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CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

SESSÃO EM 26 DE FEVEREIRO DE 1864

PRESIDENCIA DO SR. CESARIO AUGUSTO DE AZEVEDO PEREIRA

Secretarios os srs.

Miguel Osorio Cabral

Antonio Carlos da Maia

Chamada — Presentes 62 srs. deputados.

Presentes á abertura da sessão — Os srs. Affonso Botelho, Garcia de Lima Annibal, Vidal, Soares de Moraes, Carlos da Maia, Quaresma, Eleuterio Dias, Gouveia Osorio, A. Pinto de Magalhães, Mazzioti, Mello Breyner, Pereira da Cunha, Pinheiro Osorio, Magalhães e Aguiar, Pinto de Albuquerque, Barão da Torre, Barão do Vallado, Freitas Soares, Albuquerque e Amaral, Abranches, Almeida e Azevedo, Ferreri, Almeida Pessanha, Cesario, Domingos de Barros, Poças Falcão, Bivar, Coelho do Amaral, Fernandes Costa, Borges Fernandes, F. L. Gomes, F. M. da Costa, Blanc, Sant'Anna e Vasconcellos, Mendes de Carvalho, J. A. de Sousa, J. J. de Azevedo, Nepomuceno de Macedo, Sepulveda Teixeira, Torres e Almeida, Mello e Mendonça, Neutel, José Guedes, D. José de Alarcão, J. M. de Abreu, José de Moraes, Oliveira Baptista, Julio do Carvalhal, Camara Leme, Mendes Leite, Murta, Pereira Dias, Miguel Osorio, Modesto Borges, Monteiro Castello Branco, Charters, R. Lobo d'Avila, Fernandes Thomás, Simão de Almeida, Thomás Ribeiro e Visconde de Pindella.

Entraram durante a sessão — Os srs. Braamcamp, Ayres de Gouveia, A. B. Ferreira, Sá Nogueira, Correia Caldeira, Brandão, Gonçalves de Freitas, Ferreira Pontes, Seixas, Arrobas, Fontes Pereira de Mello, Antonio Pequito, Lopes Branco, Antonio de Serpa, Zeferino Rodrigues, Barão das Lages, Barão de Santos, Barão do Rio Zezere, Belchior José Garcez, Beirão, Carlos Bento, Cyrillo Machado, Domingos de Barros, Fortunato de Mello, Barroso, Izidoro Vianna, Gaspar Pereira, Gaspar Teixeira, Guilhermino de Barros, Henrique de Castro, Medeiros, Silveira da Mota, Gomes de Castro, Mártens Ferrão, Aragão Mascarenhas, Calça e Pina, Joaquim Cabral, J. Coelho de Carvalho, Matos Correia, Rodrigues Camara, J. Pinto de Magalhães, Lobo d'Avila, Ferreira da Veiga, José da Gama, Galvão, Silva Cabral, Sette, Fernandes Vaz, Luciano de Castro, Casal Ribeiro, Costa e Silva, Frazão, Sieuve de Menezes, Silveira de Menezes, Menezes Toste, Gonçalves Correia, Batalhós, Mendes Leal, Camara Falcão, Levy Maria Jordão, Freitas Branco, Alves do Rio, Rocha Peixoto, Manuel Firmino, Sousa Junior, Pinto de Araujo, Vaz Preto, Placido de Abreu, Ricardo Guimarães e Teixeira Pinto.

Não compareceram — Os srs. Adriano Pequito, Abilio, Lemos e Napoles, David, Peixoto, Palmeirim, Oliveira e Castro, Pinto Coelho, Conde da Azambuja, Cypriano da Costa, Drago, Abranches Homem, Diogo de Sá, Ignacio Lopes, Gavicho, Bicudo, F. M. da Cunha, Pulido, Chamiço, Cadabal, Pereira de Carvalho e Abreu, João Chrysostomo, Costa Xavier, Fonseca Coutinho, Albuquerque Caldeira, Ferreira de Mello, Simas, Faria Guimarães, Infante Pessanha, Alves Chaves, Figueiredo de Faria, Latino Coelho, Alvares da Guerra, Rojão, Affonseca, Moura, Alves Guerra, Marianno de Sousa, Moraes Soares e Vicente de Seiça.

Abertura — Ao meio dia e tres quartos.

Acta — Approvada.

EXPEDIENTE

1.º Declaro que se estivesse presente na sessão de 23 do corrente, teria approvado a proposta do sr. Mártens Ferrão, ácerca das suspeições politicas, e teria rejeitado a proposta do sr. José Luciano. = Joaquim José Coelho de Carvalho.

Mandou-se lançar na acta.

2. Declaro que se estivesse presente na sessão do dia 23 do corrente, votava pela moção do sr. deputado Mártens Ferrão. = Vaz Preto.

Mandou-se lançar na acta.

3.º Uma declaração do sr. Costa e Silva, de que o sr. Abilio Costa não tem comparecido nem poderá ainda comparecer a algumas sessões por incommodo de saude. — Inteirada.

4.º Do sr. Carlos da Maia, de que por doente não compareceu ás sessões de 23 e 24 do corrente. — Inteirada.

5.º Um officio da camara dos dignos pares, acompanhando a copia authentica do acto do reconhecimento do Serenissimo Principe Real o Senhor D. Carlos Fernando, como successor ao throno d'este reino, a fim de ser depositado no archivo d'esta camara. — Para o archivo.

6.º Da mesma camara, devolvendo, com as alterações ali feitas, o projecto de lei sobre o modo de contar a antiguidade ao primeiro tenente da armada, Francisco Teixeira da Silva. — Á commissão de marinha.

7.º Do ministerio do reino, acompanhando o processo da eleição de um deputado ás côrtes pelo 2.° circulo da provincia de Moçambique. — Á commissão de poderes.

8.º Do mesmo ministerio, participando que por carta regia de 23 do corrente houve Sua Magestade El-Rei por bem nomear par do reino ao sr. deputado José Bernardo da Silva Cabral. — Inteirada.

9.º Do ministerio da fazenda, devolvendo informadas as representações em que os aspirantes de 2.ª classe das repartições de fazenda dos districtos de Lisboa, Portalegre e Porto pedem augmento de ordenado. — Á commissão de fazenda.

10.° Do ministerio das obras publicas, devolvendo informada a representação dos amanuenses d'este ministerio, em que pedem augmento de ordenado. — Á commissão de obras publicas.

11.° Uma representação da camara municipal de Vizeu, pedindo que se discuta e approve o projecto de lei para a liberdade do commercio dos vinhos. — Á commissão de vinhos.

12.° Dos sub-delegados dos procuradores regios nos julgados do districto da Guarda, pedindo que se lhes estabeleça um ordenado. — Á commissão de legislação, ouvida a de fazenda...

13.° Dos empregados da secretaria do conselho de saude publica do reino, pedindo augmento de vencimentos. — Á commissão de administração publica, ouvida a de fazenda.

14.° Da associação industrial portuense, pedindo a solução da representação que dirigiu a esta camara na sessão passada, em que se pedia a revogação da resolução n.° 80 da commissão das pautas das alfandegas, do anno passado. — Á commissão de fazenda.

EXPEDIENTE

A QUE SE DEU DESTINO PELA MESA

REQUERIMENTO

Requeiro que o governo remetta a esta camara o officio do governador civil de Portalegre de 5 de agosto de 1863, enviado á direcção dos proprios nacionaes, em que pedia a concessão provisoria do extincto convento de S. Francisco, do Castello de Vide, para a camara municipal d'este concelho estabelecer n'elle as aulas publicas da dita villa de Castello de Vide. = J. M. de Abreu.

Foi enviado ao governo.

SEGUNDAS LEITURAS

PROPOSTA

Requeiro que a mesa dê para ordem do dia da sessão immediata d'esta camara, a eleição da commissão de inquerito sobre os factos praticados na eleição de Villa Real. = A. J. Braamcamp.

Foi admittida á discussão.

O sr. Sant'Anna e Vasconcellos: — Parece-me que na proposta não vem designado o numero dos membros de que essa commissão se deve compor, portanto proponho que seja de sete, por me parecer um numero regular.

Foi approvada a proposta, assim como que fosse composta de sete membros.

REQUERIMENTO

Peço que se publique no Diario de Lisboa a conta enviada pelo ministerio da justiça da verba mandada abonar ao encarregado do regulamento do credito hypothecario. = José Maria de Abreu.

Foi admittido e logo approvado.

O sr. Presidente: — Previno os srs. deputados que na primeira parte da ordem do dia de ámanhã será a eleição da commissão de inquerito.

O sr. Blanc: — Mando para a mesa um parecer da commissão de fazenda.

O sr. Julio do Carvalhal: — Mando para a mesa um projecto de lei (leu). Peço a v. ex.ª que este projecto seja remettido quanto antes á commissão de fazenda.

O sr. Freitas Soares: — Mando para a mesa dois requerimentos pedindo esclarecimentos ao governo (leu-os).

Peço a v. ex.ª que tenha a bondade de me inscrever para quando estiver presente o sr. ministro das obras publicas e o sr. ministro do reino, porque desejo chamar a sua attenção sobre differentes negocios publicos.

O sr. Thomás Ribeiro: — Já ha bastante tempo apresentei aqui uma nota de interpellação e um requerimento para serem remettidos ao ministerio do reino.

No requerimento pedia eu que me dessem alguns esclarecimentos sobre uma investigação ou syndicancia a que se tinha mandado proceder, relativamente a alguns actos do administrador do concelho de Arouca; e a nota de interpellação era com relação a actos praticados pelo administrador do concelho de Castello de Paiva.

Emquanto ao requerimento já recebi uma resposta da secretaria do reino, que de fórma alguma me pôde satisfazer.

A resposta que veiu da secretaria foi que —a inquirição a que se tinha procedido a respeito dos actos do administrador de Arouca, tinha sido remettida ao juiz de direito, e que por consequencia não me podiam mandar esses esclarecimentos que eu pedia.

Ora, sr. presidente, eu entendo que a respeito de um negocio d'esta gravidade, quando se tinham feito a um funccionario administrativo tantas e tão graves accusações como se fizeram ao administrador de Arouca, nunca devia o governo que tinha mandado proceder a essa inquirição deixar de tomar conhecimento d'esses actos do seu administrador. Que elle a mandasse para o poder judicial concebo perfeitamente, mas que se mandasse sem ficar uma copia d'esses papeis ou d'essa investigação é o que não posso conceber de fórma alguma. Por consequencia entendo que esta resposta que me foi mandada pela mesa ao meu requerimento, senão prova, como não prova de certo, a inhabilidade do governo, porque eu acredito muito na capacidade de todos os ministros, dos que hoje estão gerindo os negocios publicos como dos que os precederam, prova pelo menos e irrefragavelmente a incuria e o desleixo que ha em todas as nossas cousas.

Estes esclarecimentos são importantes, mas não tenho remedio senão curvar-me á necessidade de passar sem elles, visto que nas secretarias d'estado não existem, nem se pedem ás do respectivo conselho de districto. Basta só que a camara e o paiz saibam a resposta que me deram.

