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Discurso do sr. deputado Osorio de Vasconcellos, pronunciado na sessão de 18 de fevereiro, que se devia ler a pag. 412, col. 2", d'este Diario

O sr. Osorio de Vasconcellos: — Não tencionava entrar no debate ácerca da discussão, na generalidade, do orçamento, apesar de não me faltarem censuras a fazer ao s governo, as quaes eu me propunha adduzir quando se tratasse da discussão na especialidade. Todavia sem pretender dar vida nova e novos impulsos ao incidente que na ultima sessão se levantou, por melindres nunca vistos, por intraduziveis irritabilidades bem difficeis de explicar, que escaparam á lithurgia parlamentar; repito, sem que pretenda dar vida nova a esse incidente, e porque tinha pedido a palavra incumbe-me o dever de demonstrar á camara que não fui arrastado por sentimento nenhum politico, nem tão pouco para que o meu nome ficasse ligado a esse incidente.

Pedindo a palavra e usando agora d'ella, quero apenas lavrar um protesto, quero varrer a minha testada, como se diz em boa phrase portugueza. Bem sei eu que, levantando a minha voz, ou deixando-me ficar silencioso, nem por isso passo á posteridade; mas desde o momento em que se pretendeu aqui, n'este recinto augusto, fazer a separação entre eleitos e réprobos, entre patriotas e não patriotas, mas desde que uma voz illustre da maioria veiu arremessar á opposição o rapto e a objurgatoria, força é que levantemos a luva e que digamos com serena hombridade nós todos somos bons e leaes portuguezes. (Vozes: — Muito bem.)

Plenissimamente a sangue frio, como estava então, e é natural que esse meu sangue frio muito mais se accentuasse passadas que foram tantas horas depois d'aquella excitação, em virtude d'aquelle ditado francez de que la nuít porte conseil; applacada a corrente da circulação e domada essa furia com que alguns dos illustres deputados da maioria nos profligaram, e como que pulverisaram ou fulminaram a opposição, estamos em bom e neutral terreno para ajustar muito á risca as nossas contas perante o paiz que nos ouve. (Apoiados.)

Repito, eu estava a sangue frio quando o meu illustre amigo e illustre poeta, o sr. Thomás Ribeiro, em phrase indignada levantava as mãos ao céu como se pedisse ao vingador Jehovah que despedisse lá do alto os seus raios para fulminar a opposição. Eu não me senti fulminado, antes com a cabeça bem erecta e recebendo de chofre a ea-

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tadupa apostrophelica, sorria-me e estava pensando n'um episodio da historia parlamentar ingleza, o qual seja me permittido referir em breves termos. Era no principio d'este seculo.

O maior capitão da idade moderna, Napoleão, o corso, ía avassallando a Europa amedrontada, preparava-se já para percorrer o mundo com a suas hostes vencedoras, e retalhando a carta geographica, levantando e desmoronando impérios a seu talante, erigindo o throno sobre os assesorios das victimas, como desafiando o destino para uma d'essas quedas tremendas, que são o ensinamento d'aquelles que, no seu immenso orgulho, julgam-se superiores á humanidade. (Vozes: — Muito bem.)

Presentia-se já que a paz de Amiens estava prestes a afundir-se n'aquelle pélago de ambições encontradas e descomedidas, que foram a miseria dos povos e a grandeza infernal d'esse corso, que á frente da França escravisada, entendia que tudo lhe era licito, que lhe era permittido até calcar aos pés as proprias leis do senso moral da humanidade.

Dirigia então os destinos da Inglaterra, d'aquella nação que por tanto tempo arcou com o collosso até o lançar por terra e amarra-lo, novo Prometheu, ao inhospito rochedo de Santa Helena:

Governava Inglaterra um grande estadista, Pitt, homem que por um favor especial da Providencia como que tinha sido educado, desde os mais tenros annos, para executar aquella elevadíssima missão de libertar a terra do tyranno, que era a offensa da humanidade e o inimigo da civilisação. (Muitos apoiados.)

