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Discurso que devia ter sido transcripto a pag. 429, col. 2.ª, lin. 22 do Diario de Lisboa, na sessão de 14 de fevereiro

O sr. Mendes Leal (na tribuna): — Como differentes vezes tenho dito, venho a este logar, não por ostentação, mas unicamente para remediar quanto possivel a fraqueza, da minha voz, e para mais facilmente me fazer ouvir. Dito isto, entrarei no assumpto.

Vae adiantada a discussão. De ordinario, n'estas alturas do debate, é costume dizer-se que está exausto o assumpto. Não o direi eu agora. Se julgasse exhausto o assumpto, a minha obrigação seria ceder da palavra, desistindo d'ella para não consumir inutilmente o tempo.

Vae com effeito adiantado e longo o debate. Isso prova porém a gravidade e a importancia d'elle. Certifica-o igualmente a persistente attenção que a camara lhe tem prestado. Tal importancia é pois muito maior do que alguns oradores teem inculcado. E direi de passagem, que nem lucram os corpos legislativos, nem lucra o paiz em se amesquinharem, em se apoucarem deliberações d'esta ordem. Occupam ellas hoje, e devem occupar, um dos primeiros logares na consideração dos parlamentos (apoiados). E em verdade aproveita mais a serenidade d'estas controversias, do que as apaixonadas discussões em que se debatam a personalidade e o escandalo.

O assumpto é verdadeiramente importante, insisto. Chamou-se-lhe já — mero expediente financeiro. Que seja. Se é verdade, como deveras creio, que as nossas finanças precisam ser cuidadosamente vigiadas, solicitamente organisadas, a maior importancia do assumpto deriva exactamente d'essa ponderação com que se tem intentado reduzir-lhe o valor.

Pois se as finanças chamam e justificam o zêlo, se se considera urgente que nellas se estabeleça um salutar equilibrio, será secundario e accidental o que poder contribuir para melhora-las? No meu conceito similhantes allegações provam inteiramente o contrario.

No meu conceito, digo. Posso ter uma opinião errada. Permitta-se-me que a exponha, livre e francamente, como a sinto. Todos os pareceres respeito; peço apenas igual retribuição. É n'este mutuo acatamento que mais se ennobrecem e fructificam as instituições que praticâmos. Temo assim entendido a camara. É um bom serviço, e um bom exemplo.

Mas, tambem a meu ver, o projecto não envolve sómente uma idéa financeira... Financeiro será, é, e não perde com isso... Sem embargo, ainda mais que financeiro, o reputo economico e politico (apoiados.) Diligenciarei desenvolver esta proposição, e espero prova-la.

No pensamento do projecto estão todos de accordo. Não ha a respeito d'elle divergencias essenciaes, não ha antagonismos... Ha; ha apenas um, claro, definido e francamente apresentado: é o que se infere do discurso do illustre deputado o sr. Pinto Coelho; e esse comprehende-se, esperava-se... Fora d'elle, verdadeiras divergencias sobre a idéa fundamental, não apparecem. Dão-se apenas pequenas differenças de opinião ácerca da sua applicação, de que não trato agora.

Ponderou-se que não é o projecto cousa nova. E não é na verdade. Deduzem-se naturalmente d'ahi novas rasões de concordancia. O principio da desamortisação foi já adoptado e professado por outros gabinetes. Uns o iniciaram; outros n'elle persistem; outros o continuarão.

Significa isso que todos os partidos liberaes estão unanimes no proposito. Ainda bem. Não podem d'essa unanimidade tirar-se glorias para uns, nem censuras para outros; mas tira a patria proveito, que é o essencial. É honra igual para todos, se o pensamento é util, como profundamente creio. Saibamos reconhece-lo e confessa-lo, sem vãos ciumes, nem vans profias.

Mas se é tal a unidade de opiniões, como se travou, como se sustenta, como continua em mutuas contrariedades a discussão? Porque não está já votada a generalidade, que comprehende esse pensamento, e nada mais?...

E, desde já assevero á camara, que farei todo o esforço para me conter dentro nos limites strictos d'essa generalidade. Quando vier a especialidade, é possivel que opportunamente tenha ainda de apresentar algumas considerações de uma natureza mais peculiar; essas reservo-as para a occasião competente.

