, de ter praticado um feito heroico, não merecer o escarneo da população; porque o povo comprehende bem que se aquella medalha póde valer muito, póde tambem ser um escarneo".

Mas, continuemos.

(Leu.)

Até se é heroe em documentos officiaes d'esta ordem.

Eu tambem sou funccionario, tambem tenho escripto relatorios e enviado ao governo peças officiaes. Mas dizer o que ha pouco ouviu ler a camara, isto é, que se levava artilheria aos mais altos píncaros dos Grattes, é mangar com o governo.

Estou cansado. Se o assumpto fosse alegre, jovial e me fizesse entrar o sol na alma, fallaria trinta horas, se fosse necessário. Mas não merece a minha sympathia matéria tão ingrata, e devo pôr pedra sobro ella. Venho pedir justiça.
Eu não venho pedir um favor, venho effectivamente exigir que se mo faça justiça, apresentando documentos de ordem particular, como são cartas e telegrammas de meu pae e de minha familia, com todas as informações, para provar que houve uma perseguição torpissima contra um velho de setenta e cinco annos, que bem merecia da pátria, um honrado e leal servidor.

Portanto, venho cumprir um dever sagrado, venho exigir do governo uma reparação terminante e immediata a este aggravo profundíssimo que me foi lançado; exijo que me dêem essa reparação como deputado da nação; nSo fallo agora como filho, sendo a victima um funccionario do estado, que lealmente o serviu.

Venho defender um direito que me assiste, e exijo a demissão immediata do governador geral da India, em nome dos sentimentos generosos, dos verdadeiros sentimentos do povo e da nação. E em nome do paiz não paro aqui, exijo mais alguma cousa. Eu sei o que peço.

Essa auctoridade arcou com o governo, com a entidade que nos dirige e nos governa na metropole!

Não desejava referir-me a esse ponto para que se não dissesse que estava a fazer política numa questão tão sagrada como esta. Mas tendo o governador geral da India procedido de um modo tão extraordinario, incendiando propriedades e aldeias, peço mais alguma cousa: exijo a demissão immediata do governador geral da India, e que, em. nome da nação, seja submettido a um conselho de guerra.
Faço esta exigencia ao governo de Portugal. Não é agora o filho que mostra os seus aggravos e que vem entornar aqui o seu coração, India estalado todas as cordas, as mais sensíveis: é o deputado da nação que vem ao seio da representação nacional, e em nome do decoro do paiz, pe-

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APPENDICE Á SESSÃO N.º 30 DE 24 DE FEVEREIRO DE 1896 336-G

dir uma reparação justa; e é necessario e indispensavel que ma dêem.

E, sr. presidente, é triste que justamente este facto se dê, quando está á testa dos negocios públicos um governo que se diz seguidor das tradições gloriosas de Sampaio e Fontes Pereira de Mello. Sampaio e Fontes, que conheceram o meu honrado pae, de certo seriam os primeiros a sentir um desgosto profundissimo, se por acaso soubessem que, por uma qualquer forma indirecta, por desleixo, por inconsciencia ou por fraqueza, não tinham sabido defender, um velho, que tantas vezes defendeu tambem os interesses da nação e a serviu. Não, posso, não me soffre o animo, não está no meu caracter dizer ao governo que lhe desculpo ou que lhe attenuo a responsabilidade que sobre elle impende do facto gravíssimo de ter victimado um homem á falsa fé; porque, obrigal-o a permanecer numa fortaleza de guerra, victimado pelas febres, é, como já disse, um acto tanto ou mais criminoso do que levar o veneno a um individuo, porque é uma acção de refece e cobarde.

No meio do tudo isto, no meio da profundissima magua que me vae na alma e do abandono em que os amigos políticos de meu pae o deixaram, porque se são seguidores das gloriosas tradições de Sampaio e Fontes, meu pae sendo um leal servidor da pátria e portuguez, foi tambem um regenerador, é preciso dizer tudo, e eu não receio dizel-o, o que é uma grande vantagem, tendo encetado a minha carreira ha dois mezes, fecho-a, mas agradecendo o terem-me aberto esta ferida, no meio de tudo, digo, ha um consolo, um conforto.

Nas occasiões solemnes dão-se às vezes casos extraordinarios. Folgo de dizer no parlamento, que, ao passo que meu pae foi victimado, foi ferido por uma acção traiçoeira, que a final ,de contas partiu de um funccionario, de um superior, de um governador, apoiado por um governo regenerador, da mesma feição politica, do mesmo agrupamento a que meu pae pertencera quando militára em politica, de onde ha maití de vinte annos se afastara, indo viver em Almada numa propriedade que ainda lá existe, onde se arruinou, porque foi bom de mais e roubaram-no, mas isso é um facto da vida particular que não vem para aqui; ao passo, digo, que meu pae morria por aquella forma, e eu recebia este golpe duríssimo, duplo, duplo pela perda de um pae, duplo porque affecta os meus sentimentos e vae atacar a minha vida de cidadão e de homem, sinto conforto e consolo, devo declaral-o com satisfação, por ter recebido a prova mais sensibilisadora da parte de um homem que fora seu adversario politico. Devo dizer francamente á camara, manifestando por esta forma a gratidão de que estou possuído, que tendo havido bastantes divergencias entre mim e esse cavalheiro, refiro-me ao sr. conselheiro Elvino de Brito, publicou s. exa. em um jornal de Lisboa uma carta nobilissima, e não ficou por alii, fez mais, dirigiu-me tambem em carta particular a expressão da sua condolencia tão sentida que me commoveu.