Já se ouviam, pois, os rumores das grandes guerras; via-se já a ambição desmedida do grande capitão a preparar-se para as emprezas temerarias; previa-se as novas catastrophes que o general ambicioso havia de trazer á Europa. Pitt, que era um altissimo engenho, queria prevenir-se sem que todavia se dissesse que era elle o primeiro que vinha annunciar a guerra já prestes a estalar, nem que pelas proprias mãos ía accender o brandão da discordia. O que fez então Pitt? Grande estadista de um povo livre incumbiu um deputado influente de soltar a voz de alarme, de mostrar que os recursos defensivos de Inglaterra não bastavam para tolher uma invasão, e que era necessario crear, armar e organisar as milicias dos condados para defender as costas da Gran-Bertanha, as quaes já sabia de antemão que Napoleão pretendia invadir á frente de um exercito de desembarque.

Feita esta proposta no parlamento inglez pelo deputado, levantou-se o chefe da opposição, que era um homem que tinha nome — Fox, um dos maiores oradores d'aquella epocha tão fertil de illustres parlamentares, honra da tribuna ingleza.

Escuso de dizer o que era este homem; resumir em breves traços o grandissimo engenho, o talento descommunal e descomedido ás vezes, a imaginação brilhantíssima e não raro desregrada d'esse homem, julgo-o completamente inutil, porque o parlamento que me está ouvindo, de certo conhece os traços biographicos do illustre whig.

Fox, que então estava enamorado das glorias fascinantes de Napoleão, que pouco tempo antes o tinha cortejado em París, levantou-se e protestou energicamente contra aquella proposta de lei feita por um deputado da maioria. Declarou que não era á Inglaterra, nuncia e mensageira da paz, que competia levantar o grito de guerra no meio do socego trazido pelo tratado d'Amiens, o qual estava prevendo nova epocha de tranquillidade para toda a Europa, que a Inglaterra em todo o caso nunca devia assoalhar ao mundo as suas fraquezas. E se acaso o governo temia alguma cousa, que o dissesse francamente, mas em familia. A Inglaterra, porém, tinha a sua força e o seu direito, era a nação das gloriosas tradições e dos brios inquebrantáveis.

Levantou-se então Pitt, como chefe do governo, e declarou que julgava que a paz estava segura, mas que entendia que era sempre bom prevenir, porque ninguem podia entregar aos azares da fortuna a independencia de uma nação. No entretanto, que a Inglaterra era assas forte para ouvir a verdade dos factos descarnados, para os encarar em toda a sua nudez, e para se prevenir e precaver, para que a catastrophe não a tomasse de súbito, rolando na poeira da miseria, como succederia, se porventura esperasse Napoleão de braços cruzados, prompto a invadi-la se rebentasse a guerra. A verdade, sempre a verdade, exclamava patrioticamente o grande estadista. Não temamos dize-la.

Foi isto o que disse Pitt como chefe do governo, e ninguem o accusou de falso patriota; ninguem veiu dizer que elle estava assoalhando as miserias da patria; ninguem veiu dizer que elle, como que estava ensinando aos estrangeiros o caminho da invasão; ninguem disse, emfim, o que ouvi hontem n'esta casa (apoiados), porque hontem proclamou se a necessidade da mentira patriotica. (Muitos apoiados.) A maioria do parlamento inglez o a opposição congraçaram-se n'um pensamento patriotico, e applaudiram o grande homem da velha Inglaterra, que acima de tudo proclamava a verdade como cautério soberano.

Ninguém acoimou de falso patriota o governo, antes toda a camara o apoiou. E a Inglaterra formou as suas milicias dos condados, que á primeira voz estavam promptas, como succedeu uma vez que correram á costa para defenderem-se de uma invasão, que se propalou que se ía fazer, e que foi rebate falso.

É sabido que Napoleão antes de realisar com a mais prospera fortuna a memoravel campanha de Austerlitz, tinha formado um grande campo intrincheirado, em Boulogne-sur-mer para d'ali embarcar as suas forças, a fim de entrar na Inglaterra.

Ora, se porventura o parlamento inglez ouvisse um tão illustre poeta e patriota, tão irritado e tão nervoso, como o meu illustre amigo, o sr. Thomás Ribeiro, a condemnar vehementemente o governo, o chefe da situação, que proclamava a necessidade de fallar a verdade, certo que protestaria e diria que os povos não se defendem com palavras que encobrem a verdade. Pois é isto o que nós dizemos. (Apoiados.) E é por isto que o sr. Thomás Ribeiro nos amaldiçoa. (Apoiados.)

Vir o chefe do governo dizer que a velha e alegre Inglaterra (the old and merry England) estava indefesa, e precisava precaver-se e robustecer-se! Horror! Não podia ser!