Na generalidade, como dizia, estão todos, ou quasi todos de accordo. Todavia a discussão prosegue, e prosegue com o justo interesse que a camara por ella vae mostrando. Qual será a rasão d'esta singularidade? Direi o que d'ella supponho com o desassombro e franqueza que costumo. Para mim tenho que se não ha antagonismo visivel, existe um antagonismo invisível. É esta a situação administrativa de parte, ao menos, das corporações comprehendidas no projecto que se discute. Maior importancia com isso adquire elle, e assim mais se justifica a insistencia em todas as rasões que de qualquer lado se possam apresentar. São pontos graves, que a nação interessa em ver gravemente esclarecidos.

Ao illustre deputado, que me precedeu no debate, ouvi hontem considerar os bens de raiz, que por este projecto se desamortisam, como verdadeira propriedade das respectivas corporações, com todas as condições de propriedade.

Peço licença para me afastar radicalmente de tal opinião. Para mim, esses bens não são, com respeito aquellas corporações, uma propriedade; são um deposito, são um usufructo, são uma administração. Reconhecido e verificado n'aquellas corporações este triplice caracter, não sei como se lhes possam conceder todos os attributos e predicados da propriedade, resumidos, se não me engano, na definição: jus utendi et abutendi.

Pareceu-me tambem que ouvi assimilhar estas corporações ás modernas associações ou companhias... Se estou em erro peço ser advertido, e promptamente o rectificarei.

Nas companhias modernas entram e cooperam os associados com o que é seu, mediante contrato entre si, e contrato com terceiro, ou seja o estado, ou outra qualquer entidade. Se estas condições são infringidas, é claro que d'ahi lhes póde justamente resultar a dissolução. Quando porém taes companhias se dissolvem, ou são dissolvidas, por esse ou qualquer outro motivo, tem cada qual o direito de exigir a parte com que entrou, ou que sobra e lhe pertence. Mas nas corporações de que se trata, entraram os que as formam, os administradores ou gerentes, com alguma cousa do proprio? Não. Receberam em deposito certos e determinados fundos ou bens, para cumprir certas e determinadas obrigações. Ha ahi tambem um pacto celebrado entre o doador e o administrador, sob a vigilancia, responsabilidade e inspecção do estado, para o cabal cumprimento d'aquelles definidos fins e intuitos, mas pacto limitado a isto, e que por isso logo que cessa, não póde dar aos gerentes investidura de posse. E por que sob a sua vigilancia e responsabilidade foi esse pacto celebrado, nunca o estado largou da sua mão o direito de superintender, de fiscalisar, de intervir n'estes estabelecimentos, muitos dos quaes entram no systema da benificencia publica, e são subordinados á competente administração superior.

D'esta fórma pois, mal se ha de demonstrar paridade, ou sequer similhança, entre as companhias ou associações modernas e as corporações de que se trata.

Sendo porém os bens confiados aquellas corporações, como me parece que se não poderá contestar, um usufructo para o desempenho de deveres designados, quando estes deveres não sejam bem cumpridos, ao estado, na qualidade de tutor natural dos respectivos estabelecimentos, compete não só o direito, mas a obrigação de interferir para lhes regular o melhor modo de administração.

É o que faz a desamortisação simplificando a gerencia. Esta é, pelo menos, a minha opinião.

Não sou jurisconsulto; não admirará que não saiba definir certas subtilezas terminológicas. Ha uma cousa a que se chama «pessoa juridica», cuja qualidade e funcções nunca n'este caso pude bem comprehender. Entrarão aquellas corporações na categoria de pessoa juridica para se lhes attribuir esta ficção de propriedade? Até que ponto chegam os seus direitos? Até á plenitude da possessão? Não, que os gerentes deixariam já de ser só gerentes. E mais do que isso porque titulo o serão? Quanto a mim, e com a devida venia, na propriedade não póde haver ficções. Seriam perigosas para os verdadeiros proprietarios.

Um argumento tenho visto, e ouvido... Digo visto e ouvido porque o li na imprensa e escutei na tribuna... Um argumento se tem repetido frequentemente, com certa complacencia triumphante. Diz o argumento: = se a subrogação da propriedade territorial por inscripções é cousa tão proficua para certas corporações, porque rasão se não aconselha, porque rasão se não decreta que todos no paiz convertam os seus bens de raiz em titulos de divida publica?

