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Discurso pronunciado na sessão de 16 de março de 1866, e que devia ter sido publicado no Diario de Lisboa n.º 62, pag. 834, col. 1.ª, lin. 60.

O sr. Francisco Luiz Gomes: — Parece-me que tenho a palavra sobre a ordem e para um requerimento. Não sei se a camara quererá que use antes da palavra sobre a ordem (Vozes: — Falle, falle.), posto não ser este o costume. (Vozes: — Falle.)

Sr. presidente, na altura do debate e depois do que tão largamente têem dito os oradores que me precederam, muito pouco me resta a dizer. E senão cedo da palavra, não m'o hajam á vangloria, antes á exigencia da minha especialissima situação.

Grave é esta questão (apoiados), posto que seja pequena na apparencia (apoiados), Necessario é adverti-lo, pois o não suppõem muitos dos que me ouvem, parece antes que julgam o contrario.

No pouco que posso e vou dizer ácerca d'ella é provavel que não agrade a ninguem, nem este é o meu fim. Determino dizer a verdade, e só a verdade, com toda a sinceridade com que a sinto no meu animo. Se ha materia em que devamos dize-la franca e com desassombro é esta (apoiados), tão vasta e importante que abrange os interesses passageiros da terra e os interesses eternos do céu. Da fé e do imperio é pois a questão como de dilatar a fé e o imperio por essas regiões da Africa e Asia, foi todo o empenho dos antigos filhos d'esta terra.

Começarei por desagradar ao sr. Pinto Coelho. Faço-o com repugnancia e forçado do zêlo da verdade. Disse o nobre deputado que = a propaganda não nos combatia, e que os nossos inimigos eram talvez os protestantes. Não nos combate a propaganda que nos expulsa da India ingleza; não nos combate a propaganda que priva com infamia os nossos padres das igrejas mais ricas para depois as despojar das suas riquezas (apoiados); não nos combate a propaganda que affronta os nossos missionarios de injurias, e depois de mortos e sepultados lhes desenterrar os ossos (apoiados); não nos combate a propaganda que exige altar contra o altar é oppõe cruz á cruz; não nos combate a propaganda que semeia a discordia, a guerra e a anarchia (apoiados) no seio de uma religião que é toda fraternidade e amor!!

Não accuso ninguem. Não faço mais do que repetir fielmente os factos que foram referidos na outra casa do parlamento, em 1857, pelo nobre visconde de Ourem. Quantos conheceram este cavalheiro sabem que elle era incapaz de faltar á verdade, e quantos me conhecem a mim hão de me fazer a justiça de acreditar que sou incapaz de repetir a calumnia. Estes factos chegaram ao conhecimento do summo pontifice, enterneceram o seu coração e sobresaltaram o seu animo sempre propenso para a paz e justiça. Resultou d'aqui um inquerito rigoroso na India ingleza; os accusados responderam, negando absolutamente os factos e chamando calumniador ao nobre visconde de Ourem. Acudiu immediatamente a imprensa de Goa e o sr. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, sentinella vigilante e incansavel do padroado portuguez (apoiados), apontou os logares onde esses factos tinham tido logar, nomeou os auctores d'elles, declarou as circumstancias e assignou as datas. Não houve replica, porque não é possivel para a verdade demonstrada com tanta miudeza e distincção (apoiados).

Para apertar o argumento podia allegar mais factos, e alguns de tanta impiedade que metteriam em duvida a minha sinceridade, mas reservo-me para occasião mais azada.

Não se infira das minhas palavras a conclusão que na propaganda não ha senão impios. Não, senhores; ha tambem alguns homens doutos e virtuosos que merecem a nossa veneração. Seria injustiça confundi-los com os outros.

Não sei se os protestantes são nossos inimigos; o que posso affirmar é que são elles quem nos tem defendido das invasões da propaganda, restituindo-nos as igrejas que haviam sido arrancadas pela violencia.

Dadas estas explicações ao nobre deputado, vou entrar na materia.

O facto referido pelo meu nobre amigo, o sr. Levy, é importante, porque é um attentado contra a nossa suzerania; é importante porque é um attentado contra o nosso direito do padroado; é importante porque é uma infracção de todas as praticas e fórmas internacionaes; e mais importante ainda, quanto a mim, porque revela o proposito firme em que está Roma de nos disputar o padroado em toda a parte e por todos os modos (apoiados. — Vozes: — Essa é verdade).

Qual é o estado do nosso padroado? Já o sr. Silveira da Mota, que me precedeu no debate, fez a descripção muito fiel do estado actual das cousas. Não é elle muito esperançoso.