Emquanto á nota de interpellação, permitta-me v. ex.ª que continue a instar por ella. Na occasião em que a apresentei limitei-me simplesmente a enunciar o meu pensamento, e a mandar para a mesa a nota tal qual a tinha redigido; mas não se tendo o illustre ministro do reino e presidente do conselho dignado acceder ao meu convite, feito pelas palavras e pela fórma mais urbana que era possivel, quero dar a v. ex.ª e á camara conhecimento do motivo por, que o interpelava e continuo a interpellar.

Têem-se questionado muito no parlamento e na imprensa as violencias de Villa Real; apresentaram-se na imprensa, e sabe o paiz inteiro os attentados de Fafe? Pois saiba mais; quero narrar-lhe tambem as violencias eleitoraes que se praticaram no concelho de Paiva, e quero apresenta-las com um documento official que tenho na mão.

Esta molestia que se vae estendendo por, todo o paiz, de concelho a concelho, de circulo a circulo, de districto a districto e de freguezia a freguezia é um symptoma que nos póde aterrar um pouco pelo futuro d'este paiz.

Um facto singular é já um caso de importancia, mas ainda pôde ter uma certa desculpa; quando porém estes factos se, multiplicam, é preciso que o governo os tome muito em consideração, para prover de remedio energico e prompto.

Eu peço licença á camara para lhe ler uma acta, que encontro publicada no Nacional de 21 de janeiro, e que vem comprovar aquillo que eu tinha annunciado a v. ex.ª:

«Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1864 e aos 15 dias do mez de janeiro do dito anno, nos paços do concelho de Castello de Paiva, sendo presente o presidente da camara municipal do mesmo concelho, Luiz Paulino Pereira Pinto de Almeida, para se proceder á eleição da commissão recenseadora, na fórma do § 2.° do artigo 23.° do decreto eleitoral de 30 de setembro de 1852, visto não se poder effectuar no dia de hontem, por não concorrer numero sufficiente de eleitores e outros não quererem comparecer, apesar de serem chamados pelo official da camara, e responderem, que não precisavam de ser chamados, como tudo melhor consta da respectiva acta. E sendo dez horas da manhã, estando o referido presidente para mandar fazer a chamada, entrou pela porta dos paços do concelho, para dentro, uma força de policia armada (a qual antes dos eleitores entrarem para dentro dos paços do concelho, tinha na praça publica d'esta villa carregado as armas com polvora e bala).

O sr. Sant'Anna e Vasconcellos: — Ouçam, ouçam.

O Orador: — Ouçam, sim, ouçam! É muito serio e muito grave este facto (muitos apoiados); peço á camara que attenda (apoiados). Trata-se ainda de uma aggressão violenta) á liberdade da uma, olhe a camara bem pelas immunidades constitucionaes! (Muitos, apoiados.) Olhe bem a camara que os eleitores para esta eleição eram os cavalheiros principaes do concelho; eram os quarenta maiores contribuintes. Não, adduzo esta circumstancia para os considerar mais, porque voto igual consideração aos quarenta maiores, á que voto aos quarenta menores contribuintes de qualquer concelho (apoiados); mas porque é de suppor se que n'estes resida mais independencia e illustração. Pois o administrador de Paiva não recuou diante dos factos cuja narrativa estou lendo; e peço a camara, como lhe pedia o illustre deputado, que ouça bem o que vae seguir-se:

«Carregando as armas com polvora e bala, e ali (dentro da casa da camara) prendeu os cidadãos Manuel Moreira da Fonseca, de Nejães de Real, e Chrispim da Silva Moreira, da Falperra de Fornos. Em seguida o respectivo regedor e alguns cabos de policia entraram na sala da assembléa, e chamaram para a secretaria da administração o eleitor João de Bessa, de Bestello de Real, o qual repugnava em saír da sala, porque estava o presidente a fazer a chamada; porém o regedor de novo o intimou dizendo que o levava preso; em vista do que aquelle eleitor saíu da assembléa para a administração. Logo depois foi chamado o cidadão Manuel Francisco, da Feiteira, o qual tambem repugnava em saír, por se estar para proceder á eleição, e depois de feita a chamada. Porém veiu o administrador do concelho intimar aquelle eleitor para saír para a administração, o que o mesmo cumpriu. Á vista de taes factos requereram varios eleitores ao presidente que a eleição se suspendesse, porque estavam coactos, e se levasse este facto ao conhecimento do governo de Sua Magestade para mandar o que for de justiça... ao que o mesmo presidente annuiu e mandou levantar a sessão, ordenando que de tudo se lavrasse a presente acta, que vae assignar com varios eleitores presentes, depois de lida por mim Antonio de Carvalho, secretario da camara que a escrevi e assigno.»

(Seguem-se doze assignaturas.)

Eu respeito muito a opinião de todos os meus collegas; respeito muito os sentimentos liberaes que na maior parte d'elles imperam; mas desejava que nos não limitassemos unicamente a dizer todos os dias que somos liberaes (apoiados); estimava mais que nós provássemos ao paiz que o somos effectivamente (apoiados); não basta dizer que se pertence ao partido ultra liberal; para sermos o que inculcamos é necessario que todos os nossos actos estejam em harmonia com as nossas palavras (muitos apoiados).

Ha já muitas sessões que eu chamei a attenção do sr. ministro do reino sobre estes factos. S. ex.ª tem conhecimento d'elles, porque, para lhe dar esse conhecimento, é que esta acta se lavrou; e comtudo não vem!

Pois, sr. presidente, eu sei que pela minha pessoa valho pouco, mas como representante do paiz creio que valho muito (apoiados); apesar d'isso, o nobre ministro que tem obrigação de responder á minha interpellação, ainda não designou o dia para o fazer.

Eu faço justiça ao gabinete; sei que tem muitos negocios a que dar expediente todos os dias, mas a par d'isso, vejo que alguns dos srs. ministros têem vindo á camara dar rasão aos illustres deputados interpellantes, e quizera que o nobre ministro do reino imitasse o exemplo.

Pela minha parte, não quero hoje fazer o commentario destes factos, aliás muito graves; espero que o sr. Minis-

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tro do reino venha á camara responder á minha interpellação, o por essa occasião direi o mais que tenho a dizer.

O sr. Barão do Vallado: — Mando para a mesa um parecer da commissão de administração publica, sobre um projecto de lei do sr. Lopes Branco, tendente a melhorar a salubridade da villa de Montemór o Velho.

Aproveito esta occasião para declarar á camara que, por incommodo de saude, não tenho podido comparecer a algumas sessões antecedentes.

O sr. Pinto de Araujo: — Pedi a palavra para chamar a attenção do sr. ministro das obras publicas, sobre o estado de atrazo em que se acha a construcção da estrada marginal do Douro.

Ainda me não foi possivel obter a palavra, estando s. ex.ª presente, para fazer algumas considerações sobre este objecto, porque julgo de necessidade que se dêem providencias para se effectuar a conclusão d'aquella estrada, visto que para ella foi votado um imposto especial e se contrahiu um emprestimo na importancia de 100:000$000 réis; o qual, segundo me consta, já está gasto, não sei se na construcção d'aquella estrada, se em outras obras.

Como não está presente o sr. ministro das obras publicas, peço a v. ex.ª que me reserve a palavra para quando s. ex.ª comparecer na camara, a fim de poder obter as explicações que preciso a este respeito.

Já que estou com a palavra farei uso d'ella, não para chamar a attenção do governo sobre alguns actos que vou referir, pois não está presente nenhum dos srs. ministros, mas para que o governo tenha conhecimento do que disser, pelo extracto da sessão, para dar providencias que tendam a restabelecer a ordem em alguns pontos do districto de Villa Real.

Por informações que tenho de pessoas muito auctorisadas d'aquelle districto, sei que em alguns pontos têem havido varios conflictos já entre habitantes das mesmas freguezias, já entre habitantes de differentes freguezias do mesmo concelho, e já entre freguezias de concelhos limitrophes.

Este estado não pôde durar muito tempo. A estes conflictos tem dado causa, em grande parte, algumas assignaturas, que se têem andado a colher por todo o districto, por ordem das auctoridades administrativas e pelos regedores, para representarem aos poderes publicos, pedindo a conservação do actual governador civil.

O sr. Affonso Botelho: — Peço a palavra.

O Orador: — Estas assignaturas têem sido extorquidas ao povo debaixo de outros pretextos...

O sr. Julio do Carvalhal: — Peço a palavra.

O Orador: — Pedem as assignaturas com o fim de requererem certos melhoramentos para as localidades, e a final apparecem essas assignaturas garantindo representações, no sentido que já disse, algumas das quaes creio que já foram apresentadas n'esta casa, e outras não tarda que o sejam.

Estes factos têem dado logar a varios conflictos, têem até exacerbado os animos a ponto de haverem espancamentos, ferimentos graves e desordens ainda de maior importancia.

Eu não sei se o governo se compraz em conservar o estado de desordem e anarchia em que se acha o districto de Villa Real. Parece-me que o governo não deveria estabelecer como norma e principio de administração um similhante estado (apoiados); é certo que o governo não deveria estabelecer como principio de administração um estado tão irregular, tão anomalo, tão desordeiro e anarchico.

O estado em que se acha o districto de Villa Real pede promptas providencias para que similhantes factos se não repitam, o para que as auctoridades administrativas entrem no cumprimento dos seus deveres, deixando de illudir os povos para em nome d'ellas virem manifestar perante os poderes publicos uma vontade que esses povos não podiam exprimir quando deram essas assignaturas.

Parece-me que a causa de todo este mal provém de certo do estado apathico em que se acha o governo, por não tomar providencias sobre os acontecimentos de que a camara já tem noticia, e que se deram no districto de Villa Real, por occasião das ultimas eleições municipaes.

A causa primaria de tudo isto está ahi.

Parece-me pois que emquanto o governo não tratar de combater esta causa, e de expurgar radicalmente o mal que dahi provém, de certo a ordens n'aquelle districto é impossivel.

Usando do meu direito como representante do paiz, e dando conhecimento d'isto ao governo, cumpro um dever imperioso, para obstar a que ámanhã factos de uma ordem mais grave se repitam, e que possa vir dizer-se n'esta casa que excitações estranhas deram causa a isso. Foi este o motivo por que usei agora da palavra, mesmo na ausencia do governo, para fazer estas ligeiras considerações.

E preciso que quando um districto se tem dirigido aos poderes publicos pelo modo como o de Villa Real o tem feito, quando os factos praticados n'este districto são completamente attentatorios da boa administração publica, que o governo não seja indifferente aos clamores dos individuos que Usam de um direito que lhes confere a lei fundamental do paiz, que despreze esse direito, que se não attendam, e se lhes responda com um indifferentismo, que não está em harmonia com as in intuições que nos regem.

