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PROPOSTAS SOBRE RECRUTAMENTO

(Continuado do n.º 76, pag. 1054)

PROJECTO DE LEI

Senhores. — A lei do recrutamento de 27 de julho de 1855 e a de 4 de julho de 1859 contêem em si principios de muita equidade e justiça; mas contêem outros que a experiencia ha condemnado, já por injustos, já por inefficazes, já por vexatorios e já por despendiosos.

Sem faltar ao respeito que tributo ás rectas intenções e ao muito saber dos legisladores que decretaram aquellas duas leis, atrevo-me a dizer que ellas não estão boas! E não admira que as primeiras experiencias feitas sobre um objecto tão momentoso, como é a lei do recrutamento, não saissem logo tão perfeitas como era para desejar que o fossem. Mas que a lei actual não está boa, prova-o o estado em que se acham os corpos do exercito, e o clamor publico que se ha levantado contra ella. Que não está boa provam-o tambem os muitos projectos de reforma que têem sido apresentados n'esta camara, já pelo sr. ministro do reino, que na pratica lhe conheceu alguns defeitos, já por um illustrado cavalheiro que ha pouco occupou a pasta da guerra e conhece perfeitamente as precisões do exercito, e já por outros muito distinctos membros d'esta casa que, ou por terem exercido cargos administrativos, ou por terem ouvido as queixas dos povos, e examinado a rasão d'ellas, reconheceram a necessidade de alterar o que existe, e substitui-lo por cousa melhor. E aqui venho eu tambem, senhores, comquanto me reconheça o mais humilde e o menos entendido membro d'esta camara, desempenhar a minha consciencia de mandatario da nação, offerecendo-vos considerações que julgo conducentes ao fim a que deve mirar a lei do recrutamento; e conto que vós não olhareis á pequenez intellectual de quem vo-las offerece, mas sómente aos principios de equidade e justiça que ellas encerram.

Não é meu pensamento restringir a area sobre que se lança o tributo de sangue, mas sim alarga-la, e muito, para que, pesando esse tributo sobre um maior numero de mancebos, se torne menos pesado e menos injusto. Não é meu pensamento difficultar o ingresso de soldados no exercito mas sim facilita-lo. Não é meu pensamento prejudicar lavoura, as artes e o commercio, roubando-lhes os braços precisos, mas sim evitar que se lhe roubem tantos! Não meu pensamento complicar, tornar mais difficil e mais caro o processo do recrutamento, mas sim simplifica-lo, aligeira-lo e torna-lo mais barato.

E poder-se-ha conseguir tudo isto? Creio que sim; se não vejamos.

Nós os portuguezes somos geralmente baixos, e desenvolvemo-nos tarde; d'onde se segue que de trezentos mancebos chamados ao recrutamento na idade de vinte a vinte e um annos, apenas ametade d'esse numero tem a altura e robustez exigidas; vindo assim o tributo de sangue a pesar unicamente sobre aquelles que tiveram a desfortuna de crescer mais cedo. Mas se fizermos o recrutamento na idade de vinte e um a vinte e dois annos, dos trezentos mancebos apenas quarenta escaparão ao recrutamento por não terem as condições exigidas. Isto só o ignora quem não tem tratado d'este objecto, nem lhe ha prestado attenção.

Os soldados de artilheria e os de cavallaria precisam ser convenientemente altos; mas nos corpos de infanteria, nos de caçadores, nos de sapadores, nos artifices engenheiros e na marinha tão bom serviço póde fazer um soldado com um metro e cincoenta e seis centimetros de altura, como com tres ou com quatro centimetros menos; e eu antes quero soldados baixos e reforçados do que soldados altos e delgados.

Todo o homem tem igual obrigação de servir a patria e a lei deve, quanto possa, ser igual para todos; mas aonde está a igualdade perante a lei, onde a igualdade e a justiça, se nós vamos dispensar do recrutamento milhares de mancebos com o frivolo pretexto de que têem menos um ou menos dois centimetros do que exíge a leve apparencia militar?! Pois a boa apparencia militar é cousa que deva ter-se tanto em conta, quando sobre o regimen constitucional se trata de fazer leis tão pesadas como é a da contribuição de sangue para o remoçamento do exercito?

Ainda outro inconveniente, senhores: muitos dos mancebos recrutados na idade de vinte a vinte e um annos não têem adquirido o desenvolvimento physico preciso para supportar as marchas e as fadigas do serviço; e é d'ahi que principalmente resulta a grande mortalidade com molestias de peito, que se nota nas fileiras do exercito, em comparação com a que se dá nos que se occupam em outros misteres.