Os raios da maldição cairiram sobre aquella cabeça desde já condemnada, e elles os deputados, os desgraçados, os miseros, accusados de falsos patriotas seriam fulminados pelos raios d'aquella eloquencia tão trovejante como falsamente patriotica.

Vozes: — Muito bem.

Sr. presidente, em todas as cousas d'este mundo, alem de uma imaginação brilhante e cercada dos almos effluvios da poesia; alem do conversar continuo com as filhas da Memoria, é necessario mais alguma cousa, é necessario bom senso, que não é senão o index, o criterio soberano da racionabilidade humana, aquelle gros bon sens, como dizem os francezes, que por uma antinomia de phrase se chama senso commum, quando é tão descommum.

É necessario, digo, em todas as discussões particulares e não particulares, e sobretudo em questões tão valiosas como são aquellas que se referem aos brios da nação, levantar acima de tudo o simples bom senso, tão arredado sempre dos poetas e da poesia. (Apoiados.)

Eu confesso, á puridade e com toda a franqueza, tenho um grande fraco pelos poetas. Para mim, alem de todos os gosos puros e intensos que trazem á humanidade, têem umas Irritabilidades femininas, que são o nosso encanto e o nosso desespero. Ah! Os poetas! Quando os vejo aureolados a arraiarem-se de galas e formosuras quasi, quasi

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ajoelho diante d'elles, e digo: Adoro-vos, é poetas, é divinas creaturas, que vos embalaes no rythmo e sorveis o ether. (Riso.)

Mas esta adoração mescla-se ás vezes de uma certa displicência querida quando vejo os poetas trazer a enganosa poesia a estas discussões de interesses terrenos, quizera então arreda-los cem todo o cuidado, com todo o carinho, com todo o esmero, para que não venham conspurcar-se no contacto com os homens de prosa chata e vil.

Se Platão, o divino philosopho, não tivesse mostrado o seu grande conhecimento dos homens, bastava haver expulsado da sua felicíssima republica os poetas eternos perturbadores, para nós dizemos do discipulo de Sócrates este sim, que conheceu as grandezas e as miserias da humanidade, e sondou as profundezas do coração humano.

Ó Platão, expulsaste os poetas, e então, e só então, proferindo esta immortal sentença, te revelaste grande philosopho.

Sr. presidente, meditemos Platão, os seus conselhos são sempre muito para meditar, mas ainda quando Platão nos não tivesse dado estes exemplos, que são muito para considerar, bastava que o sr. Thomás Ribeiro, meu illustre amigo, nos tivesse avergado ao peso das suas innumeras apostrophes, e tivesse arrojado as suas indignadas accusações sobre nós, os falsos patriotas, porque queriamos a verdade, e porque querendo-a estavamos desde já encaminhando, o estrangeiro para conculcar com o tacão das suas botas o solo sagrado da patria; bastava isto para eu dizer: poeta, nós consideramos-te desde já como um astro no firmamento constellado, onde rebrilham os Camões, os Garretts, os Castilhos e tantos outros cujos nomes fluctuam nos paramos luminosos da gloria immortal. Lembra-to, porém, é poeta, que nós traiamos de cousas serias, ás quaes está ligado o futuro da patria, que se não defende com estrophes, senão com soldados. (Apoiados.) Eu diria mais ao poeta — se porventura queres descer das regiões sidéreas onde pairas abraçado ao plactro sonoroso, nós te ouviremos; mas se não queres lançar as tuas vistas de águia sobre estes obreiros cheios de fé que trabalham por augmentar, acrescentar e fortalecer o edificio da patria, e por fazer com que ella seja superior a todos os vaivéns da sorte, e do poeta bate as azas, ala-te ao tau mundo de visões, presta ouvidos aos suaves e mysteriosos encantos das espheras cerúleas, dá largas á phantesia creadora, mas deixa-nos em boa paz, a nós os homens da prosa, da realidade e da verdade, que estamos todos zelando e honrando a nossa patria, e confiámos que no momento de perigo todos os portuguezes hão de estar no seu posto a regar-lhe as plantas com o sangue, se necessario for. (Muitos apoiados.)