Desejo tambem fallar n'uma outra questão que me parece ser summamente grave, e que o governo precisa ou resolve-la de prompto ou pelo menos fazer sciente á camara e ao paiz o modo como tenciona resolve-la. Refiro-me á questão do commercio dos vinhos do Douro.

Esta questão está suspensa em virtude da declaração feita pelo governo na sessão passada, de que esperava que subissem ao seio da representação nacional todas as representações feitas pelos interessados de um e outro lado, para tomar uma resolução. Em as representações vieram; existem no seio da commissão; o governo até hoje não fez saber á commissão que tinha desejos ou de a ouvir n'essa questão, ou de saber o seu parecer sobre as representações que têem vindo á camara.

Tendo eu sido increpado de ter certas idéas a respeito da questão do Douro, não posso deixar de instar constantemente com o governo para que ella venha aqui, porque tenho uma necessidade absoluta de expender a minha opinião para responder no parlamento ás insinuações que lá fóra se me querem fazer, e com as quaes se pretende collocar-me n'uma posição avessa aos interesses da lavoura.

Parece-me que nas differentes vezes que n'esta casa tenho fallado a este respeito, tenho emittido sempre a idéa de protecção a respeito do Douro; mas não tenho idéa nem vou de certo tão longe como alguns dos meus collegas deputados pelo paiz vinhateiro do Douro, porque entendo que a epocha actual não permitte que se restabeleçam idéas de outros tempos, e principios de uma ordem que não podem sustentar-se em harmonia com as nossas instituições; conheço porém que a par d'isto se pôde apresentar uma medida que torne segura a industria e a agricultura vinicola do Douro, que dê garantia ao commercio dos vinhos de modo que não vá prejudicar a lavoura nos seus interesses, especialmente a que está ao abrigo da demarcação do alto Douro.

Não posso deixar pois, como disse, de instar com o governo para que esta questão venha á camara, para que declare e manifeste de uma maneira franca e leal a sua opinião, para que nós saibamos, o paiz, o commercio e a lavoura qual a opinião do governo, qual o seu modo de pensar em tão momentoso assumpto. É necessario que esta questão não se apresente aqui com uma certa ambigua de, sem saber o que se quer, nem pelo lado do governo, quando se apresentar a defender a liberdade do commercio dos vinhos do Douro, nem o que se quer pelo lado daquelles que combatem este principio. É preciso que esta questão se ponha nos seus verdadeiros termos.

Tambem tenho que chamar a attenção do sr. ministro do reino para um facto que ha pouco succedeu em Lamego, e foi a dissolução da mesa da santa casa da misericordia d'aquella cidade, mandada substituir por uma commissão nomeada pelo governador civil de Vizeu.

Não ponho em duvida, nem ninguem pôde pôr, a interferencia da auctoridade administrativa nos estabelecimentos de piedade, porque as nossas leis administrativas mandam que aquellas auctoridades vigiem por esses estabelecimentos, que façam com que as leis se mantenham, e com que a natureza. d'elles não se desvaire por fórma que deixem de servir ao fim pio e caritativo para que foram instituidos.

E certo porém, permitta-se-me a phrase, que, se a lei administrativa dá este principio de tutella ás auctoridades administrativas sobre as corporações de piedade, a auctoridade administrativa não deve abusar d'essa protecção para fazer manejos politicos com a influencia que essas corporações possam exercer no momento dado de uma eleição qualquer.

A mesa da santa casa da misericordia de Lamego era composta de cavalheiros que mereceram sempre toda a respeitabilidade aos individuos que os elegeram, e d'elle era provedor o nosso collega n'esta casa, o sr. Pinheiro Osorio, que me parece ha seis annos successivos tem sido constantemente reeleito provedor d'aquella misericordia. Já se vê que uma reeleição tão prolongada mostra a confiança da irmandade n'aquelle cavalheiro para estar á frente d'aquelle estabelecimento; e a confiança que a irmandade mostra ter em relação aquelle cavalheiro, reflecte-se de certo nos individuos que eram eleitos para, conjunctamente com elle, tomarem parte na gerencia d'esse estabelecimento.

Por motivos porém que não se podem explicar, o governador civil de Vizeu entendeu que devia dissolver a mesa da santa casa da misericordia. É note a camara que entendeu que a devia dissolver em rasão de a mesa declarar que não podia satisfazer a uma requisição por elle feita, com relação a uns mappas do movimento do hospital e de contabilidade, que elle lhe pediu, organisados por modelos, que elle lhe enviou, em que exigia uma escripturação que comprehendesse o anno civil, quando a contabilidade d'aquelle estabelecimento é feita pelo anno economico; o que está approvado pelo compromisso d'aquella casa e garantido pelo tribunal de contas, que successivamente tem approvado as contas da gerencia d'aquelle estabelecimento sem pôr duvidas a esse respeito.

O estabelecimento pois entendeu que devia duvidar em satisfazer á requisição do governador civil, porque era contraria ás leis que regem o estabelecimento. O governador civil insistiu, e a mesa, não querendo tornar-se remissa ás exigencias d'aquella auctoridade, satisfez a ellas, declarando n'um officio em separado que satisfazia para obedecer e não por obrigação, porque as leis da casa lh'a não impunham.

Este foi o pretexto invocado para a dissolução da mesa da santa casa da misericordia. Foi nomeada uma commissão, para a substituir, e n'essa commissão metteu-se um membro da mesa dissolvida. Perguntando-se a rasão por que um membro da mesa dissolvida podia fazer parte da commissão nomeada, respondeu-se que esse membro não tinha assignado o officio que deu causa á dissolução. Replicando-se que não tendo o provedor da santa casa assignado o officio alludido por estar ausente, era logico que a simile do outro membro da mesa fosse chamado a formar parte da commissão. Não se deu resposta alguma, porque não havia resposta a dar.

Já se vê portanto que este facto mostra que houve um fim especial na dissolução da mesa da santa casa da misericordia de Lamego, o qual se deprehende da clausula incerta no alvará da dissolução, como vou notar á camara.

Sendo praxe geralmente seguida e estabelecida em varias portarias, e em diversos pareceres dos procuradores geraes da corôa, que a disposição do artigo 108.° do codigo administrativo que, no caso de dissolução da camara municipal, manda a nova camara seja eleita dentro de trinta dias da posse da commissão municipal, é applicavel ás irmandades e confrarias e estabelecimentos de piedade, no caso de dissolução dos corpos que as regem, o governador civil de Vizeu manda no seu alvará proceder á eleição na epocha regular, que é em julho, e a mesa já fpi dissolvida ha mais de um mez.

Não sei que rasão houvesse para que o governador civil dissolvesse a mesa da misericordia de Lamego; para que estabelecesse uma doutrina completamente nova com relação á eleição da mesa que tinha de a substituir, a não ser isso determinado por conveniencias especiaes, apparentadas com um fim differente.

O fim principal era, segundo se diz, introduzir na confraria uma porção de irmãos, que podesse contrabalançar a influencia dos que existiam, para fins que se tinham em vista na eleição da nova mesa. Mas felizmente não pôde ir por diante tão desastroso plano, porque ha diversas portarias expedidas pelo ministerio do reino, as quaes, em casos identicos, estabelecem que as commissões nomeadas para substituir as mesas de irmandades, confrarias ou estabelecimentos de piedade não possam admittir irmãos durante a sua gerencia. Isto posto é obvio que a irmandade da misericordia de Lamego está sendo, contra todos os principios administrativos, gerida por um corpo que não pôde estar á frente da administração d'aquelle estabelecimento, porque só podia funccionar trinta dia, e já são passados quasi sessenta.

Faço estas considerações para que ellas cheguem ao conhecimento do sr. ministro do reino, duque de Loulé, porque este facto, diga-se a verdade, foi praticado durante a administração do sr. Anselmo José Braamcamp, e é natural que d'elles ainda não tenha conhecimento o sr. duque de Loulé. Espero que s. ex.ª depois de ter conhecimento d'elle, e do modo pouco regular e nada legal como andou o governador civil de Vizeu n'esta questão, dará promptas providencias para que immediatamente se mande proceder á eleição da mesa que deve gerir aquelle estabelecimento, visto que a commissão nomeada não pôde estar á frente da administração d'elle, porque, segundo a disposição do artigo 108.° e as portarias que ha em esclarecimento a esse artigo, elle é applicavel aos estabelecimentos de piedade da mesma fórma que o é aos corpos municipaes.

Limito aqui as minhas observações, esperando que o governo mostre ter a força necessaria para fazer cumprir as leis e para fazer com que as auctoridades administrativas suas subordinadas não estejam em todo o paiz dando o triste espectaculo de estarem sempre a infringir a lei, de se collocarem superiores a ella, introduzindo com isso uma anarchia completa na administração geral do paiz, como infelizmente na actualidade acontece em quasi todos os districtos.

O sr. Affonso Botelho: — Responderei em poucas palavras ao nobre deputado que tem tomado a seu cargo a governação do estado e a virgindade da uma, de que é um dos mais zelosos protectores.

Relativamente á novella das eleições de Villa Real, permitta-me a camara que eu as qualifique assim, porque conheço o fio de sua historia, e abonarei esse titulo com tudo quanto s. ex.ª tem dito a respeito d'aquelle acontecimento.

Não darei porém grande extensão á resposta que merecia a bem delineada organisação d'aquella novella que foi aqui apresentada pelo sr. deputado, porque a sessão está adiantada, e eu lastimo que tenhamos empregado tanto tempo em questões que transtornam a marcha regular da ordem publica, invadindo as attribuições de um dos poderes independentes do estado, o poder judicial, e peço á camara considere com imparcialidade n'essas desproporcionadas e phantasticas violencias, attribuidas pelo sr. deputado á autoridade civil, que censurava e procurava a todo o custo desacreditar muito antes de ser auctoridade (apoiados); e eu recordo ao illustre deputado, e peço-lhe mesmo, que mande a esta casa uma collecção regular do celebre Douro, periodico (riso), para a camara poder julgar das suas invectivas ao governador civil...

O sr. Pinto de Araujo: — Se aqui se discute a imprensa peço a palavra.

O sr. Borges Fernandes: — Nesse caso tambem peço a palavra.

O Orador: — Eu não discuto a imprensa nem a questão, só quero chamar a attenção da camara sobre uma notavel circumstancia. Pois houve todo esse cabedal de violencias e de ataques, estiveram os partidos com as armas engatilhadas, e todas essas violencias que a sua lanterna magica projectou com sombras tão gigantescas, e não houve um bofetão 2! Não se pôde fazer maior elogio á auctoridade administrativa!...

O sr. deputado disse aqui diante de todos nós que = houvera um partido que tinha provocado o governador civil a saír fóra do campo legal... =

O sr. Pinto de Araujo: — Peço perdão, não disse isso.

O Orador: — Tenho direito de não ser interrompido.

O sr. Pinto de Araujo: — E eu tenho direito de rectificar quando se altera o que eu digo.