Que vemos nós na Africa? Retalhada a diocese de Angola, e erigido Congo em um vicariato apostolico sem o accordo do governo portuguez, e sem ser ouvido o respectivo bispo. Não se guardaram as bullas pontificias, nem foi observado o direito canonico (apoiados).

Que vemos nós na China? Sophismada a jurisdicção do bispo de Macau, aliás tão claramente determinada na ultima concordata que se fez com a santa sé.

Que vemos na India? Adiar indefinidamente à nomeação do commissario pontificio, adiada a circumscripção das dioceses e prolongado o statuo-quo que é todo a favor da propaganda (apoiados) e todo contra nós.

E póde o governo estar com os braços cruzados diante d'este estado? Não póde, não deve (apoiados). Não póde porque é portuguez, e como tal deve lembrar-se de que o padroado, que hoje é tão facil de disputar, fôra difficilimo de conquistar, que custára o sangue, a vida e o martyrio de muitos filhos d'esta terra, que com audacia espantosa e nunca imaginada contrastaram a furia de mares e povos desconhecidos, e com o esplendor da sua gloria allumiaram um seculo, e escureceram todos os passados (muitos apoiados).

Não deve porque cumpre aos governos manter a integridade da nação. E a integridade de uma nação não é só a integridade do territorio. É a integridade da sua dignidade, é a integridade dos seus direitos, é a integridade das suas glorias, é a integridade da sua historia (apoiados).

Volto á questão do Congo. Satisfez o governo a todas as obrigações que lhe impunham os seus brios de portuguez, e os seus deveres de governo? Entendo que sim. Por emquanto não podia fazer mais.

Bem andou o governo em protestar energicamente perante a côrte de Roma; bem andou o governo em pedir a reparação da offensa que soffremos na nossa dignidade; bem andou o governo em permittir que os religiosos francezes fossem missionar no Congo, dispensando-os de algumas formalidades, que é verdade, as leis antigas exigiam, mas que a civilisação moderna revogou com o seu espirito que vale mais do que a letra das leis. A essencia d'essa antiga legislação era que os missionarios estrangeiros se submettessem a El-Rei de Portugal, e ás nossas leis, e prestassem obediencia ao ordinario do logar; essencia que o actual governo guardou fielmente. Isto basta. Queriam os que censuram o governo que elle obrigasse os missionarios a seguirem na nau da viagem, como mandavam as antigas leis? O governo procedendo como procedeu, deu uma prova de que não fecha as portas da nossa Africa áquelles que a quizerem esclarecer com a doutrina catholica. Não consentiu no contrabando; permittiu o mais santo commercio. Não fez do mais honroso direito, o mais absurdo monopolio. Repito, isto basta.

Se o governo tinha ou não faculdade para dispensar essas formalidades, não o direi eu, porque não costumo repetir os argumentos quando os acho fortes. E n'esta parte as rasões que apresentou o meu respeitavel amigo o sr. Mártens Ferrão são de tal força que não serão facilmente refutadas.

Mas o negocio não acabou, e peço para o futuro toda a energia ao governo. Não sei porque rasão, ou porque fatalidade os governos são pouco diligentes nas questões com a côrte de Roma. Assim o creio de muitos governos que passaram, assim o temo d'este.

Tenho toda a confiança na justiça do summo pontifice. Se abatermos a calumnia que continua a interpor-se entre a luz do seu juizo e as nossas intenções, elle nos ha de ver quem somos, ha de julgar-nos como merecemos.

«Vós não tendes padres, dizem os nossos inimigos, e já o repetiu n'esta casa um compatriota nosso, que possam levar a luz a tantas gentes; vós não tendes pastores que apascentem tamanhos rebanhos, e as vossas dioceses são illimitadas.» E o summo pontifice, por instituição divina, tem o dever de acudir ás necessidades espirituaes dos povos confiados ao seu cuidado. A sua responsabilidade é vasta como a humanidade e importante como o céu.

Eu aceito completamente esta doutrina. Ainda mais: a par do direito divino do summo pontifice, eu ponho tambem o direito que têem os povos, que vivem nas trevas, de serem allumiados da luz do Evangelho, de deixarem de ser uma materia de exportação, uns fardos de algodão, e de começarem a ser homens perante os homens como o são perante Deus. Prezo-me de pertencer á nação portugueza, mas prezo-me tambem de ser humanitario.

Os direitos da nação não podem ser superiores aos direitos da humanidade. Eu considero o direito do padroado por todas as suas faces. Sou o primeiro a reconhecer que ella não é sem deveres. Tem-nos e immensos.

