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N.º 34

SESSÃO DE 13 DE MARÇO DE 1902

Presidencia do Exmo. Sr. Matheus Teixeira de Azevedo

Os Secretarios - os Exmos. Srs.

Amandio Eduardo da Motta
José Joaquim Mendes Leal

SUMMARIO

Approvada a neta, dá-se conta do expediente, tendo segundas leituras: o projecto de lei que mantém as condições-bases no contrato de opção aos officiaes do exercito que, antes de 7 de setembro de 1899, tinham optado pelo serviço do Ministerio das Obras Publicas; e o que despensa o capitão de mar e guerra, Sr. Hermenegildo Capello, dos tirocinios de embarque cara promoção a postos superiores. - São renovadas as iniciativas: do projecto de lei n.° 19 C, apresentado pelo Sr. Deputado Antonio O Sarmento de Figueiredo; e do projecto de lei n.° 39, da sessão de 1899,sobre contagem de tempo para a reforma do capellão da armada, José M. Ferreira. - O Sr. Conde de Penha Garcia pede urgentes providencias para factos occorridos com a Camara Municipal de Penamacór Responde-lhe o Sr. Ministro da Fazenda (Mattozo Santos), accedendo a informar o Sr. Ministro do Reino. - Addia-se o aviso previo do Sr. Tavares Festas. - O Sr. Arthur Brandão envia uma representação dos institutos de caridade do Porto, considerando-a de toda n justiça Responde lhe o Sr. Ministro da Fazenda (Mattozo Santos). - O Sr. Pinto Bastos faz considerações sobre diversos assumptos - O Sr. André de Freitas envia uma representação da Camara Municipal do concelho da Horta. - O sr. Sarsfield manda um projecto de lei sobre o manicomio Camara Pestana, na Madeira. - Enviam avisos previos os Srs. Francisco Ramirez e Dias Ferreira; uma justificação o Sr. Pinto dos Santos; uma declaração o Sr. Alfredo de Albuquerque.

Na ordem do dia (discussão do capitulo 3.° do Orçamento) O Sr. Fuschini justifica a sua moção, respondendo-lhe o Sr. Ministro da Fazenda (Mattozo Santos). - O Sr. Paulo de Barros envia uma moção, fazendo diversas e largas considerações. Responde-lhe o Sr. Santa Rita, que envia projectos de lei.

Abertura da sessão - Ás 11 horas e 35 minutos da manhã.

Presentes - 53 Senhores Deputados.

São os seguintes: - Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão, Alexandre José Sarsfield, Alfredo Augusto José de Albuquerque, Alfredo Cesar Brandão, Amandio Eduardo da Motta Veiga, Anselmo Augusto Vieira, Antonio de Almeida Dias, Antonio Augusto do Sousa e Silva, Antonio Belard da Fonseca, Antonio Centeno, Antonio Joaquim Ferreira Margarido, Antonio José Lopes Navarro, Antonio Rodrigues Ribeiro, Arthur da Costa Sousa Pinto Basto, Arthur Eduardo de Almeida Brandão, Augusto Fuschini, Belchior José Machado, Carlos Alberto Soares Cardoso, Clemente Joaquim dos Santos Pinto, Conde de Penha Garcia, Domingos Eusebio da Fonseca, Ernesto Nunes da Costa Ornellas, Fernando Mattozo Santos, Frederico Alexandrino Garcia Ramirez, Guilherme Augusto Santa Rita, Henrique Matheus dos Santos, Henrique Vaz de Andrade Basto Ferreira, Ignacio José Franco, João Alfredo de Faria, João Ferreira Craveiro Lopes de Oliveira, João Joaquim André de Freitas, João Marcellino Arroyo, João Pinto Rodrigues dos Santos, João de Sousa Tavares, Joaquim António de Sant'Anna, Joaquim Faustino de Poças Leitão, Joaquim Pereira Jardim, José da Cunha Lima, José Joaquim Dias Gallas, José Joaquim Mendes Leal, José Maria de Oliveira Simões, José Nicolau Raposo Botelho, Julio Augusto Petra Vianna, Julio Maria de Andrade e Sousa, Luciano Antonio Pereira da Silva, Luiz Filippe do Castro (D.), Mario Augusto de Miranda Monteiro, Marquez de Reriz, Matheus Augusto Ribeiro Sampaio, Matheus Teixeira de Azevedo, Paulo de Barros Pinto Osorio, Rodolpho Augusto de Sequeira e Rodrigo Affonso Pequito.

Entraram durante a sessão os Srs.: - Abel Pereira de Andrade, Agostinho Lucio e Silva, Alberto de Castro Pereira de Almeida Navarro, Alexandre Ferreira Cabral Paes do Amaral, Alfredo Mendes de Magalhães Ramalho, Alvaro de Sousa Rego, Antonio Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, Antonio Eduardo Villaça, Antonio Ferreira Cabral Paes do Amaral, Antonio José Boavida, Antonio Rodrigues Nogueira, Antonio Sergio da Silva e Castro, Arthur Pinto de Miranda Montenegro, Augusto José da Cunha, Avelino Augusto da Silva Monteiro, Carlos de Almeida Pessanha, Carlos Augusto Ferreira, Carlos Malheiro Dias, Christovam Ayres de Magalhães Sepulveda, Conde de Castro e Solla, Custodio Miguel de Borja, Francisco Antonio da Veiga Beirão, Francisco José Machado, Francisco, José de Medeiros, Frederico Ressano Garcia, Frederico dos Santos Martins, Gaspar de Queiroz Ribeiro de Almeida e Vasconcellos, Henrique Carlos de Carvalho Kendall, João Augusto Pereira, José Adolpho de Mello e Sousa, José Caetano Rebello, José Dias Ferreira, José Jeronyino Rodrigues Monteiro, José Maria Pereira de Lima, José Matinas Nunes, José do Mattos Sobral Cid, Julio Ernesto de Lima Duque, Lourenço Caldeira da Gama Lobo Cayolla, Luiz Fisher Berquó Poças Falcão, Luiz de Mello Correia Pereira Medella, Manuel Affonso de Espregueira, Manuel Joaquim Fratel e Ovidio de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral.

Não compareceram á sessão os Srs.: - Affonso Xavier Lopes Vieira, Albano de Mello Ribeiro Pinto, Alberto Antonio de Moraes Carvalho Sobrinho, Alberto Botelho, Albino Maria de Carvalho Moreira, Alipio Albano Camello, Alvaro Augusto Froes Possollo de Sousa, Amadeu Augusto Pinto da Silva, Antonio Affonso Maria Vellado Alves Pereira da Fonseca, Antonio Alberto Charula Pessanha, Antonio Augusto de Mendonça David, Antonio Barbosa Mendonça, Antonio Maria de Carvalho Almeida Serra, Antonio Roque da Silveira, Antonio de Sousa Pinto de Magalhães, Antonio Tavares Festas, Augusto Cesar Claro da Ricca, Augusto Cesar da Rocha Louza, Augusto Neves dos Santos Carneiro, Conde de Paçô-Vieira, Eduardo de Abranches Ferreira da Cunha, Eduardo Burnay, Francisco Felisberto Dias Costa, Francisco José Patrício, Francisco Limpo de Lacerda Ravasco, Francisco Roberto de Araujo de Magalhães Barros, Jayme Arthur da Costa Pinto, João Carlos de Mello Pereira e Vasconcellos, João Monteiro Vieira de Castro, Joaquim da Cunha Telles e Vasconcellos, José Antonio Ferro e Madureira Beça, José Caetano de Sousa e Lacerda, José Coelho da Motta Prego, José da Gama Lobo Lamare, José Gonçalves Pereira dos Santos, José Joaquim de Sousa Cavalheiro, José Maria de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral, José Maria de Oliveira Mattos,

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2 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Libanio Antonio Fialho Gomes, Luiz Gonzaga dos Reis Torgal, Luiz José Dias, Manuel Antonio Moreira Junior, Manuel Homem de Mello da Camara, Manuel de Sousa Avides, Marianno Cyrillo de Carvalho, Marianno José da Silva Prezado, Visconde de Mangualde, Visconde do Reguengo (Jorge) e Visconde da Torre.

Acta - Approvada.

EXPEDIENTE

Segundas leituras Projecto de lei

Senhores. - Desde a criação do Ministerio das Obras Publicas que os officiaes militares, empregados como engenheiros no mesmo Ministerio, tiveram assegurada a reforma pelo Ministerio da Guerra nas mesmas condições em que eram reformados os seus camaradas do exercito.

O decreto de 30 de outubro de 1884 veiu restringir o tempo de ausencia d'aquelles officiaes dos serviços do Ministerio da Guerra, estabelecendo que os coroneis em serviço entranho a este Ministerio teriam de optar, antes das provas para o generalato, entre os serviços civis e o da guerra, offerecendo-se lhes no primeiro caso (artigo 227.°) a garantia da reforma como se tivessem regressado opportunamento ao Ministerio da Guerra.

O decreto n.° 7 de 10 de janeiro de 1895 confirmou e manteve estas disposições, em resultado das quaes diversos officiaes optaram pelo serviço das obras publicas, acceitando as condições offerecidas, que assim ficaram constituindo as bases de um contrato livremente acceito.

Existem actualmente no serviço do Ministerio das Obras Publicas oito officiaes nestas condições, isto é, que optaram pelo serviço civil antes do decreto de 7 de setembro de 1899, que, no artigo 198.°, § 4.°, estabeleceu que "os vencimentos de reforma ficariam a cargo aos Ministerios em que os officiaes serviram", applicando esta prescripção de lei tambem áquelles officiaes.

Como a alteração não era essencial, pois não se modificavam as deducções para compensação de reformas militares, que continuaram a fazer-se durante dois annos pelo modo habitual, deduzindo-se 2 por cento sobre o valor dou soldos militares, nenhum dos officiaes interessados reclamou, embora vissem com pesar que as condições do primitivo contrato de opção começavam a ser alteradas pelo Estado que nelle era e 6 uma das partes contratantes.

Pelo decreto de 24 de outubro de 1901 foram alteradas mais profundamente as bases do referido contrato de opção pelos artigos 89.°, n.° 1.° e 2.° do artigo 112.° e pelo artigo 93.°, que estabeleceram para aquelles officiaes, indistinctamente com outros, que tinham optado posteriormente em condições diversas, a deducção de 5 por cento sobre ou vencimentos civis, impondo-lhes tambem a obrigação de receberem os seus vencimentos de reforma, parte pela Caixa de Aposentações dos funccionarios civis, onde é de presumir que tenham de esperar cabimento para a reforma em disparidade de condições com os seus camaradas do exercito e outra parte pelo cofre do Ministerio das Obras Publicas, o que poderá alterar a regularidade dos pagamentos.

Resulta do exposto e do facto que, desde o decreto de 7 de setembro de 1899 até 31 de dezembro de 1901, aos officiaes referidos continuou a fazer-se somente a deducção de 2 por cento sobre o valor dos seus soldos militares para compensações de reformas militares; a prova é que só agora, depois do decreto de 24 de outubro de 1884, cujas disposições derivaram da primeira alteração, é que foram essencialmente feridos os direitos d'aquelles officiaes, alterando-se as condições do seu contrato de opção, que livremente tinham acceitado, sendo offerente e tambem parte contratante o Estado.

Estes officiaes são hoje em numero de 8, tão somente, sendo 3 generaes de brigada e 5 coroneis. Será um acto de justiça a disposição de lei que, alterando o estatuido nos decretos de 7 de setembro de 1899 e 24 de outubro de 1884, restabeleça as condições primitivas do contrato de opção, offerecido pelo Estado áquelles officiaes e por elles livremente acceito, que consistiam na reforma pelo Ministerio da Guerra, como se opportunamente ali tivessem regressado, condição esta que, por ora, não soffreu alteração, senão no pagamento dos vencimentos de reforma pelo mesmo Ministerio da Guerra, que soffreu a alteração referida, assina como o processo e valor das deduções para compensações de reformas militares que faz parte integrante do systema e processo de reforma dos officiaes militares, que deve manter-se ou restabelecer-se para os referidos officiaes, nos termos dos artigos de lei ao abrigo dos quaes optaram livremente pelo serviço do Ministério das Obras Publicas. (Artigo 227.° do decreto de 30 de outubro de 1884 e artigo 2.° do decreto n.° 7, de 10 de janeiro de 1895).

Em presença do exposto, offerece á consideração da Camara o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.° São mantidas aos officiaes do exercito que, antes de 7 de setembro de 1899, tinham optado pelo serviço do Ministerio das Obras Publicas, ao abrigo do disposto no artigo 227.° da carta de lei de 30 de outubro de 1884 e artigo 2.° do decreto com força de lei n.° 7, de 10 de janeiro de 1895, as condições bases do seu contrato de opção que importam o pagamento dos seus vencimentos de reforma pelo Ministerio da Guerra e o pagamento da deducção de 2 por cento sobre o valor equivalente dos soldos militares das suas patentes para compensação de reformas militares emquanto não se reformarem.

Art. 2.° Fica revogada toda a legislação em contrario.

Em 12 de março de 1902. = Belchior José Machado.

Foi admittido e enviado á commissão de guerra, ouvida a de fazenda.

Projecto de lei

Senhores. - O capitão de mar e guerra Hermenegildo Carlos de Brito Capello, um dos poucos, senão o ultimo que resta da pleiade de heroicos trabalhadores, que no ultimo quartel do seculo XIX tão bem souberam affirmar o nome português em terras africanas, não só como official da armada, mas muito particularmente pelas explorações que dirigiu de Benguella ás terras de laca, e de Benguella á Contra-Costa, está por virtude das determinações legaes que regulam as promoções da armada, inhibido de ser promovido aos postos do generalato d'esta gloriosa corporação, generalato que o seu nome largamente honraria e que justamente exaltaria com o seu verdadeiro valor scientifico e com a sua justa reputação de marinheiro experimentado, affirmado o primeiro nos resultados de suas notaveis travessias africanas, e a segunda em 17 annos, 2 meses e 28 dias de serviço no mar, dos quaes 13 annos, 2 meses e 3 dias foram passados nos mares da Africa, da Asia e da America, e o restante tempo nos mares da Europa.

Encarregado, logo em seguida ás explorações que dirigiu, de formular a carta de Angola, trabalho que só em longos annos fora do serviço especial da armada poderia ter sido, como foi, levado a cabo, e que tanta honra faz á tartographia portuguesa, carta que é hoje citada e apreciada por os mais distinctos cartographos de todo o mundo scientifico, deixou o illustre marinheiro português a que este projecto se refere e que, em votações por acclamação nas duas casas do Parlamento, tão justamente declarastes benemerito da patria, de fazer os tirocinios do embarque, correspondentes ás diversas patentes a que tem sido promovido depois de capitão-tenente; tendo comtudo, no exercicio de outros postos, embarcado o preciso para, distribuido esse tempo por toda a sua longa e honrosa car

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reira militar naval, sobrar muito do exigido para as promoções normaes tendo ainda nos ultimos annos estado durante 18 meses, como chefe de missão, a superintender á construcção do cruzador D. Carlos, commissão em que bem provou os seus vastos conhecimentos profissionaes, e que decerto, como habilitação ao generalato da armada nacional, não é inferior ás que são, segundo a lei em vigor, exigidas aos officiaes normalmente promovidos.

Ao heroico coronel Galhardo, vencedor de Coolela, foi justamente permittida em lei especial a despensa dos tirocinios e exames para poder ser, na sua altura promovido aos postos do generalato do exercito português. O assumpto d'este projecto de lei é analogo. A razão de benemerencia do distincto capitão de mar e guerra Capello não são, nem menos dignas de apreço, nem alcançadas com menos valentia e menor coragem, que tão essenciaes são, a todo o momento, e a cada instante, para a luta com o gentio desconfiado e traiçoeiro, em cujos emballas e acampamentos é forçoso que o explorador se conserve por longos dias para poder obter da sua permanencia nestes centros de difficuldades e perigos, e em campanhas que durante longos meses quasi diariamente se repetem, os dados e coordenadas geographicas, as collecções da fauna e flora africanas, as observações ethnicas, que os livros de Capello e Ivens representam o que são peculio justamente apreciado, e todos os dias consultado, por todos os geographos e homens de sciencia, que as reputam como dos mais valiosos subsidios obtidos para a generalização da geographia africana moderna, e para a gloria scientifica e litteraria do nome português.

Não representa o projecto de lei que sujeitamos á sabia consideração do Parlamento Português, qualquer augmento de despesa ou de vencimentos, porque os não pode ter o illustre homem de sciencia a que elle diz respeito, por isso que com as pensões que por lei especial tem jus de accumular com os vencimentos de official da armada, que actualmente percebe, já hoje e no posto que tem, teria direito a quantia annual superior ao que pela lei de 26 de fevereiro de 1892 podem annualmente perceber os funccionarios nas suas condições.

Não prejudica a excepção, por assim dizer honorifica, que para o benemerito e brilhante official da nossa marinha de guerra se propõe, a promoção dos seus camaradas dos quadros activos da armada; porquanto tendo elle estado por mais de 18 annos considerado em commissão especial, não pode já, em virtude da lei vigente de promoções na armada, regressar aos seus quadros; representa simplesmente um acto de justiça em prol de quem pela excepção dos seus meritos tem direito á excepcional consideração que se propõe; significa a promoção a uma classe como é a do generalato da armada tão digna de contar, no seu seio, mais um nome glorioso, e constitue exclusivamente uma prova de justo e merecido apreço pela qual, se o projecto que temos a honra de apresentar merecer, como esperamos a vossa approvação, dará a nação portuguesa ao illustre official da armada, que tão enthusiasticamente acclamastes benemerito da patria, e que com tanta abnegação, com tanto saber e tanta coragem tem sabido honrar a gloriosa corporação a que pertence, e a prestigiosa bandeira da patria que tão bem tem servido, premio condigno a um dos mais notaveis trabalhadores das sciencias geographicas modernas, a um dos mais prestimosos officiaes da marinha de guerra nacional.

Em vista do exposto esperamos ter plenamente justificado, e que poderá, portanto, merecer a vossa approvação o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.° É o Governo auctorizado a dispensar ao capitão de mar e guerra Hermenegildo Carlos de Brito Capello os tirocinios de embarque, exigidos pela lei de 14 de agosto de 1892 para a promoção a todos os postos, que por antiguidade de futuro lhe competirem como official da armada, conservando-o em commissão especial, sem prejuizo do cargo que exerce de ajudante de campo effectivo de Sua Majestade El-Rei.

Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario. = Custodio de Borja = José da Cunha Lima = Avelino Augusto da Silva Monteiro = Joaquim da Cunha Telles de Vasconcellos = Matheus Augusto Ribeiro Sampaio.

Foi admittido e enviado á commissão do ultramar.

Proposta para renovação de iniciativa

Renovo a iniciativa do projecto de lei n.° 19-C, apresentado nesta Camará pelo Sr. Deputado Antonio Osorio Sarmento do Figueiredo, em sessão de 27 de março de 1900, que tem por fim tornar applicavel a Francisco Gomes Carneiro, capitão de infantaria do exercito, a providencia estabelecida no § unico do artigo 5.° do decreto com força de lei de 6 de setembro de 1894, relativamente á liquidação de direitos de mercê. = Visconde da Torre.

Foi admittida e enviada á commissão do ultramar.

Refere-se esta renovação de iniciativa ao seguinte

Projecto de lei

Artigo 1.° É applicavel a Francisco Gomes Carneiro, capitão do batalhão n.° 9 do regimento de caçadores n.° 3, a providencia estabelecida no § unico do artigo 5.° do decreto com força de lei de 6 de setembro de 1894, relativamente aos direitos de mercê que lhe foram liquidados e está pagando na qualidade de residente, que foi, da Circumscripção Administrativa de Cabinda, no districto do Congo.

§ único. A actual liquidação dos direitos de mercê será rectificada nos termos d'este artigo, e ao dito capitão serão restituidas quaesquer prestações que porventura tenha pago a mais até á execução da presente lei.

Art. 2.° Fica revogada toda a legislação em contrario.

Proposta para renovação de iniciativa

Renovo a iniciativa do projecto de lei n.° 39 da sessão legislativa de 1899, e n.º 36 da de 1900, e cuja iniciativa fôra tambem renovada na sessão n.° 16, correspondente a 11 de fevereiro de 1901. Renovo essa iniciativa, para que seja contado, para os éffeitos da reforma, ao presbytero José Maria Ferreira, capellão da Armada Real, todo o tempo em que serviu na provincia de S. Thomé e Principe, na qualidade de missionario do Real Padroado. = O Deputado, Antonio José Boavida.

Foi admittida e enviada á commissão de marinha.

Refere-se esta renovação de iniciativa ao seguinte

Projecto de lei

Artigo 1.º Para os effeitos de promoção e de reforma será contado ao presbytero José Maria Ferreira, capellão de 3.º classe da Armada Real, o tempo decorrido desde 28 de abril de 1880 até 20 de maio de 1885, em que serviu como missionario na provincia de S. Thomé e Príncipe.

Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario.

O Sr. Conde de Penha Garcia (para um negocio urgente): - Era ao Sr. Ministro do Reino que eu desejava dirigir me, mas o assumpto de que tenho o dever de occupar-me é de natureza tão urgente, tão importante e tão grave que, estando presente o .Sr. Ministro da Fazenda, peço a S. Exa. a fineza de transmittir ao seu collega do Reino a noticia que acabo de receber telegraphicamente.

O telegramma a que me refiro diz o seguinte:

"Penamacor, 12, ás 4 t.

Administrador acaba de ir sala sessões, acompanhado de secretario, dois policias, deixando á porta sete soldados;

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porque não consenti que escrevessem nos cadernos do recenseamento, mandou levantar auto; porque impedi, deu-me voz de prisão, que não deixei effectuar, nem policias se prestaram; aliás tinha corrido sangue.

Constam novas provocações, peço V. Exa. peça providencias Ministro do Reino, = Presidente da Camara, Adelino Pinheiros.

Duas palavras, apenas, do commentario.

Quer-me parecer que é ao Governo, sobretudo, que importa que não se dêem d'estas acenas, que eu e todos julgam em nada concorrer para acreditar o prestigio de quem governa; e não é, a meu ver, com estas pequenas questões do campanario que o Governo só pode acreditar como Governo de força.

Eu tenho o prazer de conhecer o Presidente da Camara Municipal de Penamacor, o Sr. Dr. Adelino Pinheiro; é um advogado de muito credito, um perfeito cavalheiro, e por isso estou certo de que se terá mantido dentro dos limites da legalidade.

(S. Exa. não reviu}.

O Sr. Ministro da Fazenda (Mattozo Santos): - Tenho o prazer de declarar ao Sr. Conde de Penha Garcia que transmittirei ao Sr. Presidente do Conselho o conteudo do telegramma que V. Exa. acaba de ler; e estou convencido de que o Sr. Presidente do Conselho, que, de resto, se empenha sempre em manter a liberdade dos eleitores, não se prendendo com as pequenas questões locaes, dará todas as providencias para que se cumpra a lei, e se mantenham os principios que elle sempre tem advogado.

(S. Exa. não reviu}.

O Sr. Presidente: - Seguia-se dar a palavra ao Sr. Tavares Festas para a realização do seu aviso previo ao Sr. Ministro das Obras Publicas; mas, como não estão presentes o Sr. Ministro e o Sr. Deputado, fica adiado o aviso previo para outra sessão.

O Sr. Arthur Brandão: - Pedi a palavra para mandar para a mesa uma representação dos institutos de beneficencia e caridade da cidade do Porto, para que se lhes não faça a reducção dos trinta por cento aos seus titulos de divida publica interna, ou então para que se lhes dispensem as formalidades burocraticas para o seu reembolso.

A representação, assignada pelos chefes das respeitaveis corporações da Santa Casa da Misericordia do Porto, veneraveis Ordens Terceiras de S. Francisco, do Carmo e da Trindade e irmandade de Nossa Senhora do Terço e Caridade, baseada em razões fundamentaes e de justiça, merece, é digna de ser attendida pelo nobre o illustre Ministro da Fazenda. (Apoiados).

S. Exa. começou uma obra, em dois volumes, toda ella de caridade.

Por essa obra bemdigo eu o nobre Ministro.

O primeiro volume já está publicado; nelle encontram os institutos de beneficencia e caridade as devidas instrucções para não pagarem a contribuição de registo pelos seus legados e heranças.

Falta o segundo volume, que venha compendiar outras instrucções para que aos mesmos institutos se reduzam os trinta por cento dos seus titulos, ou então se lhes dispense as formalidades burocraticas para o seu reembolso. (Apoiados).

Á Camara sabe que por uma medida de salvação publica foram onerados os institutos de beneficencia e caridade do país com trinta por cento.

É verdade que todos os Governos, até ao presente, teem-os reembolsado das respectivas importancias. No entanto, para que as suas administrações recebam esses subsidios ou reembolsos tem de correr um processo moroso, que custa trabalho, que acarreta despesas para os pobres, que são os verdadeiros donos das casas de beneficiencia e caridade. (Muito bem). Pois bem; prescinda o illustre Ministro da Fazenda d'esse processo, que em nada prejudica o Estado, e mande-lhes pagar por completo os juros dos seus titulos.

Com isto pratica uma boa obra de caridade para com os pobres dos mesmos institutos, alem de livrar de entraves as respectivas administrações. (Apoiados}.

Eu tenho toda a confiança na piedade do nobre Ministro e em assumptos d'esta natureza é ella garantia bastante para que se não façam esporar as suas providencias.

E não se diga, Sr. Presidente, que os institutos de beneficencia e caridade do país são ricos, porque não é assim.

Todos elles precisam da beneficencia particular e publica, e sobretudo do auxilio e protecção do Estado e dos Governos.

Creia a Camara que custa muito ás administrações d'estes institutos manter as suas casas na região elevada e pura, onde assenta o throno da caridade e a cujo sacerdocio todos nós devemos pertencer.

Eu bem sei que ninguem põe em duvida o que é e vale a cidade do Porto na sua beneficencia.

Todos sabem que ella possue muitas casas que albergam desgraçados, que dão alimento a muitos infelizes e que curam muitas enfermidades

O Porto não é somente o baluarte da liberdade; pode com justo motivo dizer-se tambem o baluarte da beneficencia. (Apoiados}.

Para o pobre, para o desgraçado, para o infeliz, elle abre as portas das suas casas de caridade.

O Porto tem remedios muito seus para a miseria humana o tanto, que a assistencia publica não custa um ceitil ao Estado. (Apoiados).

Mas isto não basta.

Ha muita mendicidade e esta não pode, e nem deve ser castigada, porque ha a distinguir entre aquelles que podem trabalhar, mas não teem trabalho, e aquelles outros que não podem trabalhar.

Cumpre, pois, que o Estado e os Governos coadjuvem a beneficente iniciativa particular e todas as suas casas de caridade para que semelhantes obras caminhem em bem dos miseraveis, dos enfermos, dos sem pão, dos invalidos. (Apoiados}.

É justo que se alliviem algumas d'essas casas das formalidades burocraticas, que lhes custam trabalho, despesas; e outras das contribuições prediaes e de rendas de casas.

E nesta parte quero referir-me tambem ao Asylo das Raparigas Abandonadas da cidade do Porto, á Officina de S. José e outras casas de instrucção e educação, que vivem da beneficencia e caridade. (Apoiados}.