O Orador: — O illustre deputado disse que = o governador civil tinha sido incitado a saír do campo legal, e creio que a camara toda está convencida, assim como o está o paiz, de que os tumultos de que se têem tratado foram preparados muito de antemão pelo suborno e pela fraude, para fazer guerra ao governo e para dominar a vontade dos povos, e creio que o corpo legislativo tem tanta obrigação de zelar e defender a liberdade dos povos atacados pelas seducções, pelas violencias, pelos actos illegaes, como tem de ze-

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lar a execução exacta das leis, que todos nós queremos que se executem pontualmente.

Não me demorarei mais sobre este negocio em que a camara já se pronunciou.

Creio que está reconhecido por todo o paiz que houve grandes violencias, que estavam preparadas muito antes do governador civil tornar posse do seu logar. O governador civil é uma auctoridade de confiança do governo, e o nobre ministro obrou muito bem collocando n'aquelle districto um governador civil que tinha dado excellente conta de si no governo de um districto immediato (apoiados), e que gosa da opinião de homem intelligente e recto, de homem de acção, de homem zeloso do serviço publico.

Ora pergunto eu — se o conluio estava feito, se as trincheiras e fortificações da opposição estavam guarnecidas, não precisa o agente ministerial pelo menos de oppor força á força?

O agente ministerial tem obrigações preventivas, essas obrigações preventivas são talvez a parte mais util e essencial das obrigações do homem que está á testa da administração publica. Essas obrigações preventivas não estão sujeitas a regras absolutas, nem podem deixar de ser discricionarias. Ora, creio que o proprio scenario com que o sr. deputado ornou a representação da excellente novella, que tem custado aos povos as despezas de cinco ou seis sessões inuteis, mostrando o estado em que se pintava o paiz, quanto aquella auctoridade fez para manter a ordem e a verdadeira liberdade dos povos, estava dentro dos limites das suas attribuições preventivas.

Em toda esta discussão ha unicamente um ponto digno da attenção de todos os que amam a verdadeira liberdade, que, como membro d'esta casa, muito desejo que seja completamente definido, para que não possa tornar a ser mascara para annullar factos que constituam verdadeiros motivos de suspeição. Refiro me ás suspeições politicas que sendo, para o caso presente, um sophisma habilmente preparado, são na realidade uma cousa de maior consideração a que muito se deve attender, porque com ellas a liberdade não poderia estar segura (Vozes: — Ouçam, ouçam.); porque pela mesma rasão que os grandes legisladores antigos não estabeleceram penas para o parricidio...

O sr. Presidente: — Eu lembro ao sr. deputado que este assumpto está discutido.

O Orador: — Pois bem, eu vou concluir dizendo que, pela mesma rasão aos legisladores liberaes não lembrou legislar sobre suspeições politicas; pensamento astutamente aproveitado para esta fabula, mas sobre o qual é preciso haver lei clara e bem definida. Sou amigo dos membros do conselho de, districto que foram suspeitos, não posso porém deixar de reconhecer, com os habitantes de Villa Real, que n'elles havia motivos de suspeição no caso de que se trata...

O sr. Presidente: — Torno a dizer ao sr. deputado que esse assumpto foi já discutido, e que não o posso deixar continuar a tratar d'elle.

O Orador: — Sujeito-me ás decisões da camara, e vou terminar...

O sr. Presidente: — Não posso continuar a deixar fallar o illustre deputado sobre um assumpto que não está em discussão, e que já foi decidido pela camara.

O Orador: — Muito bem; peço a v. ex.ª que me reserve a palavra para ámanhã, antes da ordem do dia, e á camara desculpe se a incommodei; mas não pude deixar de me explicar sobre tão grave assumpto.

O sr. Casal Ribeiro (para um requerimento): — Annuncio simplesmente o meu requerimento; mas, conforme a resposta que v. ex.ª me der, retira lo hei; e provavelmente terei de o retirar. O meu requerimento era para que se concedesse a palavra a quem a pedisse para fallar sobre isto que se está discutindo.

O sr. Presidente: — O sr. deputado é testemunha de que eu, por mais de uma vez, interrompi o sr. deputado que fallava, pedindo lhe que não tratasse de um assumpto que não estava em discussão (apoiados).

O Orador: — Eu sou testemunha de que v. ex.ª, no desempenho do seu dever, advertiu o sr. deputado; mas advertiu-o quando já tinha fallado longamente sobre um objecto que se não podia discutir agora.

Eu não desejo tirar a palavras nenhum dos meus collegas; entretanto permitta-me v. ex.ª que lhe observe que me não parece regular que, depois da camara ter acabado o debate, e feito calar a opposição que queria fallar n'este objecto, se levante em uma sessão um deputado da maioria, e outra sessão outro, para darem explicações antes da ordem do dia, e que a questão das eleições de Villa Real esteja em ordem dia permanente. Parecia me que a questão tinha acabado para a camara, porque para o paiz não acabou de certo; mas, se não é assim, desejo usar do mesmo direito dos illustres deputados.

O sr. Presidente: — Já disse ao illustre deputado que v. ex.ª é testemunha de que, por mais de uma vez, interrompi o orador que estava fallando, advertindo o de que não podia continuar a tratar de um assumpto que já tinha sido resolvido pela camara. Devo tambem dizer ao illustre deputado que quem deu causa a este incidente foi o sr. deputado que hoje primeiro fallou sobre este assumpto (apoiados).

Esta questão não pôde continuar; vae passar-se á ordem do dia.

Se algum sr. deputado tem a mandar para a mesa algumas representações ou requerimentos pôde faze-lo.

O sr. Frederico de Mello: — Tendo-se suscitado algumas duvidas e dado diversas interpretações ao § 6.° do artigo 41.° da le: de 23 de novembro de 1859, o que tem dado logar a que no fôro tenham havido algumas questões judiciaes, e sendo da maior conveniencia evitar estas pelos graves prejuizos que d'ellas resultam ás partes, entendi que devia apresentar um projecto de lei no sentido de ampliar o citado paragrapho, que tenho a honra de mandar para a mesa. Se for approvado pela camara o pensamento d'este projecto, e for convertido em lei, parece-me que assim se evitam as questões -que podem dar-se, e que de facto já se têem dado.

Peço a v. ex.ª que queira dar o destino conveniente a este meu projecto, e á illustre commissão que dê quanto antes sobre elle o seu parecer.

O sr. Sieuve de Menezes: — Mando para a mesa um requerimento, pedindo esclarecimentos ao governo.

ORDEM DO DIA

CONTINUAÇÃO DA DISCUSSÃO DA PROPOSTA DO SR. CASAL RIBEIRO PARA QUE A COMMISSÃO DE FAZENDA FOSSE ENCARREGADA DE EXAMINAR O REGULAMENTO GERAL DE CONTABILIDADE DE 12 DE DEZEMBRO DE 1863 E DAR SOBRE ELLE O SEU PARECER, NA PARTE EM QUE CARECER DE SANCÇÃO LEGISLATIVA.

O sr. Presidente: — Continua o sr. Casal Ribeiro com a palavra, que lhe ficou reservada da sessão passada.

O sr. Casal Ribeiro: — Faltarei sobre a ordem do dia. Mas como transição e rasão de ordem de um para outro assumpto, permitta-se me dizer que o meu intento, pedindo a palavra para um requerimento, não era censurar a presidencia, nem pretender impor silencio a nenhum dos meus collegas. Se essa missão pertence a alguem, não é a mim. As minhas reflexões tendiam unicamente a pedir que se estabelecesse direito igual para todos, e mais que tudo a pôr era relevo o procedimento da maioria n'esta questão.

Passando a tratar do objecto que está em ordem do dia, por abreviar prescindo de ligar as observações que tenho a apresentar hoje com as que apresentei na ultima sessão, e vou directamente ao assumpto.

Deixo de parte a questão da opportunidade do regulamento geral de contabilidade de 12 de dezembro do anno passado. Deixo de parte a questão de opportunidade, na qual tinha apenas tocado na primeira vez que fallei, conservando ainda a mesma opinião que tinha, apesar da resposta que sobre este particular me deu o sr. ministro da fazenda.

Eu sei bem que existe copiosa collecção de disposições sobre a materia; nem era preciso s. ex.ª dar-se ao trabalho de ler uma lista longa de leis, decretos, portarias e regulamentos.

Mas a questão não era essa; a questão não era se as leis eram muitas, muitos os decretos, muitas as portarias e muitos os regulamentos; a questão era se o estado pratico da contabilidade era bastante perfeito para indicar o momento opportuno para a codificação; porque a codificação não presuppõe só a existencia de uma larga legislação, presuppõe principalmente a estabilidade na legislação.

A este estado creio que ainda não tinhamos chegado. Por isso, quando disse que não tinha em 1859 apresentado á sancção regia, conjunctamente com o decreto de 19 de agosto, o regulamento geral da contabilidade publica, não acrescentei que tinha deixado de o fazer só pelo unico motivo de não me julgar auctorisado para isso. Certamente bastara esse motivo para não o promulgar por um decreto do executivo; mas só esse motivo não obstava a que tivesse apresentado á approvação das camaras o regulamento.

Tendo-me referido a elle no relatorio do decreto de 19 de agosto de 1859, disse que seria um complemento util, mas que não entendi que seria aquelle o momento opportuno de o pôr em pratica.

Ponho de parte esta questão, que é demasiadamente pequena. S. ex.ª entendeu de outra maneira, que a occasião para a codificação tinha chegado, que a devia fazer, e fê-la. O mais que pôde acontecer, e que tem de acontecer, na minha opinião, é que a codificação em muito breve terá de ser emendada, alterada e substituida, deixando de existir n'ella a unidade.

Tambem deixo de parte a pequena questão da origem do regulamento da contabilidade: disse por incidente, e repito, que em 1859, quando estive no ministerio, existiam já muitos trabalhos feitos sobre este objecto. S. ex.ª sabe-o muito bem, nem o contestou. Não duvido, e é natural mesmo, que este trabalho depois soffresse alterações e modificações, ou mesmo que se fizesse trabalho completamente novo. Pouco me importa tambem qual foi a base do projecto do regulamento. Tanto o actual como o projecto de 1858 tem a sua verdadeira origem nos regulamentos francezes de contabilidade ou de 1838 ou de 1862. N'esta parte observou-me o sr. ministro que se tinha guiado mais particularmente por este ultimo trabalho de 1862, que não é outra cousa mais que a reproducção do de 1838, com poucas alterações.

Notarei n'esta parte ao sr. ministro que quando da outra vez fallei referi-me ao regulamento de 1838, porque julgava que tinha servido este de base ao seu trabalho; e ainda hoje me parecia que podia melhor servir para o objecto, do que o regulamento de 1862, apesar de mais moderno. Vou dizer porquê.

As principaes alterações que se encontram no regulamento de 1862, em relação ao anterior, como o nobre ministro não ignora, e todos podem verificar em um excellente artigo do repertório do sr. Dalloz, acompanhado das tabellas comparativas dos artigos de um com os do outro regulamento: as principaes modificações, repito, que soffreu o regulamento de 1838 na reforma de 1862 derivam da nova organisação politica de França, e tiveram em vista pôr de accordo os principios da contabilidade legislativa com o regimen da organisação imperial.