Não é um direito absoluto. É tambem um encargo. O padroado não póde ser uma decoração, um direito esteril para nós, esteril para a humanidade, esteril para Deus (apoiados).

Mas o que não posso admittir é que os nossos inimigos se escusem das suas invasões com a nossa negligencia.

Não temos padres! Não tinhamos padres em 1820 e 182& quando havia ainda em Goa os conventos, esses mineiros abundantissimos de missionarios e religiosos? Pois as invasões datam d'essa epocha. Não temos padres! E como os havemos deter, se Roma não nos confirma os bispos (apoiados). Se Roma deixa vagas as dioceses vinte e trinta annos (a de Goa esteve vaga ultimamente dez annos e as suffraganeas o estão ha perto de trinta); se Roma censura o bispo de Macau por ter ido á India conferir as ordens; se Roma excommunga quatro ecclesiasticos que acompanharam o bispo de Macau e o ajudaram na ordenação. Lembra-me isto o que fazem as creanças que dissipam as azas ás borboletas e depois se enfadam com ellas por não voarem (riso).

As nossas dioceses são illimitadas. E porque não se faz a circumscripção? De quem é a culpa? Não está nomeado pelo governo o commissario?

E se é o zêlo apostolico que leva os propagandistas a invadir o nosso direito, então porque é que não se sujeitam elles ás nossas leis e bispos? Porque não vão como íam os antigos missionarios, que voavam como as nuvens levando a toda a parte a chuva e os trovões. A chuva, na phrase energica e elegante de um grande orador, era a doutrina com que fertilisavam a terra, e os trovões os milagres com que assombravam o mundo.

Do que acabo de dizer infiro duas conclusões: a primeira, que o nosso zêlo longe de evitar as invasões, parece antes as ter excitado; a segunda, que a culpada das culpas que nos querem imputar é a propria Roma.

Vejamos agora a outra face da medalha. Temos nós exercido em toda a Africa portugueza o direito do padroado como elle deve ser exercido? Temos ali sacerdotes sufficientes que esclareçam com a luz da sua doutrina, e edifiquem com a virtude das suas obras aquellas vastissimas gentilidades? Temos nós ali missionarios que chamem aquelles infieis ao gremio da igreja, e que confirmem na sua fé os que apenas são christãos, que nunca o foram de vida e costumes como o são de baptismo? A resposta é lastimosa. Devo da-la porque prometti dizer a verdade.

(Pausa.)

Não temos.

O sr. Pinto Coelho: — Apoiado, apoiado.

O Orador: — Ainda bem que comecei a agradar ao nobre deputado.

O sr. Pinto Coelho: — É sincero no que me agrada e no que me não agrada. Faço-lhe esta justiça.

O Orador: — Eu agradeço o conceito em que me tem e as suas palavras, das quaes concluo que tenho cumprido fielmente a promessa com que comecei este discurso. Devo porém advertir que eu não me refiro á India nem ao Congo determinadamente, mas a toda a Africa portugueza.

É necessario que tratemos de organisar a administração ecclesiastica no ultramar. E n'esta parte vou expender uma opinião que não está em contradicção com a que ha tempo expendi n'esta casa, mas que é, não o quero negar, uma modificação d'ella. Ria-se quem quizer e podér d'esta mudança de opinião. Temos o dever, muitas vezes penoso, de dizer o que sentimos, de fazer politica da consciencia e verdade, e não verdade e consciencia da politica. Entendo que nós não podemos satisfazer como devemos ás necessidades do padroado, sobretudo na Africa por dois meios: com muito dinheiro, ou com dois seminarios, um na Asia e outro na Africa, e duas corporações de missionarios n'estas duas partes do mundo. Não fallo das ordens monasticas nem das regulares. Fallo do espirito da corporação animando o espirito religioso, e avivando o zêlo com o exemplo e com a disciplina; fallo de corporações conformes á luz do seculo e ao systema que nos rege. Não quero que resuscitem o passado.

Sabe a camara as difficuldades que encontra o governo quando quer mandar um missionario para a Africa? O sacerdote ou recusa-se formalmente, ou pede vantagens extraordinarias. Vejo no primeiro caso falta do serviço, no segundo caso serviço caro. Estas difficuldades não me espantam, antes são naturaes. O sacerdote habituado á vida domestica, á companhia da familia e outras, difficilmente troca estes commodos pelas durezas dos rochedos e pelas soledades dos desertos da Africa; difficilmente deixa os ocios, fartos pelas perseguições, trabalhos e pobrezas inseparaveis do cargo de missionario.

O sr. Pinto Coelho: — O sr. José Julio que responda a isso.