Portanto, pedia ao illustre deputado e meu amigo, porque sou amigo sincero e muito admirador do sr. Thomás Ribeiro, e que n'esta questão parece dar o seu bello espirito entenebrecido com uma suspeição, com um erro de intelligencia, ou com um erro do coração; podia lhe, digo, que n'esta questão levantassemos acima de tudo a voz do bom senso, a expressão soberana do patriotismo, a verdade que o paiz deve e quer conhecer. (Muitos apoiados. — Vozes: — Muito bem.)

Sr. presidente, ditas estas phrases, que declaro a V. ex.ª que não são estudadas e que me irromperam espontâneas do coração; proferidas estas palavras, que não tendem a melindrar individuos, porque a nossa missão n'este momento é muito superior a interesses mesquinhos, a interesses que são mesquinhos quando se consideram em relação a interesses maximos, peço licença a V. ex.ª e á camara para entrar no debate, e simplesmente com o intuito, não de esclarecer, mas de me esclarecer.

Entremos, pois, mui placidamente na discussão geral do orçamento, e no ponto em que nos foi deixado por áquelle incidente a que já me referi.

Começarei por dar os meus parabens sinceros ao illustre deputado, o sr. Anselmo Braamcamp, pelo discurso muito cordato, e sobretudo muito claro, que n'um quadro singelo descreveu o estado miserando das nossas finanças, apesar das promessas fallazes d'aquella luxuriança de estylo com que o illustre ministro da fazenda nos tem pintado a nossa situação financeira em relatorios e discursos encomiasticos. (Riso.)

Não quero aqui produzir as variadissimas razões adduzidas no discurso do sr. deputado, que foi ouvido com aquella attenção que merece não só o orador, mas tambem o assumpto que se ventilava.

Diga se o que se quizer; a verdade é que a situação financeira não apresenta um grau de prosperidade que de carto o governo deseja, e que nós queremos e desejámos todos. (Apoiados.)

E verdade que as circumstancias têem sido eminentemente favoraveis. E necessario confessar que desde largos annos os governos d'este paiz não atravessaram um periodo mais prospero e mais favoravel do que áquelle que o actual governo tem atravessado; por isso mesmo maior responsabilidade lhe cabe, por não ter aproveitado esse recurso que a boa sorte lhe está propiciando. (Apoiados.) A verdade é que depois de consolidada a divida fluctuante por uma operação de credito que o governo levantou ás alturas de elogio maximo e da confiança a si mesmo, depois de consolidada essa divida fluctuante nós achamos que a hydra renasce e que a phenix resurge das proprias cinzas. Quantas vezes o governo pretendeu fazer-nos acreditar que a tal hydra, a tal phenix, nunca mais havia de renascer! Hoje temos uma divida fluctuante já muito proxima de 6.000:000$000 réis. No mez da janeiro a divida fluctuante cresceu em 248:000$000 réis. A verdade é que na relatorio do illustre ministro da fazenda dizia s. ex.ª que grande parte d'esta divida não era senão antecipação de receita, porque a divida fluctuante havia por força de diminuir consideravelmente.

Nós vemos que esta promessa do ministerio não se realisou; nós vemos que a divida fluctuante em vez de diminuir, segundo as promessas do governo, tem crescido todos os dias, e este crescimento da divida fluctuante demonstra que o governo tem de occorrer todos os dias ao credito para salvar as despezas correntes.

Isto é clarissimo, e todavia o governo barafusta e intenta encubrir com as praxes conhecidas o que não admitte controversia.

Já V. ex.ª e a camara vêem que se eu quizesse discutir na generalidade o orçamento, teria largo campo por onde ceifar, e d'onde tirasse accusações contra o governo, mas reservo-me para o lazer quando o orçamento se discutir na especialidade, porque então, capitulo por capitulo, mais facil será fazer uma analyse rigorosa, e demonstrar que a actual administração não tem sido tão economica como se ha dito.

E já que fallamos em economias, devo insurgir-me contra uma theoria nova apresentada pelo sr. ministro da fazenda, na sessão anterior, quando disse que as economias se cifravam, em geral, em reformar uma repartição, em diminuir phantasticamente o numero dos empregados e fazer um relatorio não menos phantastico, proclamando que a economia era de tantos contos de réis, ao passo que as despezas continuavam.

Assim póde ser, e não quero agora discutir este ponto; até porque é bastante miudo, apesar da importancia capital que o sr. ministro da fazenda lhe quiz dar; mas esta argumentação de s. ex.ª está em desharmonia com os seus relatorios e discursos, e até com os relatorios e discursos do sr. Fontes Pereira á? Mello. (Apoiados.)