D'este modo os governos prestam serviços a ellas e á humanidade necessitada, alem de que se alliviam de outros encargos que lhes possam advir, porque a miseria particular e publica é infinita.

Estou certo, Sr. Presidente, de que estas ligeiras ponderações devem calar no animo e coração bondoso do nobre Ministro, para saber dar as suas instrucções no sentido de prestar mais um relevante serviço de caridade ás casas dos pobres.

Termino aqui pedindo ao Sr. Presidente que consulte a Camará sobre se permitte que esta representação seja publicada no Diario do Governo, e ao illustre Ministro da Fazenda desde já agradeço a sua resposta, que certamente me ha de satisfazer.

Vozes: - Muito bem.

(O orador não reviu}.

A representação vae por extracto no fim da sessão.

Foi auctorizada a publicação no Diario do Governo.

O Sr. Ministro da Fazenda (Fernando Mattozo Santos): - Ouvi as considerações que acabam de ser fei-

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tas pelo illustre Deputado, e pode S. Exa. ter a certeza se não é debalde que a mim se dirige, quando se trata e questões de caridade e de beneficencia. Eu entendo que uma das missões mais elevadas das sociedades modernas, a mais civilizadora e humana, é que procura amparar e fortalecer a legião infinita dos que soffrem, até para debellar e retardar o tragico resentimento, para todos perturbador, da parte dos que soffrem a vida contra aquelles que a gozam.

Mas, se este sentimento profundamente existe no meu coração e no meu espirito, não é menos certo que nem tudo o que se quer realizar, se pode realizar.

Eu não sei, nem me importa sabor, se as instituições de caridade que existem no país, são ricas ou pobres. Se são ricas, tanto melhor; isso não é motivo para impedirmos que alarguem a sua esphera de acção; se são pobres, eu confio no povo português para que, se as não puder enriquecer, lhes forneça ao menos o necessario para que possam exercer a sua acção beneficente.

Feitas estas considerações pelo que respeita a institutos d'esta ordem, e nellas vae envolvido o meu respeito e consideração por esses estabelecimentos, eu, alliviando-as das contribuições de registo, não as considerando como herdeiras, nem como gozando do beneficio, mas como recebendo-o para o dar a outros, mostrei que penso de maneira igual á do Sr. Deputado Padre Brandão.

Com respeito ao assumpto especial a que S. Exa. se referiu, posso dizer que hei de estudar a questão para que, tanto quanto possivel, esses institutos de caridade sejam dispensados das formulas burocraticas, algumas d'ellas, concordo, perfeitamente inuteis.

Com respeito ao desejo de S. Exa., de que ellas entrem por completo no gozo integral dos direitos que lhes assistem como portadoras de titulos, do Estado, eu direi que não posso abrir uma excepção. Posso pedir á Camara que consigne no Orçamento ura a verba especial para acudir ás deficiencias orçamentaes d'essas corporações; mas o que não peço é que se estabeleçam principios differentes para os credores do Estado, sejam quaes forem os fins a que esses rendimentos se destinem. Estou, porem, prompto a estudar o assumpto sob o ponto de vista de facilitar a essas corporações o haverem a parte necessaria para completar os seus orçamentos, dada a reducção que lhes é imposta sobre os titulos de divida publica que possuem. Isto, não tenho duvida em o fazer.

Com relação á contribuição predial e de renda de casas, se S. Exa. se lembra das propostas que eu apresentei na sessão passada, e que motivos de ordem puramente administrativa fizeram com que as não renovasse este anno, ha de reconhecer que nellas alguma cousa se encontrava nesse sentido.

S. Exa. sabe que, nas propostas, alguma cousa vinha já no sentido em que S. Exa. acaba de falar; e, em occasião opportuna, estou convencido, qualquer Governo ou qualquer Ministro da Fazenda chamado a gerir os negócios d'esta pasta, attenderá certamente a esse pedido, assim como outros, talvez menos justos, teem sido attendidos tambem.

No momento actual, não estando sujeita á apreciação da Camara proposta alguma sobre contribuição predial ou de renda de casas, parecendo difficil estabelecer uma excepção unica, embora essa, para um fim determinado. Melhor é aguardar que uma proposta de caracter geral venha á discussão, para se resolver então esse assumpto, que me parece de toda a justiça, sob o ponto de vista do desejo que tem de bem servir quem tão bem serve os desherdados e os pobres. (Apoiados).

Creio ter respondido ás considerações feitas pelo illustre Deputado que me precedeu, ter dado quanto possivel satisfação ao seu pedido, mostrado quaes são as intenções do Governo, e quanto para mim e para o Governo são sympathicos os institutos para que S. Exa. pediu, não a benevolencia, mas a justiça que se lhes deve.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem.

(O orador não reviu).

O Sr. Arthur Pinto Bastos: - Sr. Presidente: pedi a palavra, porque desejava responder em breves phrases a algumas affirmações de illustres Deputados progressistas, que não tenho o prazer de ver aqui presentes. Reservo-me, portanto, para quando S. Exas. estiverem na Camara. Então farei essas considerações.

Por agora, limito-me a declarar a V. Exa. que, se tivesse tomado parte na sessão em que, nesta Camara, se celebrou a memoria de Mousinho de Albuquerque, ter-me-hia associado ao voto de sentimento pela morte do grande militar, e teria approvado a proposta de pensão á nobre senhora que foi sua companheira condigna nas campanhas de Africa. (Apoiados).

Sr. Presidente: escasseia-me agora o tempo, e mesmo creio que a occasião é prematura para considerar, sob um alto ponto de vista, a memoria do heroe.

As vidas dos grandes homens são para se verem de alto e de longe, quando já o criterio contemporaneo estiver substituido pela critica da Historia.

Reservo-me, pois, para quando, definitivamente, tiver ajuizado do modo como o meu pais sabe honrar a memória d'aquelle que ergueu o nome de, Portugal no seculo XIX, precisamente no período em que Portugal se abatia, não só perante a nossa consciencia, mas perante a consciencia das nações estrangeiras.

Então o farei; e muito estimarei não me ver obrigado a fazer apreciações que, se representarem para alguem um desfavor, não deixarão de merecer o applauso da minha consciencia, de que são filhos todos os actos da minha vida.

Permitta Deus que eu não tenha de proferir asperas palavras de censura para quem, até hoje, não deu demonstrações bastantes de haver comprehendido o que deve Portugal a Joaquim Mousinho de Albuquerque.

Posteriormente a esto acontecimento, falleceu um collega nosso, o Sr. Guilherme de Abreu, que foi uma inteligencia illuminada o amavel (Apoiados), um caracter de tempera finissima, um politico cheio de raros desinteresses (Apoiados), um cavalheiro de trato primoroso, um paramentar esclarecido, um homem dignissimo. (Apoiados). Oxalá Portugal tenha sempre a servir na sua administração publica politicos como elle foi, caracteres como o que elle possuia! (Apoiados).

Em 1901 eu rendi palavras do saudade a um dos mais dedicados servidores do partido regenerador, o Sr. Aralla Costa.

Em 1902 tenho de preferir palavras de igual sentimento pela memoria d'aquelle illustre extincto, que foi tambem uma gloria do mesmo partido.

Nunca pedi a palavra para fazer ostentação de dotes que não possuo, ou para tratar de obter uma posição na politica ou na sociedade; pedia-a agora unicamente para cumprir este dever, porque entendo que me honro cumprindo-o, assim como entendo que o Parlamento se honra propondo o seu voto de sentimento.

Quando haja de pedir novamente a palavra nesta Camara, hei de fazê-lo em referencia ao que ouvi, quando foi discutido o projecto de lei do sêllo, e com respeito a um aviso previo que realizou aqui um dos mais talentosos Deputados da minoria progressista. Das palavras que então ouvi, umas merecem o meu inteiro applauso e outras o meu absoluto desacordo. Farei então essas considerações, e creio que serei secundado pela maioria, que as ouviu tambem. Refiro-me ás palavras proferidas pelo Sr. Egas Moniz, quando disse que a maioria estava com o Sr. João Franco, mas acompanhava o Sr. Hintze Ribeiro, porque S. Exa. dispunha do cofre das graças.

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Sr. Presidente: isto não é assim, isto é inexato. (Muitos apoiados).

Mas eu referir-me-hei a este ponto mais demoradamente, em occasião opportuna, quando vir S. Exa. presente, assim como me hei de referir tambem a algumas palavras que proferiu o meu distinctissimo amigo o Sr. João Pinto dos Santos.

Tenho dito.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente: - Vae passar-se á ordem do dia. Os Srs. Deputados que tiverem papeis a mandar para a mesa, podem fazê-lo.

O Sr. André de Freitas: - Mando para a mesa uma representa-lo na Camara Municipal do concelho da Horta, pedindo a isenção de direitos de todo o material necessario para o estabelecimento da illuminação electrica e do abastecimento de aguas naquella cidade.

Peço que se consulte a Camara sobre se permitte que esta representação seja publicada no Diario do Governo.

Mando conjuntamente um projecto de lei, satisfazendo a esta justa pretenção.

Permittiu-se a publicação pedida.

A representação vae por extracto no fim da sessão.

O Sr. Alexandre Sarsfield: - Mando para a mesa um projecto do lei auctorizando o Governo a conceder terrenos a um subsidio, por uma só vez, para a criação do manicomio "Camara Pestana", na ilha da Madeira, erigido por subscripção publica.

Ficou para segunda leitura.

O Sr. Frederico Ramirez: - Apresento o seguinte

Aviso previo

Desejo interrogar o Sr. Ministro da Fazenda sobre a forma como se collectam as fabricas do conservas. = O Deputado, Frederico Ramirez.

Mandou-se expedir.

O Sr. Dias Ferreira: - Mando para a mesa o seguinte

Aviso previo

Desejo interrogar o Sr. Ministro da Fazenda sobre o deferimento que deu á reclamação dos industriaes de tecidos de algodão, do Porto, sobre o embarque de fazendas no vapor S. Thomé, no porto de Leixões, em dezembro ultimo.- Dias Ferreira.

Mandou-se expedir.

O sr. Pinto dos Santos: - Apresento a seguinte

Participação

Mandei para a caixa dos requerimentos uma representacão dos amanneuses das direcções geraes do Ministério do Reino, pedindo que sejam dispensados de pagar contribuição de renda do casas, á semelhança do que se determinou paru os sub-chefes e chefes fiscaes.

Para a acta.

O Sr. Alfredo de Albuquerque: - Mando para a mesa a seguinte

Declaração

Declaro que lancei na caixa de petições um requerimento em que o tenente de cavallaria João de Azevedo Lobo pede lhe seja, concedida uma pensão pelos serviços que prestou em Africa durante a campanha de 1894 a 1895. = Alfredo de Albuquerque.

Para a acta.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do Orçamento Geral do Estado para o exercício do anno de 1902-1903

O Sr. Presidente: - Vae entrar em discussão o capitulo 3.° da lei de receitas e despesas.

O Sr. Fuschini (sobre a ordem): - Vae ler a sua moção de ordem, e sobre ella fazer ligeiras considerações, como a natureza d'esta moção aconselha e indica.

A moção é a seguinte:

"Desejo que o sr. Ministro da Fazenda me responda ás seguintes perguntas:

1.° Qual é o deficit medio real dos annos de 1893-1894 até 1900-1901, nos oito annos da vigencia da lei de 20 de maio de 1893?

2.º Qual é o augmento de encargos da divida externa, por effeito da fixação dos respectivos juros em 1,5 por cento sobre os encargos actuaes resultantes da lei de 20 de maio de 1893?

3.° Qual é a somma annualmente applicada para amortização de 3 por cento externos?

4 ° Que medidas conta o Ministro tomar para garantir a rigorosa execução do convenio, que está sendo proposto aos credores externos, nestas bases financeiras?

Lisboa, 13 de março de 1902.= Augusto Fuschini".

Pela sua natureza se vê que esta moção não carece, neste momento de largas explicações.

Em relação á primeira pergunta, observa a importancia da determinação dos deficits. Estão publicadas todas as contas, pelo menos as de gerencia; alem d'isso, pode fixar-se quasi mathematicamente o deficit especial de cada anno e a media dos oito annos considerados.

Evidentemente, estes elementos teem, no momento presente, uma importancia capital, por isso, sem querer servir-se da sua modesta auctoridade pessoal, recorre a quem hoje tem a direcção suprema dos negocios publicos e pela sua especial competencia gere a pasta da Fazenda.

A discussão do Orçamento é sempre um acto de grande valor nas sessões parlamentares. Alguem disse e muito bom, que no Orçamento de um país está toda a vida publica, economica e financeira do respectivo povo. É uma profunda verdade.

Ora, se este documento e a sua discussão são importantissimos em condições normaes de uma nação, esta importancia attinge singular elevação quando precede um acto tão complexo e delicado, como o projectado acordo com os credores externos.

Não é elle, orador, d'aquelles que dizem que não devemos nem podemos pagar mais.

Nós devemos e queremos pagar tudo a que nos obrigámos para com os credores externos e internos; se o deixámos de fazer foi por circumstancias muito especiaes e não, sobretudo, por falta de honestidade nacional.

Nós poderemos pagar mais, mas para isso é indispensavel que a administração publica siga, pelo menos, do ora, avante, outras normas de cuidado e de economia.

E esta talvez a questão mais importante e vital que envolve a sua quarta pergunta.

Quaes são as medidas que o Ministro da Fazenda deve ter já pensado e vae tomar para collocar o pais em condições de satisfazer com duração e exceder maior juro aos credores externos, como aliás é de justiça, se for economica e financeiramente possivel?

Ninguem mais do que elle, orador, deseja esclarecer-se, esclarecer o país e até os credores, porque entre elles ha homens do Governo, dignissimos e até soffrendo pesados sacrificios, iguaes aos que soffrem os nossos credores externos menos abastados. É condemnavel sempre o chauvinismo, principalmente em questões d'esta natureza.

Defenderá em absoluto a soberania e a liberdade do seu país; mas reconhece que hoje, no seculo xx, a solidariedade humana liga todos os povos pelos immortaes principios do direito e da justiça.

Vae terminar as suas considerações, dizendo que a Camara e o país apreciação o valor das perguntas que diri-

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giu ao sr. Ministro e que S. Exa. responderá, quando entender, porque não são capciosas e nellas se baseiam sagrados interesses da nação.

Observa, apenas, que a resposta do Sr. Ministro deveria preceder a discussão do orçamento do Ministerio da Fazenda, onde estão os encargos da divida externa.

(O discurso será publicado na integra guando o orador o restituir).

O Sr. Ministro da Fazenda (Mattozo Santos). - Respondendo ás perguntas do Sr. Deputado, Conselheiro Augusto Fuschini, direi que não tenho a accrescentar cousa alguma aos documentos que foram distribuidos, completando a parte que diz respeito ao relatorio, onde se acha a resposta á maior parte d´essas perguntas, que S. Exa. acaba de me dirigir.

O Sr. Augusto Fuschini: - S. Exa. diz que estão no relatorio todos os elementos precisos para o estudo e que os que lá estão são os que V. Exa. apresenta?

O Orador: - São os que resultam da escripturação de toda a contabilidade, e em cousa alguma altero esses mappas, feitos nas respectivas repartições, sendo da responsabilidade d´ellas sem que eu me exima á minha responsabilidade.

Pergunta S. Exa.:

1.° Qual é a media real nos annos de 1893-1894 até 1900-1901?

Está dada a resposta.

2.° Qual o augmento de encargos da divida externa por effeitos da fixação dos respectivos juros em 1,5 sobre os encargos actuaes resultantes da lei de 20 de maio da 1893?

É também facil, facilima a resposta. Se em vez de 1,5 forem dois, substituo por N.

3.° Qual é a somma annualmente applicada para a amortização futura dos 3 por cento externos? Não sei que amortização haja actualmente para o 3 por cento externos, porque o 3 por cento são perpetuos.

4.° Que medidas conta tomar para garantir a rigorosa execução do convenio? No meu relatorio veem as propostas necessarias para occorrer ás condições da Fazenda Publica, e não tenho mais nada a apresentar. Mas, se por ventura entender apresentar mais alguma proposta, trá-la-hei á Camara na occasião conveniente.

(O orador não reviu).

Leu-se na mesa a moção.

O Sr. Augusto Fuschini: - Sr. Presidente: V. Exa. quer ter a bondade de ler a inscripção?

O Sr. Presidente: - Está inscripto o Sr. Paulo Barros, sobre a ordem, contra; e tambem V. Exa., que não declarou cousa alguma.

O Sr. Augusto Fuschini: - Naturalmente, sou contra.

O Sr. Paulo de Barros: - Sr. Presidente: ainda bem, e com satisfação o digo, apesar de profundamente ferida a Constituição do Estado por essa avalanche de decretos dictatoriaes, que ha um tempo a esta parte tem coroado, glorificado a grande obra do Governo, e que o tem até notabilisado lá por fora em revistas estrangeiras, e que bill algum de indemnidade o releva da responsabilidade moral de tamanha anarchia constitucional; ainda bem, repito, e com verdadeiro jubilo o digo, pois suppunha já não existir um unico artigo da lei fundamental do país, que para decoro do Parlamento se deixou a esta Camara, o que é acontecimento politico digno de registar-se, a faculdade e a regalia de discutirmos, hoje, um dos principaes diplomas do Governo, como é o Orçamento Geral do Estado. Diploma, Sr. Presidente, que pela sua larga significação não só financeira, mas ainda economica, é digno de toda a nossa attenção, mas principalmente por envolver em toda a sua largueza de vistas o seu programma politico e a sua vida administrativa, que é preciso, urgente, mesmo, discutirem-se nos seus pontos mais importantes, naquelles que se prendam, que se congregam com as mais altas questões sociaes, e que se ligam com problemas verdadeiramente economicos e do mais alto interesse publico.

E demais, Sr. Presidente, quando, ainda ha pouco, na discussão da interpellação sobre as auctorizações parlamentares do eminente tribuno, honra do partido progressista e meu querido amigo, o Sr. José Maria de Alpoim, d'este lado da Camara o Sr. Conselhairo Beirão, com aquelle prestigio, que lhe dá a nobreza do seu caracter, e com aquella auctoridade, filha da sua nobilissima vida parlamentar, em um impeto de indignação, que irrompeu da sua consciencia e do seu amor pelo país, convidou o nobre Presidente do Conselho a dizer-lhe com toda a precisão, com toda a clareza e com toda a verdade, qual o numero de funccionarios que tinham sido nomeados, tão arbitrariamente e tão illegalmente, e qual a importancia a despender, sem se importar com os nomes dos beneficiados, indo nesta pergunta, Sr. Presidente, o sentir do país, que ainda não morreu, que não ,peça ao Governo a responsabilidade dos seus actos (Apoiados); é quando, neste momento, a Camara toda a este convite formal e tão categorico esperava a mais prompta e a mais satisfatoria resposta do Sr. Presidente do Conselho, porque d'este modo o pais inteirava-se da verdade dos factos; é quando o Sr. Hintze Ribeiro na pertinaz recusa de enviar quaesquer documentos, e sem razões que o justifiquem, na frieza do maior laconismo, e como a ultima sentença nos-diz: "Consultem os Srs. Deputados o Orçamento do Estado, que lá encontrarão tudo, tudo quanto desejam".

É claro, comprehendemos todo o alcance da resposta, entrincheirada neste reducto do Orçamento, que será tudo quanto quiserem, menos um diploma sincero, claro e verdadeiro em toda a sua significação. (Apoiados).

Vamos, pois, ao Orçamento, façamos a vontade ao Governo.

Bem sei, Sr. Presidente, que, pela sua complexidade e envolver problemas de primeira importancia, não posso abraçar, abranger todo este conjunto de questões a que a discussão d'este diploma dá logar, e que o estado actual do país reclama perante tamanha crise economica; no entanto eu irei até onde puder, até onde souber, até onde as minhas forças o permittirem e até onde, principalmente, a benevolencia d'esta illustrada Camara m'o consentir.

Devo, desde já, dizer que de todo esse conjunto de medidas inconstitucionaes que foram decretadas desde 14 de junho do anno passado até 31 de dezembro, toda a minha attenção especial, todo o meu estudo, todos ,os meus esforços e todas as minhas ponderações versarão principalmente sobre as medidas de fomento vinicola, na grande, na palpitante questão dos vinhos, aquella que julgo uma verdadeira questão nacional, e que tratei, como pude, mas com verdade e convicção, na ultima sessão legislativa.

Julgando estas medidas de pouco proveito, eu devo na minha, qualidade de representente de uma das mais importantes regiões vinicolas do país insistir sobre a sua melhor solução, porque entendo que taes medidas pouco resolvem e, mesmo, podem aggravar esta tristissima situação.

Antes, porem, Sr. Presidente, de as encarar de frente, de entrar em assumpto de tal magnitude, e sobre o qual eu serei obrigado a fazer algumas considerações, eu devo, como espirito do meu tempo e pertencer a um partido das mais illustres e honrosas tradições liberaes, fezer sentir o meu modo de pensar sobre a orientação politica do Governo, consignando, aqui, tambem, o meu protesto contra este modo de dirigir os negocios publicos. É uma parte politica a que não posso esquivar-me por principio algum, porque eu não comprehendo que nestas assembléas ella se possa legitimamente desligar da parte administrativa, porque é na sua união que reside a verdadeira, a unica e a legitima sciencia governativa. E faço-o, Sr. Presidente, com a maior sinceridade da minha consciencia, e faço-o

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com aquella correcção o cortesia devidas ao Parlamento, ao país, e mesmo ao Governo, sem comtudo faltar aos deveres, que impõe o logar que occupo nesta casa, seguindo o nobilíssimo proceder da minoria progressista, á qual tanto me honro e orgulho do pertencer. (Apoiados).

Estes processos politicos, Sr. Presidente, verdadeiras offensas á Constituição do Estado, que parecem ser parte integrante do programa a politico d'este Governo; a continuação da sua obra do 1893, 1894, 1895, 1900 e 1901, não só desvirtuam, enfraquecem e desacreditam o systema parlamentar, que caracteriza, hoje, todos os povos liberaes, mas ainda, o que é peor, pelo desalento que inspiram na consciencia do país, vão de encontro a esta lei geral de politica moderna, a esta progressão logica e natural, a esta expansão do principio representativo, que se vem desenvolvendo, crescendo e arreigando-se cada vez mais em todos os povos, desde a historia constitucional da Inglaterra, a partir da grande revolução de 1688 até aos nossos dias, onde a sua evolução para o parlamentarismo, delimitando perfeitamente os poderes do Estado, imprimo um perfeito equilibrio entre elles, fundado no temperamento, nas tradições e nas condições historicas de cada povo.

Vozes: - Muito bem.

Esta é que é a verdade, e que ninguem do boa fé me contestará.

Pode ter sido esta marcha politica do Governo, esta dictadura, unica no nosso regime representativo, um bom arranjo, uma bem meditada combinação para os ideaes politicos do Sr. Presidente do Conselho, no momento, nesta crise que atravessa o seu partido, crise que lamento sinceramente, porque estas crises, posto que sejam de um partido, affectam por completo os interesses da vida nacional; e demais eu tenho na mais alta consideração o nobre Presidente do Conselho pelas suas elevadas qualidades, não só pessoas, mas ainda parlamentares; mas fora da esphera d'estas conveniencias partidarias, o que essa dictadura, o que essa politica significa na sua largueza de vistas, o que ella representa no seu destino e perante as palpitantes questões nacionaes, é a quebra de todos os mais sagrados principios liberaes, levando o país á mais completa indifferença pela sua vida politica e até economica. (Apoiados).

O mal do Parlamento, a sua apregoada decadencia, este quasi desfalecimento com que é costume, hoje, considerar a representação nacional, não nascem aqui, não são filhos de sua origem, nem dimanam das instituições que a fundamentam ; a sua decadência, o seu mal-estar, o seu abalado prestigio, o enfraquecimento da sua auctoridade e a quasi indifferença com que se affronta vão mais longe, Sr. Presidente: residem neste abuso do poder, nesta perigosa interferência de attribuições, nesta despotica supremacia do executivo sobro o legislativo, poder absorvente (Apoiados), que tudo desacredita, enfraquecendo o systema, a chegando mesmo a abalar o que hoje temos de mais querido, de maior e de mais levantada homenagem, como são as instituições, erguidas e criadas á custa de tantos e assignalados sacrificios! (Apoiados).

Esta é que tem sido a obra do Governo na sua desorganização moral, politica e constitucional. (Apoiados).

Como disse, eu tributo ao Sr. Presidente do Conselho aquella homenagem, que merece tão illustre parlamentar, significando-lhe, ainda, d'este lugar, as minhas maiores sympathias pessoas; mas como humillimo Deputado da opposição, e como inimigo politico do S. Exa. por crença e por convicção, eu combato energicamente e com calor esta funesta obra do Sr. Hintze Ribeiro, obra que é o mais inglorio marco milliario da politica regeneradora, e que está dando ao país e mesmo ao estrangeiro um tristissimo exemplo de regressão nas nossas instituições politicas (Apoiados), nesta malfadada orientação de uma dictadura escusada e perniciosa, que tudo tom compromettido, Parlamento, instituições, costumes, e até o decoro na vida nacional, nesta caracteritica indifferença que lavra por esse país, e que para os homens, ainda, amantes dos seus destinos, chega a ser um crime de lesa-nacionalidado. (Apoiados).

Eu disse regressão nas nossas instituições politicas, Sr. Presidente, e parece-me que disse bem, como irei demonstrando em face d'esta empenhada campanha em que os politicos mais eminentes da actualidade se esforçam em augmentar o seu prestigio, como vemos dia a dia, em brilhantíssimas discussões nos primeiros Parlamentos; e disse-o com magua, Sr. Presidente, porque curvando-me respeitosamente perante essas instituições, eu vejo nellas o penhor mais seguro da nossa felicidade e a mais forte garantia da nossa independencia (Apoiados)) tendo a coroá-las um Rei liberal, verdadeiramente constitucional, que desejo o do coração e digo, como um dedicado monarchico, que sou, que a politica do meu país robusteça cada vez mais o seu prestigio e a sua força. E não é com dictaduras d'este pequeno alcance, d'esta estreita comprehensão social, como estas que o Governo tem feito, que este desideratum que é o desideratum de todo o português, se alcança e se proclama.