Alem do que dito fica sobre a injustiça de fazermos pesar a contribuição de sangue sómente sobre os que tiveram a desdita de crescer mais cedo, eu vejo no futuro um grande inconveniente! Pela lei actual do recrutamento nós compellimos indirectamente todos os mancebos a estarem solteiros até aos vinte e dois annos de idade, para escolhermos d'entre elles os mais altos, os mais robustos e os mais perfeitos! E o que resulta d'aqui? Resulta que o matrimonio até aos vinte e dois annos só é contrahido pelos mancebos rachiticos ou por aquelles cujos defeitos physicos lhes dão a certeza de serem isentos. Mettidos nas fileiras os mancebos altos e fortes, prohibimos-lhes ainda de se casarem, e como muitos d'elles morrem antes de voltar ao seio das familias, outros trazem a saude arruinada, e a maior parte habituados ao celibato e a uma vida menos pudica, olham com desprezo para a santidade do matrimonio, segue-se que confiada a procreação, quasi exclusivamente, aos homens pequenos e achacados, a raça portugueza degenerará de dia para dia, e no porvir não só teremos uma raça debil e apoucada mas tambem será forçoso, depois de conhecido o mal pelos effeitos, alterar a lei e diminuir a altura que ora se exige. E não seria mais racional dispensarmos os mais altos, os mais bem talhados e os mais morigerados? Isto é, não seria um passo de sensatez o fazermos uma lei que indirectamente contribuisse para o robustecimento da especie, e para o aperfeiçoamento dos costumes?

Vamos agora a encarar a questão por outra face. Não ouvimos nós, senhores, gritar todos os dias no parlamento, na imprensa e em toda a parte (e com sobeja rasão) contra a falta de braços que soffre a agricultura, as artes, o commercio e a viação publica, em consequencia da emigração para o Brazil? Mas como é que nós, vendo esse mal, realmente grande, não vemos outro muito maior — o do perdimento de muitos milhões de dias de trabalho, gastos em idas e vindas á capital do districto para satisfazer ás exigencias da lei do recrutamento!

Saí, senhores, dos grandes centros de população, aonde se ignora completamente o viver dos povos de provincia; descei a um concelho rural que esteja a dez leguas da capital do districto, e que tenha duzentos mancebos recenseados (tendes muitos n'estas circumstancias); descei e vereis que não são duzentos mancebos sómente que vão á capital do districto, porque vão com elles os paes, ou as mães, ou os tios, ou os tutores, ou os irmãos, ou os amigos! Pelo menos uma pessoa por cada mancebo! São pois quatrocentas pessoas em logar de duzentas que vão á capital do districto!

Dez leguas em um paiz sem estradas, como é o nosso, levam dois dias a vencer; são por consequencia oitocentos dias de trabalho que se perdem para ir á capital do districto, e outros oitocentos para voltar, e ahi temos mil e seiscentos dias perdidos em ida e volta! Addicionae-lhe agora, pelo menos, outros dois dias para requerer ser inspeccionado e esperar o resultado; e ahi temos mais oitocentos dias perdidos, e por consequencia dois mil e quatrocentos dias gastos sem precisão (por um mero luxo de complicar e difficultar tudo), para se examinar se duzentos mancebos são ou não são aptos para o recrutamento!!! É pungente o sudario que vos apresento? Pois é verdadeiro!

Agora applicae este desperdicio de tempo a todos os concelhos do reino, em maior ou menor escala, segundo a distancia a que estanciam da capital dos respectivos districtos, e ao numero de mancebos recenseados que haja em cada um, e ahi tendes a pagina mais perniciosa da nossa lei do recrutamento.

Da emigração para o Brazil, comquanto seja um grande mal, ainda se colhem alguns bons resultados; porque muitos dos nossos concidadãos que sairam pobres da patria, voltam grossos capitalistas; e não poucos têem dado um optimo destino á sua fortuna, já dotando os estabelecimentos pios do reino, já fundando magnificos estabelecimentos fabris, já concorrendo para o desenvolvimento da agricultura, para o embellesamento das nossas villas e cidades, e abastando de numerario os mercados nacionaes.

Mas do perdimento de tantos milhares de dias de trabalho que se desperdiçam em idas e vindas á capital do districto; e das indispensaveis despezas que essa pobre gente é obrigada a fazer, o que resulta — vexame e perda para elles e prejuizo para o paiz que, no atrazo em que se acha em relação ás outras nações da Europa, precisa economisar primeiro que todos os outros capitaes, o precioso capital do tempo.