Tanto o sr. ministro da fazenda, como o sr. presidente do conselho e todos os membros do governo, por vezes têem rendido a verdadeira justiça aos esforços sinceros das administrações que os antecederam; uns e outros têem declarado que a economia zelosa de todas as anteriores ad

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ministrações facilitou o caminho para as melhorias no systema financeiro, e que o espirito de economia e morigeração tinham concorrido para se chegar a este resultado.

Portanto, não comprehendo como é que o sr. ministro da fazenda vem agora armado de ponto em branco, de lança em riste, dar o ultimo embate quichotesco n'aquella economia, que ainda não ha muito lhe merecia os teus louvores. E emprego o adjectivo quichotesco, porque se as economias são como disse o sr. ministro da fazenda, não passam de moinhos de vento. E s. ex.ª está representando o papel de D. Quichote quando, acompanhado pelo seu escodeiro jovial o folgazão, deu investidas aos moinhos de vento, que elle considerava gigantes medonhos, paladinos ferozes, capazes de fazer morder a poeira aos mais pintados e audazes cavalleiros. (Riso. — Apoiados.)

Mas eu já disso que o meu intuito não era discutir agora de uma maneira geral o orçamento, mas sim tratar, em poucas palavras, do incidente a que me referi.

Eu refiro-me ao couraçado Vasco da Gama, a quem a massa popular, sempre sarcástica e folia, deu o nome de pimpão; e devo notar, o seu maia efficaz e talentoso patrono, o nosso respeitavel collega, o sr. Carlos Testa, foi o primeiro que na sessão anterior poz de parte o nome official para empregar a metonymia ou repronymia da pimpão.

Não quero citar o nome de Vasco da Gama; custa me muito emparelhar o nome do grande navegador com a denominação faceta, que bom seria que não tivesse tido entrada n'esta casa. Fallamos, portanto, só no couraçado, não fallemos em Vasco da Gama, nem tão pouco rio pimpão. (Apoiados.)

Temos, portanto, a questão do couraçado.

Eu comprometto-me com V. ex.ª e com a camara de que quando se discutir o orçamento do ministerio da guerra hei de conversar publicamente com o nobre presidente do conselho, e de analysar, á boa paz, muitos capitulos do orçamento do exercito. E sem ser immodesto posso afiançar a V. ex.ª e á camara, que haverá pontos em que o nobre presidente do conselho não ficará em tão bom terreno quanto s. ex.ª desejaria, e eu mesmo. (Riso.) Ha algumas providencias tomadas pelo nobre presidente do conselho que na minha opinião tem uma defeza mui difficil. Os dotes de s. ex.ª são mui grandes, sou o primeiro a reconhece-los, e seria até da minha parte procedimento bem pouco desculpavel se porventura quizesse lançar uma nota discorde no meio dos louvores com que a maioria endeusa e faz a apotheose do sr. ministro da guerra. Com relação aos seus dotes oratorios direi que nunca lh'os neguei, e que em todas as occasiões tenho dado testemunho d'elles. Mas, repito, quando se tratar da discussão analytica, apurada do orçamento do ministerio da guerra tenho esperança que em muitos pontos da sua administração s. ex.ª ha de ficar em pessimo terreno; e senão aguardemos alguns dias.

Em relação ao ministerio da marinha desde já tomo igual compromisso, apesar de não ser encyclopedico. Creio que o nobre ministro da marinha ha de ficar tambem n'um terreno um pouco resvaladio quando eu o atacar em certas providencias da sua administração. Mas nós não estamos discutindo agora especialmente esse orçamento, tratámos simplesmente de um ponto restricto, qual é o couraçado.

Eu vou expor á camara a minha opinião muito singela, muito franca e muito cathegorica sobre o assumpto. Começo por não saber o que é o couraçado; começo por não saber que qualidade de navio couraçado é esse, que tem por nome Vasco da Gama.

Começo por perguntar a quem de direito se porventura aquelle couraçado serve pura e simplesmente para a defeza da barra, ou se é de alto bordo e para navegação dilatada; se é navio de esquadra ou unica e exclusivamente destinado á defeza do porto de Lisboa. (Apoiados.)