Refiro-me ao sr. Elvino de Brito.

Elle tem tido muitas vezes divergências commigo, e eu com elle; mas num momento tão solemne como este, em que a morte me veiu roubar o ente mais querido que eu tinha, o sr. Elvino de Brito soube avaliar a dor cruciantissima que me amarrotava a alma e o sentimento, e escreveu-me aquella carta, que é um preito de homenagem e de justiça, que me captivou e fez devedor de gratidão.

Eu tinha muito que dizer, mas não mo permitte o espirito. Sinto-me fraco; tenho vontade de me sentar. Ha tres noites que nato durmo quasi nada. Para dizer a verdade, 3 som querer fazer effeito rhetorico, tenho dormido as noites passadas apenas duas horas; mas venho aqui para liquidar estas contas, embora não dissesse tudo, e attenuar o impeto do que queria dizer.

Tenho feito um esforço colossal para dominar o que me vae na alma. Creio que a voz me não tem tremido, mas se a mão me tem tremido um pouco ao pegar nos papeis não é com medo, nem com duvida sobre o exito ou não exito do meu discurso, porque nem n'elle penso, mas é sob o peso de sentimentos desencontrados que me. vão na alma.

Antes de terminar não posso deixar de tributar o meu reconhecimento ao illustre deputado que ha poucos dias conheci, o sr. Barbosa de Mendonça, que me fez o favor, que muito me captivou, de propor um voto de sentimento pelo fallecimento de meu pae; e agradeço tambem á camara o ter approvado que ficasse registado na acta esse mesmo voto.

Preciso tambem pedir á camara que me releve da falta que eu commetti de não ter enviado participação do fallecimento de meu pae.

Não o fiz porque não sabia que era essa a praxe, e porque não podia pensar em praxes e formalidades na occasião em que eu estava com o espirito tão atribulado.

Releve-me pois a camara desta falta que eu commetti, não por desejo de ser indelicado para com pessoas que foram sempre amáveis e delicadas commigo.

Terminando, dirijo-me novamente ao governo. Peço justiça.

O sr. Cincinnato da Costa: - Agradeço á camara esta votação; desculpe-mo ella e desculpe-me o sr. presidente do conselho não poder responder desenvolvidamente ao seu discurso, porque não conservo já a serenidade que tinha no começo deste incidente.

Agradeço a s. exa. a maneira como se dirigiu á memória de meu pae, mas pedi a palavra justamente quando o sr. presidente do conselho entrou, naturalmente vendo as cousas pelo lado político, defendendo a responsabilidade do governo.
Eu colloquei-me no ponto de vista do decoro e do prestigio da nação.
Creio que houve perseguições, que houve desintelligencias entre funccionarios, e isso são cousas que parecem insignificantes, e que o não são.

A causa disto tudo é o mandarem-se para as colonias individuos que se encontram financeiramente compromettidos na metrópole a fim de ali arranjarem os seus negocios.

Eu não sei, mas creio que ha documentos bastante ponderosos como o próprio relatório publicado no Diario do governo, para que o governo possa reconhecer qual a justiça da minha causa.

Quanto ao exercito portuguez, não desejo de modo nenhum que fique a, impressão que não foi aquella que eu dei ás minhas palavras, de que eu menos considerava o exercito. Não é assim que eu desejo a discussão porque apesar de estar perturbado, lembro-me bem que dirigi palavras de justiça ao brioso exercito portuguez. Do que me queixei foi de o sujeitarem a operações menos dignas do seu nome.

A habilidade do sr. presidente do conselho póde encontrar nas minhas palavras muitas cousas sobre que bordar varias considerações que sirvam de defeza ao governo a ao governador geral, mas o que não póde é modificar o sentido das minhas palavras, que não admitte duas interpretações.

Lembro-me com toda a clareza que o que quiz foi fazer sentir que esse exercito estava servindo nas mãos do governador para se arrogar o titulo de heroe, inventando campanhas gloriosas em que não havia inimigos, e mandando arrasar aldeias de onde os habitantes espavoridos fugiam para os campos. Não podendo sustentar o debate nem produzir argumentos novos para reforçar as minhas idéas que se me baralham na cabeça, eu não desejo que se deturpe o sentido das minhas palavras quando a verdade é que ellas foram de justiça para o exercit portuguez,

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336-H DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

recordo-me bem de que ao referir-me a essa briosa corporação até fiz umas reticências, porque senti que se expozesse um personagem brioso, de caracter altivo, aos joguete de um governador, alto personagem sobre quem caem as vistas da nação portugueza, da própria colónia e das nas coes estrangeiras, e que não podem ver n'elle nos factos do agora o heroe que podia ser, e que eu desejava que fosse.

S. exa., respondendo às palavras que eu proferi, fel-o como se costuma fazer em assumptos de ordem muito somenos, quando se falia, por exemplo, era arranjos de estradas, em que se diz que o governo tomará na devida conta as palavras do illustre deputado. Não é essa a satisfação que me póde dar. O governo não precisa do meu apoio, é certo, não lhe faz falta a minha palavra, que não tem valor, a minha voz que é insignificante, não lhe faço falta nenhuma; mas eu tambem não careço do apoio do governo. Lembro ao governo que continue a trabalhar e a defender este funccionario que compromette o prestigio e os brios da nação, que eu continuo a ter bem gravada no meu coração a dor profundíssima que estes lastimaveis acontecimentos da India me produziram em mina, e que fazendo-me revolver no mais fundo da minha alma variadissimos sentimentos, me faz arrecear que a patria esqueça o amor que lhe dedicam os seus filhos.

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