E é quando na França, Sr. Presidente, em fins do seculo XVIII, a Assembléa Constituinte já se tinha revestido do caracter representativo, que tão larga influencia exerceu nos destinos da humanidade; e quando a partir de 1814 este país cedeu á mesma tendencia, fugindo para o parlamentarismo que se enraizou em 1848, e que apesar do regime auctoritario de 1852 tem progredido até hoje, não obstante todas as suas paixões e todos os seus odios politicos, como ainda ha pouco só affirmou nas vivissimas e brilhantissimas discussões da "lei do contrato das associações", que tanto convulsionou aquelle povo; é quando em Portugal, Sr. Presidente, desde as Constituintes de 1820 e as grandes reivindicações parlamentares da revolução de setembro de 1836 até hoje, esta evolução do principio representativo mais se accentua; é quando, ainda ha poucos meses, um país pequeno, a Servia celebra a sua nova constituição, fundada no direito constitucional moderno, fugindo do auctoritarismo da sua carta de 1869, alargando as liberdades da sua lei organica de 1888, para abrir a sua politica ás excellencias de um melhor regime parlamentar; é quando, modernamente, nos países mais arreigadamente monarchicos, e que se julgam ainda derivados de alguma cousa de divino, e que se aureolam por um quasi mysticismo, colhido talvez durante as peregrinações religiosas no deserto da Palestina, como caracteriza a Allemanha moderna e o affirmou solemnemente o seu Imperador na demissão de Ministros e do seu Chanceller, como foi a do Caprivi em 1897 e as de Recke e Bosse em 1899, falando assim, que este poderoso povo não podo viver sem e concurso, sem a acção directa do Parlamento, não obstante o seu poder imperial pousar nas mãos mais energicas (Vozes.-Muito bem, muito bem); é precisamente neste momento, nesta phase da evolução parlamentar, nesta alta comprehensão da politica moderna, como tão eloquentemente affirma o Parlamento Inglês naquelle equilibrio dos dois poderes, que país algum soube ainda imitar, por vezes, ao embate das lutas mais encarniçadas e violentas, que as nossas agitadas sessões parlamentares, nem sequer vislumbram esboçar, como actualmente está dando um frizante exemplo entre imperialistas e liberaes, lutas aquecidas naquelle vulcão da guerra Sul-Africana, sem que o prestigio e a auctoridade da sua Carta sejam deshonrados naquelle pais classico do parlamentarismo; é, como disse, precisamente nesta alliança de poderes, dentro das suas mais legitimas attribuições, dentro da garantia e estabilidade, que, hoje nos offerecem as monarchias constitucionaes, é quando, Sr. Presidente, o Governo, no dia seguinte ao fechar esta casa do Parlamento, de um modo arbitrario, com o maior esquecimento pelo principio representativo, com a maior desconsideração para o

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país, e com o seu pouco respeito pelas instituições, e esquecendo até a sua alta missão governativa, se lança nesta dictadura, que razão alguma de ordem publica reclamava, que razão alguma de interesse patriotico, quer interno, quer internacional impunha, e sobre assumptos, Sr. Presidente, que só uma vasta discussão parlamentar poderia esclarecer, dictar, discutir e legislar. (Apoiados).

E a proposito, Sr. Presidente, vou relembrar um facto politico passado, ha pouco, no Parlamento Allemão, e bem conhecido d'esta illustre Camara, tendo no momento a melhor applicação, e que caracteriza, não obstante a vontade e a energia poderosa do seu Imperador, o respeito pela sua Constituição.

Sua Majestade Imperial, Guilherme II, seduzido, como elle mesmo o confessou e o disse ao seu povo, pelas suas grandes aspirações de grandeza, que recebeu nas suas peregrinações sobre os mares hellenos, nos logares cheios de recordações de Constantinopla e de Jerusalem, naquellas celestes aguas de Bysancio (empregando textualmente as suas palavras), e por sobre aquelles desertos immensos da Palestina, como tão poeticamente elle descreveu, sobressaltou-se, desde logo, em alargar a sua omnipotencia por estes logares santos, aonde, digo eu, em cada pedra se, insculpia uma recordação, e em cada ruina se inscrevia a historia de muitos seculos.

Augmentar o armamento do seu exercito foi, desde logo, a sua preocupação, mas o Imperador e o Governo encontraram na Camara, pelo aggravamento dos impostos a que era necessario recorrer e que este armamento reclamava, a mais viva, a mais aspera e a mais implacavel opposição nos partidos ultramontano e socialista, os quaes, Sr. Presidente, reunidos eram invenciveis perante os partidos governantes, conservador e liberal. Ainda que cada um d'estes partidos, Sr. Presidente, representava idéas differentes, um era como o credo de Deus e outro o credo do povo, duas antitheses nos seus programmas, accordavam-se sempre nas grandes e mais violentas campanhas contra o Imperador; os jesuitas porque tinham sido expulsos do territorio allemão, elles que tinham sido queridos do seu avô Guilherme I, e nos tempos mais recuados sentaram-se no lado do throno de Frederico o Grande, quando os reis philosophos da sua epoca os expulsavam dos seus reinos: e os socialistas porque, intransigentes no seu programma, combatiam todo o augmento no orçamento da guerra por se encontrar, já, muito elevado, esmagar cruelmente todos os recursos do país para a, sustentação de uma paz, que era a maior tyrannia dos tempos modernos, e flagellar as classes operarias, já muito enfraquecidas pelas primeiras convulsões de uma tremenda crise industrial e agraria, que se avizinhava e que hoje sobresalta a Allemanha.

Com a força de que dispunham o Imperador e o Governo naquella organização germanica, que é de ferro, podiam ter dado um golpe nas regalias parlamentares, podiam ter praticado um acto de dictadura, que saberiam manter pelo seu prestigio e pela sua auctoridade, quasi supremas; mas não, Sr. Presidente, o Imperador, sacrificando, talvez, as suas crenças religiosas, sacrificando outros interesses, que no momento julgava de secundaria importancia, abre então as fronteiras do grande imperio ás legiões dos ultramontanos, e estes, que conquistaram assim uma grande importancia politica, votaram com os imperialistas o augmento do orçamento da guerra! E nesta questão, Sr. Presidente, que ficou memoravel nos annaes parlamentares, nesta questão de grandeza nacional, nesta questão de engrandecimento do grande e do bom povo allemão, não se mandou calar o Parlamento, pois foi viva vivissima e apaixonada a discussão, porque fazê-lo, pensá-lo, sonhá-lo, seria uma affronta, uma violencia á suprema da d'aquella instituição. (Vozes: - Muito bem, muito bem).

E assim o Imperador augmentou o seu exercito com mais tres corpos, dois prussianos e um bavaro, engrandecendo ainda com este grande augmento a sua artilharia com mais 127 baterias de campanha, isto é, estas que eram 447 passaram a ser 574.

Será uma habil combinação politica do poder real, fanada nas grandes aspirações de grandeza d'aquelle povo, mas o que não é, é uma dictadura, nem se fez uma violencia, um insulto á Constituição do Estado. (Apoiados}.

A Camara bem o sabe, porque a sua illustração é grande, e eu curvo-me perante a sua auctoridade; mas no eu espirito superior e na sua recta consciencia tem, desde muito, formulado, escrito a sua opposição a estes actos de dictadura do Governo. Louvo a dedicação partidaria da maioria da Camara, comprehendendo talvez o seu dever no modo de ver da politica portuguesa, mas sinto, lamento
constrangimento da sua consciencia levantada e digna. (Apoiados).

Eu comprehendo, Sr. Presidente, porque a historia celebra estas dictaduras, como fecundadoras e grandiosas nos seus beneficios, a dictadura de 1834 de D. Pedro, guiada por Mousinho da Silveira, José da Silva Carvalho e Joaquim Antonio de Aguiar, que se inscreve no caminho das grandes reformas politicas e economicas, e que ainda hoje, Sr. Presidente, estadistas estrangeiros admiram; dictadura veiu, pela sua poderosa estatura, fundamentar, enraizar um novo systema de Governo, filho de uma heroica resolução, que desmoronou essas velhas instituições, que ainda mal se compadeciam nessa época com a sua ruina; dictadura salvadora e abençoada por todos aquelles que viram coroados os seus esforços em favor da causa liberal, porque eram os interesses da patria que a reclamavam.

Comprehendo, Sr. Presidente, a dictadura de 1836 de Passos Manuel, que glorificou na sua grande estatura de politico, o seu alto espirito reformador - e que nasceu na evolução de 9 de setembro, que elle incarnava como um verdadeiro espartano; - dictadura imposta pelas circumstancias, e que, sem ella, a causa liberal teria, certamente, succumbido; - dictadura gloriosa, gerada na alma d'aquelle sublime patriota, que estendeu a sua acção por todos os ramos do serviço publico, causando assombro em toda a Europa. (Vozes: - Muito bem, muito bem).

Comprehendo e exalto esta dictadura, que, aquecida e atentada pela revolução de 1820, reformou a Universidade por decreto de 5 de dezembro de 1836; organizou as Escolas Medicas por decreto de 29 do mesmo mês e anno; a Escola Polytechnica de Lisboa por decreto de 11 de janeiro de 1837, substituindo a antiga Academia Real da Marinha, e destinada a preparar para as carreiras militares, maritimas e da engenheria civil; a Academia Polytechnica do Porto por decreto de 13 de janeiro do mesmo anno, com intuitos industriaes, e que veiu substituir a antiga Academia de Marinha e Commercio; que organizou a Escola do Exercito, os dois Conservatorios de Artes e Officios, a Bibliotheca de Lisboa e as Academias de Bellas Artes de Lisboa e do Porto; dictadura, Sr. Presidente, que ficará sempre memoravel pela grandeza das suas vistas e longo alcance nas paginas da nossa historia politica, remodelando todos os serviços da administração publica, quer pela lei das hypothecas, quer pela lei judiciaria, regulando o direito antigo, quer pela lei das pautas, attestando naquella apoca a nossa independencia, que a Inglaterra não consentia; quer pela publicação do Codigo Administrativo de 31 de dezembro, criando o registo civil para os nascimentos, casamentos e obitos, e ainda, o que hoje me cansa um verdadeiro assombro, estendendo a sua poderosa acção a legislar medidas economicas para as provincias de Angola e de Moçambique, regulando para mais e com uma grande amplitude de acção, a nossa exportação dos vinhos do Porto, por determinações sabias e prudentes. (Vozes: -Muito bem, muito bem).

Comprehendem-se, Sr. Presidente, admiram-se estas, dictaduras, que se podem assemelhar ás celebres dictaduras romanas, que nasceram por sobre as ruinas das revo-

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lições, e se fizeram e se fundaram para salvaguardar os grandes interesses da patria!

Eram dictaduras de guerreiros e de reformadores, e não se podia reformar sem destruir, destruir sem vencer, e vencer sem muitos prodigios de valor o de suprema auctoridade, que dão a invergadura, que se impõe e que faz o dictador, e que os povos relembram com gratidão.

Ojustificam-se, Sr. Presidente, aquellas dictaduras, aquelles actos de força do poder executivo, quando so Parlamentos, na violencia do mais feroz obstruccionismo, paralysam toda a acção parlamentar, tolhe toda a vida governativa e esterilisam todas as vontades e todos os esforços em benmeficio das mais altas questões nacionais, como temos observado, com verddeiro assombro, no parlamento austro-Hungaro, naquella temenda luta de rivalidades de finguas, de odios e de spremacia de nacionalidades, aberta, como uma ferida profunda entre o poderoso elemento germanico, em pleno dia da sua pujança, e o nascente elemento slavo naquella constantde e pertinaz obstrucção dos thecheques; proque não ha Governo algum que possa, assim, administrar, por maior que seja o seu patriotismo, e porque não ha país algum que possa, assim, prosperar aos embates d'estes desastres parlamentares.

O que se não comprehende, porem, Sr. Presidente, o que o Governo, apesar de todos os esforços não poderá justificar, o que a maioria d'esta Camara, apesar de toda a sua illustração e dedicação partidaria, não logrará relevar o Ministerio d'este mau passo impolitico, que não fortaleceu, mas abateu o prestigio do Governo, é esta dictadura, que sem a grandeza e alcance patrioticos das dictaduras de 1834 e 1886, o sem os poderosos motivos do obstruccionismo d'aquelle Parlamento, que lhe travavam a acção, pois nunca se viu Camara mais respeitadora dos poderes constituidos é esta dictadura, feita pelo Governo, sem auctoridade para a fazer (Apoiados), sem exigencia de salvação publica, num sem nada reformar, sem nada organizar, sem nada melhorar, veiu sim, Sr. Presidente, e ingloriamente, affrontar os sentimentos liberaes do país, aggravar a nossa tristissima situação financeira, desorganizar os melhores serviços da administração publica, desacreditar perante o país e perante o estrangeiro a nossa vida politica, e affirmar, finalmente, uma verdadeira espoliação ás faculdades legislativas d'esta Camara, que não pode passar, por dignidade propria e como homenagem à Constituição do Estado, sem o mais vivo, o mais energico o solemne protesto. (Apoiados.)

E aqui o deixo formulado, Sr. Presidente, como português e amante do meu país. (Apoiados).

Ora diga-me V. Exa., Sr. Presidente, ora diga-me a Camara, se ha nada mais extraordinario, mais anormal na vida de um Governo representativo, do que a dictadura de l3 de junho de 1901, que nasceu, irrompeu ao fechar-se o Parlamento, relativa a medidas de fomento vinicola, quando pouco tempo antes, nesta casa, o Sr. Ministro das Obras Publicas tinha apresentado sobre tamanha crise, dois projectos de lei, e de 11 de março e o de 8 de maio do anno passado, que depois foram fundidos em um só, tendo-se, demais a mais, nota a Camara, distribuido até o respectivo parecer da commissão parlamentar, para entrar em breve em discussão?

Projectos de lei, Sr. Presidente, que bem meditados affirmam, por vezes, a hesitação, as duvidas com que fórum. elaborados, e que deixam ver, pelo estudo reflectido do decreto dictatorial de 14 de junho, que alterações profundas se produziram em taes medidas, que largueza de privilegios, e que apulencia de favores e de concessões foram despensados, resultando, mesmo, um completo antagonismo entre algumas das suas disposições, parecendo, por vezes, o decrerto de 14 de junho, conjuntamente com as instrucções regulamentares de 27 de setembro, materia completamente nova, que urgia, pela sua importancia e por tantos intereses, que vae ferir, ser tratada, considerada e discutida pelo Parlamento. Medidas, Sr. Presidente, tão sinceras, tão verdadeiras foram estas, que as vejo, como tantas associações tem representado em completo antagonismo com o referido projecto de lei de 8 de maio do anno passado, e, o que é mais, em flagrante opposição com o respectivo parecer da commissão parlamentar, como aquellas disposições que diziam respeito á restricçâo da plantação da vinha!

É verdadeiramente extraordinario tudo isto; e eu logo, Sr. Presidente, como disso em principio do meu discurso, estudarei, destacarei dessas medicina algumas d'aquellas mais importantes, aquellas que julgo de proveito para minorar esta crise vinicola, que ainda esta no seu auge de intensidade, sobretudo no norte do país, naquella infeliz regulo do Douro, condemnada por esta crise a uma terrivel desgraça, e pelo Governo a um desprezo, que chega a ser um crime. Para lá, Sr. Presidente, pode a Camara acredita-lo, aonde a miseria se levanta, e a fome já transita, não ha decretos dictatoriaes que a salvem, o que ha são decretos fiscaes que a estrangulam e que a matam.

Esta é que é a verdade, e já o anno passado aqui o disse e demonstrei.

A questão não é só vinicola, é tambem commercial e industrial. É necessario encarar de frente todos esses pontos; e eu terei occasião de apresentar á Camara opportunamente um plano de ataque, contra esta crise, que julgo bem meditado e bem pensado, e abranger toda a complexidade da questão, que o Governo não tem querido comprehender, nem estudar.

Por emquanto, neste momento, eu desejaria saber, antes de mais nada, antes de discutir algumas d'essas medidas que se prendem e se ligam com o Orçamento, desejaria saber do Governo, e da Camara, qual a rasão por que estas medidas e tantas outras que teem surgido por entre essas ondas de tamanha dictadura, não vieram á discussão do Parlamento, quando o país, todo o país, Sr. Presidente, esperava dos seus esforços e do seu patriotismo toda a sua cooperação na solução d'estes problemas? Não é uma pergunta politica que faço ao Governo, atacando-o, é um esclarecimento sobre serviços de administração publica, que poço ao Governo para bem dos interesses do país, porque são questões verdadeiramente economicas e verdadeiramente nacionaes. (Apoiados).

E emquanto o Governo me não responde, porque eu bom adivinho qual é a sua resposta, porque bem comprehendo qual é a sua orientação, eu direi:

Bem sei, Sr. Presidente, qual a funcção das Camaras perante o regime parlamentar, como sei que d'essa funcção é que depende o successo do regime representativo, intimamente ligado áquelle pela evolução historica sobre que repousa o poder politico das instituições, e o mudo como se exerce; porque não será preciso, Sr. Presidente, ser demasiadamente versado em direito publico, num muito erudito em questões constitucionaes para bem avaliar, para bem conhecer, não só quaes as responsabilidades do Governo perante o systema representativo, que resulta de uma necessidade moral e juridica, e não de uma necessidade material, filha de um cego individualismo, como se este ou aquelle cidadão fosse o centro de um mundo politico, mas tambem conhecer quaes as responsabilidades da Camara perante esse mesmo Governo o perante o país, que ellas representam; sim, que ellas representam, porque a soberania nacional, Sr. Presidente, não pode nascer, surgir de um golpe de Estado, como foram as ultimas eleições, peor do que os que se fazem pelas bayonetas, mas sim ser o respeito de todos os cidadãos, a salvaguarda de todas as liberdades e o penhor seguro dos mais altos interesses do país. (Apoiados).

Eu bem sei, Sr. Presidente, que esse poder politico nestas instituições, que é a base fundamental de toda esta engrenagem politica, liga-se, prende se a dois orgãos bem distinctos e caracteristicos, trabalhando conjuntamente,

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sempre solidarios na mesma collaboração, e limitando-se perfeitamente um ao outro pela acção reciproca, que elles exercem um sobre outro. Um é o orgão electivo e collectivo, o Parlamento, e o outro é o orgão unitario, o Governo. O Parlamento legisla com o concurso do Governo, e o Governo traduz esse concurso na iniciativa e na participação da discussão d'essas leis; e demais, se o Governo dirige a administração geral do país, o Parlamento no gozo das suas regalias é como o controle permanente sobre os actos do Governo, destinado a garantir que as idéas directoras, que inspiram o Governo correspondam é opinião dominante no Parlamento e no país; porque, Sr. Presidente, neste machinismo parlamentar, que é geralmente o mesmo em todas as democracias e em todas as monarchias constitucionaes, o controle politico do Parlamento repousa sobre este factor essencial: é necessario que o Governo e o Parlamento estejam sempre de acordo na direcção geral da politica e dos grandes problemas de interesse nacional.

Eu bem sei, ainda, Sr. Presidente, porque comprehendo a alta missão do illustre Presidente do Conselho de Ministros, nesta conjuntura da sua vida politica, que o systema parlamentar é impossivel, como impossivel é o systema representativo, quando nas Camaras não haja a maioria, que toma as decisões, não haja a minoria que as discuta e as esclareça, e não hajam aquella sabedoria e aquella moderação, que os interesses da patria exigem e reclamam. (Apoiados).

Mas, porventura, Sr. Presidente, faltou ao Governo esse acordo, esse respeito que impõe o poder politico das instituições?

Faltou essa Camara, como foi a Camara passada?

Faltou essa minoria, que pelo seu respeito pelo prestigio parlamentar, pelo seu alto criterio, pela sua correcção e pela alta comprehensão dos seus deveres, peranto as questões mais vitaes, questões verdadeiramente nacionaes, que mereceram, até, os applausos do país, que obstassem á discussão regular e constitucional de todos esses projectos de lei, tão reclamados pelas necessidades publicas?

Não faltou. (Apoiados).

Qualquer que fosse a falta de cohesão da sua maioria; qualquer que fosse a sua scisão, que não é nova na nossa vida parlamentar, e da qual dão fecundo exemplo os Parlamentos estrangeiros; qualquer que fosse o seu desmembramento, formando o centro da Camara, que ha em quasi todas as Camaras, o Governo tinha, ainda, nella uma segura votação a seu favor, que lhe garantia o bom exito d'estas questões, verdadeiramente nacionaes. (Apoiados). Ella era bastante patriotica, Sr. Presidente, assim o julgo, porque se o não fosse mereceria, então, a mais severa condemnaçãp do país, para pôr do parte quaesquer outras considerações, e tratar somente de uma questão que era palpitante, de grande interesse economico, o que todo o país, sem excepção, reclamava como uma medida urgente e de mais alto interesse publico.

Nunca, Sr. Presidente, veiu mais a proposito relembrar um facto notavel da nossa vida parlamentar de ha 40 annos que causa prazer referi-lo, e traduz bem claramente o espirito levantado d'aquelles homens de raça, aonde se foram alentar as crenças liberaes do partido a que tenho a honra de pertencer. Parece-me sentir neste momento, não obstante aquella distancia e ser outra a orientação do Governo, o calor, o enthusiasmo d'aquellas sessões, nunca esquecidas, que não canso de meditar pela sua nobreza e elevação, e pela boa lição que d'ella ha a tomar para o português, que ainda se interessa pelo bem do seu país.

Acaloradas, violentos, apaixonadas, e por vezes, repassadas de odios politicos, Sr. Presidente, foram aquellas celebres discussões, levantadas no Parlamento Português, e que tanto o enalteceram em 1863, a proposito do projecto de lei sobre a extincção dos vinculos do então Ministro da Fazenda, o Sr. Lobo de Avila, que ainda hoje pelo seu brilhantismo, pela sua viveza e pela sua elevação se relêem com prazer e são ensinamento a imitar nos annaes d'esta Camara. Mas, Sr. Presidente, apesar da rude, da tenaz e, por vezes, tempestuosa opposição que este golpe profundo feriu no coração da aristocracia portuguesa, como a ruina do seu prestigio e a decadencia das suas regalias, e demais a mais em uma epoca, onde a tradição se radicava, ainda, tão fundamente em elementos de subido valor nas duas Camaras, sobretudo na dos Pares, o Governo não recuou um só passo no aprumo da sua auctoridade e do seu prestigio; o Governo não succumbiu perante aquella campanha verdadeiramente grandiosa, porque bem conhecia o seu dever; o Governo sobranceiro a este recontro de paixões e na comprehensão da sua alta missão governativa preferiu, achou mais honroso, achou mais nobre, o rever-se, orgulhoso, naquella pequena maioria, que lhe deu a celebre sessão de 23 de março, fazendo d'aqueles quatorze artigos uma das paginas mais brilhantes do nosso constitucionalismo, do que fechar o Parlamento, que deslustrava o seu espirito liberal, do que esconder-se, fugir nas sombras de uma dictadura (Apoiados), que seria não só uma deshonra, mas ainda um crime para aquelles homens de rija tempera, para aquelles portugueses das mais rijas crenças. (Vozes: - Muito bem, muito bem).

E ainda modernamente, Sr. Presidente, ha Parlamentos, que dão exemplo da nobreza e grandeza da sua missão.

Mais que violentas, Sr. Presidente, chegando naquellas explosões de paixão a ser tumultuosas e aggressivas, foram aquellas celebres discussões levantadas, no anão passado, no Parlamento Francês, no largo periodo de seis meses consecutivos, a proposito da lei de l de julho sobre o contrato da associação, do eminente parlamentar Waldek-Rousseau, que a vinha acariciando, alentando desde 1883, quando Ministro do Interior no Gabinete Jules Ferry, a proposito da lei de Dufaure sobre a liberdade da associação. Violentas, Sr. Presidente, foram aquellas discussões em uma assembléa, por vozes, despotica, como não ha outra que a iguale, e aonde as paixões chegaram a desencadear-se nas mais agitadas e empenhadas lutas, que echoaram no mundo inteiro, e fizeram, até, estremecer, tal era a sua grandeza, aquelle poder de vinte seculos, que ainda, hoje, se encarna com grande auctoridade na veneranda figura de Leão XIII. (Vozes: - Muito bem, muito bem).

Intransigentes, Sr. Presidente, foram aquellas discussões com impeto de verdadeiro furor contra o Governo, como não ha exemplo na historia parlamentar dos tempos modernos, onde do centro e da direita da Camara, que symbolizavam a contra-revolução, se ferira até o insulto, e que corria desde esses reductos até á cadeira presidencial, e que representavam a força de um poder, que a sociedade civil não legitimava em nome das modernas franquias liberaes o em nome dos direitos do Estado; é no entanto, Sr. Presidente, apesar d'este embate de opiniões, apesar d'esta rija campanha, que parecia esmagar o Governo, apesar das ameaças que surgiam de cada lado, aonde a tradição se enraizava, apesar de se degladiarem nesta luta tantas ambições e tantas interesses, pois basta relembrar que em 1900 os bens immobiliarios das congregações religiosas attingiam a riqueza collossal de 1:000 milhões de francos, Waldek-Rousseau, apesar de tudo isto, sobranceiro no meio d'esta tempestade, sempre na brecha em defesa da sua lei, sempre na comprehensão da sua difficil situação, triumphou duas vezes; triumphou, Sr. Presidente, pela sua eloquencia e pela sua tenacidade, alcançando os sufragios de toda a França; e triumphou prestando a mais levantada homenagem á sua Constituição de 1875, porque offendê-la seria uma deshonra, e acobertar se em uma dictadura seria a revolução nas ruas, que o expulsaria das cadeiras do poder. (Apoiados}.

E o Governo, Sr. Presidente, nesta nevose inconstitu-

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cional em que tem vivido, o que tem feito? Qual tem sido a sua obra?

O que p Governo tem feito é fugir á acção do Parlamento, é fugir á apreciação dos seus actos, é fugir á responsabilidade do abuso da sua administração, cuja consequencia tem sido toda esta desorganisação de serviços, que vae por esse país. (apoiados).

Ê verdadeiramente extraordinario tudo isto.

Mas vamos á parte administrativa do meu discurso, que essa é a mais importante, porque se liga e se prende com a grande questão vinicola, e que tratarei ainda nesta occasião por mais de uma vez, porque se conjuga a uma questão de verdadeiro interesse publico, e até nacional.

Se as medidas vinicolas de 14 de junho e 27 de setembro representam um esforço de um largo estudo; se affirmam um louvavel desejo do bem servir o país, porque nas responsabilidades do Governo, eu o confesso, ha tambem aquelle patriotismo que é dado e se não pode negar a todo o português; se traduzam, talvez, a convicção, não de debellar a crise, mas de a minorar, porque o Governo bem comprehende a complexidade do problema, aonde se teem quebrado tantas energias e esmorecido os melhores esforços e a melhor vontade, porque afinal o Sr. Ministro das Obras Publicas alguma cousa fez de util no seu trabalho lento, é verdade, mas sem reclamos, é certo que entre essas medidas, reclamadas por todo o país, e quasi que sairam pela imposição d'esta crise, ha realmente algumas, Sr. Presidente, aproveitaveis que fossem bem estudadas e meditadas por esta Camara.

Mas, Sr. Presidente, não posso occultar o meu descontentamento, a minha opposição leal e franca, quasi a minha profunda magua por esse conjunto de medidas, que representam, como as adegas sociaes, ou uma verdadeira utopia, se não se modificar, quanto antes, parte da sua organização e algumas bases da sua constituição, conforme a região do país aonde se applicarem, ou então, ellas não são mais do que novas companhias privilegiadas, de grandes favores e concessões que, até na sua distribuição geographica e viticola pelo país, affirma, por vezes, um absurdo.

Que representam como as companhias vinicolas, um extraordinario privilegio, sem precedentes na legislação de concessões, collocando o commercio, em geral, em uma situação verdadeiramente excepcional, ferindo por isso profundamente os seus mais caros interesses, como tão eloquentemente protestaram as Associações Commerciaes de Lisboa e Porto, em nome do commercio de vinhos.

Que representam com a protecção dada á "destillação de vinhos", o aniquilamento de uma industria, que é e tem sido no país, e em todos os paises vinicolas, um dos mais poderosos auxiliares da exportação dos vinhos de consumo, tanto tintos como brancos.