Se o couraçado é uma especie de bateria fluctuante, um ariete unica e exclusivamente destinado á defeza da barra, comquanto a compra d'elle se podesse dilatar por alguns annos, até que houvesse concordancia entre os meios de defeza maritima e terrestre, apesar de tudo isso a compra do couraçado é justificavel; mas se, como me dizem auctoridades em cousas maritimas, e eu poderia citar alguns artigos que têem vindo nos jornaes, é um navio de ostentação, para figurar n'uma esquadra imaginaria; se porventura não é unica e exclusivamente de defeza do porto e guarda costas, a compra do couraçado é um acto ruinoso, esbanjador, indesculpavel e determinado pela mania fidalga e ostentosa característica d'esta governo.

Peço desculpa ao sr. presidente do conselho de empregar a palavra esbanjador, que lhe faz mal aos nervos. S. ex.ª irritou-se um pouco com esta palavra, que foi por muito tempo moto de guerra contra s. ex.ª, e que, segundo a maneira por que os factos se vão apresentando, é provavel que se ouça outra vez, e muito breve, quando a onda popular submergir o governo. (Muitos apoiados.)

No caso que indiquei, em ultimo logar, a compra do couraçado não tem justificação possivel. (Apoiados.)

Nós não estamos aqui n'uma assembléa de homens technicos. E provavel, porém, que cada um de nós tenha opinião formada, pouco mais ou menos, sobre este assumpto da defeza do paiz, porque hoje a sciencia não é pertença exclusiva de ninguem; principalmente nos seus principios mais geraes está ao alcance de toda a gente.

Eu não comprehendo que haja uma defeza maritima efficaz de Lisboa sem a concorrencia de duas baterias couraçadas. (Apoiados.) O couraçado Vasco da Gama só não basta. (Apoiados.) Para defender efficazmente Lisboa precisavamos de dois couraçados que fizessem obra, não só por effeito da sua artilheria, como tambem por effeito do seu choque. Isto é corrente, é evidente, é uma cousa que toda a gente sabe. Mas, repito, o que é o couraçado?

Sobretudo não comprehendo que depois dos ultimos estudos sobre os torpedos se possa defender Lisboa sem que nós appliquemos ao nosso porto esse meio de acção fortíssimo.

O sr. Presidente do Conselho de Ministros: — Apoiado.

O Orador: — O sr. presidente do conselho de ministros acaba de me apoiar, Folgo com os apoiados de s. ex.ª; mas pergunto se s. ex.ª acha que para a defeza do porto de Lisboa são precisos, alem do couraçado, os torpedos, porque se apressou a comprar o couraçado, que custa réis 500:000$000, e não curou dos torpedos, que custam muito menos? (Apoiados.) Porque não tratou de obter os torpedos, que concorriam tão efficazmente para a defeza da barra?

E note-se que lhe corria tanto mais esse imperioso dever, quanto é certo que no nosso paiz não ha um só individuo que conheça a fundo os ultimos progressos feitos nos torpedos applicados á defeza dos portos, rios e costas.

A invenção dos torpedos é antiga, mas só nos ultimos annos adquiriram uma importancia capital. E n'esta parte basta citar um facto que se passou na guerra franco-prussiana. Toda a gente sabe que a França no seu plano de campanha (se porventura houve algum plano de campanha) contra a Prussia, tinha preparado um exercito de invasão pelo Rheno, pelas fronteiras rhenanas; mas tambem tinha disposto uma esquadra de navios couraçados que havia de bombardear os portos do norte, e desembarcar um corpo de exercito que invadisse a Allemanha.

Sabe V. ex.ª, sr. presidente, o que succedeu? E que as costas do norte da Allemanha estavam de. tal maneira guarnecidas pelos torpedos, que o accesso era muito difficil. A esquadra franceza, para não voar pelos ares, houve por bem voltar para o seu ancoradouro; e por isso não póde concorrer em cousa alguma para a defeza do seu paiz. Foi necessario então que as tropas das guarnições da marinha

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desembarcassem e viessem defender París e incorporar-se no exercito, combatendo heroicamente em terra.

Por aqui se póde ver a alta importancia dos torpedos, sem citar factos analogos das guerras da America do Norte e do Paraguay.

Ora o sr. ministro da guerra, que em nome da sua solicitude patriotica fez a compra do couraçado, que custa, pelo menos, 500:000$000 réis (creio que ha de custar mais alguma cousa com o armamento), porque rasão não manda ou não tem mandado alguns officiaes de marinha, de engenheria e artilheria estudar lá fóra esta invenção dos torpedos? Porque é tambem que s. ex.ª não compra desde já o segredo de fazer e applicar torpedos, que já lhe foi offerecido? E s. ex.ª sabe bem que eu tenho rasões especiaes para lhe fazer esta pergunta.