O regulamento de 1858 era obra da monarchia representativa. O regulamento de 1862 pertence á epocha imperial. Era preciso em França modificar o regulamento de 1838, para o pôr de accordo com as novas instituições politicas. Como as nossas instituições politicas não mudaram, como temos a fortuna de as conservar... E aqui vejo me obrigado a interromper-me, porque me accusou a consciencia de não ser completamente exacto. É certo porém que conservámos, de direito ao menos, a monarchia representativa. E certo que a possuimos na lei fundamental escripta e que a guardámos nos corações, nos sentimentos e nos affectos do povo portuguez. Oxalá os factos não desmentissem a verdade pratica, entre nós, da monarchia constitucional e representativa! (Muitos apoiados.)

Ora, tendo a fórma do nosso direito politico reconhecido a monarchia constitucional, melhor serviria de base ao sr. ministro o regulamento feito em França em 1838, no regimen da monarchia representativa, no qual as regras da contabilidade legislativa estão em harmonia com esse systema do que o regulamento de 1862 adoptado por outra fórma politica.

Quanto ao mais, as principaes alterações que o regulamento geral de contabilidade de 1862 apresenta em relação ao anterior, são provenientes das ultimas reformas iniciadas em França pelo sr. Fould, pelas quaes acabaram os creditos supplementares e extraordinarios (apoiados), e foram substituidas pelo systema das transferencias ou virements. Ora esta não é ainda a legislação entre nós, nem está reconhecida no regulamento, nem podia estar. Entre nós continuam a subsistir os creditos supplementares e extraordinarios, e não está adoptado o systema das transferencias.

Sendo estas as principaes alterações da reforma do regulamento francez, já o nobre ministro vê que dizendo-lhe eu que s. ex.ª tinha tomado por base do seu trabalho o regulamento de 1838, não era para de modo algum deprimir os seus conhecimentos e erudição n'esta materia, nem por suppor que s. ex.ª não estava ao facto de que existia uma reforma d'esse trabalho; mas que ao contrario julgava fazer-lhe justiça, imaginando que adoptava uma base mais analoga ás nossas instituições.

Deixo já a questão de origem, e vou occupar me da questão principal. Seja qual for a base que o nobre ministro tomou para o seu trabalho, o mais interessante de averiguar é se effectivamente ha no regulamento disposições que contenham materia legislativa; se as ha, a camara não poderá recusar a sua approvação á minha moção, para que vão, pelo menos, á commissão de fazenda aquellas disposições do regulamento em que visivelmente se conheça que ha materia legislativa (apoiados) que não podem vigorar sem que sejam sanccionadas por lei (apoiados). Vou portanto á questão especial. Trata-la-hei summariamente e com a brevidade que poder; mas sou obrigado n'este ponto a seguir, passa a passo, as observações do sr. ministro.

Sr. presidente, uma das disposições do regulamento geral de contabilidade que mais mereceu a commemoração e elogio do sr. ministro da fazenda foi a que se encontra nos artigos 55.° e 56.° que se referem ao pagamento de despezas, respectivas a exercicios findos.

Eu peço para este objecto a attenção da camara, porque é uma questão importante.

O artigo 55.° diz o seguinte:

«As quantias em divida de cada um dos exercicios findos serão satisfeitas pelo governo, sem dependencia de novos creditos legislativos, quando representarem sommas equivalentes nu inferiores ás receitai de que trata o artigo 37.°, procedentes de reposições relativas a despezas auctorisadas e liquidadas que não fossem satisfeitas no periodo de caria um dos mesmos exercicios, as quaes constituem a referida divida.»

E no artigo 56.° diz-se:

«No caso de que trata o artigo antecedente, e havendo requerimento do legitimo credor, acompanhado de documento comprovativo do seu direito, o governo renovará pelo ministerio competente as ordena de pagamento annulladas no encerramento dos exercicios findos, mediante previa requisição das sommas necessarias dirigida ao ministerio da fazenda, para providenciar convenientemente.»

A estes artigos especialmente se referiu o sr. ministro da fazenda, e tratou de mostrar que, inserindo no seu regulamento estas disposições, tinha feito um bom serviço ao paiz.

Em primeiro logar encontro duvida ácerca do alcance e verdadeira interpretação d'estes artigos, a qual desejava que o sr. ministro tivesse a bondade de elucidar.

Pela maneira como o sr. ministro se explicou, pareceu-me entender (e desejo que o nobre ministro rectifique se me achar em erro, e se não interpreto bem as suas palavras); pareceu-me entender, digo, que das disposições do regulamento se ficava concluindo que todas as receitas de exercicios findos eram applicaveis a despezas de exercicios findos. Não sei se foram estas verdadeiramente as explicações do sr. ministro; mas pelas notas que tomei, pela insistencia que elle fez n'este ponto, pela maneira por que o defendeu, pelas allegações que apresentou a respeito da justiça que assistia aos credores, que todos os dias se apresentavam no thesouro a reclamar o pagamento das suas dividas, e aos quaes se não podia pagar, por estarem comprehendidos nos exercicios findos, por todas estas rasões, parece-me que o illustre ministro entendia que eram applicaveis as receitas de exercicios findos por cobrar, ás despezas de exercicios findos por satisfazer...

O sr. Ministro da Fazenda: — Dentro do mesmo exercicio.

O Orador: — Mais me confirmo na opinião em que estava. S. ex.ª entende que as receitas por cobrar pertencentes a exercicios findos ficam d'aqui em diante destinadas para fazer face ás despezas dos exercicios findos correspondentes. O nobre ministro teve a bondade de explicar as suas idéas, e vejo que me não tinha enganado. Pois digo ao nobre ministro que isto não pôde ser (apoiados); digo que isto não é, e não ha de ser.

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Em primeiro logar abro o orçamento, o orçamento actual, o orçamento que está presente para o anno seguinte, e encontro na proposta de lei de receita o artigo 2.°, que diz:

«Continuarão igualmente a cobrar-se no mesmo exercicio os rendimentos do estado que ficarem por cobrar em 30 de junho de 1864, qualquer que seja o exercicio a que pertencerem, applicando-se do mesmo modo o seu producto ás despezas publicas auctorisadas por lei.»

Ora esta lei é a lei do orçamento...

O sr. Ministro da Fazenda: — As dividas são anteriores.

O Orador: — Aqui diz se = qualquer que seja o exercicio = (apoiados).

O sr. Ministro da Fazenda: — É nos annos anteriores; eu explicarei.

O Orador: — O nobre ministro explicará. Entretanto vou eu explicando agora (apoiados).

Ha uma somma de receita, de exercicios anteriores, que no dia 30 de junho de 1864 está por cobrar, como acontece todos os annos. Esta somma, diz o parlamento, se se votar o artigo tal qual está, e se for convertido em lei, para o anno seguinte o orçamento que nos foi presente, é applicada ás despezas d'esse anno de 1864-1865 (apoiados). Não se faz excepção, toda a somma se applica ás despezas votadas n'esta lei (apoiados). Toda a somma que se cobrar no anno de 1864-1865, embora pertencente a exercicios findos, é applicada ás despezas do anno de 1864 a 1865. E o artigo 2.° da lei que o diz. E não o diz só o artigo da lei. S. ex.ª calcula no orçamento a receita dos addicionaes extinctos, e pergunto se esta não é pertencente a exercicios findos? (Apoiados.)

Mas não é só isto. O sr. ministro, com rara admiração de todos, apresentou um orçamento sem deficit (apoiados). Ha vinte annos que não possuíamos a fortuna de um orçamento sem deficit. Desejo que d'esta vez se mostre que houve mais acerto e mais certeza de calculo do que ha vinte annos, quando se apresentava um orçamento sem deficit, e que pouco depois estavamos na mais horrorosa crise pecuniaria e politica por que temos passado (apoiados). Ha vinte annos estavamos desacostumados de tão apreciavel raridade; coube este anno ao sr. ministro a gloria de nos fazer essa saborosa surpreza.

E bem posso chamar-lhe surpreza, porque n'este anno ha um augmento de despeza no orçamento de mais de réis 500:000$000 em relação ao anno passado; e quando no anno passado havia um deficit confessado de perto de réis 2.000:000$000 (apoiados), n'este anno, como por encanto, desapparece o deficit!

O nobre ministro, adoptando para o calculo das receitas um methodo novo e habil, tinha quasi chegado a este resultado. Faltava-lhe porém alguma cousa na somma pequena. Restava cerca de 300:000$000 réis de deficit. Não vale a pena um deficit tão miseravel. Era preciso acabar com este resto de deficit, que ainda ahi ficava accusando os nossos financeiros, os nossos desleixos, ou os nossos infortunios.

O nobre ministro arremetteu contra esse pequeno deficit com a espada de Alexandre. No relatorio assegura nos que nem mesmo estes 300:000$000 réis de deficit hão de existir; antes vão desapparecer por duas rasões. É a primeira, que a receita ainda ha de produzir mais que a somma em que vem calculada; e isto apesar de que o calculo excede em larguissimas sommas todas as cobranças. É a segunda rasão, e é esta que vem para o nosso caso, que para acabar de extinguir o deficit se applicaria a receita de exercicios findos, cobravel em 1864-1865, e que o excedente d'esta receita sobre a propria do anno, que ficará por cobrar em 30 de junho de 1865, deve reputasse em 120:000$000 réis.

O sr. Ministro da Fazenda: — E do exercicio findo passado; d'aqui em diante é que se põe ponto.

O Orador: — Ora, sr. presidente, o nobre ministro já nos disse que o regulamento estava em grande parte suspenso até 30 de junho de 1864...

O sr. Ministro da Fazenda: — São exercicios findos, preteritos.

O Orador: — Entendo perfeitamente e todos nós entendemos. O regulamento está em parte suspenso até 30 de junho de 1864. Pois até quando fica suspensa a disposição do artigo 55.°?

E quando começa a vigorar este orçamento? E no dia 1 de julho de 1864. No dia 1 de julho de 1864 ha de estar o regulamento todo em execução ou não? Que diz o regulamento? Que as despezas de exercicios findos não pagas serão satisfeitas pelas receitas correspondentes que se forem cobrando. E esta a intelligencia que acaba de lhe dar o seu auctor. Pois bem; este orçamento vae applicar ao exercicio futuro de 1864-1865 receitas que pelo regulamento são applicadas a despezas dos annos anteriores. Por consequencia o regulamento e o orçamento estão em manifesta discordancia...

O sr. Ministro da Fazenda: — Os calculos fizeram-se sobre os exercicios preteritos.

O Orador — Se alguem entender, ou tiver afortuna de me explicar melhor o que pretende o sr. ministro, faz um grande favor...

O sr. Ministro da Fazenda: — Eu explicarei.