Que representam, finalmente, uma desigualdade de protecção, como provarei, para o Douro, deixando que a sua agricultura fique amarrada a um commercio quasi abandonado, som garantia alguma, e demais a mais sem tempero barato para os seus vinhos, que possam concorrer nos mercados estrangeiros, que outro não é lá por fora o tempero empregado.

Se o Governo, Sr. Presidente, nesta momentosa questão dos vinhos, que tem, como já disse, preocupado todos os paises vinicolas, principalmente a partir de 1885 até hoje, nas mais acaloradas e vivas discussões em todos os Parlamentos do mundo, como hoje absorve todas as suas attenções, desde as temperadas regiões do Mediterraneo até ás regiões mais frias, onde vegeta a videira; se o Governo não tem pulso para affrontar esta questão, pois estas medidas não a resolvem, antes a difficultam e a aggravam se o Governo não encontra aquella solução, que concilie, que irmano, que iguale os mesmos interesses, apagando todos ou antagonismos, então, Sr. Presidente, é mais pratico, é mais proveitoso, é mesmo mais patriotica, é mesmo financeiramente mais util para o Estado, e creia que o Norte e o Douro o applaudirá, rasgar esse decreto de 14 de junho, com todas as suas instrucções regulamentares de 27 de setembro, passando uma esponja, que irá humedecer nas lagrimas e nas miserias do Douro, por cima de todas essas medidas; porque então, Sr. Presidente, a crise apesar de temerosa nos seus resultados, desamparada de toda a protecção official, e nesta luta pela existencia, ha de regularizar-se naturalmente, e equilibrar o que estava desequilibrado, fazendo comprehender aos viticultores e ao commercio o caminho que terão a seguir, porque estas grandes crises, Sr. Presidente, como as revoluções sociaes, chegam a ser, por vezes, de largo ensinamento e de larguissimo alcance economico. (Apoiados}.

Esta é que é a verdade, e que eu digo, nesta casa com todo o desassombro.

O sul tem muito vinho, inunda-se de vinho, as adegas trasbordam, e é preciso, forçoso, desavolumá-las, porque é preciso dinheiro, e porque as colheitas approximam-se e não ha vasilhas para as receber; pois bem, levem-se á caldeira esses vinhos, que é o seu destino natural e imposto pelas circumstancias; e, como ha muito vinho, ha muita aguardente, e os seus preços que serão baixos, assim deve ser, mas remuneradores, porque ha varzeas que produzem 10, 12 e 15 pipas por milheiro de pés, e a plantação feita á charrua custa 2, 3 e 4$000 réis, baterão então, fatalmente, nos seus mercados, o alcool industrial, o poderoso inimigo do sul; e o norte, que não pode viver senão com o alcool barato, o consumirá, desde logo, nos seus vinhos de exportação, tanto licorosos como de consumo.

E a primeira consequencia da solução natural da crise, que seria melhor, muito melhor, do que esta solução apresentada pelo Governo e do que criar privilegios, que custam avultadas quantias ao Estado, quando os credores externos reclamam o que se lhes deve, e não ... e quando os impostos de consumo, tão elevados como em país algum, levam a miseria e a fome a muitas familias, que se desfazem por ahi pela tuberculose em cada rua e em cada canto, chorando, tristes, a impotencia dos sanatorios, que a caridade portuguesa levanta com tanta fé; é melhor, muito melhor, do que aniquilar interesses, criados legitimamente á sombra das leis, o que produzirão, fatalmente, por tamanha violencia uma grave perturbação no commercio; é melhor, muito melhor, Sr. Presidente, do que depauperar, aggravar um Orçamento já ruinoso para o país; porque a não formular-se uma solução, uma conciliação, que harmonize e legitime todos os interesses e despedace, por uma vez, esta crise, é então mil vezes preferivel ficar tudo como estava. (Apoiados).

Sou o mais desauctorizado para o dizer, Sr. Presidente; no entanto, eu espero da sabedoria e do patriotismo do meu partido, que esta questão ha de ser um dia melhor considerada e guiada na melhor orientação dos verdadeiros interesses do país.

E já que me abalancei de tratar d'esta questão, d'estas medidas vinicolas, que são hoje a questão mais importante e que mais interessa o país, occupando no Orçamento um logar de consideração pelos grandes encargos que trazem para o Thesouro, pois traduzem avultadas quantias, todos esses favores á todas essas concessões, sem resultado absolutamente algum, e sem nada resolver, eu devo, como filho do norte e da região vinhateira mais afamada, occupar-me nesta sessão de uma d'aquellas medidas que julgo de importancia, e que, pelos seus fins e vantagens, quando bem comprehendidos, pode produzir uma verdadeira revolução na viticultura portuguesa.

Quero referir-me ás Adegas Sociaes; mas taes como foram criadas pelo Sr. Ministro das Obras Publicas, estão muito e muito longe do attingirem o seu verdadeiro e principal fim, como vou provar, estudando a sua organização no estrangeiro neste movimento associativo, que causa um

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verdadeiro assombro, e que tanto contrasta com as disposições do decreto de 14 de junho e das instrucções regulamentares de 27 de setembro do anno passado.

E, com effeito, estudadas e meditadas que sejam as propostas de lei do Sr. Ministro das Obras Publicas, apresentadas a esta casa do Parlamento em 11 de março e 8 de maio do anno passado, e ponderado detidamente, pensadamente o decreto dictatorial de 14 de junho, bem como as instrucções regulamentares de 27 de setembro, que, para mim, valem mais, bem mais, do que o famoso decreto, e, finalmente, considerada em toda a sua largueza e significação a distribuição geographica das 8 adegas sociaes pelas differentes regiões vinicolas do país, feita em 15 de novembro do mesmo anno, chega-se necessaria e fatalmente á conclusão de que as adegas sociaes das medidas de dictadura, que estamos discutindo, tão simples, tão amigas nas suas relações e tão aconchegadas aos viticultores, como ellas o são lá por fora, como em breve vou demonstrar, na sua organização, e com todas as suas vantagens de cooperação, são nestas medidas, um organismo totalmente differente, que, á força de uma larga evolução e transformação porque passaram desde 11 de março até 15 de novembro, isto é, na sua longa gestação de 8 meses, e talvez por entre largas combinações e arranjos, se desnaturaram completamente do seu fim, da sua indole e das suas, vantagens. (Apoiados).

A Camara vae ver o que são essas apregoadas adegas sociaes do Sr. Ministro das Obras Publicas, para debellar a crise vinicola. Não são, Sr. Presidente, essas adegas sociaes propriamente aquellas sympathicas instituições moldadas nessas bellas e bem conhecidas cooperativas, que nasceram por entre os valles do Ahr e do Rheno na modestia da congregação de pequenos viticultores, e que tamanhos beneficios tem produzido; mas sim, são associações de grande amplitude de funccionamento, de larguissimos privilegios, de extensas concessões, quasi ruinosas para o Estado, que juntas ao elevado limite minimo de producção de 1:000 pipas de vinho, limite extraordinario, se tornam em outras tantas poderosas companhias vinicolas, sem o encargo d'aquellas, mas ainda com mais vantagens; porque alem, Sr. Presidente, de levantarem embaraços, difficuldades, ao commercio de vinhos, que ficará completamente esmagado, vem ainda, o que é peor, e por isso as combato energicamente, bater, tornar impossivel a criação da verdadeira adega social, d'aquella que as instrucções regulamentares chamam livre, da adega modesta, d'aquella que mais genuinamente e mais legitimamente representa o principio associativo, que se expande, que cresce e que se desenvolve em grande numero d'estas instituições nas principaes regiões vinicolas da Allemanha, da Italia, da Austria, da Suissa e da França.

Ha nesta original e extraordinaria orientação administrativa do Sr. Ministro das Obras Publicas duas categorias, dois grupos de adegas sociaes em uma organização que não vejo adoptada com tanta generalidade lá por fora. É preciso, é urgente defini-las clara e categoricamente segundo aquella orientação, porque é preciso que o país saiba quanto essas instituições se afastam do que se pratica em todos os países vinicolas; por isso insisto sobre este estudo, porque é uma questão importante de administração publica, e eu quero mostrar que as adegas sociaes do Governo estão muito longe de attingirem o fim a que visam estas magnificas instituições, e que em nada, absolutamente em nada, resolvem a questão vinicola. É uma pura utopia e por isso sem resultado pratico algum.

Temos a adega regional, assim chamada, e que eu chamarei a adega opulenta, a rica adega, a futura, a nova companhia vinicola, revestida de todos os seus privilegios e favores; e a adega livre, a adega modesta, aquella que no mesmo, decreto e nas mesmas instrucções regulamentares foi considerada com menos amor e com menos carinho, aquelle que deveria ser a unica sem o affrontamento da
regional e sem a sua concorrencia, porque esta adega, a livre, é uma pura utopia na condemnavel coexistencia com a adega regional. Como utopia, Sr. Presidente, é essa sonhada federação vinicola, a que se refere o relatorio do Sr. Ministro das Obras Publicas, federação apenas bonita, mas sem effeito pratico no Diario ao Governo, em um país aonde a educação do principio associativo é tão mal comprehendida, sobretudo para a viticultura portuguesa, amarrada ainda, por esse país, ás mais velhas tradições, não sendo por isso facil, de um momento para outro, levá-la á posse de tamanha conquista civilizadora. (Apoiados).

Todo o nosso interesse, todo o nosso esforço, como praticam a Allemanha, a Italia e a Suissa, povos mais adeantados do que nós, sejam pela propaganda da modesta associação vinicola com a pequena adega, sem a concorrencia da grande adega regional, d'aquella adega absorvente, que agora o Sr. Ministro das Obras Publicas inventou, sem imitação em parte alguma, com um luxo de privilegios e de favores (Apoiados); porque a federação do illustre titular das Obres Publicas é uma d'aqueltas phantasias que se desfaz desde logo perante a tradicional desconfiança que o cultivador rural tem para tudo e para todos; e porque finalmente não é pela instrucção espalhada no Diario do Governo que estes beneficios se alcançam, mas sim pela perseverante propaganda de uma larga instrucção agricola, espalhada por toda a parte, por todos os logares, por todas as aldeias, quer pela bibliotheca, quer pelos circulos de instrucção, como faz a Belgica, quer pela cathedra volante, como faz a Italia e outros países, que vão na vanguarda d'estes grandes progressos sociaes.

Nesta desnorteação com que a adega social foi decretada, desviando-se do seu fim principal e unico, que era a cooperação entre pequenos viticultores para a grande regeneração da nossa viticultura, e para accentuar a fama e o conceito dos nossos vinhos, exaltando pelos bons productos a sua qualidade, e levantando a sua venda a preços mais remuneradores, a adega social, governamental, não é a da proposta de lei de 11 de março do Sr. Ministro das Obras Publicas, que essa, apesar de ser uma utopia, pelo modo como estava formulada, era, modificada que fosse, a unica aproveitavel; mas, sim, a adega social, primacial, era aquella que já se vislumbrava no § 2.° do artigo 3.° do decreto de 14 de junho, e que se desdobrava claramente nos capitulos 1.° e 13.°, e nos artigos 1.° e 42.º a 48.° das referidas instrucções regulamentares de 27 de setembro; não obstante o Sr. Ministro das Obras Publicas, como diz no seu relatorio, ter ido buscar a origem d'estas bellas instituições aquellas cooperativas, que nasceram no valle do Ahr e se fundaram pela iniciativa fecunda de grupos de pequenos cultivadores. Mas, Sr. Presidente, essas referencias são menos exactas e estão longe de traduzirem a organização d'aquellas cooperativas allemãs; pois, de modo algum, como vou já demonstrar, nem na sua organização, nem nos seus fins, nem nas suas vantagens e nem na sua distribuição pelas differentes regiões vinicolas, poderiam, ellas, servir de molde ás adegas sociaes, que estamos discutindo.

Combato, portanto, Sr. Presidente, a adega regional do Sr. Ministro das Obras Publicas, que tanto sobrecarrega este Orçamento, que estamos discutindo, sem vantagem absolutamente nenhuma; combato aquella adega, que deve ser riscada d'aquelle decreto, que pela sua feição de companhia privilegiada, ainda que coberta do modesto titulo, que a não representa, pois vão mais longe os seus fins, não pode, nem pelo elevado limite minimo de producção de 1:000 pipas de vinho, nem pela sua regulamentação e organização, sem elasticidade alguma á mais racional applicação nas differentes regiões vinicolas de país, ser similar de tantas outras, que abundam pelo estrangeiro, e que nasceram e se amoldaram nas mesmas aspirações e nos mesmos fins da sociedade de Mayschosz, aonde todas, Sr. Presidente, todas, sem ezcepção, se lus-

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traram nas mesmas fontes de cooperação; porque se o principio associativo d'esta sociedade-mãe e de todas as sociedades allemãs do Alizthul fosse moldado pelas largas disposições d'esta extraordinaria adega, que vimos discutindo, em tamanha amplitude de acção, nesta nova sub-divisão, tem imitação em parte alguma do mundo, é certo que a honradoaldeão Jostou, o seu fundador, não seria, hoje, celebrado, abençoado por todas aquellas cooperativas, que invadem as baixas do Rheno e os seus affluentes e se dilataram por toda a Allemanha, como poderosos instrumentos de riqueza e produzindo verdadeiras revoluções economicas. (Vozes: - Muito bem).

O Sr. Ministro das Obras Publicas bem sabe, como sabe toda a Camara, que muito e muito considero pela sua alta competencia, para que os beneficios d'estas associações se produzam é preciso, é forçoso, que a sua regulamentação seja adequada á região aonde se estabelecem, por differentes não só as condições do meio, de clima, de terreno, e, por isso, de cultura e de qualidade de vinho, mas, ainda, por differentes a quantidade, a natureza e extensão dos seus mercados, que fazem com que o principio associativo, não obstante ser fundamental na sua essencia, tenha de sujeitar-se, dobrar-se ás necessidades da região e á sua vida economica e financeira. E assim, Sr. Presidente, vemos que a adega social de Mausechosz fornece annualmente 1:600 hectolitros de vinho, chegando o seu maximo em alguns annos a attingir l:000 por 300, que compra aos vizinhos da região. E note V. exa. que esta adega é na Allemanha de uma larga elaboração.

No Rheno Medio as suas afamadas cooperativas, moldadas pelas, sociedades do Ahzthal regulam pela mesma producção maxima. Na Allemanha do Sul as suas coopetivas são constituidas debaixo de formas variadissimas conforme as regiões, mas a sua producção annual não vão longe de 400 pipas, sendo a mais prospera a de Heilbronn.

Na Alsacia, ainda na Allemanha do Sul fundaram-se, ha pouco, seis adegas sociaes, differentes na sua organização em cada região ufamada, e ainda ultimamente, em l de janeiro de 1899, se fundou em Colmar a celebro Bolsa dos Vinhos.

Na, Suissa na sociedades vinicolas datam de 1872, moldadas pelas sociedade" do Ahr, de pequenos proprietarios, totnando-se notaveis as sociedades de Valais.

Na Austria-Hungria, apoiadas nas caixas ruraes, são geralmente da mesma natureza das allemães, e é aos pequenos cultivadores, que mais interessam.

Eu conheço, Sr. Presidente, as Cantini Sociali na Italia, e a que se fundou ultimamente em 1882, em grande escala de produção, que invade hoje, espantosamente os mercados da Allemanha e da Austria com os seus vinhos de typo constante, e que tantos e tantos prejuizos tem causado á nossa exportação vinicola. Eu conheço, Sr. Presidente, e toda a Camara conhece, igualmente, essa florescente cooperativa, na França, a de Damery no Marne, resultado feliz de uma vasta empreza socialista, que Lamarre fundou em 1890, vendendo annualmente, só em vinhos espumosos, para mais de 150:000 garrafas; mas, tambem o que todos nós sabemos, é que estas cooperativas foram filhas de circumstancias verdadeiramente extraordinatrias de vida ou de morte para aquellas regiões vinicolus. Na Italia foi um perseverante patriotismo, que nos falta, foi uma urgente necessidade da vida, pelo rompimento das relações commerciaes com a França, que até 1881 cobria o enorme deficit da produrção francesa; e na França foi pela cooligação de 25:000 vinhateiros da Champagne, oppondo se com uma tenacidade, verdadeiramente admirável, aos grandes e poderosos fabricantes de vinhos espumosos, que especulavam com o pequeno proprietario. E que o exploravam tão torpemente. Mas Sr. Presidente, exceptuando estas duas adegas sociaes criadas em circumstancias verdadeiramente excepcionaes, eu não conheço sr. Presidente, dentro das 150, que povoam actualmente a Europa, algumas que leve a sua producção minima, note a Camara a sua producção minima, como uma obrigação para a sua existencia, a 1:000 pipas de vinho, como exigem as medidas do Sr. Ministro das Obras Publicas para a constituição da adega regional.

Mas ha mais Sr. Presidente, e desculpe-me a Camara estar a fatigá-la com um assumpto, talvez, tão arido; porem o assumpto e importante, porque a criação das adegas regionaes, que tanto sacrificio custam ao Estado, vem matar, aniquilar a verdadeira adega, a adega aproveitada pelos pequenos cultivadores, e auctorizar oito largas associações que custam largas quantias ao país, dando logar a futuras e rendosas especulações, que longe de favorecerem a viticultura e de minorar a crise, se tornarão nas regiões vinhateiras em poderosos elementos de oppressão. Eu estudei, Sr. Presidente, os trabalhos de Adrien Berget sobre a Cooperação na Viticultura, meditei o bello livro do illustre professor italiano Mareschali sobro a Cooperação da industria celologica, e de outros que se teem salientado nestas empresas verdadeiramente civilizadoras, ao corrente e ao par com todos estes progressos da viticultura, e vejo, Sr. Presidente, que estas instituições se afastam completamente na sua organização e nos seus fins da adega regional, que estou discutindo, porque é preciso que se diga, e esta observação é importante, é capital, que a sua, organização fundamental, posto que seja a mesma, baseada nos mesmos principias economicos, adapta-se na sua funcção por disposições differentes nas variadissimas regiões vinicolas, aonde se fundam. Assim procedeu o Governo Austro-Hungaro com o seu apoio moral, note a Camara, e não com esta largueza de favores e de concessões, para as suas adegas sociaes, do typo das do valle do Ahr; e assim procederam, egualmente as municipalidades da Allemanha do Sul para as suas bellas cooperativas moldadas pelas do valle do Ahrthal. Quer dizer: nas regiões de pequena propriedade, de producção relativamente fraca em quantidade, mas de grande valor pela qualidade, moldaram se as adegas sociaes pelas sociedades allemães do valle do Ahr, e do Rheno, emquanto que nos países, nas regiões de grande producção, de vinhos menos alcoolicos, iam estatuir-se pelas do valle do Pó, sendo variavel o limite minimo de producção, pequeno para as primeiras e mais largo para as segundas. E assim devia ser, porque estas instituições formando nucleos centraes de producção abrangiam uma pequena ou grande irradiação em relação á sua qualidade e quantidade, pois é um facto observado, hoje em todos os paises vinicolas, que a quantidade do vinho está em geral na razão invertia da sua qualidade, como succede no nosso pais; ou na apertada e estreita região duriense na sua producção media de 280:000 hectolitros de vinhos generosos, muito alcoolicos, de paladar avolludado, de qualidade nobillissima, e afamados em todo o mundo, ou na larga e esplendida bacia o litoral do Tejo com os seus 2.000.000 de hectolitros dos seus vinhos de pasto, communs, ou de consumo directo.

E tanto o Sr. Ministro das Obras Publicas, Sr. Presidente, reconheceu que a adega social do projecto de lei de 11 de março não era aquella associação, aquella cooperativa, que diz buscar a origem e a organização ás adegas sociaes de valle do Ahr, que no decreto de 14 de junho formulou, logo, como um generoso rebate do consciencia e de sciencia, a adega mais modesta, a adega que chamou livro, e que depois as instrucções regulamentares de 27 de setembro esclareceram e determinaram, rectificando e destruindo, assim, a falsa comprehensão da adega d'aquella proposta de lei. E tanto achou exageradissimo o limite minimo de producção annual de 5:000 hectolitros, como uma condição essencial da sua constituição, estabelecida naquella proposta de lei, que no decreto de 14 de junho alterou, desde, logo, esta disposição, para a não modificar

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completamente, como deveria ser, estabelecendo que essa producção minima de 5:000 hectolitros se daria, pelo menos, depois de tres annos de funccionamento; mas este limite, Sr. Presidente, era grande, muito grande, e então o Sr. Ministro das Obras Publicas, nesse mesmo decreto é levado a criar um outro grupo de adegas, cuja producção minima estabeleceu em 1:000 hectolitros, restabelecendo d'este modo, depois d'esta evolução, a adega, que já se vae approximando de tantas outras cooperativas, que se levantam pela Europa.

Tudo isto é extraordinario, como a Camara tem visto e vae ver, em assumpto tão importante, porque o é realmente; e demais a mais declarando o Sr. Ministro das Obras Publicas que é na criação das adegas sociaes, que elle julga encontrar um poderoso meio de combater a crise. Errada orientação do Governo, que não fez senão aggravar cada vez mais a crise, e aggravar em muitas centenas de contos o Thesouro publico. (Apoiados).

Mas pergunto Sr. Presidente, que fazer, que destino a dar áquellas primitivas adegas das propostas de lei de 11 de março, em face do segundo grupo de adegas, criadas pelo decreto de 14 de junho? Como áquellas tinham sido propostas pelo Sr. Ministro das Obras Publicas, e tinham, até, tido parecer favoravel da commissão parlamentar, que as modificou, ainda assim, sensivelmente, e como seria contraditorio apagá-las, risca las d'aquelle decreto, visto na proposta de lei terem sido consideradas como uma das principaes medidas de salvação d'esta crise vinicola, o que se havia de fazer a tanta adega? Como justificar esta innovação, esta complicada e extraordinaria forma de cooperativas até aqui desconhecidas, mesmo nos países mais adeantados? A Camara vae ver e admirar; de um modo muito simples e muito seductor: tornar todo este conjunto de adegas uma verdadeira legião de associações, sustentadas, já se sabe, á custa do Estado, uma federação vinicola, como diz o Sr. Ministro das Obras Publicas, dando ás adegas regionaes o grande papel de adegas-mães, de grandes centros de irradiação, as quaes com as adegas livres formariam uma extensa e apertada rede, que absorveria de modo tão engenhoso todo o vinho do pais, e debellaria por completo esta tremenda crise! Que absurdo de federação é este, Sr. Presidente? como se ella se formasse, se enraizasse em um país, que nem pela sua indole e educação, nem pelos seus costumes e leis a abraçaria, por emquanto, por principio algum, sobretudo emquanto nelle, nas povoações ruraes não estiver perfeitamente comprehendido e radicado todo o alcance da beneficio da cooperação.

A propria Suissa, Sr. Presidente, que nas suas leis, nos seus costumes e na sua organização social dá exemplo de um federalismo bem organizado, bem pensado e bem querido pelas suas tradições historicas, não logrou, ainda, apesar d'isso levá-lo a effeito nas suas adegas sociaes. E Portugal que já por decreto de 30 de setembro de 1890, isto é, ha 12 annos, diligenciou provocar a criação das adegas sociaes por valiosos e importantes subsidios, dados pelo Estado, conseguiu, apenas, uma, a de Vianna do Alemtejo; e demais a mais não possuindo o país, ainda, hoje, a nitida comprehensão d'estes problemas sociaes, que certamente se não estudam no Diario ao Governo, é que deveria, Sr. Presidente, adoptar este systema de federação, absurdo, pelo principio falso, em que se funda, e condemnavel pelos grandes encargos que traz ao nosso depauperado Thesouro. (Apoiados).

E demais a mais, como já disse, esta federação vinicola é uma verdadeira utopia, federação, por isso, que nada resolve, nada, absolutamente nada, no estado actual do nosso regime fiscal e dos nossos convenios pautaes, com os paises estrangeiros. Queremos abertos os mercados estrangeiros, batendo ás portas das chancellarias, que nos favoreçam com as suas pautas protectoras, e ao mesmo tempo fechamos o mercado interno ao consumo do nosso vinho, encarecendo-o com os elevados impostos de consumo! E nestas condições, sem mercados externos, sem mercados internos, é que vamos estabelecer a sonhada federação das adegas sociaes; a adega regional enche-se pela drenagem da adega livre, e esta transborda pela producção do seus associados; e como nenhuma d'ellas só desavoluma, porque não ha mercados, o que é que resultará d'este estado de cousas? que maior, mais temerosa e mais desastrosa será, portanto a crise. (Apoiados). Tudo isto é verdadeiramente extraordinario, alem do absurdo, que representa a concepção de taes medidas.

Um outro ponto, Sr. Presidente, e igualmente importante, e que vem mais uma vez confirmar o quanto a criação d'estas adegas regionaes se desvia do seu fim, é este de que me vou occupar, relativo á sua distribuição geographica pelo país em oito regiões vinicolas, e para o qual eu chamo a attenção d'esta illustre Camara, pois, vae ver e admirar como em assumpto de tamanho melindre e alcance para a conservação e fama dos magnificos typos de vinhos que possuimos pelo país, se fez uma confusão de zonas vinicolas, que chega mesmo a causar lastima.

É um estudo curioso este que vou fazer, e que convém salientar, protestando contra uma tal classificação, que deve ser, quanto antes, riscada do Diario do Governo.

Parece, e não ha duvida, que desde o momento que um dos fins e vantagens principaes d'estas adegas, e que no decreta de 14 de junho se estabeleceram muito claramente, como condição essencial da sua constituição, é a criação de typos definidos de vinhos regionaes de consumo ou de lotação, deve occorrer, desde logo, logicamente e naturalmente, que na sua distribuição por este país, aonde a vinha occupa uma extensissima area, como avassallando, conquistando o territorio português, de norte a sul, desde as terras de alluvião, desde os valles mais fundos até ás mais elevadas encostas, se deveria rigorosamente attender a dois pontos importantes e essenciaes; attender: não só na sua distribuição á melhor, á mais racional classificação das zonas vinicolas do país, regiões bem distinctas, aonde os seus vinhos offerecem o maior parentesco, para assim melhor fabricarmos, aperfeiçoarmos e tornarmos bem conhecida essa grande variedade de typos de vinhos da mais excellente qualidade, que tanto caracteriza e afama esta riquissima e opulenta flora vinicola portuguesa, como faz, lá por fora, a França nos seus conhecidos typos de vinhos regionaes, e com muita vantagem, ainda, a Allemanha do Sul, mas ainda que essa distribuição das adegas se fizesse por todo o país, levando esse beneficio, admittindo a hypothese que estas adegas o produzissem, a todas as regiões vinicolas, a todas sem excepção, aonde a vinha abundasse e prosperasse pelos seus vinhos de variadas qualidades, traduzindo, d'este modo, de mais a mais, essa seductora federação vinicola em um país vinicola.

Seria esta, então, a feliz solução do problema em toda a sua largueza de vistas, a operação complementar ao fim de tantos esforços para a salvação da grande riqueza do país: o vinho.