Eu entendo, e esta minha opinião é validada por auctoridades muito respeitaveis, entendo que para a defeza dos portos e das costas os torpedos são meios mais efficazes que os couraçados.

Podia fazer uma larga dissertação ácerca da excellencia dos torpedos, e das experiencias que d'elles se tem feito na Italia, Belgica, Hollanda, Prussia, Inglaterra, Austria, Suecia, Russia e na propria França. E quando digo na propria França, é porque a França n'estas questões militares está ainda muito atrazada.

A França, apesar da tremenda derrota que soffreu, ainda não tem a sua organisação militar na altura em que deve estar.

Seja-me permittido agora incidentalmente pedir ao illustre deputado, o sr. Thomás Ribeiro, que não me amaldiçoe por estar a dizer estas verdades. Mas eu ainda estou na mesma opinião, como s. ex.ª vê perfeitamente.

Não acredito que seja com manifestações patrioticas que se defende o paiz, mas com elementos de força que se criam durante muito tempo com grande solicitude, (apoiados), com muito estudo e com muita despeza. (Apoiados.)

Recommendo a s. ex.ª que leia o livro do coronel federal suisso, o sr. Rustow, que é hoje o primeiro escriptor militar.

A arte da guerra está hoje toda mudada.

Já Napoleão dizia que «toda a nação que não quizesse ser conquistada, precisava mudar de dez em dez annos a sua tactica!»

As guerras da Criméa e da Italia, que são dos nossos dias — e eu não sou dos mais velhos que têem entrada n'esta casa — pertencem hoje á archeologia militar.

Os meios de guerra estão todos absolutamente alterados; e os unicos acontecimentos que se podem acceitar como auctoridade, e que se analysam proveitosamente, são os da guerra austro-prussiana em 1864, e os da guerra franco-prussiana em 1869-1870, e os da guerra da separação norte-americano.

Todo o homem que quizesse citar hoje as campanhas de Frederico ou mesmo de Napoleão I, é o mesmo que citar as manobras de Cyro, de Alexandre Magno ou de Cesar. Se a estrategia é immudavel, a tactica e os movimentos variaram inteiramente.

Eu, sr. presidente, confesso que tenho sempre grande difficuldade em entrar n'estes assumptos, porque se por um lado receio, sem figuras de rhetorica, cançar a attenção da camara, que de certo não está disposta a estudar materias tão áridas, por outro lado, depois de se encerrar o debate, o orador fica sempre com pena de não ter citado muitos outros factos que vinham em apoio da sua these.

Ora, sr. presidente, as experiencias que ultimamente se tem feito na Prussia ácerca da balistica tanto interna como externa, são de tal importancia e gravidade, que as machinas industriaes estão soffrendo uma revolução completa com o descobrimento de novas leis da physica mollecular.

A experiencia ácerca da constituição interna dos corpos tem soffrido uma revolução completa depois das experiencias que se tem feito em Dusseldorf e outros pontos da Allemanha. E isto o que prova? Prova que a guerra é hoje uma sciencia complicadíssima, que para adquiri-la são poucos todos os esforços combinados, nos quaes se recorre sempre ao verdadeiro patriotismo. (Muitos apoiados.)

Voltemos, porém, ao assumpto, se o illustre ministro póde ser absolvido por ter illegalmente (sublinho o adverbio) comprado o couraçado, e eu de mim não tenho duvida em o absolver, mesmo porque a maioria teria o cuidado de o fazer, se isso fosse necessario (riso); se porventura o illustre ministro póde ser absolvido por ter comprado o couraçado, no caso d'elle ser simplesmente para a defeza do porto, se é um navio de alto bordo é duplamente para lamentar essa compra ruinosa. E tambem lamento que não quizesse o governo fazer estudar convenientemente a questão dos torpedos que não mandasse officiaes ao estrangeiro com esse intuito e essa missão estricta, e que o sr. Andrade Corvo pelo ministerio dos negocios estrangeiros não tratasse de comprar o segredo dos torpedos, segredo que já tem sido comprado por umas poucas de nações.