O Orador: — Explicará!... Com muito gosto ouvirei a explicação do sr. ministro. Mas em vista do que está disposto e claramente determinado no artigo 2.° da lei da receita, nem podia estar lá outra cousa, é claro que a lei do orçamento não se refere ao preterito, refere-se ao futuro. Trata-se de despezas proprias de 1864-1865, que hão de ser em parte pagas com receitas proprias dos exercicios anteriores. Isto é evidente (apoiados). Se essas receitas tivessem de ser applicadas ao pagamento de despezas de exercicios preteritos, não podiam os 120:000$000 réis provenientes o d'elles vir attenuar o deficit do orçamento de 1864-1865 (apoiados).

Está pois o orçamento em manifesta opposição com o regulamento, e para fazer desapparecer esta desharmonia, ou se ha de alterar o regulamento n'esta parte, ou não se pôde votar o artigo 2.° da lei de despeza tal como está redigido (apoiados).

Até agora tratei só de notar a discrepancia que existe entre o regulamento e o orçamento. Resta saber quem tem rasão, segundo a lei — se o regulamento se o orçamento? A esta interrogação respondo que a rasão pertence ao orçamento contra o regulamento (apoiados). E digo que tem rasão o orçamento contra o regulamento, quer se entenda o regulamento no sentido amplo que lhe dá o sr. ministro de se applicar toda a receita de exercicios findos ás despezas respectivas a esses exercicios, quer se entenda mais restrictamente, como eu o entendia, pela leitura do artigo 55.°, e apenas com a applicação ás reposições que correspondem á parte dos creditos legislativos, que dentro do exercicio não teve applicação.

De qualquer modo que se entenda, a disposição do regulamento é contra lei, e não pôde ter execução (apoiados); e n'esta parte não tem rasão o regulamento, e sim o orçamento (apoiados).

A lei para o objecto de que se trata é o decreto com força legislativa de 19 de agosto de 1859, promulgado em virtude de uma auctorisação dada ao governo pelo parlamento. Esse decreto, no artigo 47.°, diz o seguinte:

«Artigo 47.° O praso em que devem consumar-se os actos da despeza de cada exercicio e os da receita quanto á contabilidade sómente, fica reduzido ao periodo de dois annos, desde 1 de julho de 1859 em diante.»

Eis-aqui a lei.

O exercicio finda pela lei, dois annos depois de aberto, quer dizer, o exercicio dura o anno a que se refere e mais outro. Findo o exercicio caduca a auctorisação legislativa dada ao governo pela lei de despeza, para pagar qualquer despeza das que estejam mencionadas no orçamento; essa auctorisação cessa completamente (apoiados), morre; e o governo não pôde pagar nem mais um ceitil por conta das despezas votadas no orçamento, passado o anno a que se refere e mais um, sem pedir ao parlamento e obter nova auctorisação. Este é o preceito da lei (apoiados), esta é a regra estabelecida, á qual se não pôde de modo algum fugir (apoiados).

E que diz o sr. ministro da fazenda no seu regulamento?

Diz: «Paguem-se estes creditos, paguem se despezas de exercicios findos, sem dependencia de nova auctorisação legislativa». É precisamente este o ponto da questão. O governo não pôde de seu motu proprio alargar o praso da au ctorisação parlamentar.

O direito dos credores não cessa findo o exercicio. Mas não basta isto, é preciso que o governo tenha auctorisação para lhe pagar, porque o estado não é um particular, não administra como o particular. O particular se tem dinheiro paga immediatamente o que deve, logo que se lhe prova que deve. Mas o ministro da fazenda não o pôde fazer; o ministro da fazenda representa apenas uma parte dos poderes publicos, e não pôde pagar sem auctorisação parlamentar, embora reconheça e esteja convencido e lhe seja provado o direito ao que se deve (apoiados).

Diz o sr. ministro: «Os credores vão bater ás portas do thesouro». Pergunto, que fará o sr. ministro da fazenda se um credor se lhe apresentar com uma sentença do poder judicial contra a fazenda, para lhe pagar uma certa somma, se não tiver verba para lhe pagar? Que faz? Paga? Não paga. E não pagando, desconhece por ventura a auctoridade do poder judicial? Não. Diz, não posso pagar, porque não tenho auctorisação, vou pedi-la ao parlamento (apoiados). Que faz o nobre ministro aos credores, por exemplo, do papel moeda, ou do hospital da marinha, ou a tantos outros, que não têem meios consignados para o pagamento dos seus creditos, se elles lhe forem pedir o pagamento? Paga-lh'os? Não. Nega-lhes o direito? Tambem não. Responde lhes, e muito bem, que não pôde, porque não tem auctorisação do parlamento, e que não pôde pagar sem ella; e diz lhe que a vem pedir ao parlamento, ou que a peçam elles. Estas é que são as regras.

A questão aqui não é de reconhecer ou não o direito dos credores; a questão é de saber quem pôde auctorisar o pagamento. Toda a auctorisação de despeza parte necessariamente do parlamento, toda a auctorisação de despeza que não é dada pelo parlamento, ou derivada do seu voto, é illegal; toda a auctorisação de despeza conferida no orçamento caduca passados dois annos. Estes é que são os principios e as regras (apoiados).

E estas disposições têem uma rasão de ser; importam uma limitação na auctorisação legislativa; e esta auctorisação pôde o governo augmenta la ou diminui-la, e não pôde a seu talante prescindir d'ella e dizer como diz no regulamento— estes creditos pagam-se sem dependencia de auctorisação legislativa. Pois digo ao nobre ministro que os não pôde pagar em vista da lei sem dependencia de auctorisação do parlamento, e que se os pagar não ha quem possa approvar similhantes pagamentos, e que ficam inteiramente fóra da lei apesar do regulamento (apoiados).

É preciso não confundir esta especie com a prescripção. O nobre ministro na sua argumentação pareceu não distinguir com bastante clareza estes dois pontos, que são essencialmente diversos. Uma cousa é a falta de pagamento por falta de auctorisação, outra cousa é a prescripção de direito (apoiados). A falta de pagamento por falta de auctorisação funda-se na organisação politica, nas bases sobre que ella assenta, nas attribuições parlamentares; mas não importa de modo nenhum negação de direito. Findos os dois annos não se pôde pagar, porque o governo não tem auctorisação; o remedio é pedir uma auctorisação nova. Mas findos os dois annos o direito não prescreve, o credor pôde reclamar sempre. A prescripção é uma cousa inteiramente diversa; a prescripção, como todos os jurisconsultos sabem, tem effeito de extinguir uma divida, e tem outras vezes effeito de adquirir propriedade. Os effeitos juridicos da prescripção são pois — ou extinguir obrigações ou radicar direitos (apoiados); e é esta a base da distincção que fazem os jurisconsultos de prescripção extinctiva e acquisitiva.

Mas o regulamento geral da contabilidade, demasiadamente favoravel aos credores ou demasiadamente compassivo com elles n'uma parte (e digo demasiadamente, porque é contrario n'este ponto ás prescripções da lei), foi na outra parte demasiadamente severo. Ao mesmo passo que por um lado se estabeleceu a possibilidade do governo pagar creditos que não pôde pagar sem uma nova auctorisação legislativa, por outra parte estabeleceu-se que esses creditos prescreviam completamente passados cinco annos.

E n'este ponto dizia-nos o sr. ministro da fazenda: «Pois que importa? A divida prescreve é verdade por cinco annos, porque isso está em uma antiga lei de D. Manuel (á qual logo me referirei); mas isso não obsta a que o governo ou o credor venha solicitar do parlamento uma auctorisação para se pagar».

Bem sei que não obsta; mas entendamo-nos. Para uma divida prescripta, quando se vem solicitar do parlamento o pagamento d'ella, não se pede o cumprimento de uma obrigação, pede se um favor, porque a divida extinguiu se (apoiados); pede se um puro favor, uma graça, uma mercê. O parlamento pôde da la, porque está nas suas attribuições o determinar que se pague por equidade, se assim o entende conveniente, certa somma a certo individuo; mas é um puro favor que faz, não é um direito que se possa reclamar. Desde que a divida prescreveu não ha obrigação de pagar, nem para o estado nem para os particulares (apoiados).

Vamos a ver as disposições do regulamento ácerca da prescripção, e como ellas se combinam com a legislação vigente a este respeito.

Diz o regulamento no artigo 60.°:

«São prescriptos, e definitivamente extinctos em proveito do estado, todos os creditos que, não tendo sido pagos antes dá annullação das ordens de pagamento, respectivas ao exercicio a que pertencerem, não fossem por falta de reclamação ou justificação sufficiente liquidados e satisfeitos no praso de cinco annos, contados da data da abertura do mesmo exercicio.

«§ 1.° Exceptuam-se os creditos pertencentes a menores e a outros que, pelas leis do reino, gosam do direito de restituição.

«§ 2.° Para os credores residentes fóra do territorio europeu o praso da prescripção é de seis annos.»

Ao menos ninguem me contestará que esta materia é legislativa. Dão-se e tiram-se direitos, resolve-se sobre questões de propriedade; não se pôde duvidar de que isto é materia legislativa. Por consequencia o regulamento n'este ponto será regulamento se estiver conforme, inteiramente conforme, a este respeito com as prescripções de direito; mas se eu conseguir demonstrar que está em desaccordo com ellas, parece-me que tenho provado exuberantemente que o regulamento n'esta parte toma as proporções da lei.

Em que se fundam estas disposições do regulamento? Disse-nos o nobre ministro que era nas ordenações de fazenda do tempo de El-Rei D. Manuel, o Feliz, do anno de 1516. Singular coincidencia! Abro o regulamento geral de contabilidade francez de 31 de maio de 1838, e encontro o artigo 103.° que diz o seguinte. Permitta-me V. ex.ª que o leia á camara na lingua em que está escripto:

«Sont prescrites et définitivement éteintes au profit de l'état, sans préjudice des déchéanccs prononcées par les lois anterieures ou consenties par des marches ou conventions, toutes créances qui, n'ayant par été acquittées avant la clôture des crédits de l'exercice auquel elles appartiennent, n'auraient pu, á defaut de justifications suffisantes, être liquidées, ordonnancées et payées dans un delai de cinq an-nées, á partir de 1'ouverture de 1'exercice, pour les créan-ciers domicilies en Europe, et de six années pour les crean-ciers résidant hors du territoire européen.»

Singular coincidencia esta! Ou El-Rei D. Manuel, o Feliz, adivinhou os pensamentos do marquez de Audiffret ou o marquez de Audiffret foi copiar esta disposição do regulamento francez ás ordenações de fazenda de El-Rei D. Manuel; porque, note a camara, a disposição do regulamento, de que estamos tratando, é textualmente transcripta do regulamento francez.

Mas note a camara ainda outra cousa. Esta disposição em França não foi estabelecida, não foi inventada pelo regulamento de 1838, estava lá estabelecida por uma lei, e por isso eu dizia que melhor teria sido ir buscar a base do regulamento ao trabalho da monarchia representativa do que ao trabalho da epocha imperial. A França então tinha monarchia representativa, e não se julgava de certo o ministro, que publicou o regulamento de 31 de maio, auctorisado a publicar esta disposição, se ella não fosse copia fiel de uma disposição legislativa que em França estabelecêra esta regra, talvez a lei de 29 de janeiro de 1831, artigo 9.°, § 1.°, que é aqui citada nas notas do regulamento.