Pois, Sr. Presidente, não se fez isto, não se fez o que naturalmente estará indicado, chegando a ser de extraordinario ensinamento o que nos diz a este respeito o Diario ao Governo de 16 de novembro, em que vem publicada essa distribuição das oito adegas regionaes nas oito regiões vinicolas, attendendo-se em algumas d'ellas, na sua classificação, mais ás divisões administrativas do país, que para a questão do que se trata nada significam, do que ás condições do meio, de qualidade, de producção e de fama de productos, genuinamente regionaes; chegando-se mesmo a privar d'essas adegas uma região vinicola, importante, do país, a transmontana, como logo demonstrarei, isolando-a completamente d'estes beneficios em um esquecimento, que nem mesmo ao Sr. Ministro das Obras Publicas será facil explicar, a não ser um proposito de desconsideração e de despreso por aquella formosa região.

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E, com effeito, vejamos como o Sr. Ministro das Obras Publicas constituiu essa distribuição e emprehendeu essas

São 8 essas regiões vinicolas, assim chamadas:

1.ª Entre Douro e Minho, abrangendo os districtos do Porto, Braga e Vianna do Castello, excluindo o concelho de Villa Nova de Gaia;

2.ª Duriense, comprehendendo uma parte importante do valle do Douro, entre Barqueiros e a Barca de Alva, em uma extensão approximada de 110 kilometros, limitada á direita por uma estreita faixa, formada por parte dos districtos de Villa Real e de Bragança, e á esquerda por uma pequena parte dos districtos de Viseu e da Guarda;

3.ª Entre Douro e Liz, abrangendo os districtos de Aveiro e Coimbra no seu centro, e limitada de um lado pelo concelho de Villa Nova de Gaia, e do outro por alguns concelhos do districto de Leiria;

4.ª Beira, abrangendo parte dos districtos de Viseu e da Guarda, que não entraram na região duriense, e todo o districto do Castello Branco;

5.ª Torreana, abrangendo todos os demais concelhos do districto de Leiria, que não entraram na região Entre Douro e Liz, e uma parte importante do districto de Lisboa;

6.ª Ríbatejana, abrangendo o districto de Santarem;

7.ª Alemtejana, abrangendo os districtos de Portalegre, Evora e Beja; e, finalmente, a ultima:

8. Alga^rbiense, abrangendo o districto de Faro.

Soa estas resumidamente expostas as 8 regiões vinicolas, aonde se distribuiram as 8 adegas regionaes das medidas do Sr. Ministro das Obras Publicas.

Por esta classificação toda territorial, e não rigorosamente vinicola, se vê, desde logo, consequencia de tal orientação, que na l.ª região Entre Douro e Minho, por subordinação, talvez, áquella divisão, ficou de fora o concelho de Villa Nova de Gaia, quando a natureza geologica do seu terreno é muito semelhante á dos concelhos dos districtos de Braga e de Vianna do Castello e ser, ainda, esta mesma zona vinhateira pelo seu modo de cultivo o qualidade do producto, perfeitamente igual á região vinicola dos chamados vinhos verdes do Minho, bem determinada pela sua acidez, muito pronunciada, e que se distinguem á prova por uma agulha, que tão distinctamente os caracteriza.

E neste modo de classificação, Sr. Presidente, que está em completa opposição com as classificações feitas e verdadeiramente classicas de auctorizados escriptores agricolas como foram João Ignacio Ferreira Lapa, Visconde de Villa Maior e Antonio Augusto de Aguiar, e, modernamente, com as classificações feitas pelo Sr. Cincinato da Costa, commetteu-se esto erro, passando aquella região vinicola de Villa Nova de Gaia para a 3.ª região de Entre Douro e Liz, collocando-a, confundindo-a, entre os vinhos dos districtos de Aveiro, Coimbra e Leiria, aonde são pouquissimos os vinhos verdes, que se produzem, predominando, principalmente, nesta região ou vinhos tintos o brancos de apreciavel valor e de muita estimação; sobresaindo os vinhos da Bairrada, de fama conhecida, assemelhando-se até pela sua cultura de vinha baixa, feita em extensos campos, ás vinhas do Ribatejo, ao sul do país.

Mesmo territorialmente o concelho de Villa Nova de Gaia deveria ter finado incluido naquella 1.ª região vinicola, abrangendo, assim, integralmente o territorio, que fórum a provincia do Minho, e o primeiro districto da antiga provincia do Douro.

Um erro capital de classificação que, certamente, o Sr. Ministro das Obras Publicas fará emendar quanto antes.

Esta promiscuidade de typos de vinhos, esta fusão de regiões vinicolas, bem distinctos entre si, resalta nesta classificação, que não vejo modo de as poder bem justificar; quasi que se não acredita como tudo isto foi feito.

Ora, ouça-me a Camara e tenha paciencia para me ouvir.

Vozes: - Fale, fale.

O Orador: - Por exemplo: na 3.ª região vinicola, chamada entre Douro e Liz, ha uma como penetração de zonas vinicolas caracteristicas, como a da Bairrada, do districto de Aveiro para o districto de Coimbra, uma como faixa vinhateira de transição entro um a outro districto, que mais racional e mais vinicolamente seria tê-las separado, delimitado nas suas justas proporções, accentuando não só a genuinidade dos seus vinhos, mas tambem garantindo aquella autonomia de qualidade de producto, que lhes dá valor, acredita e enriquece a região.

E não é de somenos importancia esta especial região vinicola, Sr. Presidente, a da Bairrada, pois, alem de uma producção media animal de 70:000 hectolitros do vinhos ou approximadamente 14:000 pipas do vinho, e em successiva progressão de augmento, pois a Bairrada acha-se em perfeita phase de reconstituição, depois da invasão de phylloxera, é de mais a mais a qualidade dos seus vinhos, muito encorpados, alcoolicos e taninosos e de aptidões especiaes para vinhos espumosos, de uma alta cotação no mercado, muito e muito differentes dos vinhos tintos e brancos, ainda que bons, d'aquella extensa faixa litoral dos districtos de Aveiro e de Coimbra, cuja producção media annual regula por 40:000 pipas de vinho.

E tanto é assim, Sr. Presidente, que já em 1866, quando Ministro o Sr. Andrade Corvo, o sabio professor Sr. Aguiar, em commissão de estudo dos processos de vinificação do país, salientava perfeitamente esta região vinicola da Bairrada, delimitando-a o separando-a das outras pelo apreço dos seus vinhos.

E, no entanto, nestas medidas que venho discutindo, só impulsionado por esclarecer estas questões que julgo dignas d'este Parlamento, está esta importantissima região vinicola incorporada, tão impropriamente na 3.ª região Entre Douro e Liz, de mistura com os vinhos verdes de Villa Nova de Gaia, quando deveria formar uma região vinicola autonoma. (Apoiados).

O Sr. Presidente: - Decorreu a hora regimental. V. Exa. tem mais um quarto de hora para concluir o seu discurso.

O Orador: - Agradeço a V. Exa. a advertencia que acaba de fazer-me; o sinto ter tão pouco tempo para tratar de questão tão importante, e que tanto se prende á nossa riqueza vinicola, tão desprezada pelo Governo.

Mas ha mais, Sr. Presidente. Assim como esta região da Bairrada, ha outras mais, que nesta infeliz classificação se misturam, só confundem e se fusionam, que é mesmo de protestar em nome da legitimidade o conhecido renome dos seus vinhos.

Na 4.ª região, Beira, vemos indistinctamente envolvida no mesmo grupo de zonas vinicolas dos districtos de Viseu, da Guarda e de Castello Branco, a afamada região do Dão ao sul do districto de Viseu, na Beira Alta, comprehendida entre as margens do rio Dão e as do rio Mondego, e abrangendo parte dos concelhos do Carregal do Sal, Tondella, Viseu, Penalva do Castello, Mangualde e todo o concelho de Nellas, que é o centro d'esta magnifica região vinhateira; região nobillissima pela fina qualidade dos seus vinhos, que chegam a semelhar-se pela sua côr, paladar e aroma a muitos dos typos dos afamados vinhos de Borgonha, chegando a sua producção mediu annual a see de 16:000 pipas de vinho. Vinhos, estes, que differem, tambem muito bons, do typo dos vinhos da Beira Alta, caracterizados como esplendidos vinhos de pasto, sobretudo ou brancos, que se tornam espumosos, muito semelhantes aos vinhos franceses da Champagne. E no entanto, Sr. Presidente, no mesmo erro de classificação, quasi parecendo que obedeceu a um determinado arranjo, lá estão mistu-

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radas na mesma região vinicola, regiões, como as do Dão, completamente differentes e caracteristicas.

Mas esta belleza de classificação não fica ainda por aqui. Do mesmo modo e no mesmo pensamento, que presidiu a esta classificação, vemos a 5.ª região, a Torreana, que abrange parte do districto de Leiria e de Lisboa, e a 6.ª, a Ribatejana, que comprehendo o districto de Santarem, confundindo-se, misturando-se, indistinctamente, no desprezo e esquecimento de regiões vinicolas bem caracterizadas. Ha uma parte importante, a principal, Sr. Presidente, dos districtos de Lisboa, de Leiria e de Santarem, a bacia e litoral do Tejo, que comprehende, hoje, a mais vasta região vinhateira do país, a primeira na sua producção de 2.000:000 de hectolitros de vinho, ou sejam 400:000 pipas, que pela natureza geologica do seu terreno e qualidade similar dos seus vinhos, devia formar, ella só, uma bem determinada região vinicola. E nesta região, Sr. Presidente, e é interessante fazer nesta casa esta referencia, que existe, e com verdadeiro assombro o digo, e até com orgulho de português, a maior vinha do mundo (!), no Poceirão, do Sr. José Maria dos Santos, bem conhecido neste país pela sua larga e poderosa iniciativa, e extraordinaria coragem, a quem eu chamarei o rei da vinha, naquelles 3:000 hectares de vinhedo, de mais de 7.000:000 de pés, e na sua producção actual de perto de 20:000 pipas de vinho, ameaçando-nos d'aqui a 3 ou 4 annos com uma verdadeira inundação de 30:000 ou 40:000 pipas, um rio de vinho, que nos affogará! E é a maior vinha do mundo, não ha duvida, pode a Camara acreditá-lo, que bem o sabe; maior do que as maiores da Europa, e maior do que o celebrado vinhedo de Stanford, na California, que as ultimas revistas d'aquelle país, aonde tudo é grande e assombroso, consideram como uma villa colossal; e no entanto esta occupa uma superficie de 1:500 hectares, a metade da vinha do Poceirão! E maior, ainda, do que o vinhedo de Astino mesmo país, da colonia italo-suissa, cuja producção annual não vae alem de 3:000 pipas de vinho, que são lançadas em uma gigante cisterna, feita de pedra e cimento!

É esta região, a chamada bacia e moral do Tejo, aonde está incluida esta espantosa vinha, que se destaca perfeitamente do conjunto da Estremadura, abrangendo centros vinhateiros dos mais importantes, como Torres Vedras, Santarem, Thomar, Alcobaça, Obidos, Azambuja, Arruda, Alemquer, Alpiarça, Almeirim, Cartaxo, Salva-terra, Collares, Bucellas, Azeitão, termo de Lisboa e outros, que até se assemelham, Sr. Presidente, estas zonas vinhateiras, pela natureza geologica dos seus terrenos, formados no norte e oeste de largos tractos de jurassico medio, de jurassico superior, de terreno cretaceo e de formações basalticas, conjuntamente com as feracissimas campinas de alluvião.

E, apesar d'este parentesco de regiões vinicolas, d'esta mesma independencia de feição cultural, que as distingue pela sua especial physionomia da Estremadura, são nesta classificação tão mal tratadas, que vemos até o districto de Santarem formando, elle só, uma região vinicola. (Vozes: - Muito bem, muito bem). E, ainda sobre esta discussão das regiões vinicolas, que venho fazendo, referirei uma grande omissão, que apresenta esta classificação, deixando-se de considerar uma região vinhateira de valor, e que representa na nossa riqueza vinicola uma producção e 170:000 hectolitros de vinho, ou sejam nada menos de 35:000 pipas.

É espantoso este esquecimento! E melhor é julgar d'este modo esta omissão, do que suppor um proposito de desprezar região tão importante, que merecia, se assim fosse, o mais severo protesto e indignação.

Quero referir-me, Sr. Presidente, áquella riquissima região vinhateira, transmontana, formada pela maior parte do districto de Villa Real e de Bragança, comprehendendo nada menos de 16 concelhos, rendo 9 d'aquelle e 7 d'este districto, e limitada a oeste e ao sul pela l.ª e 2.ª regiões vinicolas, e ao norte, que bem conheço esta região, pela fronteira, que separa Portugal da Hespanha.

Não obstante, Sr. Presidente, produzir esta região vinhos de variados typos e finas qualidades, como são os de Valle Passos, da Ribeira d'0urá, de Murça e das margens de Sabor, muito alcoolicos e encorpados, e de exportação, e muitos outros, como os de Bragança, que se salientam como genuinos e apreciaveis vinhos de mesa, foi esta região votada ao mais completo ostracismo, não merecendo a consideração de ser contemplada com uma adega regional; e, no entanto, a 8.ª região, a algarbiense, que produz menos vinho, approximadamente a metade, pois não excede a 18:000 pipas, e de uma população vinicola muito mais pequena, pois, segundo as melhores estatisticas, pode considerar-se essa população para a região transmontana, de 160:000, e para a algarbiense, de 95:000, não foi esquecida pelo Sr. Ministro das Obras Publicas. E como remate d'este estudo das regiões vinicolas do país, é este facto que deixo apontado verdadeiramente extraordinario e que affirma eloquentemente o cuidado e a consciencia com que esta classificação foi feita. (Apoiados).

Sinto estar a hora tão adeantada, Sr. Presidente, porque ainda tinha muito que dizer, muito que considerar sobre alguns pontos da organização d'estas instituições, que chegam, por vezes, a ser um absurdo, pelo modo como foram regulamentadas e pelos grandes favores e concessões que lhes concedem. Emquanto, como já disse em principio d'esta discussão, o numero das adegas sociaes espalhadas pela Europa não vae alem de 150 a 160, sendo 100 nos paises da lingua allemã e apenas metade nas outras, segundo as magnificas informações de Adrien Berget, em Portugal, pelas disposições do decreto de 14 de junho e das instrucções regulamentares de 27 de setembro, alem das 8 adegas regionaes, podem as adegas livres ir pelo menos, note a Camara, até ao numero de 256, isto é, tantas quantos os concelhos do continente do reino, protegidas pelo Governo e cheias de favores e concessões, que custarão certamente, como é facil de avaliar, centenas de contas ao Thesouro. É extraordinario.

Mas ha mais, Sr. Presidente, e quasi se não acredita, se não estivesse escrito, decretado no Diario do Governo. Pelo artigo 42.° das referidas instrucções regulamentares são as adegas livres, e muito bem pensado, exclusivamente organizadas por associações de viticultores, legalmente constituidas, como devem ser, fundadas no grande principio da cooperação e obrigarem-se ás condições que o Estado lhes impõe pelas concessões que lhes offerece; más o que é espantoso, Sr. Presidente, é que pelo § 6.º do artigo 43.° das mesmas instrucções essas adegas livres, destinadas principalmente a produzir typos definidos de vinhos regionaes, acreditando a sua fama e o seu renome, podem ser formadas por individuos "não viticultores", note a Camara, "não viticultores", sendo por aquella disposição, provisoriamente assim, considerados os individuos que se obriguem a sê-lo realmente, dentro do prazo de um anno, contado da data da declaração.

Muito mais alem poderia ir, mas a hora está a terminar. Torna-se, portanto, urgente para se encarar esta questão á sua devida altura, que o Sr. Ministro das Obras Publicas estude uma melhor organização das adegas sociaes, e limite, quanto antes, o numero das adegas livres, providenciando com aquella moderação e ponderação que as circumstancias do Thesouro exigem. E se para estas adegas, organizadas exclusivamente por associações legalmente constituidas ha este luxo de concessões e favores, é facil de avaliar até onde irão estes privilegios para as adejas regionaes e o papel que ellas representam na federação do Sr. Ministro das Obras Publicas.

E por esta discussão sobre a organização, constituição e distribuição das adegas regionaes pelas 8 regiões vinicolas do país, mais me convenço Sr. Presidente, que a adega regional na sua phantasiosa federação vinicola, é um po-

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deroso centro de especulação e de negocio, em toda a significação d'esta palavra, e longe, muito longe de realizar o pensamento economico e cooperativo das afamadas adegas dos valles do Ahr e do Rheno. Senhora de extensas regiões vinhateiras, onde só misturam e se fusionam os mais variados typos de vinhos; coberta de privilegios - farta da concessões -, isenta de qualquer contribuição geral ou municipal, durante 10 annos; possuidora de terrenos o do edificios para as suas installações; fechando os seus cofres nos direitos pautaes durante os 5 primeiros annos para a importação de todo o seu material vinario, de destillação e de machinismos; com faculdade de requisitar do Governo laboratorios cenologicos dos mais aperfeiçoados, como projectos de edificações e pessoal habilitado, tudo, Sr. Presidente, á custa do Estado, e outros muitos favores, que seria longo enumerar, tal é a adega social regional do Sr. Ministro das Obras Publicas. Por consequencia, e não ha que duvidar, o fim principal d'aquellas adegas regionaes não é fundado no principio associativo, mas sim destinado a um fim puramente especulativo (Apoiados); e defendermos, por isso, Sr. Presidente, esta associação, é tornarmo-nos cumplices de um grande erro economico e financeiro (Apoiados).

É por isso que as tenho combatido, que as combato aqui e as hei de combater em toda a parte.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

(O orador foi muito cumprimentado).

Foi lida na mesa a seguinte

Moção de ordem

A Camara, considerando que o Orçamento Geral do Estado não é um documento sincero, claro e verdadeiro em toda a sua significação, como deveria ser, traduzindo com toda a lealdade e franqueza a vida economica e financeira do país;

Considerando que o Governo, durante a sua gerencia dos negocios publicos, se tem preoccupado mais com os interesses do seu partido do que com os interesses e engrandecimento do país, como lhe cumpria na comprehensão da sua alta missão governativa, dando, por isso, logar, consequencia de tal proceder, a factos verdadeiramente anormaes no nosso regime parlamentar;

Considerando, finalmente, que na discussão de tal diploma se deve principalmente accentuar, para inteiro conhecimento do país, a inconstitucionalidade da vida governativa, passa á ordem do dia. - O Deputado, Paulo de Barros.

Foi admittida.

O Sr. Guilherme de Santa Rita: - Sr. Presidente: Nunca, em nenhuma das vezes em que na passada sessão o legislatura tive a honra do fazer ouvir a minha palavra nesta casa, nunca me achei, como hoje, vergando ao peso de tão desencontrados sentimentos. É que então, e principalmente da primeira vez, embora pesassem sobre num as difficuldades de uma estreia parlamentar (difficuldades aggravadas por circumstancias... que não vem ao caso) tentou a minha voz fundamentar um projecto de lei que não estava na ordem do dia, e que, embora tão de perto roçasse pelas arestas da questão social, exactamente por esse facto dizia-me a consciencia, affirmava-me o conhecimento do meio (e quando digo - do meio - não me refiro ao meio parlamentar que, se hoje mal conheço, então ignorava o que fosse; mas ao meio em que vivemos) exactamente por esse facto, dizia-me a consciencia que das minhas palavras pouca ou nenhuma utilidade pratica eu conseguiria tirar.

Hoje não é assim. Hoje discuto um assumpto que está na ordem do dia; hoje respondo a um membro illustre da minoria d'esta cana, a um distinctissimo engenheiro, o Sr. Pedro de Barros, a cujo bello caracter faço inteira justiça e a cujos altos dotes intellectuaes rendo o preito da minha admiração; hoje discuto o Orçamento Geral do Estado, e tal é a minha confiança no Governo, que ouso dizer, profundamente convencido, que em vez de considerar este assumpto sob um ponto de vista restricto de politica partidaria, hei de pelo contrario, procurar discuti-lo num ambito mais largo, porque considero o orçamento geral de um Estado como uma questão essencialmente nacional. (Apoiados).

Razões de sobejo tenho, pois, para mo sentir vergado ao peso do responsabilidades arduas... arduas para quem, como eu, dispõe de uma palavra tão modesta, do tão limitados recursos. E só a lembrança da fidalga generosidade que a Camara teve para commigo na passada sessão, é que me poderá alentar no cumprimento do meu dever.

Sr. Presidente: pesam-me no espirito, subjugam no quasi, por um lado, a consciencia da falta de prestigio politico, a carencia de auctoridade parlamentar para abordar assumpto tão melindroso e espinhoso como é este, por outro lado, a voz intima que me brada que não desfalleça, que não succumba, que não desanime, porque acima do quaesquer convenções, que o partidarismo imponha, ha, existe no coração e no espirito de todos os que teem logar nesta casa, de todos, sem excepção de um só, alguma cousa de grande, de alto, de transcendente, onde se crava com amor vehementissimo o olhar de cada um de nós - a patria, esta linda, esta formosa terra de Portugal! (Vozes: - Muito bem, muito bem).

O Sr. Francisco Beirão: - V. Exa. dá-me licença? Sr. Presidente: peço que se cumpra o regimento. Uma discussão tão importante, como esta é do Orçamento do Estado, não deve realizar-se sem estar representado o Governo.

(Apoiados da esquerda. Sussurro).

O Orador: - Mas está presente o Sr. Relator Geral.

Vozes da esquerda: - Mas não está presente o Sr. Ministro.

(Entra na sala o Sr. Ministro da Fazenda).

Vozes da esquerda: - Agora sim.

O Orador: - Havia eu acabado de dizer que tinha falta de auctoridade parlamentar para discutir o Orçamento, mas quer a sorte que eu responda ao illustre Deputado o Sr. Paulo de Barros, que eu contraponha aos seus os meus argumentos, que eu, estabelecidas permissas novas, procure attingur novas conclusões. Assim farei. Pode talvez acontecer que, dada uma nova ordem de idéas - com a qual ouso dizer S. Exa. concordará - permissas e conclusões nella se contenham; e assim, tendo nós partido de caminhos differentes na forma que não no fundo, S. Exa. e eu nos possamos encontrar; e S. Exa. então ha de entoar o Poenitet. Tambem me servirão algumas considerações que eu faça de fundamentação da these que pretendo desenvolver, isto é, que o Orçamento Geral do Estado, sendo o reflexo nitido da situação moral, intellectual, economica e financeira de um povo, num determinado momento da sua historia, não é, não pode ser apenas uma questão politica, porque é uma questão essencialmente nacional.

Mas só escudado pela benevolencia da Camara conseguirei chegar á demonstração da these que me proponho, e tambem á contraposição de argumentos aos do meu illustre oppositor, argumente", em volta dos quaes se desenrolou a sua formosa oração, u que foram tres, os seguintes: primeiro - que os processos politicos do Governo enfraqueciam o systema constitucional, ao mesmo tempo que o abuso do poder determinava a decadencia do Parlamento; segundo - que o Governo, não respeitando ou poderes constituidos, se lançou na dictadura, dictadura sem alcance, sem razão do ser, e que S. Exa. não comprehende nem admitte a menos que a dictadura tenha por objectivo reformas urgentes e profundas, como todas as que foram feitas por Mousinho de Silveira, silva Carvalho e

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Passos Manuel; terceiro (e desculpe-me S. Exa. a sinceridade com que falo), tratando larga e proficientemente da crise vinicola, em seus varios aspectos, S. Exa. pretendeu ligar essa questão com o Orçamento, mas não o conseguiu, e se m'o permitte não entrarei nesse assumpto, já porque é o Orçamento Geral do Estado que se discute, já porque a crise vinicola faz parte de propostas que, a seu tempo, aqui serão dadas para ordem do dia. (Apoiados}.

O Sr. Paulo de Barros: - Ainda ha pouco, em França, tratando-se do orçamento do Ministerio da Justiça, um Deputado notavel tratou das mais importantes questões d'aquelle país, sem se referir no Orçamento que estava em discussão.

Sr. Presidente: disse ha pouco que o Orçamento Geral do Estado era o mais nitido reflexo da situação moral, intellectual, economica e financeira de um povo num determinado momento da sua historia. Assim é, com efFeito. Estão no Orçamento inscriptas e descriptas as verbas a despender, dentro de um certo exercicio, em todos os ramos da publica administração. Desde as verbas destinadas ao culto de uma religião, que foi a dos nossos paes e que é a dos nossos filhos; desde as verbas a gastar com a manutenção do exercito que representa a integridade do solo patrio, a sua defesa, a independencia altiva e honesta de um país; desde as verbas consagradas ao desenvolvimento da instrucção publica que é a base, o esteio de toda a sociedade livre e culta - abençoada verba que faz lembrar pela sua reprodução os paes abençoados pelo Christo - (Vozes: - Muito bem) até ás verbas applicadas ao sacerdocio augusto da justiça, até ás que são despendidas no desenvolvimento das forças materiaes do país, do seu commercio, da sua agricultura, da sua industria ... todas essas verbas se encontram no Orçamento, todas ellas ali se enfileiram, e todas ellas na sua mudez arithmetica falam, ou devem falar, com esmagadora eloquencia. (Vozes: - Muito bem). É ver o Orçamento, meditar, e a situação de um povo deve surgir ao espirito por forma nitida, por forma clara, evidente.

Fecha este Orçamento com um deficit calculado em 800 e tantos contos de réis. A opposição, pela voz dos seus oradores, tem affirmado por mais de uma vez, que o deficit não pode apenas circumscrever se a essa importancia, porque as reformas levadas a effeito pelos diversos Ministerios devem trazer novas despesas que o hão de avolumar.

Respondo: o Orçamento é apenas um calculo, é apenas uma previsão; e ninguem, nem o Governo pode affirmar que o deficit seja excedido. O futuro é que o ha de dizer. (Apoiados).

Mas com deficits fecham os orçamentos das nações maiores, mais cultas e mais ricas da velha Europa liberal. Com deficits fecham os orçamentos da Allemanha, da França e da Inglaterra. E o mesmo acontece com as nações mais pequenas, como a Hollanda, a Dinamarca e a Suissa.

Na Suissa, tão frequentemente citada como modelo de administração, na Suissa, formoso pais encravado entre montanhas toucadas de neve, sempre eu julguei que o monstro do deficit, com medo d'essas montanhas, ali não penetrasse. Pois o seu Orçamento relativo a este asno accusa o deficit de 1.124.121 francos.

Na Allemanha, neste anno de 1902, o Orçamento mostra um deficit de 1.212.463.200 marcos. Na França, contando com os encargos da sua enorme divida publica, o deficit é de 1.245.644.464 francos e na Inglaterra no anno de 1900 teve o seu Orçamento Geral um deficit de 13 milhões de libras; e nos ultimos annos, devido á guerra da Africa Austral, se não fossem os emprestimos contrahidos no país, e que o patriotismo extraordinario d'esse povo em poucas horas tem coberto, enormes seriam os desequilibrios orçamentaes.

Sr. Presidente: ouvi dizer aos meus illustres collegas da maioria os Srs. Dr. Manuel Fratel e Anselmo Vieira, que os deficits representam a necessidadade constante que teem os Estados de desenvolver as suas riquezas, as suas forças materiaes.

É isso, sem duvida; mas é talvez mais do que isso: representam a incidencia de uma força estranha, que destroe ainda as mais bem feitas previsões - complicado phenomeno que parece zombar das intelligencias mais argutas e dos esforços mais patrioticos. Como se chama? Que nome tem?