Pelo que deixo dito já vedes, senhores, que eu quero o recrutamento feito no municipio, com recurso para o conselho de districto. Quero ainda mais: quero que se elimine o recurso para o conselho d'estado, para onde só recorrem os protegidos da fortuna. Alem d'isto o conselho d'estado, respeitavel pela sua alta posição e pela grande capacidade de seus membros, tem muitos outros negocios publicos de maior alcance com que se occupe; e por este motivo as suas resoluções são sempre morosas, e não podem deixar de o ser, porque ss. ex.ªs não podem attender a tudo (tal ha sido a frenetica moda de mandar tudo para o conselho d'estado)!

Eu bem sei, senhores, que durante o tempo em que o apuramento se fazia nos municipios, se praticavam alguns abusos, algumas padrinhagens, mais ou menos bem justificadas! Mas agora não se praticam menos; e o exercito nunca esteve em tão mingoada força como tem hoje!! Digo mais — nunca a lei do recrutamento foi tão escarnecida como o tem sido desde 1859! Nunca houve tanta facilidade de a escarnecer! Porque a divisão dos contingentes, tendo por base o recenseamento e não a população, dava margem como nenhuma outra disposição para se illudir o espirito da lei! Era mesmo uma negaça que seduzia as mais rigidas probidades! Era uma especie de perrexil que aguçava o appetite de fazer rasgões, e grandes rasgões, na lei do recrutamento!

Praticaram-se e praticam-se abusos, e hão de praticar-se sempre; e esta e outras leis hão de ser sempre uma ficção, emquanto os governos (quaesquer que sejam) quizerem que os magistrados administrativos, em vez de executores da lei e zeladores do seu cumprimento, sejam machinas de fazer eleições.

Emquanto os governos não desonerarem os magistrados administrativos de um mister tão inconveniente e tão inconstitucional; emquanto a influencia eleitoral for a condição, sine que non, da sua conservação nos cargos, crede, senhores, que elles hão de ir por força transigir com quem possa tirar ou dar-lhes votos; que hão de ser cegos ao cumprimento das leis, e um ridiculo joguete entre as veleidades governativas e os caprichos das influencias locaes; e o recrutamento ha de ser sempre um amontoado de injustiças, e a lei uma mentira, quer façaes o apuramento no municipio, quer na capital do districto.

Dê-se aos magistrados administrativos uma posição segura e independente; dispensemos do ingrato mister da agiotagem eleitoral; deixem aos eleitores a livre franquia de escolher os seus representantes; e com isso lucrarão as instituições, a ordem e a moral publica; as leis serão cumpridas, o recrutamento será feito com justiça e sem vexames, e o exercito terá soldados.

Perdoae-me, senhores, esta divagação, sobre disposições que não podem ter cabida em uma lei do recrutamento, embora tenham com ella uma intima connexão; perdoa-me, porque eu não pude resistir á tentação de vos mostrar a necessidade de fazer assentar em bases mais convenientes a nossa administração publica. Todavia, reconheço que são precisas leis especiaes sobre o assumpto, e confesso a minha insufficiencia para as confeccionar.

Eu não venho propor-vos uma lei completa de recrutamento, venho propor-vos uma emenda á que existe: deixando mesmo de indicar muitas disposições que julgo uteis e algumas indispensaveis (como, por exemplo, algum favor á lavoura), porque ellas fazem parte das propostas que sobre o objecto em questão foram já remettidas para a mesa por cavalheiros que me precederam; e seria uma ridicula vaidade repetir, como meu, o que ss. ex.ªs já disseram: exceptuo porém d'esta minha abstenção a medida proposta pelo nobre ministro do reino, sobre perdão aos refractarios dos recrutamentos de 1856 a 1860, porque ella é indispensavel para o meu projecto ter conveniente execução, se, tendo a fortuna de ser apreciado por vós, for convertido em lei.

Talvez, senhores, que eu esteja em erro: mas crede que venho revelar-vos o que me diz a consciencia, auctorisada pela pratica dos negocios administrativos, e por mais de vinte e cinco annos vividos na intima convivencia com os povos de provincia; e é fundado n'essa convivencia, n'essa pratica e n'esse viver, que eu tenho a honra de vir submetter á vossa illustrada consideração o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.º A idade para o recrutamento do exercito será, de ora ávante, a de vinte e um annos completos até aos vinte e dois annos, e serão chamados como subsidiarios os