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Discurso que devia ser transcripto a pag. 673, col. 2.ª, lin. 58.ª, no Diario de Lisboa, na sessão de 4 de março

O sr. Levy: — Sr. presidente, entrando hontem na questão da reforma do exercito, diste que = pelo modo por que ella tinha sido encarada pela opposição, podia considerar-se debaixo de varios aspectos, e que apresentava em cada um d'elles, á vista do observador, feições distinctas =. Combatêra a opposição o decreto da reforma emquanto pensava que na organisação decretada havia solidariedade ministerial; era isto muito natural, porque não sendo outro o seu fito senão a queda do governo, era de esperar que atacasse uma reforma em que julgava todo o ministerio solidario. Depois que ficou assentado não haver solidariedade n'aquelle ponto entre todos os ministros, e desde que o sr. ministro da guerra actual veiu propor a revogação do decreto, a opposição mudou de systema o combateu essa proposta, com todas as forças. Empenhando todos os seus esforços n'esta nova phase da questão, empregou diversas especies de argumentos e suscitou varias questões, cuja exposição tive a honra de fazer á camara succintamente, fazendo quanto em mim coube para lhes responder satisfactoriamente, reservando para final a questão dos direitos adquiridos ou da retroactividade. Mas o assumpto tomou depois outra feição caracteristica, exclusivamente politica, cifrando-se na moção do sr. Fontes Pereira de Mello, que concluia censurando o gabinete pelo medo seguinte: «A camara, reconhecendo que o governo não póde nem deve invadir as attribuições do poder legislativo, passa á ordem do dia»; moção que tinha por fundamento a figurada suspensão de um decreto com força de lei, de que era recusado o governo.

N'esta nova phase da questão tive occasião de mostrar que a accusação era contradictoria com os proprios principios sustentados pela opposição, e improcedente por ser falsa, e sobretudo porque partia da idéa de que o governo tinha suspendido o decreto, quando tal não fizera, como procurei demonstrar.

Tenho a intima convicção de que, em tudo quanto hontem disse na camara, estava por mim a verdade e a justiça. Póde da minha parte ter havido erro, é isso proprio dos homens; todavia, o que hontem avancei em sustentação dos principios que apresentei, estou prompto a defende-lo não só na camara, mas ainda mesmo na imprensa; na camara se me fosse permittido ter a palavra depois dos oradores que hão de seguir em sentido opposto, na imprensa todas as vezes que a questão for tratada com a seriedade o gravidade que o assumpto exige (apoiados).

Estou persuadido, e creio que toda a camara me faz n'isso justiça (apoiados), de que em tudo quanto disse hontem não houve a mais pequena offensa ou injuria á opposição considerada era geral, cem a cada um dos seus illustres membros em especial: seria isso indigno do parlamento, repugnava com a minha educação, e finalmente, independentemente d'estas considerações, eu não poderia jamais offender aquelle lado da camara (o esquerdo) aonde conto tantos amigos (apoiados).

Todavia, sem querer discutir a imprensa, porque a imprensa discute-se na imprensa (apoiados), lastimo profundamente, em nome da dignidade d'ella, em nome do systema representativo; lastimo, repito, que um e só um dos orgãos officiaes da opposição, o jornal a Revolução de Setembro, me escolhesse, a proposito d'esta questão, para alvo das suas injurias o calumnias n'uma linguagem torpe e indecente, que revela o intimo grau de abjecção moral, a que não respondo n'esta casa, porque não se discute aqui á imprensa, sobredita uma imprensa d'esta ordem, nem fóra d'ella, porque macularia a minha dignidade respondendo-lhe.

Quasi todos os caracteres honestos têem sido victimas das injurias e calumnias d'aquelle jornal, e não é muito que tambem me chegasse a minha vez, quando nada lhe tem escapado, até o mysterio mais santo e mais augusto da religião que professâmos, a Immaculada Conceição da Virgem Santissima! Lastimando na tribuna este estado de degradação, eu seria injusto se não agradecesse á imprensa da opposição que, embora combatendo as minhas idéas, o fez com a dignidade propria de uma instituição tão respeitavel, sem imitar o exemplo do jornal a que me referi, e no qual espero naturalmente ler ámanhã, para complemento do systema das calumnias, que eu estive hoje a injuriar a imprensa, quando apenas me limitei a stigmatisar, com incontestavel direito, os deploraveis abusos que compromettem a respeitabilidade d'ella.