- Simplesmente: o Progresso. Sim, é a lei do Progresso que incide tanto nos individuos como nas nações; que impelle nações e individuos á conquista de um ideal de perfectibilidade, inatingivel sempre! É o Progresso, que mais celere que o proprio pensamento, arranca nações e individuos do seu estado de atonia e os leva, bom grado, mau grado á luta da concorrencia no vasto campo da actividade humana. E o Progresso que nos orçamentos geraes dos Estados, zombando dos calculos friamente architectados pelos estadistas no remanso dos seus gabinetes de trabalho, é elle que modifica as verbas, alterando-as, augmentando-as, orçando constantemente necessidades novas, emprehendimentos novos; e mal se convertem na real applicação, muito antes ainda que estejam sasonados os seus fructos, é o Progresso, sempre elle que nesses orçamentos surge - eterna sombra que é o espectro do eterno deficit!

Depois eis ali as appetecidas cadeiras do poder!

Depois a voz em grita das opposições contra os homens que se sentam naquellas cadeiras, porque... receberam a acção d'essa lei, a incidencia d'essa força suprema! Porque se viram coagidos a reformar serviços ... porque não pararam, numa palavra... como se o movimento não fosse a lei eterna que dirige a criação inteira! (Apoiados).

Dá-se entre nós o mesmo que se dá em todos os estados da Europa culta. Reflecte o Orçamento d'elles, como reflecte o nosso, o constante labutar espiritual dos seus homens de estado na luta cruenta, e quanta vez ingloria, de achar o equilibrio entre as receitas e as despesas.

Lá fora são mil invenções que trazem encargos novos, lá fora são complicações de ordem politica, internacionaes ou nacionaes, que obrigam a novos despendios; é agora a propria natureza physica que invade, que destroe, que anniquila e que é mister estudar e vencer, é logo até o proprio pensamento humano que se desregra, que se antepõe as correntes do progresso e que é mister subjugar! Cá dentro o mesmo. Cá dentro foi essa mesma força que impelliu o Governo a criar o hospital colonial, a Casa de Correcção do Porto, a reformar a instrucção superior e a Academia de Bellas Artes... emfim toda a sua obra que tão util e prestimosa tem sido! (Apoiados).

Uma differença grande se dá, porem, entre nós e as nações da culta Europa. É que lá fora, mercê das brilhantes conquistas do seculo findo, as sociedades humanas, tendem á alta comprehensão da lei superior que as rege; porque as sociedades humanas são organismos vivos com a sua particular physiologia e com a sua complicada psychologia. E a lei que as rege, a lei que põe em movimento as suas molleculas e os seus atomos, que os attrae e que os repelle, é a mesma, exactamente a mesma, que incide tanto no infinitamente pequeno como no infinitamente grande, tanto no microrganismo só visivel ao microscopio, como no astro que o telescopio descobre! (Apoiados). Tendem lá fora as sociedades humanas á apprehensão de um grau superior de perfectibilidade, e arrastadas pela corrente do progresso amoldam-se ás leis dos seus estadistas, só por esse facto quanta vez facilitando o seu trabalho, que é sempre ingrato e rude.

Principios definidos, orientação accentuada, um objectivo firme ... e que exemplos de civismo essas nações manifestam!

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Sr. Presidente: não lia muito tempo ainda que, nesta Camara, na discussão da lei do sêllo, nos dizia, na sua palavra elegantissima, o illustre parlamentar Sr. Dr. João Pinto Rodrigues dos Santos, que era frequento em Inglaterra o cidadão collectado em menos do que devia, ser o proprio que ia accusar-se á repartirão competente para que o Estado d'elle cobrasse aquillo a que tinha direito.

Talvez, Sr. Presidente, nesta momento haja em Inglaterra uma corrente adversa á guerra que, vae para 3 annos, esse poderoso país traz accendida na Africa Austral.

Mas se é pela gloria da Inglaterra; mas se é pela honra da sua bandeira; mas se é pelo engrandecimento da patria!...

E nos Ministros, que a essa luta, talvez sem precedentes na historia humana, sacrificaram tudo: socego do espirito, a tranquillidade do lar, quem sabe, talvez, até a propria alma, nesses Ministros a opinião publica inglesa, embora adversa á luta, não deixará de reconhecer uns grandes cidadãos ingleses! (Apoiados}.

Anonteceu isto assim lá fora... se fosse entre nós...

Lá fora, disse eu ha pouco, e disse-o mau grado meu, divagando... mau grado meu é expressão que devo retirar.

Porventura, não estou eu falando no seio da assembléa mais distincta e illustrada do meu país? Porventura, não serão bem cabidas, aqui, estas considerações tendentes á demonstração da these que me propus?

Repetirei, pois, lá fora tendem as sociedades humanas á apprehensão de um grau superior de perfectibilidade... tenderam durante todo o seculo findo... durante todo o secado findo que foi grande; mas, bem maior do que elle será o seculo actual. Foi grande o seculo XIX na sciencia, na arte, na litteratura; mas litteratura, mas arte, mas scieucia, quando obedeceram á exclusiva orientação de philosophia materialista, de uma philosophia que fazia renascer o conhecido lemma do nihil est in intellectu quod priss noa sit in sensu; de uma philosophia que proclamava o exclusivo predominio da materia sobre o espirito - que para ella espirito é materia - de uma philosophia que negava a existencia da alma, porque em face do cadaver no theatro anatomico nunca pudera apprehender-lhe a séde quando arte, sciencia e litteratura seguiram n'esta vereda, a humanidade arrojou-se loucamente, cegamente, doidamente á posse das riquezas materiaes, á conquista dos bons da terra - nações como individuos - nações opprimindo nações, individuos escravizando individuos! (Vozes: - Muito bem).

E, sem duvida, por forma brilhantemente accentuada, as sociedades humanas, no decorrer do seculo XIX, tenderam á alta comprehensão da lei que as rege... mas não o conseguiram, mercê do tal criterio philosophico... e não o conseguirão, talvez, emquanto, sujeitas á lei da evolução, não descreverem aquelle circulo... orbita, no dizer do florentino Vico - o celebre philosopho italiano do seculo XVII --- orbito que muito se assemelha á que descrevem os epyciclos dos astros na esphera celeste, epyciclos que, dando-nos a illusão de um retrocesso, são pelo contrario a imagem de um constante progredimento!

Se, pois, Sr. Presidente, o orçamento geral das receitas o despesas de um Estado é o reflexo da sua situação historica, num dado momento; se, pois, incidem nessas verbas forças determinadas pela lei fundamental do progresso; se, não cabe no poder humano attingir na previsão de um determinado deficit a exactidão mathematica, que a caprichosa lei destroe, zombando dos impulsos mais patrioticos e do esforço intellectual melhor orientado - como circumscrever, no acanhado ambito d'uma questão politica, o que é essencialmente nacional e direi mais - o que comparte dos attributos de uma lei cuja força impera no Universo?! (Apoiados). Assim, não defendo o Governo, que não carece de defesa... louvo-o pela manifestação d'esse impulso patriotico e pela accentuação brilhante d'esse esforço intellectual, que o Orçamento revelia! (Apoiados).

Sr. Presidente: vae adeantada a hora, e não desejo deixar sem resposta dois argumentos do meu illustre oppositor.

Sem duvida, a nossa vida financeira está longe de se achar desafogada. Não o disse, que, se o fizesse, perderia o meu tempo, porque os numeros falam com eloquencia, e a nossa situação financeira é, infelizmente, bem conhecida lá fora. O que disse e repito é que o Governo, que se senta naquellas cadeiras, está animado a bem servir a causa publica. (Apoiados). Fechando a Camara, o Governo entregou-se devotamente á reforma de serviços. E diz S. Exa. que não comprehende essa dictadura sem alcance, porque a admittir dictaduras só applaude as que se pareçam com a que foi feita por Passos Manuel - isto é: dictaduras cujo objectivo seja o de reformas nos varios ramos da administração publica. Mas, diga-me S. Exa.: o Governo fechando a Camara o que devia fazer? Politica? -no sentido mesquinho da palavra e contra o que tanto se revolta o Sr. Deputado João Pinto dos Santos? Não, sem duvida. Ao Governo cumpria fazer administração, e foi isso o que elle fez! (Apoiados). Devia ter feito reformas e não dictadura, disse S. Exa. E eu respondo-lhe: Pois para fazer reformas é que fez dictadura. (Apoiados).

Fechada a Camara, o Governo encarou de frente o magno problema que é fundamental á existencia de um povo livre: o da instrucção publica. Que fez o Sr. Ministro do Reino?

Sabia o illustre Ministro que num país que conta 5.500:000 habitantes ha 4.000:000 analphabetos - facto que infelizmente ninguem desconhece - e, embora com sacrificio, pretendeu ir ao encontro de situação tão anomala, reformando a instrucção publica. Poderá alguém, com boa fé, censurá-lo? (Apoiados).

Mas eu tenho ouvido aqui fazer as mais negras prophecias por causa das verbas em que importam as reformas de instrucção levadas a cabo pelo Sr. Ministro do Reino. A quanto leva a paixão politica! Já aqui se disse que do Orçamento deviam ser riscadas as verbas gastas com a arte nacional!

Pois a arte não será um dos mais importantes factores da cultura intellectual de um povo ? Pois não serão as verbas empregadas na instrucção publica umas das que mais avolumam os orçamentos de todos os estados do mundo civilizado? (Apoiados).

Gasta a Allemanha com a sua instrucção publica e bellas artes 114.996:168 marcos; a França, 221.867:723 francos; a Inglaterra, só no Reino Unido, 12.000:000 de libras

E os paises mais pequenos, como a Hollanda, que gasta 27.206:878 florins, como a Suissa que só com a sua Escola Polytechnica despende 1.010:710 francos e a Belgica que no seu Orçamento faz representar a instrucção pela quantia de 30.783:149 francos.

Perguntou ainda S. Exa. o illustre Deputado, Sr. Paulo de Barros porque razão o Governo, tendo elaborado as reformas de serviço, pelas varias pastas, não trouxe depois de abertas as Camaras esses diplomas á discussão do Parlamento? Ora com franquesa: S. Exa., por acaso, acredita que se o Governo assim houvesse procedido, teria lucrado a causa publica? Mas S. Exa., se não estou em erro, accusou o parlamentarismo de estorvar as iniciativas do poder; disse ha pouco que muito tem contribuido os erros do systema parlamentar para a decadencia politica da actualidade. Ora basta que alguma verdade apenas traduzam essas palavras de S. Exa. para se reconhecer o alto criterio com que o Governo andou levando á pratica essas medidas, e dias depois de serem ellas convertidas em leis, desassombradamente, com a consciencia de haver bem servido o seu país, tendo-se apresentado

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aqui á sua discussão franca e aberta - discussão, que por signal foi bem longa, (Apoiados) E eu disse que basta que alguma verdade apenas tenha a apreciação que S. Exa. faz do parlamentarismo entre nós. Explano a minha idéa: quereria S. Exa. que o Governo, elaborados os diplomas das reformas, aqui as apresentasse á discussão - aqui, num Parlamento, constituido de meridionaes, apaixonados pela palavra? Mas essa discussão não tinha acabado hoje ainda! Mas ameaçaria prolongar-se ao infinito! E as reformas eram urgicas ou não eram; se o eram não ficariam sobremaneira prejudicadas com o precioso tempo consumido em jogos floraes de palavras? (Muitos apoiados).

É esse o nosso temperamento que, digam o que disserem, não é mau, porque se o enthusiasmo e a paixão são as suas principaes caracteristicas, abençoado enthusiasmo e abençoada paixão que descobriram mares nunca do antes navegados e terras que enriqueceram o mundo, e tiveram para sublimar taes feitos a lyra de Camões! (Apoiados}.

Foram, sem duvida, entre os factores de ordem cosmica em primeiro logar a nossa posição geographica, de nação situada á beira do Oceano - do Oceano que falava de mysterios, do Oceano que as lendas denominavam tenebroso - e em secundo logar o nosso temperamento audaz, valente, heroico, apaixonado que impelliram os marinheiros do seculo XVI ao descobrimento de mares e terras que constituem a nossa epica epopeia, o nosso mais alto brasão e titulo de immorredoura gloria! (Vozes: - Muito bem).

Mas é esse mesmo temperamento - que a paixão politica tanta vez consegue desorientar - que nesta casa, na discussão serena do assumptos, por sua natureza praticos, pode tornar-se nocivo, protelando discussões, eternizando-as sem vantagem - caso que teria acontecido se o Governo houvesse seguido o caminho a que o illustre Deputado se referiu. (Apoiados).

E julgo haver-lhe respondido - que á ultima parte do seu discurso, sem duvida uma erudita prelecção sobre a crise vinicola-me dispenso de retorquir, já porque não importa essa complexa questão assumpto que directamente se prenda com é que está dado para ordem do dia, já porque me reservo, caso elle seja apresentado á discussão nesta Camara, para, então, emittir idéas e trocar pensamentos. Julgo haver respondido ao meu illustre oppositor, e permitta ainda S. Exa. que apesar das prophecias que fez, envoltas em tanta sombra, sobre o nosso futuro, eu procure accentuar a minha crença optimista, cujo melhor fundamento é a confiança que me inspira o Governo, que me inspiram aquelles homens, que ali se sentam naquellas cadeiras (Apoiados), todos elles animados do desejo de bem servir o país, todos elles devotados á causa publica, ao estudo da nossa situação economica e financeira, todos - que não careço de os especializar - todos, ainda sob o peso dos maiores sacrificios de paz, de tranquillidade de espirito, até da propria saude, como aconteceu ao Sr. Ministro das Obras Publicas, o engenheiro distincto que as circunstancias levaram á gerencia da pasta mais complexa, como é a sua, onde convergem todas as questões concernentes ás nossas riquezas materiaes, ao desenvolvimento das forças vivas do país: agricultura, commercio e industria, caminhos de ferro, postas, telegraphos, instituições de previdencia, etc. (Apoiados}.

Não carece S. Exa. do meu elogio; mas eu é que não me dispenso de lh'o fazer, porque se a gerencia de uma tal pasta é sempre melindrosa, nas circumstancias actuaes sobem de ponto esses melindres, quando se impunha ao Ministro, cuja saude estava tão fortemente abalada, a reforma do pessoal de engenharia, levada a cabo por S. Exa. e por S. Exa. aqui defendida! (Apoiados).

Usar do poder é sempre tarefa espinhosa; mas usar d'elle de forma que, á deposição da pasta, o Ministro, inquirindo a propria consciencia - esse juiz inflexivel que é a melhor imagem de Deus - inquirindo-a, ou no bulicio do dia ou no silencio da noite, ou no momento de alegre despreoccupação ou no instante em que a dor physica e moral faz estremecer a creatura - a consciencia tranquillamente lhe responda - Foste justo... procedeste bem... usar, assim, do poder é caso que se impõe ao respeito e superior admiração de todos os homens honestos!

Disse eu, e é bem verdade: muito confio na acção de um Governo tão patrioticamente devotado á solução das questões economicas e financeiras que trazem tão preoccupado o espirito publico; de um Governo que, assistido e presidido por quem devotado ao culto superior da arte, na sua mais bella forma que é a palavra, se entre nós, se torna inimitavel pela correcção e elevação da sua phrase, seria grande em qualquer Parlamento do mundo, por quem reune a estes naturaes predicados uma devoção civica inexcedivel, um entranhado amor ao seu país... (Muitos apoiados), muito confio, repito, na acção de um Governo assim constituido, porque elle fundamenta a minha crença em melhores dias n'um proximo futuro.

Sr. Presidente: eu não queria terminar esta minha pobre oração, sem envidar esforços para que no sombrio quadro das nossas finanças, desenhado pelo illustre Deputado Sr. Paulo de Barros, se projectasse um traço de luz... da luz que antevejo no futuro para que vamos, apesar de tantas e negras prophecias, que tenho ouvido aqui fazer. Ninguem negará que é assás complicada a situação financeira do presente; mas tambem ninguem se esqueça de que, procedendo-se a um balanço dos nossos recursos, se o passivo é grande, o activo é bem maior.

Figuram, em primeiro logar, no activo cerca de 9 milhões de superficie territorial no continente. E logo no passivo, infelizmente, cerca de 4 milhões de terreno por cultivar!

Figura no activo uma população de 5 1/2 milhões de habitantes; e logo, por desgraça, no passivo, pelo menos, 4 milhões de analphabetos! Temos no activo uma receita de 55.000:000$000 réis, mas temos no passivo dividas que sommadas todas - a interna, a externa, a fluctuante, todos os encargos com o Banco de Portagal, etc. - ascendem, num arredondamento de cifras, a 700.000:000$000 réis!

Temos ainda no passivo o desequilibrio da nossa balança commercial que só no anno findo orçou por réis 28.000:000$000. Pois bem: comecemos pela terra.

Arranquemos do passivo esses 4 milhões de chão inculto e engrossemos com elles o activo; desenvolvamos a instrucção de modo que passem para o activo esses 4 milhões de analphabetos! (Apoiados).

Mas o que possuimos nós ainda mais? Muito! Temos no activo uma parodia que nem se pode avaliar em contos de réis. São 2:126 milhões de kilomtros quadrados das nossas possessões ultramarinas em Africa! (Apoiados).

São 8 milhões de indigenas que lá existem! (Apoiados}.

O que fazer destes vastos territorios que são portugueses e portugueses eternamente devem ser? (Muitos apoiados).

Trabalhar nelles, agriculturá-los, porque elles são o futuro de Portugal! (Apoiados} de Portugal que perderia a sua existencia autonoma, a sua independencia, se uma vez perdesse os seus vastos dominios no ultramar! (Apoiados}.

Mas ha ainda mais alguma cousa que não tem valor, que se possa computar em contos de réis: é o caracter do povo português (Apoiados) ... povo, cousa diversa da multidão, o povo que trabalha, que soffre, que se sujeita a todos os sacrificios, e que a tudo antepõe o desejo de ver o seu país progredir e impor-se ao respeito e consideração das nações estrangeiras. (Apoiados}.

Ora, a melhor synthese que ha d'esse povo, é o soldado

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português - esse rapaz inculto, que a lei do recrutamento vão buscar aos campos e aos filhos dos humildes. É o soldado português que, uma vez de posse de uma espingarda ou lança, mandado para inhospitas regiões a combater o gentio rebelde, porque jurou bandeiras, porque jurou fidelidade ao seu Rei e a sua Patria, commette prodigios, acções do heroismo tal, que fariam inveja aos heroes de Homero! (Vozes: - Muito bem).

Não é no espirito que tem impressa a noção da nacionalidade, é no coração.

No farrapo de panno, que vê tremular, por entre a fumaceira dos combates, elle reconheçe a imagem do seu lar, a sua choupana, a fonte, a arvore, o rio, os seus irmãos pequenos, a sua noiva promettida... a terra da sua patria, numa palavra! (Vozes: - Muito bem).

E combate e commette prodigios, e quando morre, soltando o grito do gladiador romano- Ave Cesar, moritur te salutant!- morre tranquillo, com a consciencia de ter cumprido um dever... mas quando vence, mas quando volta, - e nós assistimos a esse espectaculo unico em 1895- cansado, amarello, olhar ardente e febril, e quando milhares do vozes o acclamam, elle sereno... impassivel marcha, sereno, impassivel, como o dever cumprido! (Vozes : - Muito bem).

Ora este é o caracter do povo, este é o traço de luz... da luz que aclara a situação do presente, e que a todos nós deve dar confiança no futuro.

Sr. Presidente: vou terminar. Antes, porem, como remato do que hei dito, e razão de uns projectos de lei, que vou mandar para a mesa, permita-me V. Exa. e a Camara que, a largo traço, conte uma historia veridica, não ha muito tempo, commigo succedida.

Sr. Presidente: eu tive a honra de ser amigo de um homem, ha pouco extincto, que foi aqui, no Parlamento Português, proclamado benemerito da patria; de um homem que passou grande parte da sua existencia sob o sol dos tropicos, na provincia de Angola, batendo-se por vezes com o gentio rebelde, estudando sempre, com o enthusiasmo de um verdadeiro patriota, aquella nossa bella possessão, e nella toda a bacia do formoso Quanza. - Victor Cordon.

Uma voz, conversando com elle no seu escriptorio sobre a nossa situação financeira e economica, e, com o calor transmittido pela convicção, dizia-lhe eu que os nossos Governos não podiam seguir, na hora alta do progresso em que se encontra a sciencia de governar os Estados, a rotina exclusiva do recurso ao credito e do recurso ao imposto; porque a fonte do emprestimo se estancara em 1892 e porque o imposto, repuxado em demasia, perdera todas as condições de elasticidade, dentro, é claro, da nassa actual e entesada organização economica. Dizia-lhe ainda que, só alcançados processos novos, e entre elles e como primeiros, todos os que tendessem ao desenvolvimento da mais solida origem da riqueza, que é a terra- é que se tornaria possivel, em prazo curto, a reconstituição financeira de Portugal. Victor Cordon, que me ouvia impressionado, contou-me o seguinte facto, por estas palavras pouco mais ou menos:

"Achava me um dia, pela tarde curta dos tropicos, ceu vermelho, ar quente- sentado sobre um monticulo de onde a vista a perder-se, abrangia o Valle do Quanza. Dominava a febre o meu organismo, e numa indizivel tristeza o meu pensamento voava á metropole distante, onde deixára os affectos mais caros á minh´alma. A vista alongava-se por esse valle em fora... por esse valle todo elle coberto de algodoeiros em flor que a aragem de leve agitava. Que uberrimo valle! E pensei: quantas fortunas aqui por conquistar! Quantas riquezas a fazer aqui por milhares de cidadãos que, na metropole, solicitam angustiosamente empregos de 600 réis por dia! Tanta fera-cidade nestes terrenos, que irrompe em tanta abundancia aqui... e lá, no continente, tanta fome... tanta miseria... tanto lar sem pão... tanta criança a esmolar pelas ruas de uma capital civilizada"!

Sr. Presidente: e elle, o bravo militar, e elle, cujos olhos catavam antes habituados ao fumo dos combates do que aos impulsos do sentimentalimo... elle tinha lagrimas nos olhos! (Vozes:- Muito bem).

Animado por essas palavras contei a Victor Cordon que tinha esboçado no meu espirito um plano economico e financeiro, cuja base era o do aproveitamento d'esses uberrimos terrenos.

Disse-lhe que esse plano era o objecto de um opusculo com que eu pretendera responder a uns artigos publicados em 1897 no Commercio do Porto, escritos pelo Sr. Conselheiro Julio de Vilhena, quando este illustre estadista affirmava nesses artigos, que para dominar a situação do puís só um caminho havia: arrancar da terra os elementos de riqueza. Descrevi a Cordon esse plano, em suas linhas geraes, e elle com enthusiasmo abraçou-me.

Sr. Presidente: dei a esse plano a forma que devem ter os diplomas apresentados nesta casa. Dividi-o em quatro projectos de lei, cuja leitura e fundamentação não faço, porque nem tenho tempo, e julgo desnecessarias; nem eu os poderia fundamentar melhor, falando, do que o fiz escrevendo.

Foi em harmonia com a promessa por mim feita ao illustre africanista que apresento este trabalho á consideração da Camara. Disse a Victor Cordon que, se alguma vez as circumstancias mo trouxessem a este logar, em projectos de lei circumscreveria esse plano. Dei-lhe a minha palavra. Cordon - lembro-me bem - como se um sombrio pressentimento lhe invadisse o espirito, respondeu-me: a oxalá eu tenha vida até esse dia".

O meu pobre amigo morreu, já fez um anno; e eu pretendo desempenhar-me do compromisso tomado enviando para a mesa esse trabalho.

Terminando, pois, um pedido, dirijo a V. Exa., Sr. Presidente, a toda a Camara, e a todos quantos me derem a honra de o ler:

Que não seja esquecida a maxima com que o celebre philosopho inglês Herbert Spencer abre a sua formidavel obra: "Em todas as cousas falsas ha um fundo de verdade como em todas as cousas más ha um fundo de bondade".

Tenho dito.

Vozes:- Muito bem.

(O orador foi muito cumprimentado pelos membros do Governo que estavam presentes, pelos Deputados da maioria e pelo maior numero dos da minoria).

Os projectos de lei a que se refere este discurso são os seguintes:

N.º l

Senhores. - O desenvolvimento das possessões portuguesas no ultramar só poderá converter-se numa realidade, quando, como ponto inicial para o estudo das riquesas, que em si guardam, seja possivel a organização do cadastro das suas áreas. De longe vem esta idéa, e um ultimo diploma official a ella se refere e o preceitua. Mas como são muitos e de diversa natureza os obices que, até hoje, hão travado, neste ponto, a acção governativa; mas como são vastissimos esses dominios, tão longe collocados da metropole, em tão distanciadas latitudes; mas sendo tão dispendioso esse trabalho, e para elle tão minguados os recursos - não foi possivel ainda ás estações officiaes dizer precisamente ao país quantos são os milhões de hectares de territorio sobre que, no ultramar, se exerce, sem contestação, a soberania da Coroa Portuguesa.

Afigura-se á razão esclarecida que o ponto basico de uma legislação adaptavel a regiões de diversos climas o de differentes raças seria esse:- o de se conhecer o numero de kilometros quadrados de cada uma das provincias ultramarinas e seus exactos limites; e tão natural se im-

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SESSÃO N.º 34 DE 13 DE MARÇO DE 1902 23

põe ao espirito esta idéa, que é ella correntemente levada á pratica por todo aquelle que, na metropole, por qualquer forma do direito, se encontra proprietario de um dominio rustico. Avaliada a sua area e estudada a qualidade dos terrenos é que se procede ao emprego da mais remuneradora cultura. Mas o que faz o proprietario, em escala minima, não o tem podido até hoje fazer o Estado com os vastos territorios descobertos em tres partes do mundo pelos nossos ousados navegadores e consolidados pela espada dos nossos inclytos guerreiros; e não o poderá fazer, que a empresa vae muito alem das forças monetarias do Thesouro, solicitadas sempre, com indeclinavel urgencia, nos diversos campos da publica administração.

É quasi prolixidade, se não logar commum banal, o affirmar-se que a existencia autonoma e honesta do pais será garantida pela posse, incontestada, dos seus dominios ultramarinos, e tambem que, do seu maximo desenvolvimento, sob o aspecto commercial, industrial e agricola, é, que provirão receitas, que vigorizem o depauperado Thesouro, e com ellas toda a riqueza publica.

Sem o intuito de dar primazia a qualquer das nossas possessões, porque todas ellas, desde a que olha o Oceano Atlantico ás que fitam o Oceano Indico e o Pacifico occultam inestimaveis riquezas e podem, no futuro, tornar se emporios opulentissimos de commercio, é, todavia, incontestavel que a provincia de Angola, pela sua relativa proximidade da metropole, pela sua posição geographica, exerce, com todas as vantagens de ordem material, uma verdadeira hegemonia politica no ultramar. Se uma vez uma estrella adversa permittisse que de Portugal ultramarino fossem desmembradas as possessões que demoram na Asia, na Oceania e ainda mesmo aquella que se alonga ao oriente da costa africana, embora fosse profundo o abalo, o país não deixaria de conservar a sua independencia. Mas se uma tal calamidade tivesse como ponto de incidencia a provincia de Angola, certamente as consequencias seriam assas funestas.

