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Discurso que devia ser transcripto a pag. 537, col. 3.ª, lin. 74 do Diario de Lisboa, na sessão de 23 de fevereiro

O sr. Luciano de Castro: — Tinha hontem começado a expor os principios constitucionaes que tenho por verdadeiros, no tocante á questão que actualmente se debate na camara. Como a hora do encerramento da sessão se approximava, eu pedi a v. ex.ª que me reservasse a palavra para hoje. Continuo pois a exposição das minhas idéas, com o intuito de fundamentar a moção de ordem que mandei para a mesa.

Começo por declarar á camara que não venho propor uma excepção de incompetencia senão em relação aos factos que constituem as irregularidades arguidas no processo das eleições municipaes do districto de Villa Real: o exame d'esses factos pertence aos tribunaes administrativos, cuja independencia e liberdade de acção nós devemos manter e zelar. Mas não se diga por isso que eu venho cercear as attribuições do parlamento, nem propor que a camara abdique a sua alta missão, e annulle por suas mãos as suas mais preciosas prerogativas, pois é certo que á camara pertence o fiscalisar e syndicar de todos os actos do governo, e apreciar o seu procedimento em tudo quanto pertence á sua responsabilidade politica.

Eu não vejo nas cadeiras do poder o sr. governador civil do districto de Villa Real, vejo só o sr. ministro do reino. A esse podemos e devemos exigir toda a responsabilidade pelos actos que a comportam, mas só por elles.

Como é que se pôde dizer pois, com rasão, que eu quero declinar do parlamento a prerogativa importantissima de julgar os actos do governo? Não, senhores! Tendes a competencia para apreciar os procedimentos do governo pelos actos praticados pelo governador civil de Villa Real, como delegado do poder central, mas nunca para julgar essas pretendidas irregularidades que se dizem haver no processo eleitoral das passadas eleições municipaes de Villa Real, porque essas têem o seu assento e a sua cabida natural nos tribunaes administrativos, aos quaes compete julgar as questões d'esta ordem.

Isto é uma grande questão de principios, porque nós todos sabemos que a nossa constituição e organisação politica assenta e se baseia essencialmente na divisão dos poderes publicos, porque se um d'elles invadisse as attribuições dos outros, e o parlamento se transformasse numa verdadeira convenção nacional, avocando as decisões dos tribunaes ordinarios, que seria da liberdade e do paiz, aonde os tribunaes não tivessem a independencia necessaria para julgarem com desassombro, aonde o juiz ao pronunciar o seu voto não tivesse só que pôr a mão na sua consciencia e os olhos em Deus, mas que alem d'isso houvesse de aferidas suas opiniões pelas opiniões do parlamento, e pelos libellos accusatorios mais ou menos vehementes com que mais tarde podessem ser aqui censuradas e flagelladas as suas decisões? Ai do governo e ai do paiz onde esta theoria inaugurasse, como doutrina geralmente recebida e como principio sagrado e inconcusso de boa administração! Não pôde ser. Cada um no seu logar. Os tribunaes são para julgar; o parlamento pôde e deve pedir aos srs. ministros a responsabilidade politica pelos actos, pelos quaes lhes pôde tocar essa responsabilidade.

Escuso de vir para a camara ler o cathecismo dos nossos direitos constitucionaes. Todos o sabem, felizmente. Posto este principio, e arredado de nós, da camara dos deputados, a competencia para julgar das irregularidades que se dizem existir nas eleições municipaes do districto de Villa Real, que nos cumpre? Qual a questão que vemos diante de nós? E, quanto a mim, investigar e apreciar unica e exclusivamente os actos de responsabilidade politica do governo. O mais não nos pertence.

Eis-aqui a questão.

Arguem-se violencias praticadas pela auctoridade, administrativa no districto de Villa Real? Vamos a discuti-las aceito a questão n'esse campo.

Eis-ahi uma questão de direito constitucional! Eis-ahi uma questão grave, que merece a attenção do parlamento! Ha abusos, ha crimes, ha attentados contra a ordem publica, praticados, ou consentidos pelo governador civil de Villa Real? Outra questão em que estou ao lado dos illustres deputados, e onde se pôde exercer franca e desassombrada a acção do parlamento. Que mais querem os illustres deputados? Ahi está demarcada a linha divisoria entre as competencias da camara e a dos tribunaes, entre a competencia de julgar os actos da responsabilidade governativa e a competencia para julgar os actos que, segundo a legislação vigente, pertencem aos tribunaes administrativos.