Antes de entrar, sr. presidente, no ultimo ponto que reservára para a sessão de hoje, devo dizer algumas palavras em relação á questão politica levantada pelo nobre deputado, o sr. Fontes, e á sua moção de censura ao governo pela chamada suspensão da lei.

É necessario dar uma explicação, e parece-me que oposto fazer em meu nome e no da maioria, porque creio exprimir n opinião dos meus amigos politicos n'aquillo que vou dizer.

Declaro que voto contra a moção apresentada pelo sr. Fontes, e estou persuadido que a maioria tambem vota do mesmo modo (apoiados); mas fazendo esta declaração é mister que dê a rasão que nos determina, e que ponha a questão no verdadeiro terreno, para não se dizer a respeito d'ella o mesmo que se disse com relação a outra, isto é, que nós renegâmos os principios escriptos na bandeira do partido liberal e progressista (apoiados).

Eu não voto a moção do sr. Fontes, porque não posso votar que a camara reconhece não poder o governo invadir as attribuições do poder legislativo; não só porque não é necessario, visto como é um principio consignado na carta, a que estamos sujeitos, o á qual obedecemos; mas tambem porque isto não é senão um meio de ir indirectamente irrogar uma censura ao governo (apoiados). Por isso, não obstante toda a consideração que tenho pelo auctor da moção, declaro que hei de votar e approvar a do nobre relator da commissão, o sr. Placido de Abreu.

Entro na ultima questão que me resta tratar, e é a suscitada pelo meu amigo o sr. Camara Leme e pelo sr. Coelho de Carvalho, ao quaes pareceu que a lei teria effeito retroactivo, votado o projecto da commisão, e qualquer que fosse a interpretação dada ás suas expressões.

Esta impugnação não tem fundamento; e não o tem, qualquer que seja a theoria que se adopte na questão da retroactividade nas leis, ou seja a chamada dos direitos adquiridos ou outra que me parece a unica verdadeira o que hontem comecei a expor.

Disse eu que grande numero de jurisconsultos entendiam que a lei só tinha effeito retroactivo quando ía offender direitos adquiridos; mas que este systema era mau, porque peccava logo na base; e com effeito, apesar dos esforços dos jurisconsultos, ainda até hoje lhes não foi possivel achar uma definição satisfactoria da direito adquirido, como elles mesmos reconhecem, podendo dizer-se com um escriptor moderno que, como Protheu, o direito adquirido est insaisissable; on ne peut le predre ni par force, ni par ruse; il échappe á l'étreinte du jurisconsulte épuissé.

E eu poderia demonstra-lo, se isso não fôra fastidioso, fazendo a analyse das principaes definições que têem sido apresentadas por Merlin, Blondeau, Chassat, Valette, Demolombe, Mourlon e Dalloz. Alem de que este systema pecca ainda por outro principio, porque como exceptuados os direitos naturaes do homem não ha direito que não seja adquirido, a lei jamais poderia exercer influencia sobre as relações juridicas existentes ao tempo da sua publicação. Mas ainda admittindo este systema, que tem por base os chamados direitos adquiridos, os escriptores que o seguem entendem que em leis que estatuem sobre os interesses geraes de ordem publica ou politica não ha, nem pôde haver direitos adquiridos; e esta doutrina é sustentada, entre outros, por um dos jurisconsultos que mais profundamente trataram a questão do effeito retroactivo, Mailher de Chassat; entre as leis que aponta como exemplo das que não podem produzir direitos adquiridos, figuram as leis fundamentaes dos diversos ramos da publica administração sobre a instrucção publica, organisação do exercito, etc.

«A lei, diz elle (tomo I, pag. 187), póde estatuir sobre os interesses de ordem publica ou politica; mas não sendo estas disposições senão regulamentos relativos á administração geral da sociedade, não podem constituir direitos adquiridos para ninguem. Disposições d'esta especie, tendo só por objecto o bem do estado, são precarias por sua natureza, porque e da essencia de toda a boa administração que nenhum pensamento, ainda mesmo o do bem presente, seja definitivo; os direitos adquiridos pelo contrario são definitivos por sua natureza». De modo que, segundo esta theoria, as disposições que em relação á sociedade constituem disposições organicas de administração, não são em relação ao individuo mais do que meras concessões ou expectativas, o nunca direitos adquiridos.

E esta é a doutrina não só de Mailher de Chassat, mas ainda de uma auctoridade mais respeitavel para todos nós, que é a do celebre Savigni que, tratando no seu magnifico systema do direito romano moderno da influencia do tempo