Entrou pois no regulamento francez esta disposição, porque havia lá uma lei que a determinava; e para entrar esta disposição no nosso regulamento era preciso que houvesse uma lei, que igualmente prescrevesse. Existe esta lei? Não existe... Existe, é verdade, coberta de pó nas estantes das livrarias dos curiosos a ordenação de fazenda de El-Rei D. Manuel; e para que a camara fique bem convencida de que não é, nem pôde ser esta a fonte do regulamento de contabilidade (alem de que não está em vigor numa parte, embora o esteja n'outras), lerei o capito 209.° Já vê que o estylo é diverso, não está escripto com aquella elegancia

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de linguagem, com a correcção da phrase do regulamento do marquez de Áudiífret, mas segundo a moda financeira d'aquelle tempo.

No capitulo 209.° diz o seguinte: «Que passados cinco annos, as partes que n'elles não requererem as dividas que El Rei dever, percam seu direito...

«Outrosim pelo dito modo mandámos que a dita maneira (trata-se da prescripção de cinco annos) se tenha era todas as dividas que nós devamos, a que sejamos obrigados de nossa fazenda; assim por nossas cartas, alvarás, desembargos, certidões, e a lembranças, e dos vereadores de nossa fazenda, e contadores que para isso nosso poder tiverem; como quaesquer outras obrigações que de direito sejamos obrigados da maneira que dentro nos ditos cinco annos hajam d'isso despacho, etc..»

Eis-aqui o texto. Falla-se aqui da prescripção de cinco annos, não ha duvida. Mas, suppondo por um momento que esta determinação é obsoleta, como é na minha opinião, pergunto ao nobre ministro onde encontra n'esta ou em outra lei a prescripção de seis annos para os que estão fóra da Europa? Está na ordenação de El Rei D. Manuel? Não. Está no regulamento geral francez, porque estava na lei franceza (apoiados).

Dizem-nos, que este trabalho é bom e util, é opportuno, porque é a codificação das disposições sobre a contabilidade.

Muito bem. Se é codificação, é preciso que comprehenda todas, e não lance os executores em grandes duvidas (apoiados).

Ó nobre ministro lembrou se, não sei se antes ou depois, de fazer o regulamento da ordenação de fazenda d'El-Rei D. Manuel; mas do que se não lembrou foi da lei de 12 de agosto de 1853, que é de uma epocha muito mais recente Esta lei estabelece no artigo 1.° o seguinte:

«São considerados extinctos os vencimentos das classes inactivas, qualquer que seja a sua proveniencia, de que se não tiverem notado recibos durante tres annos, contados depois do mez a que pertencer a ultima nota.»

E tambem uma lei de prescripção, uma lei especial para certas e determinadas especies; e não se applica a todos, mas a certos credores do estado.

Ora, é notavel como lembrou a disposição da ordenação d’El-Rei D. Manuel e como esqueceu a lei de 12 de agosto de 1853 (apoiados), lei recente e em pleno vigor!... Porventura considera-se revogada esta disposição? Não sei. Subsiste? Porque se omitte na codificação? E quando se allega isto, responde o nobre ministro: «As leis lá estão, subsistem e o regulamento não pôde revogar leis». De accordo; mas por isso mesmo que as leis subsistem, o regulamento omittindo as deixa de ser codificação (apoiados); e como se quer que tenha esse caracter, é bom e conveniente que se não omittam as disposições legislativas que estão em vigor, ao passo que se inserem outras que caíram em desuso (apoiados).

Tambem o regulamento faz distincção dos creditos provenientes de contratos onerosos ou creditos de outra natureza. A junta, em uma consulta appensa ao relatorio, declara que não é possivel que os creditos por contratos onerosos fiquem sujeitos á prescripção de cinco annos. N'esta parte tem rasão a junta. A lei e a conveniencia são contra o regulamento.

Já demonstrei, e a meu ver de uma maneira irrecusavel, que a ordenação de 1516 não é a fonte do regulamento, porque bastava a simples rasão de não estar na ordenação a prescripção de seis annos; desafio, empraso o nobre deputado, que creio se dispõe a fallar n'esta questão; emprazo, digo, o meu nobre amigo, que é um jurisconsulto distincto, a que me diga em que lei portugueza encontra esta disposição?

A verdade é, que o capitulo 209.° da ordenação de fazenda de El-Rei D. Manuel é obsoleto, completamente obsoleto; não tem tido applicação nos tribunaes. Esta especie de prescripção é considerada obsoleta por todos os jurisconsultos, e eu convido o sr. relator dá commissão de fazenda a que me cite os jurisconsultos que o consideram de outra maneira. Pela minha parte referirei o sr. Correia Telles e o sr. Coelho da Rocha, que escrevendo sobre as diversas prescripções excepcionaes não apresentam esta, citando aliás como em vigor a disposição do capitulo 210.°, que estabelece para os direitos activos da fazenda a prescripção de quarenta annos. Nem se admire o nobre ministro, porque apesar da sua intelligencia não é sua especialidade a jurisprudencia. Não imagine que por estar em vigor uma disposição de uma lei, se siga que todas o estão. Ha leis revogadas em parte; ha leis obsoletas em parte. Nenhum jurisconsulto o duvida.

O capitulo 209.° da ordenação de El-Rei D. Manuel é effectivamente obsoleto, não se encontra mencionado por nenhum auctor de jurisprudencia, não se encontra praticado no fôro ha seculos.

E demais, se procurarmos a rasão historica d'aquella disposição podemos encontra-la com facilidade.

O capitulo 209.° da ordenação estabeleceu para os creditos sobre a fazenda a prescripção de cinco annos.

Note-se porém que na legislação d'aquella epocha existiam em regra prescripções curtas; e esta mesma prescripção de cinco annos se dava entre particulares, e era direito commum para os individuos residentes no mesmo logar, como se vê na ordenação Manuelina. Este direito foi modificado no tempo de El Rei D. João III, em que se estabeleceram como direito commum prescripções mais largas; e a lei de D. João III foi fonte da ordenação Filippina que ainda hoje vigora.

Aqui se vê como a disposição do capitulo 209.° da ordenação de fazenda de 1516 estava em harmonia com as disposições do direito commum d'aquella epocha, consignadas na ordenação Manuelina, e como deixa de o estar com o direito commum actual.

Creio que tenho demonstrado que a disposição do regulamento não está em harmonia com a nossa legislação.

Não se trata de saber se ha de ou não haver prescripção, como disse o sr. ministro da fazenda. Não se trata de saber se ha de ou não haver reciprocidade entre os creditos contra o estado e os creditos do estado contra particular. Nunca tal reciprocidade existiu. O estado sempre teve privilegio; os seus creditos contra particular não prescrevem nem por cinco annos nem por trinta, mas por quarenta.

O que se trata de saber é se os creditos contra o estado estão sujeitos ás regras de direito commum em tudo aquillo em que não haja lei especial. Acho dura uma prescripção tão curta. Não me parece bastante largo o praso d'ella.

E verdade que existe em França, mas por uma lei. E note o sr. ministro que isto tem dado logar a grandes questões, a interpretações dos jurisconsultos, e que os tribunaes nas suas decisões não se têem sujeitado sempre á prescripção dos cinco annos.

Para apresentar um exemplo. Vaga uma herança a favor do estado, porque não apparece herdeiro, e o estado toma conta d'ella; pôde o herdeiro apresentar-se a reclama-la não só dentro dos cinco annos, mas passados elles. É esta a jurisprudencia dos tribunaes francezes, porque restringem a prescripção de cinco annos á extinctiva, e não a estendem á acquisitiva.

Essa porém seria a questão de jure constituendo, de que não tratámos agora. Do que estamos tratando é de examinar se a disposição do regulamento é ou não conforme a lei; e que o não é parece-me incontestavelmente demonstrado.

Tocarei ainda alguns pontos exemplificativamente, porque se quizesse citar, e acompanhar das demonstrações respectivas, todos os artigos do regulamento que estão em discordancia com as leia, seria um não acabar. Não fique pois a camara entendendo que são os unicos aquelles que refiro, e que, na minha opinião, nada mais ha que seja contrario á lei. Apresento apenas os que me parecem mais frisantes.

Passo a tratar do que diz respeito a obras e fornecimentos.

Seja-me permittido observar, de passagem, uma cousa. Sei muito bem que esta materia, que respeita a obras publicas, a fornecimentos, e ao modo por que hão de ser contratados, em concurso ou fóra d'elle, se encontra compilada no regulamento geral de contabilidade francez. Mas nesta parte permitta-se-me que seja opinião rainha, que se encontra mal n'aquelle regulamento, e que melhor seria que não se trasladasse para aqui, porque isto não faz objecto de contabilidade; são regras de administração; não fixa o modo de organisar contas nem de as tomar; mas modo de administrar. „

Emquanto a mim bem omittidas seriam estas disposições no regulamento geral de contabilidade publica. Entretanto, uma vez que n'elle se encontram, tenho que as apreciar.

Ao mesmo tempo tenho de perguntar ao sr. ministro se elle considera que isto não é só um regulamento de contabilidade, mas um regulamento geral de administração publica, como parece por estas disposições; e, se o é, se sobre elle foi, como a lei manda, ouvido o conselho d'estado (apoiados).

Sobre este ponto a lei de 15 de julho de 1857, que foi citada pelo sr. ministro da fazenda, e que effectivamente é o assento da materia, estabelece as regras que se encontram no artigo 67.° do regulamento, apesar de uma certa divergencia de palavras, que eu desejaria que não se encontrasse; porque, a querer-se dizer no regulamento a mesma cousa que está n'aquella lei, era melhor repeti-la pelos mesmos termos, para não se levantarem duvidas.

O regulamento diz no artigo 67.° o seguinte:

«Era regra, todas as obras de novas construcções, seja de que natureza forem, devem ser feitas por meio de concurso publico.»

A regra geral portanto é o concurso. E quando a natureza das obras seja tal que o concurso não se possa estabelecer na maior largueza, ou se o preço offerecido não for vantajoso, pôde se fazer a obra por conta do estado.

É esta a disposição capital do artigo 68.* do regulamento.

O artigo 68.° estabelece as excepções, e as excepções são as seguintes:

«A regra estabelecida no artigo antecedente soffre as seguintes excepções:

«1.ª Construcções navaes;

«2.* As obras que, por sua natureza e importancia, não podendo estar sujeitas, sem inconveniente, a uma concorrencia illimitada, convindo por isso submette-las a restricções que não admittam ao concurso senão pessoas previamente reconhecidas pelo governo com os requisitos necessarios para as executarem, não offereçam em resultado das propostas dos concorrentes em praça preços rasoaveis ou garantias seguras.»

Emquanto a este paragrapho, digo que apesar de divergir da redacção da lei que lhe serviu de base, parece-me ser identico no pensamento.