Eu não venho sustentar theorias novas, e reproduzo apenas as theorias que têem sido sustentadas pelos homens eminentes de todos os paizes, pelos escriptores mais illustrados e competentes n'estes assumptos. Creiam os illustres deputados que eu quando venho aqui affirmar opiniões d'estas, tenho estudado largamente a materia sobre que emitto o meu parecer, porque não confiaria bastante na exiguidade dos meus recursos intellectuaes para defender e sustentar theorias que apenas fossem escudadas no debil amparo da minha opinião. Não quero inculcar ostentosamente erudição que não possuo; citarei porém, como para reforçar as minhas idéas a auctoridade dos srs. Foucart, Ducroq, Vivieu e a bella e admiravel obra de D. Manuel Coleveiro, onde se podem ver substanciosa e lucidamente expendidos os principios a que acabo de alludir sobre a independencia dos tribunaes administrativos, e incompetencia dos outros poderes para julgarem as questões que só a elles toca decidir. N’elles se verá tambem que não sou eu o primeiro que se atreva a aventar similhantes theorias, que tendem a reivindicar para o contencioso judiciario da administração aquillo que de direito lhe pertence, dizendo ao parlamento que se limite a exigir ao governo severa responsabilidade pelo que lhe toca, por aquillo que nos tribunaes não pôde nem deve ser julgado. Estas theorias não são novas, são tão velhas como a liberdade e como a sciencia.

Ha nos actos praticados pelo governador de Villa Real duas ordens de idéas que é necessario distinguir.

O governador civil é delegado do poder central e presidente de um tribunal, é ao mesmo tempo empregado de confiança do governo e membro e vogal do conselho de districto.

Como agente do poder, como seu delegado, o governador civil deve inteira responsabilidade dos seus actos aos seus superiores, assim como estes a devem ao parlamento. Como presidente do conselho de districto e como vogal de um tribunal independente, que tem de se pronunciar em primeira instancia sobre as questões administrativas, que lhe são sujeitas, com recurso para o conselho d'estado, o governador civil deve, como todos os juizes, contas do seu voto a Deus e á sua consciencia. Nessa independencia de opiniões reside a principal força do poder judiciario.

Desgraçado o paiz onde os juizes tivessem de esperar ou de adivinhar as opiniões do parlamento para pronunciarem o seu voto sobre os processos que houvessem de julgar.

Sigamos, pois, estas duas ordens de idéas; vejamos quaes são os actos do governador civil, como empregado de confiança, e quaes os actos da sua responsabilidade como presidente do conselho de districto.

Eis-aqui, quanto a mim, collocada a questão nos seus verdadeiros termos.

O governador civil é accusado de ter proposto a dissolução da camara de Alijó; o governador civil é accusado em segundo logar do seu procedimento no tocante ao incidente das chamadas suspeições politicas, que é a questão que aqui se tem inculcado como de maior gravidade, e a que parece maior impressão ter produzido no animo dos srs. deputados da opposição que têem entrado n'este debate; o governador civil, finalmente, é accusado porque se diz que dois homens na Regua foram collocados á porta da igreja onde se procedia á eleição da camara municipal, a fim de vedarem a entrada aquelles que não eram eleitores.

Eis-aqui os actos de responsabilidade do governador civil, que o sr. Mártens Ferrão, que me precedeu na tribuna, accusou directamente.

S. ex.ª teve o bom accordo de deixar de lado a longa e fastienta historia da eleição municipal de Villa Real, que foi aqui contada em quatro sessões successivas, a seu modo, pelo sr. deputado Pinto de Araujo. S. ex.ª comprehendeu bem que esta questão pertencia exclusivamente aos tribunaes administrativos, e foi por isso procurar tres factos de todo este longo processo para sobre elles formular acrimoniosas e violentas arguições ao governo.

Eu direi francamente que o sr. deputado Mártens Ferrão encarou este assumpto, no meu medo de ver, muito mais avisadamente do que o sr. deputado que encetou o debate. Não partilho a opinião do illustre deputado emquanto suppoz que os actos alludidos são da responsabilidade do governador civil como delegado do governo, e não como