Admittido, pois, este principio, occorre naturalmente ao espirito que o conhecimento preciso da área territorial d'essa provincia -conhecimento detalhado que abranja o estudo da sua geologia, da sua fauna e flora - se deverá tornar o ponto de partida de uma nova legislação. Mas o levantamento de uma planta cadastral em territorios, que medem centenas de leguas quadradas, tornar-se-ha irrealizavel sonho em prazo relativamente curto, uma vez que, a começar na falta de recursos monetarios e a findar em obstaculos de varias categorias, sobem de ponto e se justapõem difficuldades a difficuldades. A titulo, porem, de experiencia, afigura-se-nos que, sem o gravame de um incomportavel sacrificio, seja possivel, em prazo não excedente a um anno, levantar-se, nessa provincia de Angola, uma planta parcellar de uma área de um milhão de hectares, propositadamente escolhida em territorios ao norte do rio Quanza, nos concelhos a leste de Loanda, servidos pelo caminho de ferro de Ambaca.

Não faltam ao Estado funccionarios technicos o administrativos, cujas aptidões e talentos postos ao serviço de tão patriotico emprehendimento deveriam desabrochar em opimos fructos. Engenheiros, agronomos, conductores de obras publicas e minas porfiariam em attestar ao mundo culto que Portugal, embora com sacrificio das suas finanças, estava resolvido a entrar numa senda pratica, cuidando com a mais carinhosa solicitude do seu riquissimo patrimonio no ultramar.

E até estamos em crer que, embora esses funccionarios houvessem de supportar, temporariamente, os rigores do clima e todas as contrariedades inherentes, prefeririam, conscios da magnitude da obra, esses trabalhos aos serviços burocraticos que tantos d'elles estão desempenhando portas a dentro das Secretarias de Estado. E não só para agora, como para o futuro, na hypothese de dar apreciavel resultado a tentativa a emprehender e de que dá conta,
em seus topicos principaes, o relatorio do projecto de lei n.° 2, seria muito util e altamente honroso que a mocidade das nossas escolas superiores de engenharia o agronomia, logo que findasse os seus cursos, fosse iniciar a sua carreira nas provincias ultramarinas, estudando-as praticamente, estudo com que a patria muito lucraria sob varios aspectos.

Um principio humanitario imposto pela mais rudimentar previdencia levaria o Estado, já nesta primeira tentativa, a garantir aos funccionarios technicos e administrativos que a ella destinasse, em caso de fallecimento, uma pensão a suas famílias, exactamente como garante, com a designação de pensão de sangue aos que, em defesa da patria, caem fulminados nos campos de batalha.

A planta parcellar, levantada, como dissemos, numa área de l milhão de hectares, ao norte do Quanza, a leste de Loanda e tanto quanto possivel na proximidade do caminho de ferro de Ambaca, seria minuciosa ao ponto de revelar, com a maior exactidão, a qualidade agrícola do terreno, a sua fauna e flora, todas as particularidades climatericas, emfim um estudo mesologico tão completo quanto possivel.

Dividida essa planta geral em talhões de 5 hectares, ficariam nesses talhões claramente indicados todos os pormenores de ordem physica que pudessem, ao simples golpe de vista, dar a mais exacta noção do seu valor agricola e commercial.

Habilitado, assim, o Governo com essa planta parcellar da determinada zona, planta, como acabamos de dizer e repetimos, elaborada de forma que manifestasse, até ao menos experimentado, os mais pequenos accidentes do meio - onde estivessem nitidamente marcados os talhões, com a sua confrontação numerica; as servidões para caminhos publicos, estradas em projecto ou já iniciadas; descriminadas as qualidades dos terrenos, com a designação da cultura, que lhes fosse mais apropriada; marcados os locaes que, pela sua exposição, melhor se prestassem ás construcções urbanas; estudados os cursos de agua, sua abundancia ou periodica escassez; indicadas as raças indígenas que nelles habitassem, suas tendencias e costumes, etc., etc. - o Governo mandaria reproduzir essa planta em milhares de exemplares, ordenando a sua distribuição por todas as estações officiaes, para que, a seu turno, ellas os fizessem chegar até á mais obscura aldeia de Portugal.

É certamente a imprensa, cuja voz unanime se levanta, sem uma nota discordante, em favor do desenvolvimento colonial, tomando-o como ponto de partida do resurgimento da patria portuguesa; e sem duvida a benemerita Sociedade de Geographia de Lisboa, que tão alto tom affirmado a sua devoção a tão momentoso assumpto, auxiliariam, por todos os meios ao seu alcance, a propaganda do Estado.

Calculâmos, neste projecto de lei, uma despesa de réis 1.000:0000000 com a planta parcellar, a que alludimos. Não chegaria, talvez, essa verba se ella não representasse o excesso de despesa sobre os ordenados que estão vencendo, na metropole, os funccionarios que fossem nomeados para esse serviço.

No projecto de lei n.° 2 tentâmos demonstrar como essa importancia seria reembolsada pelo Thesouro, de modo que o Estado apenas a adeantaria.

Senhores. - Desnecessarias se tornam mais considerações para demonstrar a urgencia do se olhar seriamente o problema, que é fundamental á existencia honesta de um país, cujas gloriosas tradições lhe devem assegurar, no concerto das nações cultas, o logar a que tem jus. Prolixos seriam, pois, mais argumentos para vos convencer da utilidade de prender as vossas esclarecidas attenções no seguinte projecto do lei:

"Artigo 1.° É o Governo auctorizado a inscrever, annualmente, no Orçamento Geral do Estado, a começar em

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1904, a verba de 2.000:000$000 réis, exclusivamente destinada á organização do cadastro territorial das provincias ultramarinas.

§ unico. Fica o Governo auctorizado a inscrever no orçamento da despesa, relativo ao exercício de 1903-1904, a verba de 1.000:000$000 réis destinada ao fim a que se refere o artigo precedente.

Art. 2.° Pelas estações officiaes competentes, e em harmonia com um regulamento especial, o Governo ordenará o levantamento de uma planta parcellar de l milhão de hectares de terreno na provincia de Angola, nos concelhos a leste de Loanda, no norte do rio Quanza, em região proxima do Caminho de ferro de Ambaca.

Art. 3.° É o Governo auctorizado a requisitar ao Ministerio das Obras Publicas, Commercio e Industria, pelas Direcções Geraes do Obras Publicas e Minas e Agricultara, o pessoal technico e administrativo que for necessario ao levantamento da planta parcellar a que se refere o artigo anterior.

Art. 4.° Será inscripta, annualmente, no Orçamento Geral do Estado, a começar em 1904, uma verba fixa, determinada no alludido regulamento, com exclusivo destino aos herdeiros dos referidos funccionarios, no caso do sou fallecimento no serviço a que se refere o artigo 2.°

§ unico. Esta verba, que nunca poderá exceder dois turcos do vencimento percebido na metropole pelos mesmos funccionarios, será inscripta no orçamento da desposa relativo ao exercício de 1903-1904.

Art. 5.° É o Governo auctorizado a requisitar ao Ministerio da Guerra forças expedicionarias que se reputem indispensaveis á protecção a dar aos funccionarios a que se refere o artigo 3.°

Art. 6. Fica revogada a legislação em contrario.

Camara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, 12 de março de 1902. = O Deputado pelo districto de Santarem, Guilherme Augusto de Santa Rita.

N.º 2

Senhores.- Certamente no intuito de occorrer ao crescente e assustador desenvolvimento do proletariado intellectual que, de mais em mais, nos ultimos annos, ao refugia, com angustiosas solicitações nos empregos do Estado, foi promulgada a carta de lei de 28 de maio do 1896, que reformou a instrucção secundaria no país.

Ampliando-a, teve em vista o legislador, após cuidadosa selecção, encaminhar á conquista do foros scientificos aquelles que, por compleição physica o mental, com as provas dadas durante sete annos, estivessem no caso de os alcançar. Com a incidencia, porem, de um phenomeno, que a sciencia social regista, na difficuldades erguidas, as ampliações do curso e das materias do ensino, em vez de assustar e fazer desanimar os paes de familia, convidou-os a nutrir aspirações á conquista d'esses foros para seus filhos; e de tal modo se manifestou um tão inesperado effeito que, no presente anno lectivo, as matriculas de alunmos só no Lyceu Central se elevaram a 1:200!

Se, acaso, se inquerisse da situação social da maioria dos paes d'esses alumnos, talvez se chegasse á conclusão do que figuravam nella do preferencia o commercio, a industria, as artes e officios, de preferencia ás profissões ditas liberaes e determinadas tambem pela acquisição dos mesmos foros. É que não pode, ainda a legislação mais reflectidamente meditada, do chofre destruir prejuizos e erros de orientação, que uma geração lega a outra.

D'este modo, em menos de uma decada, excluindo o numero do cidadão que resistiram ás provas de ordem physica e intellectual, e conseguiram o termo da aspiração nutrida, muito elevado será com certeza o numero dos que, ou por mais tarda mentalidade ou por forma diversa da sua manifestação, hão de ficar numa situação dúbia sob o ponto de vista instructivo, sem diploma que lhes abra uma carreira, sem meio official, que lhes possa assegurar uma collocação. Em menos de uma decada, esse crescido numero de cidadãos que, certamente, não poderá volver aos obscuros mesteres de onde saiu, ou nelles então penetrar, erguerá afflictivas mãos ao Estado e por todos os meios lhe solicitará collocação á mesa do Orçamento. Maior, pois, será a phalange d'esse proletariado intellectual e por conseguinte maior se tornará ainda - se for possivel - o onus que pesará sobre o contribuinte português.

Ha - não ignorâmos - escolas de commercio e industria que, no caso exposto, se podem tornar o refugio dos que viram desfeitos os seus ideaes, acenando-lhes com diplomas que, dadas as modernas exigencias de habilitações para os logares publicos, e a futura concorrencia com os diplomados em escolas superiores, de pouco lhes servirão. Argumentar-se-ha que taes cursos profissionaes abrem, com relativa facilidade aos diplomados, a carreira do commercio e da industria. É certo na região theorica em que uma tal legislação se fundamenta; mas na região pratica tambem não é menos certo que, alem de capitaes, cujo preço, entre nós, é elevadissimo, a lucta da concorrencia é cada vez maior, o principio da especulação, nem sempre leal, cada vez mais asphyxiante, e que o commercio desesperadamente anceia por um desafogo, que está longe de sentir. No campo das industrias sobem de ponto as difficuldades de toda a ordem: - financeiras, que o capital não as bafeja; - profissionaes, que a instrucção ou aptidão natural não as faz progredir; - fiscaes, que as exigencias do Thesouro são violentas... emfim, taes e tantas que se tornam insuperaveis quasi!

Como evitar, pois, um mal que se avizinha e que deve collocar em serios apuros os homens de Governo de todos os partidos politicos?
Senhores. A verdadeira soberania a exercer em terras descobertas ou conquistadas, aquella que desafia tratados diplomaticos e até a posse tradicional de seculos é a que é feita pelo trabalho do homem sobre essas mesmas terras, dia a dia, gota a gota do suor do seu corpo, hora a hora do labutar do seu espirito. Plantou a arvore e a arvore cresceu; edificou a casa e a casa resistiu; semeou o chão e o chão fructificou? Pois bem: arvore e casa e homem e terra, como se tudo animasse o Immortal Espirito, é uma e a mesma cousa só: - a Patria.

Senhores. Impellir uma geração a trabalhar, a aspirar á posse de uma fortuna honestamente adquirida; alliviar o Thesouro do encargo do pagamento de ordenados a funccionarios dispensaveis; rasgar um largo campo a todas as iniciativas, convidando a fructificá-lo, desde o mais obscuro aldeão, a que a crise agricola nega trabalho e salario até ao modesto chefe de familia que, na cidade, frue escasso ordenado, insufficiente á alimentação de seus filhos e á sua laboriosa educação; entremostrar, como alentadora esperança, aos que succumbiram nos trabalhos escolares a conquista de uma posição desafogada; - e ao mesmo tempo cimentar o dominio português nas terras de alem-mar, que pagam com usura o esforço humano; e simultaneamente iniciar o trilho a seguir para a possível reconstituição, em proximo futuro, das finanças do país - tal o pensamento, a alma mater da idéa, que passamos a desenvolver.

Habilitado o Governo com a planta parcellar de um milhão de hectares, a que se refere o anterior projecto de lei, planta dividida em talhões de 5 hectares, o Governo criará titulos agrarios ultramarinos, representando cada um d'elles essa porção de terreno, ao preço de 10$000 réis o hectare ou 50$000 réis cada titulo. Não pareça exagerado o preço por hectare, porque, pela actual legislação, sendo, nessa provincia de Angola, de 300 réis o foro pela mesma área do terreno, é esse foro equivalente ao mesmo capital a 3 por cento.

Seriam, pois, 200:000 titulos de 50$000 réis cada um, que o Estado negociaria nas praças portuguesas e estran-

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geiras, e seriam, por consequencia 10.000:000$000 réis que a operação renderia.

Estes titulos venceriam, durante os primeiros tres annos, o juro de 5 por cento em moeda corrente no reino; seriam nominativos ao portador, e d'elle negociavel apenas o coupon. O titulo, propriamente dito, como carta de propriedade, só poderia ser negociado entre nacionaes ou estrangeiros naturalizados, que para esse fim o fariam acompanhar na repartição competente a que se referem o § unico do artigo 3.° e o artigo 4.° d'este projecto de lei, de documentos comprovativos da nacionalidade do comprador e do vendedor devidamente authenticado. (Artigo 3.º).

Facultaria o Governo aos portadores da divida interna a troca dos títulos d'essa divida pelos novos titulas agrarios ultramarinos, reservando para esse fim o terço da emissão.

Propositadamente dividimos a emissão em titulos de cinco hectares.

Elles poderiam constituir na provincia de Angola a pequena quinta ou fazenda (farm), cuja exploração, feita pelo braço de seis indigenas, seria economica e remuneradora.

O titulo de 5 hectares, ao preço de 50$000 réis, chegaria facilmente ainda ás bolsas mais modestas - a tantas d'ellas que, num louvavel acto de previdencia e ordem, effectuam pequenos depositos na Caixa Economica do Montepio Geral e na Caixa Economica Portuguesa.

Confiamos, senhores, em que só o pensamento de que a troco de quantia tão pequena, o ideal da posse da terra se tornaria uma realidade - a posso de uma area de terreno, cuja cuidadosa e intelligente cultura, deveria assegurar tres annos depois uma confortavel mediania, com probabilidades da acquisição de uma fortuna no transcurso de dez annos - confiamos que só esse pensamento determinaria no espirito publico a viabilidade da operação com seus vantajosos resultados no campo moral, economico e financeiro.

Approvou o Parlamento, na passada sessão, a lei, que o alto espirito do Sr. Ministro da Justiça anteviu profícua aos interesses da collectividade - a lei de 11 de abril de 1901 denominada - das sociedades por quotas.

A pratica d'essa lei, derminando a associação de pequenos capitaes, deveria, no assumpto sujeito, dar optimos resultados. Fundadas as associações agricolas com esses capitaes ficaria, com facilidade, resolvido o problema da exploração da terra. E que essa exploração poderia assegurar, como acima dissemos, uma confortavel mediania a tantos centos de cidadãos que, na metropole, conseguem difficilmente empregar a sua actividade, e, quando o conseguem, em troca apenas fruem não tão escasso, que mal chega á alimentação dos seus filhos, e que o resultado d'essa exploração não paira na esphera de uma pura phantasia, um exemplo, apenas, o demonstra. Admittida, como está, a possibilidade da plantação de cacoeiros em terrenos a leste de Loanda, nos ultimos concelhos, e dado que, em 50:000 metros quadrados de chão se possam plantar 10:000 pés (o que o braço de 20 negros consegue em pouco tempo) produzindo, liquido, cada pé, termo medio, 1$000 réis, seriam 10:000$000 réis a receita obtida, da qual, deduzidos ainda que fossem 50 por cento para despesas e encargos diversos, teria o proprietario um importante lucro compensador da sua actividade.

Preceitua-se neste projecto de lei (§ 2.º do artigo 1.°) que o titulo agrario ultramarino vença o juro de 5 por cento durante tres annos. Obvias são as razões. Durante esse periodo o capital desembolsado na compra da terra se estivesse em deposito no Montepio Geral venceria 3 por cento. Mas o capital immobilizou-se, e, para que não vã essa immobilização fazer peso no capital de exploração, que tambem durante tres annos se immobiliza, justo é que o proprietario, como uma especie de auxilio do Estado,
alcance uma compensação ao primeiro d'aquelles capitães. Logo que a terra cultivada produza, o juro deve cessar. Do titulo, ao desconto do ultimo coupon, o que resta ? - a carta de propriedade, valorizada, se as culturas nella florescem; abaixo do preço da compra se o proprietario a abandonou.

Diz-se no artigo 5.º d'este projecto de lei que seria facultado aos portadores da divida interna - e só interna - a troca dos seus titulos com os titulos agrarios, reservando o Estado, com esse fim o terço da emissão: Ainda, neste ponto, tem razão de ser o juro de 5 por cento que titulo vence.

Não o recebe hoje, em papel, o portador da divida interna. Ora, se esse portador, reconhecendo que pelo trabalho, pelo desenvolvimento da sua actividade torna o seu titulo susceptivel de mais alto valor, troca-o. Então o Estado offerece-lhe um juro maior pelo espaço de tres annos, ao cabo dos quaes nada lhe deve.

Admittida a collocação de 200:000 títulos agrarios, o Estado pagaria aos seus portadores 1.500:000$000 réis de juro; mas esta importancia, breve, em redditos provenientes do desenvolvimento commercial, agricola e industrial da provincia de Angola voltaria ao Thesouro Português.

Não nos parece que requeira larga explanação a doutrina contida nos artigos 8.°, 9.°, 10.°, l1.° e 12.° d'este projecto.

O portador do titulo agrario deveria encontrar a maxima protecção concedida pelo Estado para a obtenção do seu objectivo. O preço da passagem para Angola é elevado; mas se o Estado abrisse concurso entre empresas de navegação, nacionaes e estrangeiras, para um elevado numero de passagens, alcançaria, decerto, differenças importantes nesse preço. E com essas differenças sobremodo lucraria o portador do titulo.

Figurando o exemplo de que dez familias se associassem para o fim a que alludimos, tendo cada uma d'ellas adquirido, apenas, l titulo de 5 hectares, iria recair numa área de 50 hectares a exploração agricola. Se, por hypothese, cada uma d'essas familias, alem dos 50$000 réis do custo do titulo, entrasse para a sociedade com o capital de 500$000 réis, seria, pois, o fundo social constituido pela quantia de 5:000$000 réis. Ora esta importancia, intelligentemente administrada e escrupulosamente empregada na cultura da terra e nas primeiras e rudimentaras edificações urbanas - esta importancia que determinaria uma applicação de 100$000 réis por hectare - produziria, em prazo curto, um juro muito superior a outra qualquer collocação no continente, e muito remunerador da actividade desenvolvida.

Para a superior administração d'esse capital no proprio logar da exploração agricola seria bastante que, entre os membros da pequena sociedade, fosse escolhido um - aquelle que desse mais garantia de bom exito pela sua experiencia ou saber, actividade e honradez. E assim se poderá calcular, que, embora fossem 200:000 os portadores dos títulos, apenas a decima parte d'elles, se tanto, careceria de se utilizar d'aquella passagem.

Tambem se nos afigura que deveria ser gratuita a entrega aos portadores (numa certa proporção) de sementes da flora tropical, gratuita cedencia feita, pelo menos, aos primeiros que iniciassem a exploração da terra. O Governo importaria essas sementes do estrangeiro e colonias; e agronomos, com especiaes conhecimentos, procederiam á sua classificação e estudo.

O lucro resultante d'esta primeira operação (talvez 8.000:000$000 réis, deduzidas as despesas do levantamento da planta parcellar e outras) seria, desde logo, metade applicado á amortização da divida externa e metade ao que se encontra preceituado no artigo 2.° do projecto de lei n.° 3.

Ainda, como vereis, é aqui dada uma auctorização lata ao Governo para, annualmente, e á medida que as plan-

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tas parcellares se vão organizando, proceder á emissão de 400:000 titulos agrarios ultramarinos. É claro que, como experiencia, apenas agora tentaria a do primeiro milhão de hectares.

Se, no campo pratico, os resultados fossem evidentes, o Estado continuaria, habilitado, como ficava sob o ponto de vista monetario, o trabalho do cadastro territorial d'essa provincia primeiro e depois da de Moçambique.

E nesta hypothese o Estado, ao fim de pouco mais de vinte annos, conseguiria totalmente extinguir a divida externa, porque, sendo essa divida em circulação em 30 de setembro da 1893 de 243.223:969$556 réis bastaria que, de cada emissão annual de 400:000 titulos agrarios ultramarinos, cujo producto bruto orçaria por 20.000:000$000 réis, o Estado applicasse metade d'essa importancia na amortização d'aquella divida. E, por esta forma, decorridos pouco mais de vinte annos, Portugal ficaria completamente livre de credores estrangeiros, e assim recobraria a sua mais altiva e honesta independencia.

Senhores. Na passada sessão legislativa foi approvada a lei de 9 de maio de 1901 relativa a concessão de terras no ultramar. Meditou essa lei e calorosamente a defendeu o patriotico espirito do actual titular da pasta da marinha.

O modestissimo trabalho, que temos a honra de sujeitar á vossa apreciação, não pretende, nem por sombras, competir com a obra do estadista illustre, votada pelo Parlamento e sanccionada pela Coroa. Reconhecemos que largo deveria ser o folego do diploma, que pudesse, por assim dizer, tornar-se complemento d'aquella lei, cujo objectivo outro certamente não é senão o de desenvolver o nosso riquissimo patrimonio colonial; sabemos que, da doutrina exposta a traço tão indeciso, apenas se conseguirá apprehender um topico muito geral da lei cuja fundamentação tentámos neste relatorio; mas afagâmos a esperança de que, se alguma cousa houver de pratico na idéa, tão deficientemente expendida, ella merecerá as vossas attenções, e fiâmos que lhe dará o ambito preciso a vossa illustração que é grande. Para ella appellâmos, apresentando-vos o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.º É o Governo auctorizado a proceder á emissão nas praças portuguesas e estrangeiras de duzentos mil titulos agrarios ultramarinos, do valor de 50$000 réis cada um, em moeda corrente no reino.

§ 1.° Estes titulos são representativos, cada um d'elles, de 5 hectares de terreno, situado na provincia de Angola, ao norte do rio Quanza, nos concelhos a leste de Loanda, conforme a respectiva planta parcellar.

§ 2.° Cada titulo, com a designação precisa da localidade do terreno, sua confrontação e outras indicações, será nominativo ao portador, e vencerá, durante tres annos, o juro de 5 por cento, em moeda corrente no reino, pago aos semestres no Ministerio da Fazenda e suas delegações, e na sede do governo da provincia de Angola.

§ 3.º Os titulos podem representar 10, 20, 50, 100 hectares, todos com a designação a que se refere o anterior paragrapho, havendo neste caso padrões distinctos pela côr.

Art. 2.° O titulo agrario ultramarino importa, por sua natureza, a carta de propriedade. É sujeito ao registo da respectiva conservatoria e a toda a legislação civil applicavel á posse do dominio, exceptuando:

1.° Só pode ser adquirido por cidadãos portugueses ou por estrangeiros naturalizados, uns e outros no uso pleno dos seus direitos civis e politicos.

§ unico. A infracção d'este preceito determina a nullidade do titulo, reversão do dominio á posse do Estado, sem restituição de qualquer ordem.

2.º Só pode ser negociado, livremente, em todas as praças o coupon do juro entre individuos de qualquer nacionalidade.

3.° Só é sujeito á contribuição de registo por titulo oneroso, extinctos os coupons do juro, quando se tiver convertido em carta de propriedade, e isto só cinco annos depois da data da emissão.

Art. 3.° Acompanha o titulo agrario ultramarino, ou d'elle é parte integrante, um certificado onde é inscripto o nome do portador o adeante a rubrica nascido em... firmada pelo parocho e reconhecidas as assignaturas pelo notario.

§ unico. O chefe da repartição competente no Ministerio dos Negocios Estrangeiros reconhecerá a assignatura do estrangeiro naturalizado, portador do titulo.

Art. 4.° É instituida na Junta do Credito Publico uma repartição especial de assentamento para os titulos agrarios.

§ unico. Esta repartição está sob a directa dependencia do Ministerio da Marinha e Ultramar, Fazenda e Obras Publicas.

Art. 5.º Até o terço da emissão é facultada aos portadores da divida interna portuguesa a troca dos seus titulos com os titulos agrarios ultramarinos.

§ unico. Todas as obrigações ou clausulas estipuladas nos titulos da divida interna cessam no acto da troca.

Art. 6.° Nos termos da lei de 11 de abril de 1901 os portadores dos titulos agrarios ultramarinos teem o direito de se associar com o fim da exploração agricola, industrial e commercial dos terrenos a que os mesmos titulos se referem.

§ unico. Sob qualquer outra forma de direito, expressa no Codigo Commercial, os mesmos portadores podem constituir-se em sociedade, mas para esse fim será condição indispensavel que os titulos reunidos dos mesmos portadores representem pelo menos 50 hectares de terreno.

Art. 7.° O Estado reserva se o direito da posse de estradas, servidões publicas, obras de fortificações, navegação de rios, enseadas, golfos e lagos; bem como o de expropriação em harmonia com o disposto na legislação vigente.

Art. 8.° Pelo Ministerio da Marinha e Ultramar o Governo procederá á abertura de um concurso entre as empresas de navegação colonial, portuguesas e estrangeiras, para o transporte até 10:000 portadores de titulos agrarios ultramarinos do porto de Lisboa ao de Loanda em 2.º e 3.º camaras, adjudicando, sob clausulas constantes de um regulamento especial, á que mais economico o fizer.

Art. 9.° O Governo cederá ao portador do titulo agrario ultramarino, na razão da vigesima parte da emissão, o bilhete de passagem de Lisboa ao porto de Loanda, pelo preço por que o houver obtido das referidas empresas no concurso a que se refere o precedente artigo.

§ unico. Para este fim o portador do titulo, com a apresentação d'elle, requisitará a passagem ao Ministerio da Marinha e Ultramar.

Art. 10.º O Governo organizará novas tarifas, com bonus especiaes, no Caminho de Ferro de Ambaca, destinadas aos portadores dos titulos agrarios ultramarinos.

Art. 11.° Serão isentos, durante tres annos, a contar da datada emissão, de qualquer direito nas alfandegas respectivas todos os materiaes de construcção (excepcionando madeiras) destinados aos portadores de titulos, cujos nomes figurem na relação dos passageiros embarcados, segundo o expresso nos artigos 9.° e 10.°

Art. 12.º O Governo, pela Direcção Geral de Agricultura no Ministerio das Obras Publicas, Commercio e Industria, mandará vir do estrangeiro e das colonias sementes e estacas de plantas da flora tropical, que cederá, gratuitamente, na proporção dos titulos, a cada um dos seus portadores que se encontre na condição expressa nos artigos 9.° e 10.°

Art. 13.° Ficarão, sobre as ordens do Governo, permanentemente em Loanda, cinco agronomos incumbidos, mediante requisição, de acompanhar os trabalhos dos portadores dos titulos.