«§ 3.° As obras cujo custo não exceder a quantia de 1:5001000 réis.»

Quanto ao custo das obras disse o sr. ministro que =era necessario fixar o minimo =. Não tenho duvida em votar por uma lei este minimo; porém não está votado em lei nenhuma; e é preciso marcar que de uma certa quantia para baixo não ha concurso. Na lei franceza está estabelecido o minimo de 10:000 francos. Entre nós não.

Agora quanto aos fornecimentos, diz o artigo 70.° o seguinte:

«Artigo 70.° É perfeitamente applicavel aos fornecimentos para o serviço do exercito e da marinha, ou para qualquer outro serviço publico, a regra estabelecida no artigo 67.° d'este regulamento.

Ǥ unico. Exceptuam se:

«1.° As compras de objectos para o expediente do serviço das repartições do estado, que são pagas pelas sommas destinadas ás despezas miudas das mesmas repartições, e em geral os fornecimentos cuja despeza não exceder á quantia de 1:500$000 réis;

«2.° Os fornecimentos que, em casos de reconhecida urgencia determinada por circumstancias imprevistas, não possam soffrer a demora da adjudicação em praça, ou que por motivo de interesse do estado não convenha fazer em hasta publica.»

Ora esta excepção final é tão larga que mata completamente a regra. Não se trata dos casos de reconhecida urgencia e de circumstancias especiaes; trata-se d'aquellas em que, por motivos de interesse do estado, não convenha fazer hasta publica. Eu entendo que sempre tudo quanto faz o governo é no interesse do estado, ao menos segundo elle o entende; mas o governo d'este modo faz-se juiz, e juiz arbitrario. Disse se que os fornecimentos se farão por concurso ou sem concurso, á vontade do ministro, determinada pelas suas convicções. É o arbitrio nem mais nem menos.

Mas póde-se deixar este arbitrio á administração? Em que lei está isto estabelecido? Onde se encontra o sr. ministro? Não se pôde consentir que se diga tal. Fornecimentos em que poderá haver ou deixará de haver concurso, conforme o sr. ministro entender! E melhor dizer não haverá nunca concurso. Seria mais regular isto?

N'esta parte declaro a v. ex.ª que o regulamento não foi copiado do regulamento francez, porque isto é que lá não está; isto é que não está no regulamento de 31 de maio de 1838, do tempo da monarchia representativa.

Isto não se pôde encontrar nas leia de nenhum paiz onde se segue os verdadeiros principios da administração, e as formas constantes.

Não nos diga o sr. ministro que esta disposição está aqui para o caso de guerra, como s. ex.ª disse. Os casos de guerra regem se por estes principios. Solent leges inter arma. Nos casos de guerra as circumstancias são superiores ás leis. Não é para os casos de guerra que está estabelecido aqui o artigo; não é para os casos unicamente imprevistos e urgentíssimos; é para todos os outros. Isto não está na nossa legislação, nossa legislação franceza, nem na legislação de nenhum paiz que queira estabelecer boas regras de administração, porque d'esta maneira a unica cousa que se estabelece é o arbitrio do ministro (apoiados).

Passo a outro ponto. É o que diz respeito á accumulação de vencimentos. O assento d'esta materia é o decreto de 30 de junho de 1844, e este decreto diz o seguinte:

«Artigo 1.° é prohibida a accumulação de dois ou mais vencimentos, sejam de que natureza forem, pagos pelos cofres do estado; exceptuam-se:

«1.° As pensões concedidas em remuneração de serviços relevantes, assentadas com esta declaração.

«2.° As gratificações por commandos militares e outras similhantes, estabelecidas por lei.»

Vejamos o artigo correspondente do regulamento. É o artigo 17.°, que diz o seguinte:

«Art. 17.° E prohibida a accumulação, no mesmo individuo, de soldos ou ordenados, embora se ache desempenhando diversas funcções do serviço publico. § unico. Exceptuam-se d'esta regra: 1.° As gratificações concedidas aos que accumulam diversos serviços.

«2.° As accumulações auctorisadas por leis especiaes.» Sr. presidente, as palavras do regulamento são mais amplas do que as palavras da lei. A lei falla de vencimentos e o regulamento falla de soldos e ordenados. A lei diz que te exceptuam as gratificações por commandos militares e outros similhantes, e é claro que, se a intenção do legislador fosse exceptuar toda e qualquer gratificação, não usava d'estas palavras.

O regulamento diz gratificações por diversos serviços. Os vencimentos das classes inactivas não se acham comprehendidos na disposição do regulamento. Estes não se denominam soldos ou ordenados; são pensões, subsidios, ou tem outras designações, que todas ellas se comprehendem debaixo da designação generica de vencimento. Por isso querendo-se estabelecer a regra geral, bem andou o legislador quando no decreto de 1844 disse todos os vencimentos. E dizendo-se no regulamento soldos e ordenados, pergunto se pela disposição do regulamento se pôde accumular com outro vencimento uma pensão sem especialidade de serviço relevante? Parece que sim. Mas a lei é contraria, completamente contraria.

Vou terminar, porque o assumpto é fastidioso e não desejo occupar por muito tempo a attenção da camara. Termino referindo-me á materia dos artigos 41.° e 42.° do regulamento.

Dizem esses artigos o seguinte:

«Artigo 41.º A lei annual das receitas deverá conter a auctorisação para o governo poder representar, dentro do respectivo anno economico, uma parte dos rendimentos por ella votadas, e realisar sobre a sua importancia as sommas em dinheiro de que carecer para fazer face aos encargos do serviço publico.

«Artigo 42.° Quando se der o caso da existencia de um deficit no orçamento geral do estado, a lei actual das receitas auctorisará o governo a supprir, pelos meios extraordinarios que a mesma lei indicar, a differença entre a receita e a despeza do respectivo anno economico.»

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Foi referindo-mo a estas disposições que eu disse e repito— que o regulamento legislou para o parlamento, porque isto não é outra cousa (apoiados).

Não se diga como disse o nobre ministro = que o regulamento diz que ao parlamento compete votar a receita e a despeza =. Não está aqui estabelecido sómente, em conformidade com as -leis e a constituição, que a competencia da votação da receita e despeza pertence só ao parlamento; diz-se mais alguma cousa do que isso, estabelecem-se as condições em que ha de ser votada a lei da receita. Diz-se que quando houver deficit, ha de ser auctorisado o governo pela lei da receita a preencher esse deficit por certos e determinados meios.

E que é isto? São regras para o parlamento. São más? Não o digo; não o sustento. Mas estão ellas estabelecidas por lei? Não estão. Eu não duvidarei approva-las, mas é necessario que sejam sanccionadas por lei, porque são essencialmente legislativas.

Pois que quer dizer o que está n'estes artigos? E isto preceito ou prognostico?

Foi referindo-se a este ponto, que o sr. ministro da fazenda apresentou aquelle jocoso exemplo das marés.

Isto não quer dizer (disse s. ex.ª) que é uma obrigação imposta a ninguem; quer dizer que ha certos factos que têem de succeder; é como quando se diz que ha de haver maré cheia ou maré vasia a certa hora.

Esperava ver defender o regulamento pêlo seu auctor de outra maneira mais seria.

Não me parece que estejamos a discutir aqui o almanak de lembranças do nosso amigo o sr. Cordeiro. Não se trata de prognosticar sobre as variações atmosphericas. E ainda assim esses prognosticos podiam falhar apesar da infallibilidade do ministerio (riso). Não é por essa maneira que se pôde defender o regulamento.

Ou o regulamento estabelece preceitos e obrigações, ou é inteiramente vasio de sentido. Não se trata nem de contar factos passados nem de prever factos futuros.

E o facto prognosticado no artigo 42.°, esse facto infallivel e necessario que não pôde deixar de dar-se, esta maré que tem de vir a uma certa e determinada hora, pôde não vir; e tanto pôde não vir, que tem deixado de vir muitas vezes.

O illustre ministro sabe perfeitamente que até 1860 houve muitos orçamentos com deficit, e não se estabelecia meio -certo e determinado de supprir esse deficit pela receita extraordinaria.

O illustre ministro sabe-o muito bem, porque examinou muitos d'esses orçamentos. Só em 1860 começou essa pratica; mas onde está a lei geral que a sancciona?

Já se vê que o prognostico pôde falhar. Mas não se trata de prognosticar; o regulamento não é isto, nem o pôde ser.

Quando as cousas se escrevem n'um documento official, n'um documento que tem a assignatura regia, é necessario que se entenda que hão de ter execução séria, e que para isso é que se escrevem.

O regulamento não deve fazer a historia do passado, nem a historia do futuro. Nós já na resposta ao discurso da corôa, em vez de nos occuparmos de apreciar a questão de fazenda, estivemos historiando o passado; agora no regulamento, não contentes de historiar o passado, queremos já historiar o futuro! (Apoiados).

E demasiada a pretensão historica. Não me posso conformar com ella. A verdadeira historia faz-se de outro modo, avalia-se a outra luz e comprehende-se de outra maneira.

Não desejo fatigar a attenção da camara, e por consequencia termino dizendo que, na minha opinião, o negocio não tem absolutamente senão uma de duas soluções.

Ou o regulamento geral de contabilidade é uma cousa seria, é uma collecção de preceitos regras administrativas que devem ser executadas e cumpridas, ou não é. Se o é, estando provado, como está, que uma grande parte está em contradicção com as leis vigente», e que precisa de ser posta em harmonia com essa lei, é necessario n'esta parte, pelo menos, previsto e sanccionado por lei.

Se o não é, deixem ficar as cousas como estão, deixem correr o regulamento a sua sorte. Que acontecerá? Acontecerá que a repartições do estudo, o tribunaes a quem compete executa lo, naturalmente lho darão tanta importancia como lhe deu o proprio sr. ministro da fazenda, confeccionando o orçamento em manifesta contradicção com o que tinha estabelecido no regulamento.

Não ha mais nem menos que uma d'estas duas soluções. Como homem da opposição, eu podia preferir a segunda, podia preferir que o regulamento corresse a sua sorte, e cai-se por si em desuso completo, porque isso de algum modo podia ferir os intuitos opposicionistas. Mas como homem amigo do meu paiz, prefiro a primeira, porque ha sempre grande mal em se fazerem leis e decretos, em se adoptarem disposições, para não serem executadas e cumpridas; porque isto importa enervar e enfraquecer o principio de auctoridade. Tenho concluido.

Vozes: — Muito bem.

O sr. Faria Blanc: —... (Pouco depois do sr. deputado ter começado a fallar deu a hora, e ficou com a palavra reservada para a sessão seguinte. O seu discurso por inteiro será publicado quando o for essa sessão.)

O sr. Ministro da Marinha: — Mando para a mesa varias propostas de lei.

Ficaram para segunda leitura.

O sr. Presidente: — A ordem do dia para ámanhã é a continuação de que vinha para hoje, e mais os projecto n.°s 18 e 19 d'este anno.

Está levantada a sessão.

Eram quatro horas da tarde.

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