E creio que havia de custar muito menos dos 600 contos que custou o couraçado. E acredite V. ex.ª que para o effeito defensivo da barra de Lisboa havia de ser muito mais efficaz esta pequena despeza do que o ostentoso couraçado, navio de alto bordo.

Repito outra vez, que não sei o que seja o couraçado. Discute-se muito o couraçado, e não sabemos o que é.

O talentoso deputado e notavel professor, o sr. Carlos Testa, não nos disse o que era o couraçado. S. ex.ª apenas fez retaliações, que não vinham muito para o caso. S. ex.ª deve ter bastante experiencia do parlamento, para saber que as retaliações nada provam.

De se demonstrar que a entidade  commetteu um erro, não se póde concluir que a entidade B, tendo commettido o mesmo erro, fique absolvida. Isto pertence um pouco ao modo de argumentar que hoje vejo triumphante no governo, mas ninguem creia que fica assim absolvido.

A defeza do governo é sempre retaliações. Não trata de se desculpar. Dizem os srs. ministros: «Vós accusaes-nos de taes factos; pois se não fostes vós, alguns cavalheiros que têem comvosco certas relações já commetteram outros factos iguaes».

Por isso mesmo que os srs. ministros, que devem conhecer os factos da historia contemporanea, conhecem os erros que se têem commettido, incumbe-lhes preveni-los e evita-los. Este modo de argumentar do governo, longe de o levantar em consideração publica, longe de o absolver, pelo contrario mais o condemna.

Por isso mesmo que os antecessores de s. ex.ªs commetteram uns certos e determinados erros conhecidos de s. ex.ª, é que os srs. ministros não os devem commetter de novo. A isto póde chamar-se a inercia do erro. (Riso.)

Os nossos antecessores commetteram factos que nós conhecemos que são erros, por isso mesmo devemos nós commette-los. O absurdo iguala a impenitencia. (Apoiados.)

Assim fez sr. Carlos Testa, que não definiu o que era o couraçado, e mostrando mais uma vez que tem dotes de argumentador, limitou-se a ler á camara trechos de relatorios de alguns ministros da marinha que deixaram de si muito boa memoria. Foi citado o sr. Mendes Leal, que é hoje empregado de confiança do governo, e portanto se a censura coubesse a um partido cabia tambem ao governo actual.

Mais um inconveniente d'aquella argumentação de reconvenção a que ainda agora me referi.

Mas ía eu dizendo, sr. presidente, que o illustre deputado apenas citou pedaços truncados dos relatorios dos srs. Mendes Leal, Rebello da Silva e Latino Coelho.

Ora, foi logo respondido ao illustre deputado pelo sr. Mariano de Carvalho, e não sei se por mais alguem, que esses relatorios tratavam do armamento naval em termos

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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

genericos; eram planos geraes ácerca do armamento naval, e não tratavam da compra isolada, da compra a esmo, seja-me permittida a phrase, de um couraçado, que nós começamos por não saber o que é, e que ainda depois não sabemos que relação terá com o resto do armamento maritimo. (Apoiados.)

Qual foi a rasão por que a este respeito o illustre deputado não nos disse uma unica palavra? Qual foi a rasão pela qual o governo, tendo apenas uma auctorisação para contrahir um emprestimo de 1.750:000$000 réis, destinados a adquirir navios para o serviço colonial, assumiu a responsabilidade dictatorial, porque outra cousa não é senão um acto de dictadura este acto de comprar duas corvetas e de mandar construir um couraçado, navio que só por si absorve mais de um terço do total da auctorisação? (Apoiados.)

D'aqui se conclue que o governo, comprando o couraçado, ou desobedeceu á lei, ou então entendeu que o navio couraçado com as duas corvetas pertenciam á marinha colonial.

Por consequencia nós não temos ainda dados sufficientes para entrar n'esta discussão, porque esses dados não nos foram ministrados pelo sr. ministro da marinha, que ainda não fallou, nem pelos relatorios do governo, nem pelo discurso do illustre deputado, a quem eu aliás escutei com toda a attenção.

O sr. deputado Carlos Testa pediu a palavra; é possivel que mais algum sr. deputado ou algum membro do governo queira fallar sobre este assumpto, e, se acaso as suas explicações me não satisfizerem, eu entrarei novamente n'este debate, que tratei de collocar, quanto me foi possivel, no terreno technico. Por agora nada mais digo.

Vozes: — Muito bem, muito bem.

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