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Art. 14.° O Governo ordenará, com o concurso das forças ultramarinas, a organização de um corpo de policia com destacamento periodico no local dos territorios em exploração, que for reputado de maior conveniencia.

Art. 15.° É o Governo auctorizado a empregaria amortização dos titulos da divida externa metade do producto liquido da operação proveniente da emissão de 200:000 titulos agrarios ultramarinos.

§ 1.° De todas as futuras emissões d'esses titulos será sempre applicada metade do seu producto liquido na amortização da divida externa.

§ 2.° Do resultado bruto da emissão de 200:000 titulos agrarios ultramarinos serão descontados todos os adeantamentos feitos pelo Estado com a organização da planta parcellar, com as differenças de tarifas no caminho de ferro de Ambaca, com a importancia gasta em sementes e com a montagem dos serviços burocraticos nos respetivos Ministerios.

Art. 16.° Collocada a primeira emissão, fica o Governo auctorizado a proceder á emissão annual de 400:000 titulos agrarios ultramarinos representativos dos terrenos das nossas possessões.

Art. 17.° Fica revogada a legislação em contrario.

Camara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, 12 de março de 1902. = O Deputado pelo districto de Santarem, Guilherme Augusto de santa Rita.

N.º3

Senhores.- Se compete ao Estado, nos modernos organismos politicos, zelando as garantias e os direitos dos cidadãos, estabelecer um racional equilibrio das diversas condições sociaes; se, na ordem economica, deve o Estado, influindo, beneficamente, na mais equitativa e justa distribuição e circulação da riqueza publica, supprindo com o seu esforço o que não couber no esforço particular, preparar as forças productoras para a concorrencia, robustecendo-as, desenvolvendo-as - qual, entre essas forças, tem o primeiro logar? Sem duvida, a Terra.

Sendo o Estado, na hodierna concepção sociologica, uma resultante do principio da auctoridade em intima alliança com o principio da associação, compete-he ainda, na esphera politica, zelando aquelles direitos e garantias individuaes, evitar, por todos os meios, a bem da manutenção de principios que são a base da Ordem, que taes garantias e direitos, mal comprehendidos e peor interpretados, possam macular a superior noção de liberdade, que é, felizmente entre nós, o fundamento do codigo politico da nação.

Ora, num país, que, no continente, tem uma superfície de quasi 9.000:000 hectares de terreno, e d'essa superficie, apenas, apresenta cultivados cerca de 4.000:000; num país assim, cuja area - excepcionando orlas marititimas, dunas, baldios municipaes- é toda dividida entre particulares, dá-se, sem duvida; a incidencia de um complexo phenomeno para que se manifeste, por forma tão eloquente, um tal desaproveitamento da terra. E é, sem duvida, sua phenomeno tão complexo, são tão remotas as causas determinativas da situação da propriedade rural entre nós, que não é nosso intento tomar-vos as attenções com sua descripção e critica. Ella está de ha muito feita em vossos espiritos.

Mas- se a ousadia nos fosse permittida- exarada a indiscutivel these de que a verdadeira, a solida origem da riqueza é a terra como a primeira das forças productoras, perguntariamos se, em face do facto exposto, se mantem, entre nós, immaculada a superior noção de liberdade; perguntariamos se, em bom direito e em boa moral, o proprietario de um dominio rustico, por exemplo, de 1:000 hectares pode ter, apenas, cultivados 100 hectares d'esse dominio, e por desbravar 900; inqueririamos se obedece a um superior principio de justiça o facto de cobrir o matto essa extensão de terra, e ver-se o Estado compellido, como aconteceu ainda no anno findo, a importar o trigo, que é a base do alimento. Decididamente, não!

Complexo é o phenomeno, dissemos. A falta de capitaes e a carencia do credito agricola terão obstado a largo e racional aproveitamento da terra ... terão e continuarão a obstar, que o problema do credito agricola, longe de se encontrar resolvido satisfatoriamente em as nações mais cultas, entre nós, por causas multiplas, paira ainda na região abstracta.

Circumscrevendo o nosso objectivo á provincia do Alemtejo- região onde predomina a grande propriedade- vem de molde as considerações já feitas, e ainda a convicção, que se apodera do nosso espirito, da inadiavel necessidade a promulgação de uma lei especial que reja a constituição da propriedade rustica nessa provincia. Mais ainda: todos os modernos tratadistas opinam que a propriedade rustica não pode, num país, obedecer a uma lei uniforme quanto á sua limitação. Isto é tão verdadeiro quanto é certo differir em Portugal a disposição do solo que, na direcção este-oeste, é obliquamente cortado por montanhas; differir o tamanho das provincias, a densidade da população, os costumes, as tradições, etc. Se fosse possivel admittir-se uma lei que, relativamente ao Minho, limitasse ahi, por exemplo, n 100 hectares a propriedade, não poderia a mesma lei ser applicada á provincia de Trás-os-Montes e muito menos á do Alemtejo.

Já um estadista illustre do transacto gabinete, gerindo a Pasta das Obras Publicas, á discussão do Parlamento entregou uma lei que tinha por fim evitar a pulverização da propriedade rural, facto que, principalmente no Minho, tanto se accentua. Mas se a demasiada pulverização tem inconvenientes graves, a manutenção do latifundio não os tem menores. E quando, como acontece no Alemtejo, esses dominios, que os ha com 8:000 e 10:000 hectares e mais, não sejam todos cultivados, impõe se a necessidade, em nome do interesse collectivo, da promulgação de uma lei, que leve o proprietario da parte inculta do seu dominio a soffrer a expropriação d'essa parte; se, no prazo maximo de um anno, não quiser ou puder cultivá-la.

Conjugando se com esta disposição, uma outra mais se impõe nessa mesma lei: a limitação ao maximo de 500 hectares da propriedade rural nessa provincia, da propriedade inculta, isto é, coberta apenas de matto, quando muito aproveitavel para pasto de gado lanigero. Não deve, é claro, a lei limitar o dominio rural, cuja área esteja cultivada, ou o possa ser em determinado prazo; mas limitar essa área, na hypothese do proprietario não poder ou querer tratá-la; mas procurar trazer á cultura cerealifera e arvense tantos terrenos cobertos de tojo e urze, afigura-se-nos momentoso assumpto muito digno de prender as vossas attenções.

Importa este facto, acaso, o ressurgimento da velha legislação das sesmarias? Talvez; mas accusará um progresso em vez de um retrocesso.

Com effeito, já o direito publico moderno, postergada aquella legislação, reconhecendo os inconvenientes da incultivação da terra accumulada na posse de um só proprietario, pretendeu ir ao encontro d'esse inconveniente conservando o antigo direito da emphyteuse.

Assim, imaginaram os legisladores liberaes que, sem o desmembramento do dominio, a terra inculta o deixaria de ser, porque o foreiro a ella applicaria capital e trabalho, que o directo senhor não queria ou podia applicar. Mas contaram os legisladores liberaes, para que se desse um tal facto, com a existencia de factores tão importantes e indispensaveis como são o credito agricola, a educação do trabalho e a instrucção profissional? Servirá a emphyteuse para dispensar o dono do dominio, sem o privar do seu direito de posse perpetua, de empregar nelle capitães de exploração; mas, acaso, essa forma de direito conseguirá, na pratica, levantar a agricultura do rotineiro estado em que se encontra? Não, decerto; nem tão pouco,

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pelus mesmas razões, a sub-emphyteuse, que uma proposta ministerial, ha annos apresentada a esta Camara, pretendia reimplantar.

Os factos são evidentes. O dono do grande dominio, sem capital o sem credito, arrenda ou afora o terreno cujo arroteamento não pode fazer. O rendeiro, pobre em geral, cultiva, apenas, e pelos mais rudimentares processos, a porção de terra que o alimente e á familia. Se o anno agricola é mau dispensa-se de pagar a renda, que fica a dever. O foreiro procede da mesma forma, porque, como o directo senhor e como o rendeiro, não tem capital, credito, instrucção agricola. Resultados de tudo isto: 4 milhões de hectares de terreno, ou talvez mais, por cultivar no país !

Na vasta provincia do Alemtejo, e nas grandes herdades, que a constituem, é corrente a emphyteuse. Pois a grande propriedade com 10:000, 15:000 e mais hectares, que as ha ali e quasi todas incultas, pois a emphyteuse cujos resultados são os que, a traço geral, apontámos, devem, a bem dos mais altos e justos interesses da collectividade, desapparecer completamente. Como?

a) Remindo o Estado os foros ;

6) Obtendo, pela expropriação, todo o terreno inculto nessa provincia.

O que deve, porem, entender-se por terreno inculto? O terreno deixado em pousio não é inculto. O afolhamento irá, passado o periodo competente, de novo procurá-lo á sementeira. Não é inculto aquelle que, em maior ou menor densidade, é povoado de sobreiros e oliveiras. Inculto será o terreno coberto de urze, de tojo, de esteva, de mato, que attinge metro e mais de altura. E vastidões assim ha no Alemtejo, solidões que o sol de verão calcina, onde escasseia a agua, onde não se enxerga um lar, onde não ha estradas, arvores, prados . . . gente. E estes terrenos são parte integrante dos grandes dominios, cujos donos, em sua maioria, os trazem de renda, salvando o producto dos sobreiraes. O rendeiro, como dissemos, sem capital, sem credito, sem instrucção, o que pode fazer? D'ahi a rotina, a origem das crises agricolas, d'ahi as nefastas consequencias que pesam dolorosamente na collectividade.

Não pode o proprietario agriculturar o seu dominio? Consente que lh'o exproprie o Estado. E não poderá, que são eloquentes as repetidas emissões do obrigações prediaes lançadas no mercado pelo Banco Hypothecario. Não ó com o producto d'ellas que o proprietario - salvo casos excepcionaes - vae arrotear chão maninho - que se o fizera, forçado ao pagamento de um juro fixo, annual, iria, em breve, á ruina com a successão de duas contingencias, apenas, de ordem physica, correntias aliás.

Argumentar-se ha, acaso, que a nobreza rural, embora viva em epoca tão democratica, liga á extensão dos seus dominios as tradições herdadas, e que, por esse facto, é relutante á expropriação? Mas não será pueril este argumento que, se tivera razão de ser, bastaria a condemná-lo o effeito que produz na circulação da riqueza publica?

Senhores. Prolixidade seria continuar a demonstrar-vos a necessidade da promulgação de uma lei :

a) Que limite a propriedade rural, inculta, no Alemtejo ao maximo de 500 hectares ;

b) Que preceitue a expropriação, por utilidade collectiva, da parte inculta da terra, naquella provincia ;

c) Que determine a remissão de foros, feita pelo Estado, foros que recaiam em terrenos por cultivar.

O que se torna indispensavel é dizer-vos como o Estado procederá a essas expropriações e qual o fundo com que, para ellas, conta.

É o que muito summariamente vamos fazer.

A carta agricola da provincia do Alemtejo, em via de conclusão, torna-se poderoso auxiliar para o estudo de um problema d'esta natureza. Ella nos inicia na quantidade e qualidade da terra, na sua arborização, culturas, incultos, etc.

A parte que, em primeiro logar, se impõe ao criterio do Governo em tal estudo, e que demanda de grave ponderação, é, sem duvida, a que respeita á avaliação do terreno por cultivar. Emquanto algum haverá que valha apenas l real por metro quadrado, ou nem tanto, outro excederá 5 réis. Basta que um curso de agua o atravesse ou d'elle esteja proximo, para que seja maior o seu valor.

A cargo de uma commissão especial de funccionarios technicos deveria ficar este melindroso serviço, bem como o da avaliação dos foros.

Parece que seria possivel, em prazo não excedente a dois annos, organizar-se uma planta geral da torra inculta a expropriar nessa provincia, planta minuciosa, onde, a simples golpe de vista, se reconhecesse a situação, confrontações, cursos de agua, etc.

Elaborada a planta, teriam começo as expropriações: lentamente, em numero igual de hectares, em cada anno.

O fundo de que o Estado disporia, para as primeiras expropriações, seria constituido por metade do resultado da primeira emissão de titulos agrarios ultramarinos; - como calculamos no relatorio do anterior projecto de lei, 4.000:000$000 réis.

As primeiras expropriações seriam feitas como experiencia. Se o resultado financeiro, a que se refere o projecto de lei n.° 4, fosse favoravel, o Estado applicaria, de cada emissão de titulos agrarios ultramarinos, uma parte com esse destino.

Senhores. A funcção do Estado, num regimen liberal - democratico, não é a de invadir as attribuições dos membros da collectividade na orbita do trabalho que se impõem. Não compete ao Estado o exercicio directo da agricultura ou da industria, não faz commercio. É outra a sua acção: dir-se-hia fiel de balança, que testemunha a maior ou menor cohesão do organismo social, os seus progressos para o alentar, os seus retrocessos para o vigorizar. Que no assumpto sujeito a funcção do Estado se deve exercer pela conjugação dos seus esforços com os da iniciativa particular, demandando o equilibrio que uma defeituosa constituição de propriedade rural rompeu ha muito no país-facto determinativo de um estacionamento agricola- é assumpto incontroverso, que certamente está gravado em vosso animo.

A elle nos dirigimos, convencidos de que vos dignareis prestar a vossa attenção esclarecida ao seguinte projecto de lei:

Artigo 1.° É limitada ao maximo de 500 hectares a propriedade rural na provincia do Alemtejo.

§ 1.° Não obedece ao preceito d'esta limitação a propriedade rural nessa provincia, cuja área esteja toda cultivada, ou o possa ser no prazo da um anno.

§ 2.° Os terrenos plantados de sobreiros, oliveiras ou qualquer arvoredo não são incultos; bem como não são incultos os terrenos deixados em pousio.

§ 3.° A uma commissão composta de funccionarios technicos, dependentes da Direcção Geral da Agricultura, competirá o estudo e avaliação da area territorial reputada inculta nessa provincia.

Art. 2.° É o Governo auctorizado a proceder á expropriação, por utilidade publica, de todo o terreno reputado inculto que, em cada propriedade na provincia do Alemtejo, exceda a área de 500 hectares.

§ 1.° A partir do anno de 1904, e em cada anno, estas expropriações poderão effectuar-se até o limite maximo de um vigessimo da área total do terreno a expropriar.

§ 2.° O calculo da importancia d'estas expropriações terá por base a matriz predial e a avaliação do terreno por louvados competentes.
Art. 3.° É o Governo auctorizado a proceder á remis-

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são dos foros (emphyteuse) que incidam sobre os terrenos a que se refere o artigo anterior.

§ l.° O calculo, que sirva de base para se levar a effeito esta remissão, será desenvolvido em regulamento especial.

§ 2.° A partir do anno de 1904, e em cada anno, estas remissões poderão effectuar se até o limite maximo de um vigesimo da importancia dos foros a remir.

Art. 4.° É o Governo auctorizado a incluir, annualmente, no Orçamento Geral do Estado, a partir de 1904, a verba destinada a expropriações de terrenos incultos e a remissão de foros na provincia do Alemtejo.

§ unico. Fica o Governo auctorizado a alargar, nos futuros orçamentos, a partir de 1903, a verba destinada aos trabalhos da carta agricola do reino até o limite de 100:000$000 réis.

Art. 5.° É instituida na Direcção Geral de Estatistica e Bens Proprios Nacionaes uma repartição, que exclusivamente tenha a seu cargo todo o serviço inherente a expropriações de incultos e remissão de foros na provincia do Alemtejo.

§ unico. São instituidas nas sedes administrativas d'essa provincia commissões districtaes de estatistica agraria.

Art. 6.° É o Governo auctorizado a despender com as expropriações de incultos e remissões de foros na provincia do Alemtejo até o limite maximo de 50 por cento do producto liquido das emissões a que proceder de titulos agrarios ultramarinos.

Art 7.° Fica revogada a legislação em contrario.

Camara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, 12 de março de 1902.-O Deputado pelo districto de Santarem, Guilherme Augusto de Santa Rita.

N.º 4

Senhores.- Não cabe no limite da vida da geração, que tem a seu cargo auscultar o modo de ser de uma sociedade, a que erros e prejuizos diversos, herdados e contrahidos, deram uma ideosyncrasia especial, não cabe, por melhores desejos que tenha, alterar essa forma, transformar esse modo de ser. Influencia, talvez, do clima, da posição geographica-na opinião de Herder-talvez do sol, cuja maior intensidade amolenta, embora vivifique, talvez das ondulações do proprio solo - é certo que, entre nós, os factores de ordem cosmica devem, na somma das suas resultantes, pesar nos factores de ordem social.

Estes, que são multiplos, e cujo producto se revela, mal orientado, desde os actos mais triviaes, aos mais com plexos problemas da nossa existencia social, trazem ao espirito, que no assumpto medite, a convicção de que habitos contrahidos, costumes arreigados, falsas noções não podem a subitas desapparecer, apesar de todos os esforços das mais ponderadas leis. Mas cabe na vida da actual geração, mas é para ellas dever indeclinavel e patriotico prepara o campo em que a geração futura deva exercer a sua actividade.

Se acaso se procurar fazer applicação de considerações tão vulgares á questão economica, que toma por base a primeira das riquezas-a terra; e se, em ordem mais restricta, voltando ao assumpto de que é objecto o anterior projecto de lei (n.° 3), se indagar qual o destino que o Estado daria á massa de propriedade inculta obtida pelas expropriações no Alemtejo, logo a priori se concluirá que, não devendo o Estado tornar-se agricultor, esses incultos seriam entregues á exploração particular. Mas se a iniciativa particular os deixara incultos! Qual teria sido neste caso a vantagem da operação?

Construcções de albufeiras, abertura de um canal que ligasse a afluente Sorraia ao Guadiana (projecto já apresentado a esta Camara por um dos seus illustres membros), plantações de vinha e arvoredo, explorações mineiras, ferroviarias e de varias industrias, onde o capital para tudo isto, onde a energica iniciativa a arrostar com as peias super-venientos ?

Senhores. É bem sabido que na poderosa Inglaterra- patria do tino administrativo e do senso pratico segundo o disposto na sua legislação, o pae escolhe, entre os seus filhos, aquelle que deva ser o herdeiro dos seus bens; e aos restantes, dando o que pode e lhe apraz, diz lhes: - Ide, emigrae, trabalhae! E elles emigram. Uns vão para a California, outros para a India, este para o Cabo, aquelle para o Egypto... e elles emigram, e a Inglaterra é grande!

Ora o nosso país-o país do sol como lhe chamam- com o seu adoravel clima, não attrahiria, de preferencia a tão longinquas regiões, esses filhos do norte, que se expatriam á busca de fortuna? Não viriam elles ahi-a esse vasto campo de actividade e trabalho - fecundar com a sua rasgada iniciativa, com o seu capital, com a sua intelligencia, o chão que, retribuindo-lhes, espalharia, entre nós todos, a mãos cheias, a abundancia?

Seria, talvez, esta a forma mais pratica de orientar, de educar a geração futura, conseguindo-se até, pelo cruzamento das raças, robustecer-lhe a constituição physica.

Obedece a este criterio o artigo 1.° d'este projecto de lei.

O Estado emittiria, nas praças nacionaes e estrangeiras, titulos agrarios representativos, cada um d'elles, de 20 hectares d'esses terrenos expropriados e do valor de 1:000$000 réis (ouro)- por hypothese.

Estes titulos, que denominaremos titulos agrarios continentaes, venceriam durante cinco annos o juro de 3 por cento (ouro) e seriara, sem restricções, negociaveis em todas as praças. O Estado facultaria aos credores externos a troca do seu papel com este, reservando, com esse fim, o terço da emissão.

Tambem, como experiencia (que só poderia ser levada a cabo se houvesse dado resultado a operação com o papel ultramarino) o Estado effectuaria a primeira emissão de titulos continentaes, até o limite maximo de 200:000 hectares, o que por hypothese - na razão de 50$000 réis cada hectare, produziria 10.000:000$000 réis (ouro). O fundo liquido proveniente d'esta operação seria destinado á reorganização do exercito e da armada, tendo-se, muito particularmente em vista, a acquisição de navios destinados a serviço nas colonias.

Não pareça estranho que, effectuando o Estado venda de propriedade immobiliaria, mediante o titulo agrario continental, offereça durante certo periodo um juro fixo por cada um d'esses titulos.

Applique-se a este caso um criterio igual ao que se applicou ao titulo ultramarino.

O juro, durante esse periodo, valoriza o titulo assegurando-lhe cotação. Passado esse tempo e cortado o ultimo coupon, ou a propriedade está toda arroteada e o primitivo valor muito elevado, ou a terra continua inculta, e por conseguinte desvalorizado o titulo.

Então, e ao cabo de um periodo, determinado em regulamento especial, o terreno assim por desbravar soffreria nova expropiação.

Em poucas palavras: tanto neste caso, como no que se applica ao ultramar, o Estado não offereceria garantia ou complemento de juro - dava esse juro durante um certo tempo, consentaneo com o arroteamento e cultura da terra, que era o principal objectivo.

Admitte-se que, ao fim de cinco annos, o chão arroteado e plantado de vinha, arvores de fructo (excepcionando a oliveira, o sobreiro e poucas mais) deva produzir. A cultura cerealifera tambem nesse tempo poderá tornar-se remuneradora. Por conseguinte o juro do titulo não tem razão de ser.

A plantação de vinhas, obedecendo a ponderado criterio, de modo que não seja feita em chão delgado apropriado a cereaes, deve continuar-se, e por modo algum

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permittir-se a sua destruição. Portugal é essencialmente um país vinhateiro, e não se comprehende que seja um tão rudimentar acto de vandalismo a forma de resolver uma crise de abundancia. Desenvolvida a agricultura colonial pela forma exarada no projecto de lei n.° 2, existindo em Africa milhares de feitorias constituidas de raiz por cidadãos que, da metropole, nas circumstancias expostas, para ali fossem, ao cuidado e interesse d'elles ficaria a importação e collocação de quantos milhões de hectolitros de vinho a metropole produzisse, bem como, simultaneamente, a solução do problema do alcool da canna saccharina.

Arroteada a parte inculta do Alemtejo, tambem o mesmo braço energico e a mesma intelligencia arguta que, por certo, demudariam as condições actuaes de uma provincia, sem estradas, com uma incompleta via ferrea, com pequena população, seriam os mesmos que, no campo industrial, haviam de levar á pratica, largamente, todas as locubrações da sciencia vinicola. E o producto, que o capital- estrangeiro embora- soubera aperfeiçoar era de vinhas que tinham nascido no solo de Portugal.

Senhores. Conscios estamos de que não teem originalidade alguma as idéas que, tão deficientemente, acabamos de expender, porque não podem tê-la idéas que são communs aos espiritos illustrados. Apenas diligenciámos, concretizando-as, sujeitá-las no vosso criterio, que é grande e ao vosso patriotismo, que é inimitavel. Rogâmos, pois a vossa attenção para o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.° É o Governo auctorizado a emittir nas praças portuguesas e estrangeiras titulos agrarios continentaes representativos, cada um d'elles, de 20 hectares (vinte) de terreno situado nos districtos administrativos da provincia do Alemtejo.

1.° Estes titulos, com a designação precisa da localidade do terreno, sua confrontação e outras indicações, serão nominativos ao portador, negociaveis em todas as praças, do valor de l :000$000 réis cada um, e vencerão, durante 5 annos, a contar da data da emissão, o juro de 3 por cento, ouro, pagavel aos semestres na Thesouraria do Ministerio da Fazenda e suas delegações no estrangeiro;

2.° Os titulos poderão representar 50, 100, 200 e 500 hectares de terreno, com as designações a que se refere o numero anterior, havendo neste caso padrões distinctos pela côr.

Art. 2.° O titulo agrario continental importa, por sua natureza, a carta de propriedade. É sujeito ao registo da respectiva conservatoria e a toda a legislação civil applicavel á posse do dominio, podendo ser adquirido por cidadãos de toda e qualquer nacionalidade no uso dos seus direitos civis e politicos.

§ unico. O titulo agrario continental é isento de direito de transmissão por espaço de cinco annos a contar da data da emissão.

Art. 3.° É o Governo auctorizado a applicar metade do producto liquido da emissão de titulos agrarios continentaes na acquiação annual de navios especialmente destinados a serviço das colonias e á reorganização do exercito.

Art. 4.° Na Repartição de Assentamento, criada na Junta do Credito Publico nos termos do artigo 4.º do projecto de lei n.° 2, haverá uma secção destinada ao serviço dos titulos agrarios continentaes.

Art. 5.º É facultada aos portadores da divida externa portuguesa, até o terço da emissão, a troca dos seus titulos com os titulos agrarios continentais.

§ unico. Todas as obrigações ou clausulas estipuladas nos titulos da divida externa cessam no acto da troca.

Art. 6.º Nos termos da legislação vigente, os portadores dos titulos agrarios continentaes teem o direito de se associar com o fim da exploração agricola, industrial e commercial dos terrenos a que os mesmos titulos se referem.

Art. 7.° O Estado reserva-se o direito da posse de estradas, servidões publicas e logradouros, obras de fortificação, navegação de rios, bera como o de expropriação em harmonia com a legislação vigente.

Art. 8.° É o Governo auctorizado a modificar a legislação fiscal, na parte relativa á introducção de machinas agricolas e instrumentos de trabalho que não se fabriquem no país, e sejam destinados ao arroteamento dos incultos do Alemtejo.

Art. 9.º Passado o periodo de 5 annos, contados da data da emissão, se o terreno, em arca superior a 20 hectares, continuar inculto, sem causa justificada, o Estado poderá effectuar, em harmonia com o disposto no artigo 1.° do projecto de lei n.° 3, expropriação sobro a parte inculta, e, rehavendo a, sobre ella poderá emittir novos titulos, sem, comtudo, ficar obrigado a restituir aos primitivos portadores indemnização de qualquer ordem.

§ unico. A esses portadores será permittido o recurso aos tribunaes nos termos da legislação vigente.

Art. 10.° A auctorização concedida ao Governo no artigo 1.° d'este projecto de lei é limitada á emissão annual, nunca superior a 10:000 titulos agrarios continentaes.

§ unico. A forma e clausulas d'estas emissões farão parte do regulamento especial.

Art. 11.° Fica revogada a legislação em contrario.

Camara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, 12 do março de 1902. = O Deputado pelo districto de Santarem, Guilherme Augusto de Santa Rita.

Os projectos ficaram para segunda leitura.

O Sr. Presidente:- Deu a hora de se encerrar a sessão.

A primeira sessão realizar-se-ha amanhã, á hora regimental, sendo a ordem do dia a mesma que vinha dada para hoje.

Está encerrada a sessão.

Eram 2 horas e 17 minutos.

Representações enviadas para a mesa nesta sessão

Da Camara Municipal do concelho da Horta, pedindo isenção de direitos para todos os apparelhos, material e utensilios necessarios para abastecimento de agua e illuminação a luz electrica da mesma cidade.

Apresentada pelo Sr. Deputado Andre de Freitas, enviada ás commissões de administração publica e de fazenda e mandada publicar no Diario do Governo.

De varias irmandades o ordens terceiras da cidade do Porto, pedindo uma modificação na lei de 26 de fevereiro de 1892, no sentido de não se fazer a redacção no pagamento dos juros a essas corporações.

Apresentada pelo Sr. Deputado Arthur Brandão, enviada á commissão de fazenda e mandada publicar no Diario do Governo.

O redactor interino = Affonso Lopes Vieira.

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