Oh sr. presidente! não sei se similhante raciocinio tem feito muitos proselytos... A mim dá-me ares de uma acerada ironia. Affigura-se-me que tem elle uma objecção de tal modo prompta, immediata e obvia, que chega a torna-lo uma verdadeira innocencia.

Se todos subrogassem os seus predios e terrenos, quem os possuia e cultivava? A quem ficava pertencendo e aproveitando o territorio portuguez? Quem havia de comprar quando todos vendessem?

Outras considerações mais serias occorrem aqui. Os bens territoriaes pertencentes ás corporações de mão morta existirão acaso nas mesmas condições que se dão na propriedade particular? Terá a mesma mobilidade, e consequentemente o mesmo valor? Esta differença capital não póde ser obliterada.

Será tambem a administração collecticia e variavel d'estes bens tão solicita, tão providente, tão assidua, tão efficaz como no seu é o particular? Não. É essa administração necessariamente mais facil e accessivel a defraudações, é de uma vigilancia menos intensa, é de uma negligencia mais frequente. Logo, não havendo paridade entre administração particular e aquellas administrações, como se poderá sem malicia fazer tal comparação? Como se poderá sinceramente aconselhar similhante generalisação?

Segundo argumento. E este é como um espectro pavoroso, que se levanta perante a camara para lhe aterrar a imaginação e lhe esmorecer a vontade, ornado de todos os apparatos, escoltado de todos os accessorios que podem exercer acção e influencia, quer no espirito das assembléas, quer no animo dos povos. Ostenta-se o temor de que venha um dia a suspender-se o pagamento dos juros, caindo assim em abandono, em triste desamparo, em completo desarrimo os estabelecimentos que tiverem a sua dotação em titulos do estado.

Oh! sr. presidente, medonhas perspectivas! Deus as affaste. Mas qual é a sua rasão de ser? Que annuncios justificam os receios? Vejamos.

De duas ordens são as causas que poderão acaso determinar uma suspensão no pagamento dos juros: as grandes calamidades publicas, a dissipação dos governos. Examinemos cada uma d'estas causas sobre si.

As grandes calamidades publicas, a peste, a fome, a invasão estrangeira, as guerras intestinas, tudo isto é possivel certamente. São possiveis em todos os tempos, são possiveis em todos os casos, e para todos os casos. Ouvi hontem ao illustre deputado que me precedeu, talvez por um esforço da sua feliz phantasia, se não foi uma prosopopéa arrojada, celebrar o famoso decreto que prohibe as calamidades publicas. Não li, não conheço similhante decreto. Não o ouvi formular. E tenho pena, porque desejava premunir-me com as suas disposições contra quaesquer inconvenientes resultantes d'essas calamidades. Precatava-me assim como cidadão e como homem (riso).

Não ha, não póde haver, não tem ninguem a presumpção de inculcar que as calamidades, grandes e pequenas, podem ser abolidas. Mas dizem a rasão e a consciencia que estas calamidades tanto podem ferir o juro como o fundo em terras. Dizem que antes hão de ferir o fundo em terras do que alcancem o juro. Espero mostra-lo.

Nada mais facil do que suscitar apprehensões e phantasmas, e colloca-los diante de qualquer providencia mais consideravel para a fazer recuar. Nenhuma ha que se não possa impugnar assim. As grandes calamidades sempre foram possiveis, sempre o são, e desgraçadamente sempre o hão de ser, porque são inherentes ao destino humano e ás condições terrenas.

Se predominasse a exclusiva preoccupação de taes temores, de todas as contingencias que podem sobrevir, não só se não votava este projecto, mas nenhum outro. Nada se emprehendia, e nada se fazia.

O lavrador não semeará a terra Quem sabe se virá uma aturada sécca e lhe devorará os fructos! Quem sabe se virá uma imprevista cheia e lhe devastará o solo! Para que pois semear se o producto do seu trabalho póde ficar inutilisado de um para outro momento? O operario não trabalhará na officina porque uma catastrophe inesperada, uma bancarota do emprezario da sua fabrica, póde levar-lhe os salarios e annular o preço dos seus suores! O navegante ainda menos